28 agosto 2007
Eduardo Prado Coelho
Sempre li Eduardo Prado Coelho ao longo da vida. Mas li-o praticamente sempre em jornais e pouco em livro. Em livro, li incompletamente Tudo O Que Não Escrevi. O 1.º Volume li-o todo, mas emperrei no 2.º Volume e não passei das primeiras cem páginas. Ainda lá tenho a marca – um postal a sinalizar o ponto do meu aborrecimento. Fartei-me daquele tipo de escrita, a meu ver muito intelectualizada, muito feita da pose do intelectual que voluptuosamente se põe em cena, como acho que dele disse (apreciativamente ou, pelo menos, não depreciativamente) Eduardo Lourenço. Para mim, o diário é outra coisa.
Também li integralmente Hipóteses de Abril, lembram-se? É um livro com o seu pendor estalinista, escrito a seguir ao “25 de Abril”, em Junho de 1975, em que Prado Coelho era todo Partido Comunista e a lançar uma piscadela de olhos aos camaradas da UDP. Aliás, o livro foi lançado pela editora Diabril, de que cheguei a ser sócio, juntamente com Artur Maurício, Rui Pinheiro e não sei se mais algum magistrado, entre nomes mais ou menos sonoros e mais ou menos marcados ideologicamente (como poderia ser de outro modo naquele tempo?), como Casimiro de Brito, Orlando Neves, Luso Soares e José Saramago.
De resto, como disse, tirando alguns prefácios ou posfácios a livros de outros escritores, sempre o li em jornais – e ele foi em grande parte um homem de jornais, faceta a que sacrificou outras, nomeadamente a de académico. Praticamente lia tudo o que ele escrevia, não “Tudo O Que Não Escreveu”, como já dito. Desde as páginas do suplemento literário do Diário de Lisboa, ainda estudante em Coimbra (lembram-se daquela polémica brava com Virgílio Ferreira, a propósito do estruturalismo?), passando por revistas de cinema, pelo Jornal Novo, pelo vespertino A Capital, pela revista Opção, pelo Jornal de Letras, pelo suplemento Mil Folhas do “Público”, e por uma série de publicações mais, umas vezes com carácter esporádico e outras, regular, até, mais recentemente, às crónicas diárias do referido jornal “Público”, sempre o vinha acompanhando com proveito. Nesse aspecto, posso dizer que alguma da minha formação intelectual a devo ao que ele foi escrevendo durante estas décadas e foi através dos seus artigos ou ensaios que tentei perceber algo que de novo ia surgindo no horizonte cultural (e ele era um excelente introdutor de novidades, às vezes dando a impressão de se confinar a esse papel) ou uma obra mais complexa ou de leitura menos acessível. Cheguei a reler as mesmas obras em edições posteriores à 1.ª edição, por causa dos prefácios ou posfácios de sua autoria com que essas edições vinham enriquecidas. E, em matéria de cinema, também isso aconteceu, estando-me a lembrar das luminosas críticas que ele fez a Ívan, o terrível, de Sergei Eisenstein, a 2001, Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e aos filmes de Tarkovsky, que ainda conservo nos meus arquivos (isto, para falar de coisas antigas, que deixaram um rasto indelével na minha memória).
Quanto às crónicas diárias no “Público”, li-as quase sempre, começando a leitura do jornal exactamente por elas, como se fosse uma pílula de boa disposição que eu tomasse pela manhã para me revigorar durante o dia. Uma forma de começar o dia de uma maneira íntima, recolhida, centrado na vibração humana de existir, antes de encarar a tropelia da vida quotidiana e o quanto ele nos traz arredados de nós mesmos. Porém, ultimamente cansei-me das crónicas e já não começava a leitura do jornal por elas, e muitas vezes nem sequer as lia. Não há nada que não canse, mesmo os bons cronistas. Além disso, irritavam-me já certos tiques, certos amiguismos, mesmo certas banalidades e as oscilações políticas de Eduardo Prado Coelho. Isto não quer dizer, porém, que ele tenha deixado de me interessar. Muito pelo contrário: sinto a sua ausência como uma verdadeira perda no universo cultural.
PS - Afinal, talvez retome o 2.º volume de Tudo O Que Não Escrevi. Li um trecho à sorte e gostei.
