27 março 2014
A impunidade "desorganizada"
A propósito do caso "Jardim Gonçalves" escreveu Boaventura Sousa Santos anteontem no "Público" um inflamado artigo intitulado "A impunidade organizada", título aliás em desconformidade com o seu conteúdo, que afinal aponta mais para uma "desorganização" do sistema judicial no enfrentamento da impunidade do que um propósito organizado de a promover...
Mas, para além do título e dos evidentes laivos de populismo e demagogia de algumas afirmações, que mais parecem desabafos de motorista de táxi, há diversas observações pertinentes que quero aqui comentar.
Concordo inteiramente com alguns vícios que contaminam persistentemente a prática judiciária: desde logo, a tramitação burocrática dos processos, tratando da mesma forma (geralmente) rotineira processos de dimensão social diferente, e assumindo como preocupação primeira o cumprimento estrito dos ritos processuais, sem a perspetiva do resultado final, a decisão do litígio.
Também é preocupante a incapacidade de enfrentar os "casos complexos", sobretudo a criminalidade económica e financeira, e os megaprocessos. Continua a faltar uma cultura de "gestão do processo" e também de direção de audiência que evite o prologamento indefinido dos julgamentos, os incidentes e acidentes de percurso permanentes.
Mas o mais interessante do artigo é a "proposta" de "aliança povo/poder judicial". Diz ele que os tribunais têm um papel crucial na defesa de direitos e interesses democráticos e que, perdida a confiança nos políticos, resta ao povo confiar nos tribunais e que estes devem responder a esse apelo/desafio.
Inteiramente de acordo! Os tribunais devem ser o "último reduto" institucional de defesa da Constituição e do Estado de Direito. (Digo institucional, porque o último reduto é mesmo o povo...) Provas temos, e evidentes, do exercício desse papel ultimamente - as decisões do Tribunal Constitucional que travaram algumas das propostas mais agressivas da política governamental. Mas também aos tribunais comuns cabe igual papel, na medida das suas atribuições. E esse papel deve ser "interiorizado" sem restrições por todos os magistrados, e levado à prática nas suas decisões.
Mas a "aliança" proposta exigiria também da sociedade civil um ativismo que falta de todo. Onde estão as associações cívicas que exerçam responsavelmente (repito: responsavelmente) o direito de crítica da atividade judiciária, e que possam relacionar-se com as associações de magistrados de forma frontal mas construtiva, mutuamente responsabilizante?
É esse diálogo/confronto que importa construir. Acusações inflamadas e gritadas não constroem nenhuma aliança...