23 janeiro 2007
Intolerância
Pedro Mendes Lima enviou-me o texto que se segue, versando o "tema do dia" e que publico na íntegra.
«Este pobre Portugal, que não é assim tão diferente dos demais países à sua volta, é cada vez com maior frequência varrido por ondas de vibrante indignação. Calha sê-lo agora, uma vez mais, a propósito de uma miudita e dos acontecimentos judiciais conexos com o seu conturbado destino e o das pessoas que sucedeu envolverem-lhe a existência.
A questão merece, como poucas, algumas reflexões que relevam do concreto caso humano, evidentemente, mas que se extrapolam facilmente para ilustração da degenerescência ética e política de um povo e, muito em especial, das suas supostas elites culturais e sociais.
A crédito de uma exposição opinativa serena, creio ser de extrema utilidade estar alerta para os perigos da “indignação” fácil e pronta a usar – sob a máscara simpática dela ficam com frequência ocultas as fauces bestiais da intolerância. Para exemplo, como se fosse preciso, ocorre trazer à colação um recente facto da luta política do momento e que, da forma habitual, passou despercebido.
Um certo líder político partidário exprimiu a sua opinião sobre uma questão que vai ser submetida a referendo, em concreto e por miúdos dizendo que se uma determinada conduta, por ora criminalmente ilícita, representa (e na sua opinião representará) um mal objectivo, então não é por ser frequentemente levada a cabo em clandestinidade que deve ser descriminalizada, para que deixe de ser clandestina. Ilustrou o argumento com o tráfico de droga e outras malfeitorias. Uma outra dirigente partidária logo reagiu manifestando publicamente a sua... “indignação”, pois claro! Dispensou-se, está bom de ver, do rebatimento (obviamente possível) de tal argumentário, porventura contrapondo-lhe outras razões também decantadas pela lógica (como se faltassem). Talvez os mecanismos discursivos da intolerância e da opressão lhe não sejam alheios, mesmo no domínio do consciente e ao menos a julgar pelas manifestações históricas da ideologia que a dita senhora há longos anos assume; certa, no mínimo, é a vantagem que no tempo contado do espaço comunicacional dos media uma indignação fulminante de Vestal ultrajada proporciona, relativamente a um argumento racional que a multidão pela maior parte toma como obscuro... O que sobra, e a muita gente não importa, é a implícita relegação do adversário, que apenas usou um argumento, melhor ou pior mas racional e compreensível, para a categoria cada vez maior das pessoas que fazem ou dizem coisas vis e indignantes, podendo por isso ser desabrida e brevemente despenhadas pelas ravinas da ignomínia.
As ligações íntimas destas metodologias argumentativas, por assim chamar-lhes, com o totalitarismo, são coisa velha e relha, foram a matéria das indagações de muitos sábios e tema de grandes escritores, dos quais destaco apenas o grande Orwell, de quem tanto se fala mas que é tão mal conhecido. Fenómenos modernos como a political correcteness ou, para o que neste escrito interessa, a fúria indignada da multidão em relação a um assunto que manifestamente não domina nem está na sua natureza dominar, são manifestações epidérmicas mas reveladoras de uma corrente profunda de desagregação dos valores que tornaram a Polis apenas suficientemente refractária à barbárie da tirania. No que me respeita, trazem sempre à recordação, e respectivamente, a “novilíngua” e os colectivos “momentos de ódio a Goldstein” de «1984» - nunca deixa de surpreender, o valor heurístico e profético deste livro.
Quando refiro totalitarismo, mais do que mera ditadura ou até tirania, meço a palavra e procuro dar-lhe o seu real valor de uso, não o do seu constante abuso. O que está por baixo daqueles fenómenos e os motoriza não é um simples projecto social, organizado ou difuso, de imposição heterónoma de poder, é a vontade de conduzir a sociedade a uma uniformidade de pensamento, forçar o conjunto e cada um dos indivíduos a aderir activamente ao projecto social global e total, assumindo as linhas de força ideológicas que o caracterizem – fazer enfim o Homem Novo, alegre e acrítico papagueador das verdades produzidas pelos Grandes Irmãos do momento. A liberdade de consciência, a opinião livremente formada de cada um, a dissensão ideológica, tudo isso será no fim nada mais do que o fruto doentio de uma qualquer disfunção social, uma patologia a ser objecto de estudo dos sociólogos e dos psicólogos, reclamando assistência terapêutica quando não tratamento policial e judiciário.
