03 junho 2009
Também sobre o texto do MAI - As armas e o securitarismo
A meu ver, o a um tempo exaltado e sombrio panfleto do MAI (linkado no postal anterior) ao invés de infirmar as preocupações vazadas no artigo publicado no SOL confirma-as na íntegra – e até as reforça. Antes de entrar mais propriamente pelo escrutínio do mesmo procurarei fixar, com os meus aleatórios conhecimentos, o sentido e alcance da proliferação dos, assim chamados, “crimes de detenção” na actual política criminal, aqui ou seja onde for. Um dos textos mais recentes e porventura um dos mais influentes sobre o tema, é o de um autor norte-americano que insere a dita proliferação na retórica político-criminal de entono belicista (a famigerada War on Crime) que nós, europeus, como sempre, ainda que de nariz empinado e sempre negando, vamos emulando com maior ou menor sofreguidão. De acordo com a análise incisiva de Dubber a dita “Guerra ao Crime” tem três características essenciais: é “preventivista”, no sentido em que se foca na ameaça (no risco) e não no dano; é comunitarista no sentido em que serve para eliminar ameaças não de pessoas concretas mas de grupos (melhor: comunidades) de pessoas; e é autoritária na medida em que, no limite, a comunidade que é protegida é o Estado.
Os crimes consistentes na mera detenção de objectos (paradigmaticamente armas), já se vê, cumprem o papel de actor principal neste filme de classe B que dá pelo nome de “Guerra ao Crime”. Desde logo, os mesmos desempenham manifestamente uma função de extrema antecipação da tutela penal de interesses e valores importantes, como a vida e a integridade física (de modo arquetípico no caso das armas). Tão extrema, disse, que são um dos principais instrumentos de miscigenação entre medidas penais e medidas de polícia – esta é a sua função preventiva. Depois, a história da aludida função comunitarista, ao menos nos EUA (e não será diferente aqui, ainda que de acordo com a lenda Portugal seja imune a impulsos xenófobos), coincide ponto por ponto, no que respeita ao direito penal, ao controlo social de minorias, nomeadamente de imigrantes. O papel desempenhado pela forte penalização da detenção de cocaína e opiáceos e, antes ainda, do álcool, coincidente, no tempo, com distintos fluxos migratórios, é bem ilustrativo do que quero dizer. Por fim, está visto, a elevação da mera detenção de objectos à categoria de crime deu, em geral, naquilo que se chama de modo expressivo de crimes sem vítima, ou o que é o mesmo, aqueles em que a “vítima” é, latu sensu, o próprio Estado – função autoritária. Quanto a esta última função, convém não perder de vista o seguinte: os crimes de detenção servem sempre (e isto independentemente do que eles deveriam servir), aberta ou subterraneamente, para resolver ao nível processual problemas substantivos (com especial relevo para os problemas de prova) e também como modo instrumental de conferir eficácia (real ou aparente) à acção do Estado. Feita esta singela introdução, vejamos o que ela tem que ver com o nervoso panfleto supracitado.
Comecemos por uma das pérolas da nova redacção da Lei das Armas (artigo 95.º-A/4). Reza assim: “As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, nos casos previstos na lei, e devem fazê-lo se houver perigo de continuação da actividade criminosa” (itálico meu). Sob a capa aparentemente indolor dessa formulação alberga-se desde logo uma notória “policialização” do processo penal. Não desconhecerá o legislador (ele mesmo, com potência absoluta, manda que assim devamos presumir) qual a natureza dos crimes de detenção. Trata-se de crimes cuja execução se mantém até que cesse a detenção (para os doutores: crimes permanentes). E portanto, se o meliante detém a coisa (a arma) não há perigo da continuação da actividade criminosa: há actividade criminosa! Ou seja, não havendo em princípio possibilidade de se deter arma ilícita sem executar o crime de … detenção de arma ilícita, então a polícia detém sempre, fora de flagrante delito, sempre que presuma (e sabe-se como funcionam tais presunções…) que o visado detém arma. Breve, deixa de ser necessário intervenção de autoridade judicial, bem podendo o legislador deitar ao lixo o n.º 3 da norma em causa.
