17 março 2014

 

O manifesto dos setenta


 

O presidente da República não se tem cansado de pedir consenso a propósito da situação do país e, sobretudo, para o período pós-troika, escandalizando-se com o facto de Portugal ser praticamente o único país europeu onde tal consenso se não verificava. A sua voz parecia ecoar no deserto, quando, inesperadamente, imediatamente a seguir ao seu último apelo e como parecendo corresponder-lhe, um grupo de setenta individualidades, do centro direita à esquerda dita contestatária, de Adriano Moreira a Francisco Louçã, passando por Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Freitas do Amaral,  Gomes Canotilho, João Cravinho e Carvalho da Silva, saiu com um manifesto, apelando à necessidade de  reestruturação da dívida portuguesa, em alternativa à política de austeridade que tem sido seguida e à qual se lhe não conhece termo. O próprio presidente da República, aliás, antevê mais 20 anos de austeridade.

Um consenso de tal forma transversal, ainda que representado por sete dezenas de personalidades, às quais muitos outros portugueses se somariam, caso tivessem sido contactados (vários destes vieram afirmar isso mesmo nos dias seguintes) é, por um lado, um caso exemplar de esforço de convergência, em que todos tiveram que abdicar, em maior ou menor grau, das suas posições específicas em prol de uma visão de conjunto, e, por outro, uma notável congregação de vontades para a criação de uma alternativa, como não se via há largas dezenas de anos, em que comuns objectivos fundamentais se impunham imperiosamente a uma vasta camada de cidadãos.

Pois, quais foram as reacções oficiais a esse manifesto?

Da parte do primeiro-ministro e de variadíssimos representantes da actual maioria, foram reacções imediatas de despeito, desprezo e rejeição, tendo-se mesmo acusado os subscritores do manifesto de quase sabotagem e antipatriotismo. Parecia que estávamos a viver um dos momentos de execração pública do antigo regime, com a União Nacional a pôr as garras de fora contra os traidores da pátria. O Pensamento Único em reacção ostracizante contra os que ousam pensar de outra maneira.  

Em apoio desta ortodoxia militante, vieram logo a Comissão Europeia e o FMI em cima dos subscritores do manifesto, advertindo (pois, claro, quando essas instituições falam é sempre em tom de severa advertência) que não havia hipótese de reestruturação da dívida. Mas que a Comissão Europeia e o FMI falem sobranceiramente da austeridade e dos sacrifícios impostos aos portugueses (quer dizer, ao grosso da população portuguesa) não é caso para admirar, visto que fazem parte da troika de credores que sempre instigou o depauperamento do país e a degradação do Estado Social. Agora, que outros falem como se fossem membros da troika é que é caso para admirar.

Outro facto surpreendente é o pedido de demissão de dois consultores do presidente da República que assinaram o manifesto e a sua consequente exoneração. Então não estavam eles em consonância com o apelo do próprio presidente à formação de um consenso?





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