Vindo então ao caso do momento, àquele que, referido na “novilíngua” agora em uso e conforme às últimas edições do “Dicionário”, tem apaixonado a opinião pública, comece por atentar-se no espectáculo com que a “tele-tele” do Estado brindou a Nação, certamente pela maior parte entusiástica. Em jeito de jacquerie moderna, desta feita não conduzida pelo sans cullote da gadanha e sem sangueiras, mas antes por uma mais pacífica apresentadora televisiva, fardada em competente tailleur e de microfone em riste, teve lugar um linchamento da Razão. Uns puderam ser percorridos por frémitos de “debate público”, volúpias de “democracia participativa” e, em geral, vibrantes delícias de fulgurante empenho no “bem comum”; outros, muito simplesmente, tiveram medo. Como fui destes últimos, e confessando os meus débitos à virtude da coragem, não tive frieza (e nem paciência, já agora) de sofrer a coisa até ao fim.
Incompletos embora, os meus tormentos, ainda assim pesados, em conjunção com o que do “caso” já fui percebendo (e não seguramente pela “informação”), permitem-me algumas conclusões – na quais deixo de fora a matéria da condenação de um sargento do Exército, pela simples razão que ignoro se o crime era aquele que lhe valeu a pena, ou outro e qual, ou se a dita pena foi muita ou pouca e nem essas candentes questões são as que aqui me importam.
Um cidadão (homem, e por isso predisposto à maldade), manteve um relacionamento aparentemente fugaz e porventura intermitente (talvez não exclusivo) com uma certa cidadã (mulher, e logo presuntivamente uma vítima da sociedade e/ou de circunstâncias adversas). Só por aqui, já podemos ver como o enredo está desde o seu tenro alvor a fazer-se propício à intervenção dos costumeiros campeões das “questões fracturantes”...
Desse relacionamento é gerada uma criança, única inocente segura desta estória, já que há indícios de o pai (além de ser homem, como sublinhei) não ser ou não ter sido ao tempo pessoa de hábitos sociais os mais recomendáveis e que a mãe (apesar de mulher) mais provavelmente ainda se fazia objecto dessa censura – nem falando (por agora) do que depois fez.
Fosse como fosse, o dito cidadão, um qualquer Baltazar deste nosso Portugal, sem as dignidades régias e mágicas que o nome possa sugerir, enveredou pela incompreensível atitude de duvidar da sua paternidade e, ofendendo a pudibunda sensibilidade da mãe e de quase todo o seu sexo, porventura admitiu que no chamado “período legal da concepção” o relacionamento da senhora consigo não tivesse sido marcado pela exclusividade. Animado por essa misógina e ofensiva ideia, dispôs-se apenas, o vilão, a reconhecer a criança como filha e assumir as correspondentes obrigações em se provando que era efectivamente sua filha.
Outros, por certo melhores e mais valiosos cidadãos do que este insignificante e maléfico Baltazar, em especial se estrelas da música pop ou do desporto forem, viriam nos sapatos dele a ser confrontados com a obrigatoriedade de cuidarem da criança, mesmo que a enjeitassem em definitivo, e não em forma condicionada; não foi essa a desdita do nosso Baltazar, que nem por isso ficou melhor. Adiante.
A mãe é que não esteve para delongas. Em poucas palavras e nenhumas trapaças, foi ao notário, reconheceu assinatura em título de doação de filho, e vai daí ofertou a insciente infanta, sem dúvida do seu sangue e da sua carne, a um casal de pessoas em tudo melhores que o dito Baltazar (apesar de uma delas ser homem). Estas receberam-na, acompanhada da documentação, e talvez convencidas de que o registo é mera condição de eficácia perante terceiros, não beliscando a validade da aquisição, começaram a cuidar carinhosamente da nova filha – não duvido por um segundo de que genuinamente amorosas e empenhadas no bem estar dela.