Também li integralmente Hipóteses de Abril, lembram-se? É um livro com o seu pendor estalinista, escrito a seguir ao “25 de Abril”, em Junho de 1975, em que Prado Coelho era todo Partido Comunista e a lançar uma piscadela de olhos aos camaradas da UDP. Aliás, o livro foi lançado pela editora Diabril, de que cheguei a ser sócio, juntamente com Artur Maurício, Rui Pinheiro e não sei se mais algum magistrado, entre nomes mais ou menos sonoros e mais ou menos marcados ideologicamente (como poderia ser de outro modo naquele tempo?), como Casimiro de Brito, Orlando Neves, Luso Soares e José Saramago.
De resto, como disse, tirando alguns prefácios ou posfácios a livros de outros escritores, sempre o li em jornais – e ele foi em grande parte um homem de jornais, faceta a que sacrificou outras, nomeadamente a de académico. Praticamente lia tudo o que ele escrevia, não “Tudo O Que Não Escreveu”, como já dito. Desde as páginas do suplemento literário do Diário de Lisboa, ainda estudante em Coimbra (lembram-se daquela polémica brava com Virgílio Ferreira, a propósito do estruturalismo?), passando por revistas de cinema, pelo Jornal Novo, pelo vespertino A Capital, pela revista Opção, pelo Jornal de Letras, pelo suplemento Mil Folhas do “Público”, e por uma série de publicações mais, umas vezes com carácter esporádico e outras, regular, até, mais recentemente, às crónicas diárias do referido jornal “Público”, sempre o vinha acompanhando com proveito. Nesse aspecto, posso dizer que alguma da minha formação intelectual a devo ao que ele foi escrevendo durante estas décadas e foi através dos seus artigos ou ensaios que tentei perceber algo que de novo ia surgindo no horizonte cultural (e ele era um excelente introdutor de novidades, às vezes dando a impressão de se confinar a esse papel) ou uma obra mais complexa ou de leitura menos acessível. Cheguei a reler as mesmas obras em edições posteriores à 1.ª edição, por causa dos prefácios ou posfácios de sua autoria com que essas edições vinham enriquecidas. E, em matéria de cinema, também isso aconteceu, estando-me a lembrar das luminosas críticas que ele fez a Ívan, o terrível, de Sergei Eisenstein, a 2001, Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e aos filmes de Tarkovsky, que ainda conservo nos meus arquivos (isto, para falar de coisas antigas, que deixaram um rasto indelével na minha memória).
Quanto às crónicas diárias no “Público”, li-as quase sempre, começando a leitura do jornal exactamente por elas, como se fosse uma pílula de boa disposição que eu tomasse pela manhã para me revigorar durante o dia. Uma forma de começar o dia de uma maneira íntima, recolhida, centrado na vibração humana de existir, antes de encarar a tropelia da vida quotidiana e o quanto ele nos traz arredados de nós mesmos. Porém, ultimamente cansei-me das crónicas e já não começava a leitura do jornal por elas, e muitas vezes nem sequer as lia. Não há nada que não canse, mesmo os bons cronistas. Além disso, irritavam-me já certos tiques, certos amiguismos, mesmo certas banalidades e as oscilações políticas de Eduardo Prado Coelho. Isto não quer dizer, porém, que ele tenha deixado de me interessar. Muito pelo contrário: sinto a sua ausência como uma verdadeira perda no universo cultural.
PS - Afinal, talvez retome o 2.º volume de Tudo O Que Não Escrevi. Li um trecho à sorte e gostei.
14 agosto 2007
bela vista...
depois de breve paragem...
continuando viagem...
13 agosto 2007
passeando entre memórias...
12 agosto 2007
e a viagem continua...
09 agosto 2007
motivos inadiáveis...
08 agosto 2007
Manifesto dos cães-polícias portugueses
Nós, cães de investigação criminal portugueses, vimos dirigir o nosso protesto, e também um pedido de solidariedade, a toda a Nação Portuguesa, sem distinção entre animais animais e animais humanos.
Como foi amplamente divulgado, alguns cães de nacionalidade britânica foram na passada semana utilizados na investigação do famoso "caso Maddie", para identificarem "vestígios de corpo humano" no apartamento donde desapareceu aquela criança humana.
