21 fevereiro 2010
O Som e a Fúria
Não, não vou falar destes dias tumultuodos que vivemos,mas sim e apenas do famoso livro de W. Faulkner.
A primeira vez que iniciei a sua leituta foi há mais de 40 anos. Mas, como tantas vezes me aconteceu, a leitura "não pegou". Pu-lo de lao. Ao longo dos anos voltei lá várias vezes, sempre com o mesmo resultado.
Até que há pouco passei um fim de semana a "devorá-lo" (coisa que raramente me acontece) e ao fim passei a inclui-lo na lista dos "livros da minha vida".
O que sucedeu foi simples: tive agora a paciência de avançar às apalpadelas no nevoeiro inicial em que o leitor mergulha. Não se percebe nada, há várias vozes, há uma série de nomes referidos, mas não se percebe quem são, quem fala, de que se fala. Tudo parece incoerente. E na verdade é. Mas pouco a pouco vamo-nos apercebendo que o narrador é um idiota incapaz de um discurso coerente, apenas sensível a estímulos sensoriais, que vai debitando fragmentos de vivências sem lógica aparente. Acabamos por saber que se chama Benjy, que tem um negro encarregado de tomar conta dele, etc.
Múltiplas são as referências e informações fragmentárias que vão ficando e que, mais tarde, encaixarão rigorosamente, pois afinal o romance é um puzzle em que nenhuma peça falta nem sobra.
Segue-se a narrativa de um irmão de Benjy. Chama-se Quentin. O discurso é agora coerente, mas pouco se avança na compreensão da lógica da narrativa. Vamos sabendo que são vários irmãos, é a família Compson, proprietários do Sul, os dramas e a decadência da família vão aparecendo em fragmentos.
Na terceira parte aparece o irmão Jason, o patriarca da família, depois da morte do pai. O nevoeiro dissolve-se quase totalmente. De forma admirável Faulkner consegue desenhar, através da narrativa na primeira pessoa, o perfil deste herdeiro directo dos sulistas anteriores à Guerra da Secessão, racista ("tenho uma cozinha cheia de pretos para sustentar", repete constantemente), puritano, brutal, administrador férreo do património da família, que vê em contínua degradação.
Mas é com a última parte, a cargo de um narrador omnisciente, que ficamos a saber "tudo". Tudo encaixa, tudo é simples e transparente: uma família do Sul, perseguida pela decadência económica e pela infelicidade - idiotia de Benjy, suicídio de Quentin, "mau comportamento" de Caddy, a irmã.
Afinal, era tudo simples. Afinal, o romance podia ter sido lido ao contrário e nenhumas dificuldades teria então a leitura. Isso é certamente uma das coisas admiráveis do romance: poder ser lido da frente para trás como de trás para a frente.
Fica também na retina a figura da Dilsey, a "mãe negra", que é afinal o sustentáculo da família branca. A fidelidade aos "patrões", o sentimento de pertencer também à mesma família e simultaneamente o estatuto de poder que essa pertença lhe conferia no governo da casa e na sobrevivência da família, fazem dela uma figura grandiosa.
Bom, em resumo, recomendo a leitura a quem não leu. A quem já leu, recomendo a releitura. É o que eu vou fazer. Agora de trás para a frente!
A primeira vez que iniciei a sua leituta foi há mais de 40 anos. Mas, como tantas vezes me aconteceu, a leitura "não pegou". Pu-lo de lao. Ao longo dos anos voltei lá várias vezes, sempre com o mesmo resultado.
Até que há pouco passei um fim de semana a "devorá-lo" (coisa que raramente me acontece) e ao fim passei a inclui-lo na lista dos "livros da minha vida".
O que sucedeu foi simples: tive agora a paciência de avançar às apalpadelas no nevoeiro inicial em que o leitor mergulha. Não se percebe nada, há várias vozes, há uma série de nomes referidos, mas não se percebe quem são, quem fala, de que se fala. Tudo parece incoerente. E na verdade é. Mas pouco a pouco vamo-nos apercebendo que o narrador é um idiota incapaz de um discurso coerente, apenas sensível a estímulos sensoriais, que vai debitando fragmentos de vivências sem lógica aparente. Acabamos por saber que se chama Benjy, que tem um negro encarregado de tomar conta dele, etc.
Múltiplas são as referências e informações fragmentárias que vão ficando e que, mais tarde, encaixarão rigorosamente, pois afinal o romance é um puzzle em que nenhuma peça falta nem sobra.
Segue-se a narrativa de um irmão de Benjy. Chama-se Quentin. O discurso é agora coerente, mas pouco se avança na compreensão da lógica da narrativa. Vamos sabendo que são vários irmãos, é a família Compson, proprietários do Sul, os dramas e a decadência da família vão aparecendo em fragmentos.
Na terceira parte aparece o irmão Jason, o patriarca da família, depois da morte do pai. O nevoeiro dissolve-se quase totalmente. De forma admirável Faulkner consegue desenhar, através da narrativa na primeira pessoa, o perfil deste herdeiro directo dos sulistas anteriores à Guerra da Secessão, racista ("tenho uma cozinha cheia de pretos para sustentar", repete constantemente), puritano, brutal, administrador férreo do património da família, que vê em contínua degradação.
Mas é com a última parte, a cargo de um narrador omnisciente, que ficamos a saber "tudo". Tudo encaixa, tudo é simples e transparente: uma família do Sul, perseguida pela decadência económica e pela infelicidade - idiotia de Benjy, suicídio de Quentin, "mau comportamento" de Caddy, a irmã.
Afinal, era tudo simples. Afinal, o romance podia ter sido lido ao contrário e nenhumas dificuldades teria então a leitura. Isso é certamente uma das coisas admiráveis do romance: poder ser lido da frente para trás como de trás para a frente.
Fica também na retina a figura da Dilsey, a "mãe negra", que é afinal o sustentáculo da família branca. A fidelidade aos "patrões", o sentimento de pertencer também à mesma família e simultaneamente o estatuto de poder que essa pertença lhe conferia no governo da casa e na sobrevivência da família, fazem dela uma figura grandiosa.
Bom, em resumo, recomendo a leitura a quem não leu. A quem já leu, recomendo a releitura. É o que eu vou fazer. Agora de trás para a frente!