Porém, o destino, tecedor de mil ardis e inexorável, não calhou em esquecer o Baltazar. Com a lentidão própria destas coisas, o processo de averiguação de paternidade lá seguiu (do registo, feito pela mãe, só esta constava...) e na sua sequência os competentes exames lá comprovaram aquilo em que o nosso cidadão punha dúvida: a sua paternidade. Ora este, se bem o dissera melhor o fez – cuidou logo de perfilhar a criança (não foi necessária acção de investigação) e, mais ainda, de requerer regulação do poder paternal que dela lhe atribuísse a guarda. A mãe, não se imagina porquê e apesar da sua condição de mulher, não se terá apresentado como alternativa válida ao tribunal e, desse modo, o Baltazar lá teve, ao cabo de muitas voltas, aquilo que agora queria.
O tal casal é que não foi pelos ajustes. Indignado, ofendido na sua expectativa de prescrição aquisitiva de filha, foi recusando a entrega da pequena ao seu pai. Fundado na evidente prevalência da sua alta “paternidade” de afecto sobre a mera e baixa paternidade simplesmente biológica, argumentou, pouco mais ou menos, que o superior interesse da infanta era continuar consigo e, ao cabo de período deveras longo, lembrou-se de ir ter com os serviços de segurança social para desencadear mecanismos de adopção.
Por essa época, todavia, já do registo constava a incómoda paternidade biológica e já o Baltazar, de colmilhos afiados, reclamara a atribuição do poder paternal que mais tarde lhe veio a ser deferida. O que não impediu os serviços de segurança social de exprimirem o parecer de que a criança deveria ser confiada ao falado casal, com vista a adopção e porque com ele estabelecera significativa relação afectiva, sendo por outro lado alvo do desinteresse dos pais biológicos. A mãe, pobre vítima, coitada, mulher, porque decerto não podia cuidar da filha, e ao oferecê-la com alvará notarial até praticou um acto de amor, tão boas era as pessoas a quem a doou; o pai, esse homem, malandro, porque nem procurou os serviços. Minudências tais como o facto de esse procedimento não ser público nem publicitado, referidas no acórdão que condenou o garboso sargento, nada atenuam da torpeza do Baltazar: ele nem sequer procurou os serviços, logo votou à criança o seu desinteresse, habitual nos homens, e anda a perfilhar e a requerer regulações de poder paternal só para exprimir a sua insondável maldade.
O tribunal é que não quis saber de coisas. A filha é do Baltazar e o casal tem de entregar-lha. Destroçados, sempre preocupados em exclusivo com o superior interesse da criança, de boa fé ignorantes das formalidades devidas em trocas de filhos e nem por um momento tendo pensado em furar a fila dos candidatos a adopção deste país (tais baixezas não o movem), o sargento e a esposa não admitem a possibilidade de “devolver” a filha doada a non domino e não querem saber de transições e mecanismos de minimização dos traumas da transferência; a criança continuar consigo é o Bem, entregá-la ao mero pai biológico é o Mal, e nessa dicotomia não se hesita. Não entregam. Mudam de residência. Fecham as portas. Fogem. Em cima da criança é que o Baltazar, e já agora o tribunal ou a polícia, não hão-de pôr os olhos. E não põem, que a pequena está desaparecida, com a esposa do sargento.
Em tudo isto vão dois anos e meio e a criança ainda com sucesso está subtraída às garras do hediondo Baltazar, duvidante de paternidades. A “opinião pública” comove-se e indigna-se quando este honrado sargento vem a ser condenado pela insensível e inepta justiça em pena de prisão. E mais se indigna e comove quando se dá conta de que em causa está o amor de uns “pais adoptivos”, qualidade subitamente reconhecida ao sargento e à esposa, confrontado com a descartável paternidade “apenas” biológica do Baltazar, que a princípio até duvidou de ser pai. Razão principal proclamada: a criança está há tanto tempo com o casal (dois anos e meio furtada ao pai contra direito dito) que entregá-la finalmente seria já traumático para ela...
