14 março 2007

 

Há um ano sobre o perigo das contaminações

Estando impossibilitado de "postar", antes da próxima semana, uma análise sobre a resolução do Governo sobre o SISI, como me foi proposto por um amigo, vou derrogar um princípio que tenho mantido de não poluir este espaço com poeirentos textos escritos noutros contextos, transcrevendo a parte final de uma intervenção que apresentei num Congresso de Investigação Criminal em Março de... 2006:

7. Prevenção, repressão, Estado de direito e o perigo das contaminações

A prevenção primária e a segurança assumem reforçada relevância na actual sociedade de risco e determinam que se torne necessário ponderar a uma nova luz o recurso a meios limitadores dos direitos fundamentais, na defesa relativamente a perigos gerados pela criminalidade organizada ou pelos atentados contra os fundamentos do Estado.
Verificando-se uma perigosa deriva que perpassa por alguns discursos, de instrumentalização do processo penal para finalidades não repressivas, como meio privilegiado para o acesso à informação relevante para a segurança do Estado, contra a qual aqui se quis acentuar o quadro jurídico-legal da investigação criminal, no sentido de que não se pode anexar / subordinar o processo penal a objectivos preventivos da polícia ou dos serviços de informações.
Plano em que importa sublinhar que não há lógica de eficácia que o legitime mas tão só actuações abusivas dos órgãos do Estado, pois a definição dos meios para a prevenção primária e segurança não pode estar nas mãos das estruturas burocráticas do Estado, sejam das polícias sejam das magistraturas, antes deve ser definida legislativamente, no necessário respeito do quadro constitucional, pelos órgãos de soberania democraticamente legitimados para o efeito.

Concretizando, o problema da definição do âmbito de iniciativa própria de investigação criminal dos órgãos de polícia criminal só por abuso pode ser confundido com a eventual necessidade de alargamento dos meios policiais (e fundamentalmente dos serviços de informações) para o cumprimento das respectivas funções constitucionais precípuas.
Os meios excepcionais do processo penal não se destinam à obtenção de informação para a actividade executiva mas à recolha de prova para a acção e julgamento penal, e a eficácia dos mesmos relaciona-se com as finalidades primárias e secundárias do processo penal. A confusão dos procedimentos relativos às duas áreas afigura-se como uma via constitucionalmente ilegítima, que, além de problemática no plano político, apresenta-se como epistemologicamente perigosa, mas, acima de tudo, põe em causa o Estado de direito.
Vertente em que a informação recolhida pela Polícia Judiciária enquanto órgão de polícia criminal através de meios excepcionais que apenas podem ser utilizados, por força da lei, para os fins do processo penal não devem, sem autorização legal expressa, em caso algum ser encaminhadas para outros fins, sejam eles de polícia em sentido estrito, de informações ou defesa.
E esta é uma área em que para evitar os abusos é fundamental uma delimitação funcional e orgânica.
Ou seja a destrinça entre organismos judiciários e policiais, por um lado, e serviços de informações por outro, regulando-se de forma clara na lei as respectivas articulações e deveres de cooperação (que terão de assumir uma clara natureza excepcional).
A legitimidade de intervenções intrusivas admitidas para fins de processos penais perde-se se forem desviadas ou aproveitadas para outros fins. Pelo que não deve ser confundido o espaço de acção de órgãos de polícia criminal e dos serviços de informações da República. Terá que ser a lei a definir os actos materiais colidentes com direitos individuais que podem ser aproveitados para efeitos de informações e defesa do Estado
[1], atento, nomeadamente, o princípio sublinhado no art. 18.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de que as restrições a direitos e liberdades «só podem ser aplicadas para os fins que forem previstas».

Importa também aqui não confundir controlos administrativos e judiciários, com efeito se estes se justificam em relação às actividades das polícias com os fins do processo penal, já não têm o mesmo sentido para actividades que visem outros fins públicos, em que se impõe aí sim um controlo de entidades administrativas autónomas com competências próprias de fiscalização.
A confusão nesta matéria, mesmo que envolvendo entidades administrativas provenientes das estruturas das magistraturas pode ser perversa a dois níveis:
1) Por um lado a dimensão essencial do controlo tem de ser feito de acordo metodologias e conhecimentos específicos distintos dos fins de repressão criminal, para além de se exigirem estruturas centrais com núcleos fortes, pelo que envolver no caso estruturas dirigidas para os fins do judiciário é negativo em termos operativos;
2) Por outro, o comprometimento de entidades com funções judiciárias (especialmente se forem órgãos de topo) com essas actividades pode também comprometer a defesa da legalidade relativamente a eventuais ilícitos praticados por esses serviços.

[1] O que em certos casos exigiria mesmo a alteração da Constituição, v.g. o art. 34.º, nº 4 da Constituição, «é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal».
Porto (Março de 2006)

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