03 abril 2019
A demagogia que vai por aí a propósito da justiça
Tinha intenção de escrever variados textos ao longo dos dias
passados, mas uma avaria no meu computador portátil e no que
disponho no escritório onde passo parte dos meus dias (este
definitivamente arrumado e prestes a ser substituído) impediu-me de
o fazer.
Era
para falar, por exemplo, da demagogia que vai por aí a propósito da
justiça. Tomando por fundamento os comentários que se têm tecido
acerca de algumas decisões judiciais, nomeadamente no campo da
“violência de género” (fala-se sobretudo em “violência
doméstica”, mas não é bem este o campo de eleição das
críticas), o que se não tem opinado e o que se não tem proposto a
nível legislativo para supostamente remediar os males que têm sido
diagnosticados! Meu Deus, que desaforo! Tribunais especiais para
julgamento de crimes de violência doméstica, mas disfarçados sob a
forma de tribunais de competência mista especializada, onde seriam
julgadas matérias relacionadas com questões familiares, para
tornear a proibição constitucional. O Conselho de Ministros veio
incrivelmente propor essa solução, reclamada por vários sectores
da sociedade portuguesa e por partidos à esquerda do PS, maxime,
o Bloco de Esquerda. Como se a política e a produção legislativa
devessem funcionar numa lógica de corporação dos bombeiros em que
o objectivo fosse apagar os fogos que se vão declarando aqui e
acolá. Tudo na hora, na urgência de atacar o desastre (ou o
pseudo-desastre).
Também
o Bloco de Esquerda está a trabalhar, no Parlamento, numa alteração
à lei penal, intentando agravar a pena prevista para o crime de
violência doméstica. Mais uma alteração ao sabor das ondas
mediáticas. O Código Penal e o de Processo Penal parecem condenados
a esse destino fatídico: o de nascerem com uma determinada filosofia
e irem sofrendo, ao longo do tempo, remendos atabalhoados que
desvirtuam essa filosofia e introduzem soluções pragmáticas
assistémicas, por sua vez causadoras de embaraço e confusão. O que
é incrível é que sejam partidos de esquerda a proporem tais
soluções, verdadeiramente dignas de uma política criminal eivada
de populismo penal. Nisso tem inteira razão a deputada do PS Isabel
Moreira.
A
esquerda, creio eu, é que foi responsável, historicamente, pela
introdução no Direito Penal de medidas contrariadoras de penas de
prisão excessivamente alongadas, de criação de alternativas à
pena de prisão, de inscrição, nas finalidades da pena, de fins
ressocializadores, de libertação dos condenados, antes do termo da
pena, para adaptação à vida em liberdade (a chamada liberdade
condicional), etc., etc., etc. Por isso, estranha-se este
enfileiramento de certa esquerda atrás das hostes que reclamam o
endurecimento e a agravação das penas. Ainda por cima, têm o
desplante de classificar como conservadores pessoas que vão contra
esta onda populista.
Agora
já se lamenta o limite de 5 anos de prisão, estabelecido na revisão
de 2007, até ao qual se pode suspender a execução da pena. Diz-se
que tal limite é muito elevado, postulando-se um regresso ao limite
anterior de 3 anos de prisão. Até aqui, havia que alargar as penas
alternativas à pena de prisão como forma tendencialmente ideal de
sancionamento da criminalidade média e favorecimento da
ressocialização em liberdade. Porém, agora, nesta onda de
endurecimento das penas, muito bem acolitada pela comunicação
social, clama-se que é de mais. Até juízes com responsabilidade,
como o presidente da Associação de Juízes, responsabilizam o
alargamento da possibilidade de suspensão da execução da pena pela
frustração sentida em certos meios com certas decisões judiciais
que não satisfazem a ânsia de penas efectivas de prisão. Como se a
suspensão da execução da pena tivesse um carácter obrigatório e os tribunais não tivessem que ponderar, em cada
caso concreto, se a medida não contraria, desde logo, o sentir da
comunidade relativamente à necessidade de pena efectiva de prisão
em determinados casos.
Não
só a agravação das penas integra o panorama de endurecimento
penal a que temos vindo a assistir. Também uma cada vez mais
acentuada tendência para medir a eficiência da administração da
justiça através do número ou da percentagem de condenações
efectivas em relação ao número de processos criminais que entram
no sistema (e não já, apenas, em relação às acusações
deduzidas pelo Ministério Público, o que já era de alcance
duvidoso). Não é a justiça do caso concreto que interessa; é o
resultado global, em termos de condenações de uma justiça
massificada, que importa considerar. É como se a contabilidade
própria de um capitalismo que reduz tudo à esfera da
mercantilização tivesse penetrado a nossa sociedade, ou, pior
ainda, a mente de certas elites intelectuais da nossa sociedade.