Sendo estas as causas eficientes da recente comoção pública, a culminar na aludida jaquerie televisiva, não sei o que nesta mais me perturbou. Por um lado, a multidão a espaços vociferante e a quem a Maria da Fonte de escala, com a habitual autoridade em fazer perguntas e exigir respostas capazes, arrancou sucessivos aplausos com punch lines mordazes, do estilo “então e a justiça em vez de aplicar as leis não devia ser mais humana nestes casos?” ou, mais subtis ainda, “mas enquanto os exames se faziam a criança precisava de comer, essa é que é essa!”. Por outro, cidadãos supostamente responsáveis e alegadamente sapientíssimos em matéria de infância a avançar em termos gerais propostas como a da prevalência da paternidade dos afectos sobre a biológica, meramente acidental. Por outro ainda, e o pior de tudo, o temor estampado no rosto e denunciado nas palavras de uns poucos que, como quem é oferecido em sacríficio, ousaram ainda assim dissentir das evidências ditadas.
Como disse, o que vi chegou-me. Já não tenho ilusões e nem remo contra marés, mas posso fazer duas observações, à reflexão de quem ainda saiba usar o cérebro:
Uma: a filiação adoptiva, que é um bem, não é (para já...) uma alternativa à filiação biológica, que é a natural – é subsidiária, isto é, um recurso de que se lança mão quando a biológica não corresponde ao padrão mínimo exigível;
Duas: se quem faz a constituição e as leis assim o quiser, pode ser alternativa, e pode até já imaginar-se que quem quer ser pai vai ao hospital e traz de lá um filho, seu ou de outro tanto monta, e mesmo que não tenha feito nenhum. Ao fim e ao resto a ligação biológica não é relevante e os “piores” pais (os mais feios, porcos e maus – e porque não dizê-lo, pobres) é que ficam sem crianças.
Há muitos anos, Aldous Huxley congeminou uma coisa parecida no memorável «Brave New World». Tenho dúvidas de que muitos ou a maior parte dos que agora se “indignam” quisessem realmente viver num país assim. Eu não quero.»
A questão merece, como poucas, algumas reflexões que relevam do concreto caso humano, evidentemente, mas que se extrapolam facilmente para ilustração da degenerescência ética e política de um povo e, muito em especial, das suas supostas elites culturais e sociais.
A crédito de uma exposição opinativa serena, creio ser de extrema utilidade estar alerta para os perigos da “indignação” fácil e pronta a usar – sob a máscara simpática dela ficam com frequência ocultas as fauces bestiais da intolerância. Para exemplo, como se fosse preciso, ocorre trazer à colação um recente facto da luta política do momento e que, da forma habitual, passou despercebido.
Um certo líder político partidário exprimiu a sua opinião sobre uma questão que vai ser submetida a referendo, em concreto e por miúdos dizendo que se uma determinada conduta, por ora criminalmente ilícita, representa (e na sua opinião representará) um mal objectivo, então não é por ser frequentemente levada a cabo em clandestinidade que deve ser descriminalizada, para que deixe de ser clandestina. Ilustrou o argumento com o tráfico de droga e outras malfeitorias. Uma outra dirigente partidária logo reagiu manifestando publicamente a sua... “indignação”, pois claro! Dispensou-se, está bom de ver, do rebatimento (obviamente possível) de tal argumentário, porventura contrapondo-lhe outras razões também decantadas pela lógica (como se faltassem). Talvez os mecanismos discursivos da intolerância e da opressão lhe não sejam alheios, mesmo no domínio do consciente e ao menos a julgar pelas manifestações históricas da ideologia que a dita senhora há longos anos assume; certa, no mínimo, é a vantagem que no tempo contado do espaço comunicacional dos media uma indignação fulminante de Vestal ultrajada proporciona, relativamente a um argumento racional que a multidão pela maior parte toma como obscuro... O que sobra, e a muita gente não importa, é a implícita relegação do adversário, que apenas usou um argumento, melhor ou pior mas racional e compreensível, para a categoria cada vez maior das pessoas que fazem ou dizem coisas vis e indignantes, podendo por isso ser desabrida e brevemente despenhadas pelas ravinas da ignomínia.
