15 março 2019

 

A transparência da jurisprudência

Hoje no "Público" Teixeira da Mota chama muito justamente a atenção para a dificuldade de acesso às decisões dos tribunais.
Na verdade, sendo a justiça administrada em nome do povo, as decisões dos tribunais têm de estar acessíveis ao mesmo povo.
E não é isso que acontece geralmente. O único tribunal que publica regular e exaustivamente (todas) as suas decisões, na sua página na internet, é o Tribunal Constitucional.
Quanto aos outros tribunais superiores, a publicação é seletiva e maioritariamente em forma de sumário das decisões.
É urgente pôr termo a esta situação. Conhecer integralmente a jurisprudência, pelo menos, dos tribunais supremos é imperioso. O exemplo a seguir é o do Tribunal Constitucional: jurisprudência integral, numerada, de fácil e rápido acesso.
É claro que isso implica uma equipa habilitada a trabalhar exclusivamente nessa matéria em cada tribunal. Custa dinheiro certamente. Mas valerá a pena. Também aqui está em causa a democracia, a fiscalização democrática do poder, no caso o poder judicial. E também servirá, estou seguro, para uma melhoria efetiva da administração da justiça, do exercício da advocacia, da informação jornalística, etc.
Será dinheiro bem gasto!

11 março 2019

 

Os "tribunais mistos" da violência doméstica

Ontem António Costa mostrou-se espantado por a conversão da violência doméstica em crime público não ter trazido, ao fim de vinte anos, os resultados "esperados", ou seja, uma explosão de condenações...
Pois é, o processo penal é uma coisa complicada, há que fazer a prova caso a caso, há regras precisas de nulidades e outras coisas chatas, a vítima pode mudar de opinião (ou versão), enfim a uma queixa/participação não corresponde necessariamente uma condenação...
Só um ignorante ou um ingénuo acredita nessa eficácia arrasadora e absoluta do direito penal.
Este "fracasso" deveria levar o governo a pensar e estudar as razões do mesmo. Usar a cabeça é sempre bom. Há razões para acreditar que a "equipa de trabalho multidisciplinar" que vai ser criada poderá produzir trabalho útil.
Mas há já a circular aí uma proposta inconstitucional e perigosa: a da criação de tribunais "mistos" (cível e crime) para a violência doméstica. É claro que é para fugir à proibição da Constituição... Mas é correto fugir a uma proibição tão claramente fundamentada como a que veda os tribunais especiais?
Querem mesmo tribunais em que os arguidos quando entram já estão condenados?

 

Discorrendo sobre "femicídio"


Ao ler o “post” de Maia Costa, lembrava-me de ter lido qualquer coisa sobre “femicídio”. Encontrei o sítio já há uns dias, mas só agora tenho disponibilidade para escrever. Vem no mensário Le Monde Diplomatique relativo ao mês de Janeiro. Trata-se de um texto de autoria de Carla Baptista, professora da Univeresidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, intitulado “Há um problema com a representação jornalística da violência doméstica”. Nesse texto, esclarece-se o seguinte:

...o termo femicídio [foi] originalmente introduzido em 1976 por Diana Russel, para enquadrar o crime numa estrutura social sexista e patriarcal. Ao contrário do que ainda ouvimos nas notícias, os crimes não acontecem por “ciúmes”, “alcoolismo”, “adultério”, “fim da relação” ou outros motivos que surgem associados. Acontecem porque as vítimas são mulheres e reproduzem de forma extrema assimetrias de poder e situações prevalecentes de desigualdade de género.

Portanto, o termo remete, na sua génese, para um contexto de violência de género. Se uma mulher é assassinada por outra mulher, parece que não será femicídio. E se for por um homem que assalta uma casa e mata, indiferentemente, o homem e a mulher que lá habitam, parece também que não há um femicídio e um homicídio. E se for uma mulher a matar a companheira com quem é casada, num contexto de violência doméstica?
O caso poderia ser diferente se se pretendesse criar um termo para o assassinato de mulheres distinto de “homicídio”, por uma razão também de género, mas com base na linguagem.


