31 outubro 2013
A reforma do Estado e a justiça
No que respeita à chamada "justiça", o "guião" da reforma do Estado é lacónico e consensual: nada de novo nem de polémico. Porém, inclui um parágrafo assaz enigmático e sibilino: "declara-se a nossa abertura para reformar a arquitetura institucional do sistema judicial, o que pressupõe um esforço de consensualização política" (p. 58)
Que vem a ser isto? Que arquitetura é aquela? Que obras se têm em mente? Obras de demolição da independência do poder judicial? Para já, não há coragem para concretizar...
Também deus foi espiado
A incansável agência de espionagem americana não faz discriminação: todos são suspeitos, inclusive o Altíssimo, espiado nas suas comunicações com o papa. É claro que esse deus é o romano, o deus católico, não é o deus oficial dos americanos. Por isso, não tem estatuto especial. Mas que todos os deuses se ponham a pau! Nenhum tem estatuto de imunidade! A NSA não recua frente aos inimigos, muito menos perante os amigos, na sua missão de garantia de um mundo seguro e pacífico.
27 outubro 2013
Carta ao protagonista-mor da nossa revolução
Ou de como no cortar é
que reside o segredo e o êxito das grandes reformas que têm vindo a ser
empreendidas para levar o país ao rumo certo, que o há-de encaminhar para a
prosperidade.
Prezado Senhor Corte:
Antes de mais, permita-me
que lhe enderece as minhas mais vivas felicitações.
Vossa Senhoria tem sido
o verdadeiro protagonista e o herói da nossa Revolução. Daí o principiar por
felicitá-lo. Não tenho o gratíssimo prazer de o conhecer pessoalmente, mas, se
tal vier a acontecer um dia, fique V.ª S.ª ciente de que lhe deporei um ósculo de
infinita gratidão nas Suas incansáveis mãos de cortador-mor do nosso destino
colectivo.
Permita-me também V.ª
S.ª que o felicite pela equipa que o rodeia e que encarna na perfeição o seu
espírito. É notável a forma como V.ª S.ª , captando a essência das grandes
exigências das grandes responsabilidades que nos incumbe respeitar, nestes
tempos de assaz grandes transformações, soube encontrar encarnação em todos os
membros da equipa que tem o privilégio de o servir, servindo o nosso país.
Creia V.ª S.ª que aprecio
vivamente a sua ousadia revolucionária, a forma como actua, pondo em prática o
princípio “tem que ser, custe o que custar”, imperturbável e insensível a
“estados de alma”, como agora se diz. Inexorável, inflexível, sem se vergar a
lamentos ou queixumes de quem quer que seja. É esse o verdadeiro lema do líder
revolucionário.
Na verdade, V.ª S.ª é
exímio a cortar no que deve ser cortado: nos vencimentos altos das classes mais
baixas, nas chamadas “pensões de reforma” auferidas pelos indivíduos que já não
estão no activo e nas “pensões” dos órfãos e das viúvas. Estas últimas – as
“pensões de reforma” dos inactivos e as pensões
dos órfãos e das viúvas – nem sequer teriam justificação, num caso,
porque os beneficiários já não dão nada à sociedade, no outro, porque os contemplados
estão a receber um rendimento por conta de um parente morto, o que é um
absurdo.
Também rejubilo com o
objectivo de V.ª S.ª em cortar na condição
da classe média, abolindo gradualmente esta classe parasitária, que, como alguém já escreveu, se formou à
sombra de um Estado arcaico, distribuidor de benesses e de lugares ao sol.
Dizem que não há verdadeira
revolução sem cortes de cabeças, mas V.ª S.ª
tem dado provas de uma generosidade e de uma tolerância verdadeiramente
dignas de registo, pois se limita a cortar nos soldos e nas ditas “pensões”, poupando
as cabeças dos que têm de sofrer os cortes.
Quem diz cortar nos
soldos e pensões diz cortar nas despesas, porque, na realidade, vistas as
coisas de determinada perspectiva - a perspectiva correcta – trata-se de
diminuir as despesas de quem tem de pagar os ditos soldos e pensões numa época
em que tanto se carece de poupança, estimulando-se, ao mesmo tempo, as classes
laboriosas e do funcionalismo do Estado a exercitarem a sua capacidade de
apertar o cinto para o emagrecimento que delas se espera, em proveito do bem
comum.