Sentimos isto como uma humilhação, uma afronta, e não podemos calar o nosso protesto.
Será que os cães ingleses têm melhor faro que o nosso? Serão mais inteligentes e evoluídos que nós?
A explicação que foi dada para tão insólito facto foi a de aqueles animais caninos estarem especialmente treinados para localizar e identificar os tais vestígios de corpos (animais) humanos.
Mas então, por que não nos prepararam a nós, cães de investigação criminal portugueses, para esse finalidade investigativa? Por que nos educaram (ou deformaram) exclusivamente para snifar essas porcarias de drogas quase sempre de má qualidade, que já nos enjoam a todos?
Sabemos que temos contribuído para fantásticas apreensões de estupefacientes, que já arrecadaram diversos recordes mundiais, ou quase, e isso não deixa de nos orgulhar.
Mas nem sequer nos levam às aparatosas conferências de imprensa em que são apresentadas estas vitórias contra os traficantes. A essas só vão os polícias humanos, descriminando-nos inexplicavelmente.
E todo esse folcore está gasto. Já não vende. Veja-se o contraste com o dito "caso Maddie", que trouxe jornalistas de todo o lado, reportagens intermináveis, enfim, a comunicação social na máxima força.
O que reivindicamos, e para isso pedimos a solidariedade nacional, é sair do ghetto da droga em que nos enfiaram, queremos alargar os nossos horizontes, ampliar conhecimentos, aprender novas técnicas, enfim, conquistar o lugar que o cão de investigação criminal adquiriu no mundo civilizado. Hoje, abre-se um campo vastíssimo de intervenção à nossa acção farejadora. Farejar, é preciso!
Não tendo compreendido isto atempadamente, os nossos superiores hierárquicos viram-se na necessidade de recorrer a cães estrangeiros, o que constitui, repetimos, uma humilhação para todos nós.
Aqui fica o nosso protesto. Que não seja em vão!
Entregamos a divulgação deste manifesto a um animal humano, mas futuramente o nosso protesto, se não for ouvido, pode assumir formas mais caninas.
(Manifesto assinado por todos os cães de investigação portugueses, à excepção de um -também nos cães há "furadores" - e está autenticado com a respectiva impressão digital direita, não reconhecida notarialmente, ao abrigo do programa Simplex, apesar das dúvidas sobre a sua constitucionalidade).
Como foi amplamente divulgado, alguns cães de nacionalidade britânica foram na passada semana utilizados na investigação do famoso "caso Maddie", para identificarem "vestígios de corpo humano" no apartamento donde desapareceu aquela criança humana.
Sentimos isto como uma humilhação, uma afronta, e não podemos calar o nosso protesto.
Será que os cães ingleses têm melhor faro que o nosso? Serão mais inteligentes e evoluídos que nós?
A explicação que foi dada para tão insólito facto foi a de aqueles animais caninos estarem especialmente treinados para localizar e identificar os tais vestígios de corpos (animais) humanos.
Mas então, por que não nos prepararam a nós, cães de investigação criminal portugueses, para esse finalidade investigativa? Por que nos educaram (ou deformaram) exclusivamente para snifar essas porcarias de drogas quase sempre de má qualidade, que já nos enjoam a todos?
Sabemos que temos contribuído para fantásticas apreensões de estupefacientes, que já arrecadaram diversos recordes mundiais, ou quase, e isso não deixa de nos orgulhar.
Mas nem sequer nos levam às aparatosas conferências de imprensa em que são apresentadas estas vitórias contra os traficantes. A essas só vão os polícias humanos, descriminando-nos inexplicavelmente.
E todo esse folcore está gasto. Já não vende. Veja-se o contraste com o dito "caso Maddie", que trouxe jornalistas de todo o lado, reportagens intermináveis, enfim, a comunicação social na máxima força.
O que reivindicamos, e para isso pedimos a solidariedade nacional, é sair do ghetto da droga em que nos enfiaram, queremos alargar os nossos horizontes, ampliar conhecimentos, aprender novas técnicas, enfim, conquistar o lugar que o cão de investigação criminal adquiriu no mundo civilizado. Hoje, abre-se um campo vastíssimo de intervenção à nossa acção farejadora. Farejar, é preciso!
