21 janeiro 2007

 

O aborto e o sagrado

Acho que sobre a questão do aborto já escrevi e disse tudo o que tinha para escrever e dizer. Não me apetece nada voltar a repisar argumentos que já expendi com alguma cópia em ocasiões anteriores. Todavia, há coisas a que é difícil resistir. Estão neste caso certos discursos tenebrosos. Por exemplo, esse da denominada “Acção Família”, em cujos folhetos aparece uma imagem de Nossa Senhora, lacrimosa como é de lei, e nos quais se afirma que “Nossa Senhora chora (…) por milhares de inocentes que podem perder a vida antes mesmo de dar o primeiro gemido” e que “o referendo, por si só, já é um acto de ofensa a Deus”, que deve ser desagravado com a reza do terço.
Esta linguagem, que eu ia dizer “nauseante”, estava muito metida lá para o fundo da minha infância e começos da adolescência e traz à tona um catolicismo que pensei que já tivesse acabado e que, se bem me lembro, andou de mãos dadas com um certo regime que foi abolido com o “25 de Abril”.
É uma coisa pasmosa (e que já nesses tempos da minha infância e adolescência me dava que pensar) este tu cá tu lá de certas almas privilegiadas com a Nossa Senhora, permitindo-lhes ver o sofrimento da Virgem e o seu eterno derramar de lágrimas copiosas pelas malfeitorias humanas. Além disso, nunca percebi como se possa estar na posição e no lugar onde a Virgem está e ter tanto sofrimento. Acho que foi por aí que o meu catolicismo, tão fortemente enraizado na tradição familiar, começou a esboroar-se.
A um outro nível, o pároco de Castelo de Vide, cónego e munido da autoridade que lhe dá um doutoramento em Direito Canónico pela Universidade de Salamanca afiança que os cristãos que votarem “sim” são alvo de “excomunhão automática”. Basta essa intervenção favorável ao aborto, que não apenas a intervenção própria dos médicos e enfermeiros que praticam um acto abortivo, para atrair a mais radical censura eclesiástica e colocar um crente fora da comunhão dos fiéis, sem direito a funeral religioso. Mas não só: a simples omissão de votar contra o aborto no referendo é também um pecado mortal gravíssimo. Por isso, adverte: “no referendo, até as irmãs vão sair dos conventos, porque se não incorrem no pecado de omissão.”
Ele ⌠o cónego⌡diz que não está a inventar nada. Que está tudo no cânone 1331.
Vejo o seu dedo fulminador a apontar o fatídico cânone e acho que o filósofo Gianni Vatimo incluiria todas estas atitudes no que ele designa de “sagrado violento”. Ainda é a forma mais comum de sagrado, mesmo a Ocidente.





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