Quanto aos reformados,
órfãos e viúvas, em vez de os banir, como seria mais consentâneo com o
princípio moderno de utilitarismo que deve governar os povos, a política de V.º
S.ª rege-se, ainda assim, por um sentimento humanitário, cortando-lhes apenas uma
pequena parte das ditas “pensões”, que é uma espécie de tributo pago à
sociedade pelas suas existências improdutivas.
Tudo isto tem V.ª S.ª feito
com notável tenacidade e sem qualquer ponta de comiseração, como é próprio de
um espírito que quer mudar as coisas de uma forma irreversível, indo ao
encontro do passado, quer dizer do futuro, porque, como alguém escreveu,
comentando a revolução em curso no nosso país: “o futuro é o passado”.
Aliás, o grande lema da
nossa revolução poderia ser: “O regresso ao passado é possível” -, concretizando,
finalmente, a persistente utopia humana que se exprime na canção: Ó tempo, volta
para trás”. E tudo isto graças ao poder e influência de V.ª S.ª.
Há certamente muita
resistência à grande reviravolta que se tem vindo a imprimir ao nosso país, mas
essa é a sina de todas as grandes mudanças, de todos os grandes movimentos que
mexem nos interesses instalados, como sejam salários, subsídios e pensões. É
cortar!
Desejando a V.ª S.ª um grande êxito para a sua magnífica política de cortes, sempre firmado na aliança dos nossos amigos internacionais, que anseiam, tanto como nós, pela concretização da nossa obra de modernização do país, creia-me
Seu
Grato e Fiel Admirador
Jonatham Swift (1665-1745)
19 outubro 2013
Ninguém pode ficar indiferente
As pressões sobre o Tribunal
Constitucional ultrapassaram há muito a fronteira do tolerável. E não só do
ponto de vista moral, mas também do ponto de vista jurídico, social e
institucional, corroendo as bases do Estado de direito democrático. Mesmo as
instituições da União Europeia, com destaque para a Comissão, e outras
instituições internacionais, como o FMI, como a Moody’s, não se coíbem de
colaborar nessa campanha abjecta, ferindo de morte o próprio cerne da soberania
nacional. Eles permitem-se esse abuso, porque somos um país periférico,
dependente e fraco e porque nos temos prestado, de uma forma conivente e
submissa, a essas intromissões vexatórias.
O ataque inadmissível ao Tribunal
Constitucional que tem sido levado a cabo por responsáveis nacionais, logo imitados
por representantes dos nossos credores, não pode deixar ninguém indiferente, muito
especialmente a comunidade jurídica, pois – não tenhamos dúvidas - quem assim investe
contra a independência de um tribunal que hoje tem um papel fulcral na defesa do
nosso Estado de direito, afronta os fundamentos da nossa democracia e o estatuto
de independência do órgão de soberania “tribunais” no seu conjunto.
16 outubro 2013
O cerco continua e aperta-se
A
questão do Tribunal Constitucional tornou-se obsessiva, não só na linguagem de
governantes e políticos da maioria, com a
ajudinha do presidente da Comissão Europeia e da presidente do FMI, como
também nos órgãos de comunicação social.
Receio
bem que com isto se estejam a criar condições para uma forte restrição da
liberdade de decisão dos juízes, imputando-lhes as consequências de uma decisão
que não acolha as soluções legislativas que se pretende levar avante –
consequências que são normalmente avolumadas até ao nível do cataclismo.
Isto,
em outros países, seria tido como grave afronta ao poder judicial.
A
comunicação social, por sua vez, obedecendo a uma tendência que está na sua “predisposição
genética”, amplifica acriticamente determinadas afirmações isoladas do seu
contexto, com isso criando um ambiente de maior crispação e sem correspondência
com uma informada realidade das coisas.
Assim
aconteceu, por exemplo, com afirmações de Bagão Félix numa entrevista à Antena1,
em que ele disse que um “chumbo” do Tribunal Constitucional aos cortes agora
anunciados geraria, com probabilidade, uma crise política.
Ora,
essa afirmação foi feita na sequência de
outras (eu ouvi a entrevista), em que Bagão Félix exprimiu a opinião de serem inconstitucionais
algumas medidas, desde logo, os cortes retroactivos de vencimentos e pensões.
Porém, a decidir-se pela inconstitucionalidade, o TC provavelmente daria azo a
uma crise política.
