02 julho 2008

 

O direito ao sucesso

Ou de como aproveitar ao máximo as virtualidades do nosso génio inventivo, por vezes também crismado complacentemente de “talento para o desenrasca”e assim conseguirmos obter êxitos nunca vistos.


Meu muito ilustre e amado Senhor:

Gostava de lhe exprimir o meu acendrado amor patriótico pelos êxitos recentes que a juventude do nosso reino alcançou no âmbito das ciências matemáticas. Finalmente, conseguimos sair do reduto dos resultados humilhantes dos anos escolares anteriores. Temos juventude, temos o cérebro que nos faltava. E tudo isso graças a um inteligente golpe do nosso génio. Um pequeno golpe que faz lembrar a pequena/grande descoberta do ovo de Colombo. Em que consistiu ele? Nesta habilidade tão característica da tendência que temos para enganarmos os outros, enganando-nos a nós próprios: concebemos provas de exame uns furos abaixo do grau de conhecimento requerido para os alunos que iam prestar as provas. Se eram alunos do 6.º ano, as provas que lhe foram ministradas equivaliam ao grau de conhecimentos do 4.º ano; se eram do 9.º ano, ao grau do 4.º ano, se do 12.º, ao do 9.º ou menos, e por aí fora. Resultado: todos os alunos brilharam. As classificações subiram e nós recuperámos o orgulho na nossa juventude. O futuro da Nação está, portanto, garantido. As estatísticas aí estão para o atestar. Temos direito ao sucesso, como qualquer povo, e para termos o sucesso, qualquer meio é justificável, inclusive, afastarmos da correcção das provas aqueles examinadores que têm o hábito desumano de dar baixas classificações. Não há nada de eticamente reprovável em tal conduta. Tolo é quem não sabe encontrar, nos momentos apropriados, a forma de fugir para a frente, isto é, para o sucesso.
Isto dá-me, se me permite, a fórmula do êxito para vencermos o nosso crónico atraso. Por exemplo, não é só na educação que precisamos de vencer a batalha da inferioridade. Também na saúde, na justiça e noutros domínios.
Vejamos a saúde. Temos muitos doentes em fila de espera? Porque não encaramos a ideia positiva de eliminarmos uns quantos, cada ano? E é tão simples, Senhor. Basta encarecermos os medicamentos e deixarmos que, à míngua deles, uns quantos pacientes se vão à vida. Pode começar-se pelos mais velhos, pelos pensionistas, que não fazem falta nenhuma e, pelo contrário, só dão gasto ao Estado. É um luxo alimentar a sobrevivência destas pessoas. Na medida em que os medicamentos encarecem e as pensões se mantêm limitadas, esta horda de inúteis ver-se-á obrigada a consumir medicamentos dia sim, dia não, e, com um pouco de sorte, uma vez por semana ou até uma vez por mês. Assim, morrerão mais depressa, de “morte natural”, porque privados de substâncias químicas, e já não irão engrossar as filas hospitalares.
Uma outra ideia muito de aplaudir seria, por exemplo, eliminar subtilmente uns quantos doentes que não sobrevivem senão à custa de aparelhos de tecnologia muito cara. Às vezes, esses doentes permanecem ligados a esses aparelhos por tempo indefinido. Ora, poder-se-ia estabelecer um “timing” determinado para a sua ocupação, de sorte que, ao cabo desse tempo, desligar-se-ia o aparelho e o doente ia-se à vida, quer dizer, à vida que todas as religiões e a principal do nosso reino dizem ser a verdadeira, a que começa depois da morte. Facilitar-se-ia o trânsito para essa vida onde não há mais sofrimento e com isso lucraria o doente, que passaria para outro estado melhor, e a política da saúde também ganharia, porque mais lugares ficariam mais rapidamente disponíveis para outros doentes. As estatísticas haveriam de registar resultados muito louváveis, retirando-nos da cauda dos países que têm pior assistência sanitária. Temos ou não temos direito a ter sucesso na saúde?
Vejamos a justiça. O diagnóstico negro da nossa justiça assenta cronicamente na sua morosidade. Pois uma forma de vencer esse atraso poderia consistir, por exemplo, em acabar com os processos muito complicados. Normalmente, esses processos dizem respeito a pessoas que praticam crimes sofisticados e que têm muito dinheiro para gastar com advogados, testemunhas, recursos, incidentes de toda a espécie, fazendo com que o procedimento nunca mais acabe, ou melhor, acabe por acabar da pior forma: prescrevendo. Isso desprestigia a justiça, quer pelas delongas que acarreta, quer pelo resultado a que conduz, que não é resultado nenhum, como se vê. Acabe-se, pois, com esses processos, que daí não virá mal ao mundo, até porque os arguidos desses processos são normalmente pessoas influentes, inseridas socialmente e bem colocadas profissionalmente.
Quanto àqueles processos complicados que são de crimes cometidos por “gangs”, também convém acabar com eles, por razões semelhantes e, ao mesmo tempo, diferentes. Semelhantes no aspecto da morosidade, do dinheiro de que normalmente dispõem, por força dos seus crimes, para gastar com advogados e fazer atrasar, senão gorar, a justiça. Diferentes, porque esses arguidos são realmente criminosos a sério. Mas há outras formas de acabar com eles sem necessidade de um processo judicial, dispensador de todos os direitos, cumpridor de todos os formalismos. Há com certeza outras formas, e aqui não me detenho em grandes explicações, porque, como se costuma dizer, “para bom entendedor meia palavra basta”.
Alcançaríamos, assim, Senhor, um rápido sucesso em vários dos principais domínios e, a breve trecho, em todos os domínios da sociedade. Veríamos então o nosso reino ascender por aí acima como balão em franca propulsão de ventos favoráveis. E haveríamos de brilhar como estrela magna no concerto das Nações.

Grato, admirador e humilde servidor de V.ª Ex.ª, pedindo mil perdões pela ousadia de sugestões tão pobres, mas ricas de amor ao nosso Povo

Jonathan Swift (1665 – 1745)





<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)