25 setembro 2010
Ataque ao Conforto
Foram-se as férias num verão ardente, regressaram as aulas e o(s) trabalho(s), as idas e vindas, num vaivém de cá para lá, de lá para cá. Volto a ser consumidor do “Alfa”, semanalmente, ou o “Alfa” volta a consumir-me todas as semanas. Explico: estas viagens podiam ser proveitosas, se houvesse paz para isso. Abro livros para devassar as suas páginas, a intimidade que eles escondem; folheio documentos para os apreender e estudar. Tarefa árdua.
A cada instante, há vozes alheias que assaltam o lugar onde me sento. Vozes vindas de todos os lados, hostis, penetrantes, que irritam, que ferem, que desarrumam toda a tentativa de ordem. Uma voz atrás de mim que ataca de surpresa, descarregando sobre as minhas costas sons ásperos; logo outra, ao lado, que se infiltra de fininho, anavalhando de través, voz de donzela faladora; e outra que salta de um lugar obscuro, como um obus que proviesse de um esconderijo, incitando a identificar o sítio de onde ela, invisível, se expande; depois outra que metralha palavras em série, rajadas cortantes, separadas por pequenos intervalos (é a voz de um tipo emproado, um jovem “yuppie”, um banco atrás do meu, do outro lado); e mais outra, esta de um sujeitinho à frente, de que só diviso um farrusco de barba, atroando descompassadamente, em convulsão, como se estivesse perdido na selva.
Tudo vai bater ali, no meu assento, como se a carruagem fosse uma batalha campal, onde, além das vozes em refrega, soam campainhas, batuques, cornetas e cornetins, numa panóplia musical que é uma espécie de signo tradutor dos caracteres de cada um dos falantes. E é cada um!
Falo, claro, dos telemóveis, essa invenção tecnológica que infestou o mundo de tagarelice. Este é um tema que tenho tratado por várias vezes, até quando escrevia crónicas para o jornal. E não se diga que não é um tema muito sério, até mesmo de saúde pública. Dá a impressão que anda tudo maluco. Perdeu-se por completo a noção das fronteiras, das conveniências, do respeito por nós e pelos outros. Como se, na ausência de qualquer juízo crítico e de qualquer resquício de bom senso, fosse necessário mandar de novo a maior parte das pessoas para a escola, para aprenderem regras básicas de civismo e de comportamento social. Ou, então, para qualquer estabelecimento de saúde mental onde pudessem ser tratadas.
Numa das crónicas que escrevi sobre o tema, há uns anos atrás, relatei o episódio de um professor universitário que desatou a telefonar desaforadamente para uma sua namorada e também, pelos vistos, discípula. O homem falava tão alto e tão desbragadamente sobre sexo, com uma linguagem tão “libertina”, que todas as pessoas começaram a ver de onde procedia o desaforo. E, como ele estava enterrado no assento à minha frente, sem casaco, sem sapatos (era um dia quente de Verão), todo estirado, e ninguém o via, a minha mulher, que ia ao meu lado, disse-me para eu me levantar, porque as pessoas certamente pensariam que o autor de tão insolente “rêverie” era eu. Bem, o episódio lúbrico terminou ao fim de algum tempo. Mas, durante o trajecto até à “cidade dos doutores”, o homenzinho não cessou de fazer telefonemas em tom altissonante, quase sempre para a tal namorada, e de uma dessas vezes, até deixou perceber que lhe andava a fazer um trabalho para ela apresentar não sei onde. Interroguei-me sobre o motivo que levaria uma pessoa destas (uma “figura pública”) a comportar-se deste modo: se era provocação; se era desvario ou se era alheamento patológico do ambiente em que se encontrava. Não encontrei resposta, mas o que é certo é que esse cavalheiro, para mim, passou a valer zero.
É como, agora, este “yuppie” que metralha sem cessar, embora sem o estilo baixo-doutoral do outro. Tem o aparelho pousado sobre a mesinha do assento e está constantemente a inspeccioná-lo. Fala de negócios, salvo erro, e eu não consigo fixar a minha atenção nas coisas que me interessam. Tento esforçadamente, mas debalde. Um dia destes vou abandonar a classe “Conforto” e vou para a outra – a “Turística”. Talvez lá não haja tanta gente destravada de língua, tão ciosa de exibir os seus negócios, a sua relevância social, académica e profissional, o seu lustroso mundo de relações, a sua intimidade apalhaçada. Talvez lá, enfim, possa encontrar um espaço civilizado e mais saudável. Ou, então, serei eu como aquela personagem de um conto de Luísa Costa Gomes, de quem o narrador diz: «Não lhe ocorre que o mundo é um lugar impossível».