Bagão
Félix adiantou mais: que se sentia indeciso entre inconstitucionalidades de que
tinha a clara percepção e as consequências do referido “chumbo”.
Ora,
isto é muito diferente da frase que foi isolada do contexto e avolumada, e depois
repetida por outras pessoas, que a adoptaram, num esboço de mais um problema (melhor
seria dizer “um ónus”) atirado à consciência dos juízes do TC. Mas não se peça
à comunicação social que contextualize ou que exprima dúvidas e reticências de
um interlocutor, principalmente se este é uma figura pública.
Em
suma, está a criar-se um clima coercivo no sentido de o TC não poder decidir
senão de uma forma - a que corresponde às posições do governo e da maioria.
Mas,
sendo assim, se não basta o processo de eleição da maior parte dos respectivos
juízes por uma maioria qualificada da Assembleia da República, após prévia
indicação das formações partidárias, e se parece ter tão pouca importância a
sua independência, por que se não vai, então, para o processo de designar para
o Tribunal Constitucional, em vez de juízes, comissários políticos?
13 outubro 2013
A última barreira
Muitas das políticas
que têm sido adoptadas não foram sufragadas pelo eleitorado. São tomadas à
revelia dos cidadãos e, nisso, há já uma quebra do contrato social suposto pela
democracia, uma falha da República, comemorada há dias dentro dum salão, com alguns
manifestantes à porta a protestar e polícia em cima deles.
Essas políticas, para
além de não terem sido sufragadas, representam uma ruptura com a ordem
constitucional e legal. Ainda na quinta-feira passada (dia 10), Manuela
Ferreira Leite, afirmava na TVI 24 que há uma tentativa para mudar o paradigma
do sistema de segurança social – de contributiva para assistencialista.
E no dia 5 de Outubro,
que deixou de ser feriado (mais uma machadada simbólica na República), o
secretário de Estado das Comunicações, entrevistado na Antena 1 e interrogado
sobre o paradoxo da privatização dos CTT, quando se trata de uma empresa
lucrativa, afirmou que era uma questão de princípio do governo, pois o Estado
não deve ser titular de empresas, o que significa que há também aqui uma
mudança de paradigma, orientada por um prisma ideológico.
Mais: a ruptura é também com princípios consolidados
na ordem jurídica – não só na nossa, como também nas ordens jurídicas que têm a
nossa matriz cultural. É o caso do princípio da não retroactividade das leis. Este
princípio tem mesmo assento constitucional no que diz respeito a direitos, liberdades
e garantias fundamentais, não podendo a lei nova que os restringe ter efeito
retroactivo (art. 18.º, n.º 3). Porém, vários diplomas legislativos na forja, à
semelhança de alguns outros que já foram “chumbados” pelo Tribunal Constitucional,
dispõem para o passado, isto é, abarcam situações criadas anteriormente e cujos
efeitos era suposto continuarem a ser regidos pela lei do tempo em que
surgiram. É o caso dos cortes de salários na função pública, feitos em nome de
uma atamancada convergência entre o sector privado e o sector público, dos cortes
de pensões de reforma, e agora também das pensões de sobrevivência, de que
tanto se tem falado ultimamente.
É uma aberração.
Claro que uma política destas,
para além de não ter a legitimá-la o princípio democrático do sufrágio, ao
menos em sentido substancial, também visa subverter princípios essenciais da
nossa ordem jurídico-constitucional, de que o princípio da confiança é um
esteio imprescindível.
Mas, felizmente, ainda dispomos
de uma última barreira democrática onde esbarram as antiquíssimas pretensões de
certos estratos sociais de ajustarem contas com a ordem constitucional
estabelecida, desta feita servindo-se da “crise” e do poder maioritário que
detêm conjunturalmente (agora enfraquecido pelas autárquicas) para o fazerem de
golpe e sem recurso às vias previstas, como seria a revisão da lei fundamental
por uma maioria qualificada, que nunca tiveram.
Precisamente por a não
terem, é que tentam, a todo o transe, com recurso a métodos de constrangimento
inimagináveis, vencer essa última barreira, que se chama Tribunal Constitucional.
11 outubro 2013
Lágrimas de crocodilo
Barroso, o "nosso" Barroso, trajando de presidente da Comissão Europeia, lá foi a Lampedusa e fez o seu papel razoavelmente, vertendo as lágrimas indispensáveis à ocasião e prometendo algum dinheiro...