As ligações íntimas destas metodologias argumentativas, por assim chamar-lhes, com o totalitarismo, são coisa velha e relha, foram a matéria das indagações de muitos sábios e tema de grandes escritores, dos quais destaco apenas o grande Orwell, de quem tanto se fala mas que é tão mal conhecido. Fenómenos modernos como a political correcteness ou, para o que neste escrito interessa, a fúria indignada da multidão em relação a um assunto que manifestamente não domina nem está na sua natureza dominar, são manifestações epidérmicas mas reveladoras de uma corrente profunda de desagregação dos valores que tornaram a Polis apenas suficientemente refractária à barbárie da tirania. No que me respeita, trazem sempre à recordação, e respectivamente, a “novilíngua” e os colectivos “momentos de ódio a Goldstein” de «1984» - nunca deixa de surpreender, o valor heurístico e profético deste livro.
Quando refiro totalitarismo, mais do que mera ditadura ou até tirania, meço a palavra e procuro dar-lhe o seu real valor de uso, não o do seu constante abuso. O que está por baixo daqueles fenómenos e os motoriza não é um simples projecto social, organizado ou difuso, de imposição heterónoma de poder, é a vontade de conduzir a sociedade a uma uniformidade de pensamento, forçar o conjunto e cada um dos indivíduos a aderir activamente ao projecto social global e total, assumindo as linhas de força ideológicas que o caracterizem – fazer enfim o Homem Novo, alegre e acrítico papagueador das verdades produzidas pelos Grandes Irmãos do momento. A liberdade de consciência, a opinião livremente formada de cada um, a dissensão ideológica, tudo isso será no fim nada mais do que o fruto doentio de uma qualquer disfunção social, uma patologia a ser objecto de estudo dos sociólogos e dos psicólogos, reclamando assistência terapêutica quando não tratamento policial e judiciário.
Vindo então ao caso do momento, àquele que, referido na “novilíngua” agora em uso e conforme às últimas edições do “Dicionário”, tem apaixonado a opinião pública, comece por atentar-se no espectáculo com que a “tele-tele” do Estado brindou a Nação, certamente pela maior parte entusiástica. Em jeito de jacquerie moderna, desta feita não conduzida pelo sans cullote da gadanha e sem sangueiras, mas antes por uma mais pacífica apresentadora televisiva, fardada em competente tailleur e de microfone em riste, teve lugar um linchamento da Razão. Uns puderam ser percorridos por frémitos de “debate público”, volúpias de “democracia participativa” e, em geral, vibrantes delícias de fulgurante empenho no “bem comum”; outros, muito simplesmente, tiveram medo. Como fui destes últimos, e confessando os meus débitos à virtude da coragem, não tive frieza (e nem paciência, já agora) de sofrer a coisa até ao fim.
Incompletos embora, os meus tormentos, ainda assim pesados, em conjunção com o que do “caso” já fui percebendo (e não seguramente pela “informação”), permitem-me algumas conclusões – na quais deixo de fora a matéria da condenação de um sargento do Exército, pela simples razão que ignoro se o crime era aquele que lhe valeu a pena, ou outro e qual, ou se a dita pena foi muita ou pouca e nem essas candentes questões são as que aqui me importam.
Um cidadão (homem, e por isso predisposto à maldade), manteve um relacionamento aparentemente fugaz e porventura intermitente (talvez não exclusivo) com uma certa cidadã (mulher, e logo presuntivamente uma vítima da sociedade e/ou de circunstâncias adversas). Só por aqui, já podemos ver como o enredo está desde o seu tenro alvor a fazer-se propício à intervenção dos costumeiros campeões das “questões fracturantes”...
