19 julho 2014
Direitos e privilégios
Claro que é preciso distinguir entre direitos e privilégios. O problema, na verdade, está em confundir os direitos com privilégios e os privilégios com direitos.
Os verdadeiros
privilégios são de poucos e, porque de poucos, tendem à intangibilidade, como
se fossem direitos adquiridos para sempre. Estão rodeados de secretismo,
eriçados de muros de silêncio e bem escondidos das vistas alheias no meio de um
denso arvoredo. Quem tente esquadrinhá-los, frequentemente é recambiado como intruso.
O último número da revista Visão dá
uma ideia dessa dificuldade.
A situação
contrária é a mais comum e a que tem actualmente mais encarniçados denunciadores.
Diz respeito aos melhores salários dos funcionários públicos, em relação aos
trabalhadores do sector privado; ao seu melhor sistema de saúde; ao seu beneficiado
regime de reforma.
Por uma questão
de simplificação, refiro-me ao sistema no seu todo, e não aos regimes
especiais, que também os há. São os direitos adquiridos neste âmbito (e falo
aqui de direitos em sentido genérico) que são taxados de privilégios. À conta
deles, atiram-se os trabalhadores do sector privado contra os funcionários
públicos, porque estes, afinal, como se tem descoberto, são os grandes
privilegiados deste país.
Há até quem não
hesite em considerar esses direitos como as «famosas conquistas revolucionárias».
E quem tome a estabilidade no emprego da função pública como um privilégio.
Qualquer dia,
todos os direitos adquiridos pelos trabalhadores em geral serão considerados
privilégios. Basta compará-los com os imigrantes, que fazem tudo muito mais barato
e com muito menos (ou mesmo nulos) direitos adquiridos.
*
Leram? Pois faço
aqui uma pergunta-adivinha: quando foi escrito este texto? Há poucos dias? Há meses?
Há anos? Eu respondo: foi escrito em 07//07/2005, no chamado “consulado de
Sócrates”, quando eu assinava semanalmente uma coluna no Jornal de Notícias.
Tenho andado a esquadrinhar
todas as minhas crónicas, com vista a uma selecção, e tenho ficado surpreendido
com a actualidade das crónicas que escrevi nesses anos. Como esta, podia
transcrever dezenas de outras.
Isto significa
que muito da política de hoje (precariedade no emprego, “flexibilização” da
legislação laboral, ataque aos direitos adquiridos, fomento da “luta de classes”
entre trabalhadores da função pública e
trabalhadores do privado) tem raízes muito antes da chamada “crise de 2008” e
da intervenção da “troika”, e que as medidas que têm vindo agora a ser
adoptadas em força, sob pretexto da austeridade, já vinham sendo “cozinhadas”
anteriormente.
Não quero dizer
que haja uma continuidade na política do governo dessa altura e do actual
governo, mas havia já, pelo menos, uma investida ideológica (e em alguns casos
mais do que isso), empreendida por certos sectores sociais e políticos, no
sentido de encaminhar as coisas para o lado que a “crise” e a troika, conjugada
com a ascensão ao poder de certas elites dirigentes, vieram a tornar duríssima
e crudelíssima realidade.