O que aconteceu foi mau de mais para poder ser ignorado pela "Europa". Mas alguém pensa sinceramente que as muralhas da Europa-fortaleza vão cair, ou abrir fendas? O problema dos refugiados africanos não preocupa o Norte da Europa. A sra. Merkel já se dignou dizer alguma coisa sobre o assunto? Não, não é nada com ela... Portanto, vertidas as lágrimas de circunstância, tudo como dantes...
"Dificuldade particular", diz a madame
A madame La Garde, esse modelo de mulher executiva, virtuosa, muito angulosa e retilínea de formas físicas e mentais, veio explicar que Portugal tem uma dificuldade particular, acrescida: o Tribunal Constitucional. Assim mostra a madame as suas profundas convicções democráticas: os protetorados do FMI não têm direito a instituições democráticas...
Mas o que é para ela uma "dificuldade" é para nós, portugueses, um pilar da democracia. É uma questão de ponto de vista...
06 outubro 2013
O apelo patriótico
Como tenho afirmado por
várias vezes, o Tribunal Constitucional tem sido pressionado e atacado de uma
forma miserável. Não se trata, evidentemente, de uma crítica legítima, ao
contrário do que, por vezes, se pretende fazer crer. Trata-se mesmo de pura
intolerância, de ataque cego, quando não de grosseiro vitupério. Ao que se tem
assistido é à manifestação de uma incontida raiva, por parte de certas elites
dirigentes, por o TC não apadrinhar as soluções que elas gostariam de ver
consagradas.
Ultimamente, mudou-se
um pouco de táctica, fazendo apelo patriótico ao tribunal, ou, mais latamente,
a todos os órgãos de soberania, em que este todos
esconde, manhosamente, a referência única ao TC, para uma colaboração com as
políticas que se pretende implementar. Nem mais, nem menos: apelo patriótico a todos, estão a ouvir
bem, senhores juízes do Tribunal Constitucional?
A linguagem veste-se de
muitos artifícios e o mais comum é a referência à universalidade (todos) e ao sentimento gregário supremo,
diria mesmo sagrado – a Pátria. Trata-se de uma mobilização geral em prol de um objectivo patriótico. O tribunal não pode ficar de fora dessa
mobilização geral que a Pátria reclama.
É assim que, do ataque
soez, se passa à mais refinada coacção ideológica.
Trata- se de um
despudor sem limites.
Mais valia que esses
senhores tivessem a coragem de pedir aos juízes do TC que abdicassem do
exercício das suas funções. Ao menos, seria tudo mais límpido.
05 outubro 2013
A República
A República está a
desaparecer de Portugal.
O ano passado foi
acantonada num pátio, com a bandeira verde e rubra hasteada ao contrário na
varanda da Câmara Municipal. Este ano meteram-na no salão nobre da mesma
Câmara, onde foram admitidas apenas individualidades convidadas. Convenientemente
afastada do povo ou da populaça, com
forte presença policial no exterior, por causa das coisas.
O feriado foi banido do
calendário festivo.
E, acima de tudo, os
ideais da República estão a ir cada vez mais para baixo, acompanhando a sua
degradação simbólica.
04 outubro 2013
Cooperação institucional ou subversão da democracia??
São patéticos os apelos de membros do executivo à cooperação de "todos" os órgãos de soberania, dirigidos indireta ou mesmo diretamente ao Tribunal Constitucional...
Nada sabem eles (eu creio mesmo que não sabem, é mais ignorância que malícia...) sobre o que é um Estado de Direito, o princípio da separação de poderes, a função dos tribunais...
Se é admissível "cooperação" entre o PR e a AR e o executivo, já os tribunais ficam necessariamente de fora de qualquer cooperação, de qualquer negociação, de qualquer ponderação de interesses, que não os vertidos na lei.
A função dos tribunais é a de defesa da legalidade, da legalidade decretada pelos outros órgãos de soberania. A função específica do TC é a da fiscalização da constitucionalidade das leis. Nessa função não lhe é permitido "cooperar" com quem quer que seja, sob pena de subversão da estrutura constitucional do Estado de Direito. A AR legisla, o TC fiscaliza a constitucionalidade: é assim que funciona o Estado de Direito democrático. Há coisas básicas que é preciso saber para exercer funções públicas...