Não tendo compreendido isto atempadamente, os nossos superiores hierárquicos viram-se na necessidade de recorrer a cães estrangeiros, o que constitui, repetimos, uma humilhação para todos nós.
Aqui fica o nosso protesto. Que não seja em vão!
Entregamos a divulgação deste manifesto a um animal humano, mas futuramente o nosso protesto, se não for ouvido, pode assumir formas mais caninas.
(Manifesto assinado por todos os cães de investigação portugueses, à excepção de um -também nos cães há "furadores" - e está autenticado com a respectiva impressão digital direita, não reconhecida notarialmente, ao abrigo do programa Simplex, apesar das dúvidas sobre a sua constitucionalidade).
06 agosto 2007
Hiroxima, segundo Tabucchi
"Sabes quando é que tudo ficou claro para ele? Quando tudo parecia já claro e tinha acabado, a 6 de Agosto de 1945. Às 8,15 da manhã, se queres saber a hora. Naquele dia Tristão percebeu que o monstro vencido estava deixando o seu lugar às monstruosidades dos vencedores... era o segundo crime contra a humanidade deste alegre século que está findando... naquela manhã a primeira bomba atómica utilizada como arma de destruição de massas caiu sobre uma cidade do nosso mundo, reduzindo-a a nada e incinerando duzentas mil pessoas. Digo duzentas mil, mas ponho de parte as milhares mortas depois, e as nascidas mortas, e todos os cancros... e não eram soldados, eram cidadãos desarmados que tinham cometido o crime de não ter culpa nenhuma... Há um lugar, em Hiroxima, chama-se Gembaku Dom, é um pavilhão, quer dizer Cúpula atómica, foi o epicentro da explosão, naquele lugar a temperatura no solo atingiu o mesmo calor da temperatura solar, próximo do monumento com a chama da paz há um pedaço de pedra, é a soleira da porta de um edifício, uma normal soleira como as das nossas casas, onde pomos o tapete para limparmos os sapatos. Dentro da pedra, de mármore, parece-me, absorvida como um mata-borrão chupa a tinta, está a impressão de um corpo humano de braços abertos. É o que resta de um corpo humano que se liquefez na soleira da sua casa às 8,15 daquele 6 de Agosto de 1945... Se quiseres, faz a viagem, vai ver, é uma visita instrutiva... foi dito que aquelas vítimas foram inúteis, a cabeça do monstro já estava esmagada em Dresden e em Berlim e aos americanos, para vergarem o Japão, bastariam aas armas convencionais. É um erro, não foram de maneira nenhuma inúteis, para os vencedores foram utilíssimas, daquele modo fizeram com que todo o mundo percebesse que os novos senhores eram eles... a História é uma criatura glacial, não tem piedade de nada nem de ninguém, aquele filósofo alemão que se suicidou numa pensãozita de fronteira fugindo de Franco e de Hitler e de todos e talvez também de si próprio tinha reflectido muito sobre esta dama sem piedade que os homens cortejam em vão, não lhe deve ter aproveitado muito... nas suas reflexões escreveu que perante o inimigo, se ele vence, nem os mortos estarão seguros... qualquer que seja o inimigo, acrescentaria eu, também o inimigo dos maus, porque para ser inimigo dos maus não se pode ser bom..."
"Tristano muore" (2004)
"Tristano muore" (2004)
O seu a seu dono
No blog Patologia Social o Dr. José António Barreiros atribui-me neste post a autoria deste post sobre o Pacto da Justiça.
Como já fizémos menção aqui houve uma ligeira confusão de contas, pelo que esse post a que se refere o Dr. Barreiros é da autoria do Dr. Eduardo Maia Costa e não meu.
(Post colocado em forma de comentário também no blog Patologia Social)
03 agosto 2007
Eis o que penso, tal e qual
Onde se transcreve uma carta do autor a um ilustre homem público do nosso Reino, agraciado com a Grã Cruz do Grande Mérito Reformista, que lhe pediu opinião sobre o escrito de um poeta, que se alarga em considerações visionárias sobre o medo e a liberdade.
