19 abril 2012
O teatro de sombras da justiça de transição na Alemanha
Quando em 2003 escrevemos uma entrada para o n.º 25 da SubJudice, dedicado ao tema Justiça e Memória, intitulada “Depois do Muro”, a que se seguia um excerto da interessantíssima declaração de Hans Modrow (antigo 1º Ministro da RDA), no seu julgamento na 3ª Vara Criminal de Dresden, estávamos ainda em pleno processo de depuração legal na Alemanha, subsequente à queda do muro de Berlim.
Chegou-nos, há algum tempo, às mãos a tese de doutoramento de Guillaume Mouralis, Une épuration allemande,
Trata-se de uma análise circunstanciada de todo o processo legal e profissional desenvolvido, por iniciativa estatal, contra o aparelho vigente na RDA. O livro centra-se sobretudo na vertente penal deste processo que foi escolhido publicamente como o caminho particular da Alemanha no tratamento do passado comunista (o que a diferenciou dos restantes países do bloco de leste) e na comparação com a forma como os crimes do nazismo foram tratados uma vez que, apesar de não serem realidades comparáveis, o número de condenações de ambos os processos é muito aproximado.
O extenso saneamento do aparelho judiciário de leste (o Ministério Público foi todo afastado e apenas sobreviveram alguns jovens juízes da área cível) não foi, desta vez, evitado com base em qualquer argumento de necessidade de continuidade do estado (na verdade, desnecessário porquanto existiam recursos mais que suficientes para uma rápida substituição) representando também um afastamento da lógica subsequente à queda do nazismo e até do próprio regime nazi quando da sua ascensão ao poder.
Mostra-se também como o savoir faire jurisprudencial anterior, no campo do direito penal, foi aproveitado e usado com uma lógica agora bem diversa implicando um contorcionismo criativo que os filiados no rigor do direito penal germânico deviam ser obrigados a ler.
Trata-se, em suma, de um poderoso livro sobre o teatro de sombras da interpretação jurídica na Alemanha e que provocou a Jurgen Habermas “um certo mal-estar”. Aliás, este renomado autor, comparando o rigor da depuração posterior aos anos 90 com a política inversa conduzida depois de 1949, constatava um relativismo ético e uma dissensão histórica sobre os valores fundamentais da República.