Desse relacionamento é gerada uma criança, única inocente segura desta estória, já que há indícios de o pai (além de ser homem, como sublinhei) não ser ou não ter sido ao tempo pessoa de hábitos sociais os mais recomendáveis e que a mãe (apesar de mulher) mais provavelmente ainda se fazia objecto dessa censura – nem falando (por agora) do que depois fez.
Fosse como fosse, o dito cidadão, um qualquer Baltazar deste nosso Portugal, sem as dignidades régias e mágicas que o nome possa sugerir, enveredou pela incompreensível atitude de duvidar da sua paternidade e, ofendendo a pudibunda sensibilidade da mãe e de quase todo o seu sexo, porventura admitiu que no chamado “período legal da concepção” o relacionamento da senhora consigo não tivesse sido marcado pela exclusividade. Animado por essa misógina e ofensiva ideia, dispôs-se apenas, o vilão, a reconhecer a criança como filha e assumir as correspondentes obrigações em se provando que era efectivamente sua filha.
Outros, por certo melhores e mais valiosos cidadãos do que este insignificante e maléfico Baltazar, em especial se estrelas da música pop ou do desporto forem, viriam nos sapatos dele a ser confrontados com a obrigatoriedade de cuidarem da criança, mesmo que a enjeitassem em definitivo, e não em forma condicionada; não foi essa a desdita do nosso Baltazar, que nem por isso ficou melhor. Adiante.
A mãe é que não esteve para delongas. Em poucas palavras e nenhumas trapaças, foi ao notário, reconheceu assinatura em título de doação de filho, e vai daí ofertou a insciente infanta, sem dúvida do seu sangue e da sua carne, a um casal de pessoas em tudo melhores que o dito Baltazar (apesar de uma delas ser homem). Estas receberam-na, acompanhada da documentação, e talvez convencidas de que o registo é mera condição de eficácia perante terceiros, não beliscando a validade da aquisição, começaram a cuidar carinhosamente da nova filha – não duvido por um segundo de que genuinamente amorosas e empenhadas no bem estar dela.
Porém, o destino, tecedor de mil ardis e inexorável, não calhou em esquecer o Baltazar. Com a lentidão própria destas coisas, o processo de averiguação de paternidade lá seguiu (do registo, feito pela mãe, só esta constava...) e na sua sequência os competentes exames lá comprovaram aquilo em que o nosso cidadão punha dúvida: a sua paternidade. Ora este, se bem o dissera melhor o fez – cuidou logo de perfilhar a criança (não foi necessária acção de investigação) e, mais ainda, de requerer regulação do poder paternal que dela lhe atribuísse a guarda. A mãe, não se imagina porquê e apesar da sua condição de mulher, não se terá apresentado como alternativa válida ao tribunal e, desse modo, o Baltazar lá teve, ao cabo de muitas voltas, aquilo que agora queria.
O tal casal é que não foi pelos ajustes. Indignado, ofendido na sua expectativa de prescrição aquisitiva de filha, foi recusando a entrega da pequena ao seu pai. Fundado na evidente prevalência da sua alta “paternidade” de afecto sobre a mera e baixa paternidade simplesmente biológica, argumentou, pouco mais ou menos, que o superior interesse da infanta era continuar consigo e, ao cabo de período deveras longo, lembrou-se de ir ter com os serviços de segurança social para desencadear mecanismos de adopção.
Por essa época, todavia, já do registo constava a incómoda paternidade biológica e já o Baltazar, de colmilhos afiados, reclamara a atribuição do poder paternal que mais tarde lhe veio a ser deferida. O que não impediu os serviços de segurança social de exprimirem o parecer de que a criança deveria ser confiada ao falado casal, com vista a adopção e porque com ele estabelecera significativa relação afectiva, sendo por outro lado alvo do desinteresse dos pais biológicos. A mãe, pobre vítima, coitada, mulher, porque decerto não podia cuidar da filha, e ao oferecê-la com alvará notarial até praticou um acto de amor, tão boas era as pessoas a quem a doou; o pai, esse homem, malandro, porque nem procurou os serviços. Minudências tais como o facto de esse procedimento não ser público nem publicitado, referidas no acórdão que condenou o garboso sargento, nada atenuam da torpeza do Baltazar: ele nem sequer procurou os serviços, logo votou à criança o seu desinteresse, habitual nos homens, e anda a perfilhar e a requerer regulações de poder paternal só para exprimir a sua insondável maldade.