Senhor:
Sendo V.ª Exc.ª uma pessoa mui interessada assim no progresso do nosso Reino, como na sua boa fama no concerto das nações, quis saber qual a minha opinião acerca de um artigo que um poeta dos mais conhecidos na nossa praça da canção deu à luz numa das principais gazetas do Reino, insurgindo-se contra o que ele considera ser o medo que vai grassando por aí e a falta de liberdade que se vai sentindo. Honrando-me deveras o apreço em que, pelos vistos, V.ª Exc.ª tem as pobres considerações que um tão humilde servo de V.ª Exc.ª possa tecer sobre um tão lamentável caso, apresso-me a dizer o que penso, até porque sinto ser meu dever indeclinável tomar partido sobre o assunto, pesando-me na consciência não o ter feito já, por imperativo patriótico, independentemente da amabilíssima solicitação que me dirige.
Pois esse nosso vate, ao contrário do seu próprio nome, que difunde alegria, é um grande triste, um homem que só vê escolhos, negrumes de tempestades e temíveis adamastores, numa visão épica deprimente, como se não nos restasse outra coisa senão vermos afundar definitivamente as naus que um dia foram à Índia e acabarmos assim o nosso destino submersos na tragédia. Esse homem, com as suas barbas brancas e a sua voz tonitruante, o seu verso burilado de fábrica camoniana e a sua oratória de eterno deputado da Nação, esse homem não passa de um Velho do Restelo, a carpir, nos areais de Belém, os males imaginários que nos assolam, enquanto as nossas naus – as naus modernas, filhas do grande choque tecnológico, largam serenamente da barra em direcção às Índias do progresso e do futuro. Ele, esse socialista impenitente, que não soube evoluir no sentido das novas ideias, que fecharam definitivamente o socialismo na gaveta onde Soares cuidou de o meter provisoriamente, já não é capaz de acompanhar as grandes reformas que estão a mudar a face lusíada. Daí, coitado! que só saiba falar do medo e da liberdade contra o medo, do alto da sua Torre de poeta exilado no próprio Reino.
Creio que V.ª Exc.ª sintonizará completamente comigo, ou melhor, eu é que sintonizarei completamente com V.ª Exc.ª, se lhe disser que este poeta anda com a mania de escrever uma epopeia ao invés, em que o novo Adamastor é o medo, e a nova Índia é a liberdade. Mas que medo, afinal? Mas que liberdade? Miragens de poeta! Medo, só se for o de seguir corajosamente em frente, sem olhar a obstáculos, a Sindicatos, a Parceiros Sociais, a manifestações e reivindicações, a protestos das populações e também - ia eu a dizer -, a direitos adquiridos, se esta expressão não fosse demasiado bizarra na época que nos coube viver. Privilégios é que é, pois que outra coisa são emprego certo e estável, negociação colectiva, salários acima da inflação, despedimentos com justa causa, reformas pagas por inteiro e antes da idade devida, isto é, de vida, medicamentos pagos, férias pagas, décimo terceiro mês e tudo o mais que, vigorando ainda, constitui a chamada tralha socialista, essa tralha herdada dos nossos antepassados?
Liberdade? Pois quer-se mais liberdade do que aquela que todos nós gozamos? Como disse uma dama ilustre do governo do nosso Reino, a liberdade não é para qualquer um falar como quer e como lhe apetece e onde lhe der na (salvo seja) real gana, mas nos sítios convenientes. Assim, é que, segundo a tal dama, existe liberdade total para cada qual falar completamente à vontade com a família e com os amigos no interior das suas casas, nas esquinas das nossas ruas e até mesmo nos cafés. Concordo inteiramente com esta concepção de liberdade de expressão e pergunto: Esta missiva em que expresso esta modesta opinião, esperando agradar inteiramente a V.ª Exc.ª, não é a prova provada de que existe a mais ampla liberdade? Pois aqui a tem, a opinião que V.ª Exc.ª me pediu, exarada tal e qual como penso. E creia-me, Senhor: sem esperar nada em troca, a não ser o favor da honrosa Amizade com que V.ª Exc.ª sempre tem distinguido e valido a este
Seu Humilde Servidor
Jonathan Swift (1665-1745)
Senhor:
Sendo V.ª Exc.ª uma pessoa mui interessada assim no progresso do nosso Reino, como na sua boa fama no concerto das nações, quis saber qual a minha opinião acerca de um artigo que um poeta dos mais conhecidos na nossa praça da canção deu à luz numa das principais gazetas do Reino, insurgindo-se contra o que ele considera ser o medo que vai grassando por aí e a falta de liberdade que se vai sentindo. Honrando-me deveras o apreço em que, pelos vistos, V.ª Exc.ª tem as pobres considerações que um tão humilde servo de V.ª Exc.ª possa tecer sobre um tão lamentável caso, apresso-me a dizer o que penso, até porque sinto ser meu dever indeclinável tomar partido sobre o assunto, pesando-me na consciência não o ter feito já, por imperativo patriótico, independentemente da amabilíssima solicitação que me dirige.