Por outro lado, diz-se no escrito em causa que “nenhuma garantia constitucional tutela o assaltante que faz assaltos em cadeia (podendo pelo meio desgraçar um ou vários cidadãos)”. Isto não é verdade, lamento dizê-lo. As garantias constitucionais aplicam-se a todos, mesmos aos “assaltantes em cadeia”. Mas ainda há outro pormenor na citada declaração: é que de entre os crimes previstos na LA não figuram crimes “de assalto” e menos ainda “em cadeia”. Trata-se de crimes de detenção de arma proibida, de tráfico de armas e outros, mas em nenhum caso de crimes que ponham concretamente em causa, ou menos ainda lesem, interesses individuais. Sendo assim, uma tal declaração, mesmo engalanada de juras à liberdade, é sintoma do que acima disse: há quem pense que uma política criminal dura em matéria de detenção de armas é uma forma de punir alguém por factos não apurados. Não se prova o assalto, mas prova-se a detenção. O problema está largamente estudado. O crime de detenção é usado como uma espécie de crime prêt-à-porter e, sobretudo, funda-se na suspeita.
Depois, ao contrário de que ali se refere – e indiciando o sentido securitário da nova regulação – não se poderá visar com o novo artigo 95.º-A “impedir que delinquentes fujam à aplicação de penas e cometam novos crimes” (itálico meu). Com essa norma só pode pretender-se, numa leitura constitucionalmente conforme, que preserve a presunção da inocência, impedir que os suspeitos fujam à Justiça, porque uma das formas de efectivar esta, ultimamente muito esquecida, é a absolvição. Acresce que os detidos com armas são desapossados delas, mesmo quando postos em liberdade pelos juízes laxistas e que se dedicam a torpedear o trabalho da polícia. Assim sendo, o perigo que preocupa o MAI já não reside na (detenção da) arma. Ele recuou ainda mais ao próprio delinquente. É ele, o agente, a fonte de perigo e a prévia detenção da arma é tão só o inapagável indício dessa perigosidade; e é em função dele e não do que faz que a pena se justifica. A isso se chama direito penal do agente, que se usa contrapor ao direito penal das acções, próprios dos Estados liberais. Seja como for, e definitivamente, a possibilidade, aberta pela nova regulação, de poder ser aplicada prisão preventiva pela detenção de um aerossol de defesa com gás pimenta quando tal medida de coacção está vedada no caso de ofensa à integridade física simples (claro que o aerossol pode ser usado como objecto contundente…), põe bem a nu o caldo ideológico de que nutre o diploma: para o legislador, a ameaça, o risco, é mais importante do que o dano (lembram-se da função “preventivista”?).
Por fim, estando longe de mim imputar um tal desiderato ao MAI, não deixarei de sublinhar mais um ponto. A falada LA foi aprovada na sequência de um período em que os crimes violentos alegadamente aumentaram; não só aumentaram como responsáveis por serviços de segurança vieram a terreiro dizer que eles eram obra maioritária de imigrantes. Gasto o tema da pedofilia, aqueles, juntamente com os pais não afectivos, são-nos agora apresentados à hora da janta pelos gestores do pânico moral (leia-se: media) como os novos folk-devils que urge cozer em lume brando (lembram-se da função comunitarista?). É claro, isso não é feito de modo explícito, pois como disse importa não esquecer as lendas: em Portugal, como se sabe, não há xenofobia. Mas a realidade é que o timing da lei e o mais acima dito tornam legítimo pensar que ela terá sido ao menos precipitada. A isso responderá o tempo, quando aos juízes forem imputados, novamente, em jeito ciclotímico, excessos na aplicação da prisão preventiva.
Com tudo isto não quero dizer que discordo das incriminações que constam do direito penal das armas, até mesmo com a penalização da detenção. Quis apenas significar que tal ramo do direito penal é especialmente propício a devaneios securitários. E quem quer manter simultaneamente a ordem penal como uma ordem de liberdade e uma ordem de segurança, poderá iludir-se e não ter nem uma nem outra.