04 março 2019

 

Auto-imolação


A atitude de Neto de Moura em perseguir criminalmente as pessoas que o criticaram publicamente de diversos modos, na sequência do infeliz acórdão que relatou sobre a mulher infiel, corresponde a lançar gasolina para a fogueira em que ele próprio se vai imolando, pese embora o facto de algumas das críticas pecarem por achincalhe e mau gosto.


 

A justiça e a comunicação social



A comunicação social interessa-se pouco pela justiça. Só traz a lume casos que real ou aparentemente desbordam dos limites tidos como conformes a uma resolução correcta e justa dos litígios. Normalmente, casos criminais (não há dúvida que os juízes do crime têm mais esse incómodo a suportar no seu quotidiano, para além de outros geradores de grande ansiedade). Casos sobretudo relacionados com certas áreas sensíveis, ou que se vão tornando sensíveis na sociedade e que, muitas vezes, têm os seus lóbis atentos ao que se vai decidindo.
Porém, se pode haver razões para um “alarme” nos “media” a propósito deste ou daquele caso, o que nem sempre acontece, normalmente a informação é deficiente e truncada, quando não distorcida, e a discussão pública que despoleta, com a grande ressonãncia nas “redes sociais”, é quase sempre míope, ignorante, descambando com frequência no linchamento. Discute-se sem as mínimas bases de seriedade. Mesmo pessoas que terriam a obrigação de se informarem devidamente, para discutirem com conhecimento de causa, caem frequentemente no erro de considerarem como fonte primária indiscutível o que leram ou ouviram nos “media”.
Uma das consequências extremamente negativas do comportamento lacunar dos “media”, limitando-se a difundir casos pontuais susceptíveis de causar algum alarme na opinião pública e, mesmo assim, com as deficiências apontadas, é gerar uma falsa percepção do funcionamento da justiça. A partir de dois ou três casos, avolumados pela comunicação social, fazem-se generalizações indevidas, criando-se uma imagem geral do funcionamento da justiça pouco ou nada abonatória. Pessoas com responsabilidade política e social caem nesse logro. Daí a nada, cada qual dá a sua sentença: é a justiça que funciona mal; são os juízes que precisam de mais formação nesta ou naquela área; é necessário criar tribunais especiais, etc, etc, etc… Até já há houve quem, tão democrata de formação, viesse pôr em causa a independência dos juízes. E, às vezes, parece que não há forma de inverter esta errada percepção das coisas da justiça. Formou-se o preconceito e age-se em função dele. Por exemplo, na abertura do ano judicial, a comunicação social, de uma forma generalizada, depreciou o discurso do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não ligando absolutamente nada ao esforço que ele fez para cimentar em números as suas considerações sobre a melhoria que se vem verificando no funcionamento da justiça, relegando-o para a minoria corporativa e desprezível dos discursos que vão contra a corrente geral. Não encaixava no estereótipo. Em contrapartida, com pouca seriedade, enfaixou os discursos dos convidados de fora (presidente da República, presidente da Assembleia da República, bastonário da Ordem dos Advogados) na costumeira diatribe contra o mau funcionamento da justiça, pegando numa ou noutra frase, desgarrada do contexto, que aparentava soar de acordo com essa toada geral.
Por isso, acho uma boa ideia a da Associação Sindical de Juízes que entendeu levar a cabo um estudo sério e rigoroso, por pessoas competentes, sobre aspectos onde mais tem incidido a crítica feita nos “media”. Essa é uma boa ideia. Já me parece uma infeliz ideia a da mesma Associação, que entendeu comemorar o dia internacional da mulher com um workshop sobre maquilhagem. Não é que o tema não mereça seriedade. Trataram-no grandes feministas, como Simone de Beauvoir, mas é, a meu ver, inoportuno e, nesta altura, parece frívolo.


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