Pois esse nosso vate, ao contrário do seu próprio nome, que difunde alegria, é um grande triste, um homem que só vê escolhos, negrumes de tempestades e temíveis adamastores, numa visão épica deprimente, como se não nos restasse outra coisa senão vermos afundar definitivamente as naus que um dia foram à Índia e acabarmos assim o nosso destino submersos na tragédia. Esse homem, com as suas barbas brancas e a sua voz tonitruante, o seu verso burilado de fábrica camoniana e a sua oratória de eterno deputado da Nação, esse homem não passa de um Velho do Restelo, a carpir, nos areais de Belém, os males imaginários que nos assolam, enquanto as nossas naus – as naus modernas, filhas do grande choque tecnológico, largam serenamente da barra em direcção às Índias do progresso e do futuro. Ele, esse socialista impenitente, que não soube evoluir no sentido das novas ideias, que fecharam definitivamente o socialismo na gaveta onde Soares cuidou de o meter provisoriamente, já não é capaz de acompanhar as grandes reformas que estão a mudar a face lusíada. Daí, coitado! que só saiba falar do medo e da liberdade contra o medo, do alto da sua Torre de poeta exilado no próprio Reino.
Creio que V.ª Exc.ª sintonizará completamente comigo, ou melhor, eu é que sintonizarei completamente com V.ª Exc.ª, se lhe disser que este poeta anda com a mania de escrever uma epopeia ao invés, em que o novo Adamastor é o medo, e a nova Índia é a liberdade. Mas que medo, afinal? Mas que liberdade? Miragens de poeta! Medo, só se for o de seguir corajosamente em frente, sem olhar a obstáculos, a Sindicatos, a Parceiros Sociais, a manifestações e reivindicações, a protestos das populações e também - ia eu a dizer -, a direitos adquiridos, se esta expressão não fosse demasiado bizarra na época que nos coube viver. Privilégios é que é, pois que outra coisa são emprego certo e estável, negociação colectiva, salários acima da inflação, despedimentos com justa causa, reformas pagas por inteiro e antes da idade devida, isto é, de vida, medicamentos pagos, férias pagas, décimo terceiro mês e tudo o mais que, vigorando ainda, constitui a chamada tralha socialista, essa tralha herdada dos nossos antepassados?
Liberdade? Pois quer-se mais liberdade do que aquela que todos nós gozamos? Como disse uma dama ilustre do governo do nosso Reino, a liberdade não é para qualquer um falar como quer e como lhe apetece e onde lhe der na (salvo seja) real gana, mas nos sítios convenientes. Assim, é que, segundo a tal dama, existe liberdade total para cada qual falar completamente à vontade com a família e com os amigos no interior das suas casas, nas esquinas das nossas ruas e até mesmo nos cafés. Concordo inteiramente com esta concepção de liberdade de expressão e pergunto: Esta missiva em que expresso esta modesta opinião, esperando agradar inteiramente a V.ª Exc.ª, não é a prova provada de que existe a mais ampla liberdade? Pois aqui a tem, a opinião que V.ª Exc.ª me pediu, exarada tal e qual como penso. E creia-me, Senhor: sem esperar nada em troca, a não ser o favor da honrosa Amizade com que V.ª Exc.ª sempre tem distinguido e valido a este
Seu Humilde Servidor
Jonathan Swift (1665-1745)