O tribunal é que não quis saber de coisas. A filha é do Baltazar e o casal tem de entregar-lha. Destroçados, sempre preocupados em exclusivo com o superior interesse da criança, de boa fé ignorantes das formalidades devidas em trocas de filhos e nem por um momento tendo pensado em furar a fila dos candidatos a adopção deste país (tais baixezas não o movem), o sargento e a esposa não admitem a possibilidade de “devolver” a filha doada a non domino e não querem saber de transições e mecanismos de minimização dos traumas da transferência; a criança continuar consigo é o Bem, entregá-la ao mero pai biológico é o Mal, e nessa dicotomia não se hesita. Não entregam. Mudam de residência. Fecham as portas. Fogem. Em cima da criança é que o Baltazar, e já agora o tribunal ou a polícia, não hão-de pôr os olhos. E não põem, que a pequena está desaparecida, com a esposa do sargento.
Em tudo isto vão dois anos e meio e a criança ainda com sucesso está subtraída às garras do hediondo Baltazar, duvidante de paternidades. A “opinião pública” comove-se e indigna-se quando este honrado sargento vem a ser condenado pela insensível e inepta justiça em pena de prisão. E mais se indigna e comove quando se dá conta de que em causa está o amor de uns “pais adoptivos”, qualidade subitamente reconhecida ao sargento e à esposa, confrontado com a descartável paternidade “apenas” biológica do Baltazar, que a princípio até duvidou de ser pai. Razão principal proclamada: a criança está há tanto tempo com o casal (dois anos e meio furtada ao pai contra direito dito) que entregá-la finalmente seria já traumático para ela...
Sendo estas as causas eficientes da recente comoção pública, a culminar na aludida jaquerie televisiva, não sei o que nesta mais me perturbou. Por um lado, a multidão a espaços vociferante e a quem a Maria da Fonte de escala, com a habitual autoridade em fazer perguntas e exigir respostas capazes, arrancou sucessivos aplausos com punch lines mordazes, do estilo “então e a justiça em vez de aplicar as leis não devia ser mais humana nestes casos?” ou, mais subtis ainda, “mas enquanto os exames se faziam a criança precisava de comer, essa é que é essa!”. Por outro, cidadãos supostamente responsáveis e alegadamente sapientíssimos em matéria de infância a avançar em termos gerais propostas como a da prevalência da paternidade dos afectos sobre a biológica, meramente acidental. Por outro ainda, e o pior de tudo, o temor estampado no rosto e denunciado nas palavras de uns poucos que, como quem é oferecido em sacríficio, ousaram ainda assim dissentir das evidências ditadas.
Como disse, o que vi chegou-me. Já não tenho ilusões e nem remo contra marés, mas posso fazer duas observações, à reflexão de quem ainda saiba usar o cérebro:
Uma: a filiação adoptiva, que é um bem, não é (para já...) uma alternativa à filiação biológica, que é a natural – é subsidiária, isto é, um recurso de que se lança mão quando a biológica não corresponde ao padrão mínimo exigível;
Duas: se quem faz a constituição e as leis assim o quiser, pode ser alternativa, e pode até já imaginar-se que quem quer ser pai vai ao hospital e traz de lá um filho, seu ou de outro tanto monta, e mesmo que não tenha feito nenhum. Ao fim e ao resto a ligação biológica não é relevante e os “piores” pais (os mais feios, porcos e maus – e porque não dizê-lo, pobres) é que ficam sem crianças.
Há muitos anos, Aldous Huxley congeminou uma coisa parecida no memorável «Brave New World». Tenho dúvidas de que muitos ou a maior parte dos que agora se “indignam” quisessem realmente viver num país assim. Eu não quero.»