27 março 2015
A prosa judiciária
Ian McEaven, o escritor
britânico autor de Expiação, lançou
agora um livro (um romance) que se baseia na prática judiciária de uma juíza de
um tribunal de família. O título em português é A Balada de Adam Henry (editora Gradiva). The Children Act, no original. Leu muitas sentenças para escrever o
romance, sendo muito curiosas as observações que faz a respeito da prosa
judiciária numa entrevista que concedeu à “A Revista do Expresso”, da semana
passada (21 de Março).
Vejamos:
Por
dever de ofício, os juízes também são escritores de um subgénero literário
bastante negligenciado. Refiro-me à arte de escrever uma sentença. (...) Eu li
bastantes. Algumas delas são textos sofisticados. Por vezes o juiz gosta de
exibir os seus conhecimentos filosóficos ou científicos, a sua erudição clássica,
a sua cultura. É interessantíssimo. E comecei a aperceber-me de que uma boa
sentença funciona como um romance. É preciso convocar personagens, registar os
seus diferentes pontos de vista, dar voz a narradores não fiáveis, e resolver
dilemas básicos que nunca são iguais.
(…)
A
maior parte das pessoas associa à linguagem do Direito uma certa aridez. Puro
engano. Nas melhores sentenças, encontrei todos os elementos que me fazem
admirar uma boa prosa: a beleza do estilo, a clareza, um certo humor inteligente.
Eu só escrevi uma sentença (a que Fiona redige ao voltar da visita ao
hospital), e tentei emular o melhor que pude algumas dessas qualidades. O
equilíbrio e um idêntico respeito pelas partes, por exemplo.
Não é interessante?
E a respeito do direito
de família, diz:
No
fundo o direito de família cobre tudo o que encontramos em “Anna Karenina”, “Madame
Bovary”, em Georges Eliot, em grande parte da literatura europeia dos últimos
séculos.
"Vips" e direito à segurança
Todos
são iguais, mas uns são mas iguais do que outros. Este foi mais ou menos o
princípio defendido por Brigas Afonso na comissão parlamentar onde foi prestar
esclarecimentos, a propósito da célebre lista de “vips”. “É por isso que uns têm
segurança e outros não têm”, afirmou. Esta justificação tem vindo a ser
reproduzida por várias pessoas, mas é uma justificação errada quando aplicada à
necessidade de dar maior protecção a certas figuras públicas relativamente ao
sigilo fiscal. Este aplica-se igualmente a todos os contribuintes, sem excepção,
mas não pode servir para encobrir o incumprimento de obrigações fiscais por
parte de certas entidades, nomeadamente as que exercem funções públicas de
responsabilidade política.
Se
o sigilo fiscal visa garantir a privacidade dos dados referentes aos contribuintes,
é preciso ter em mente duas coisas: a) o incumprimento de obrigações fiscais já
não tem a ver propriamente com a protecção da vida privada dos cidadãos e,
tanto assim é, que, se não estou em erro, o próprio fisco tem publicado listas
de incumpridores; b) o direito à privacidade ou à reserva da vida privada, como
já defendi noutro texto, não é igual para todos os cidadãos, dependendo do caso
de que se trate e da condição das pessoas (art. 80.º do Código Civil). Nessa
medida, os “vips” que desempenham cargos públicos de responsabilidade política
têm menos protecção da sua vida privada, ao contrário do que pode depreender-se
das palavras acima referidas e que foram proferidas pelo ex-director-geral da Autoridade
Tributária.
Se
as mesmas têm direito a protecção especial (segurança), essa protecção tem a
ver com o risco inerente ao exercício
das funções, e não com a defesa acrescida da sua privacidade. Para além dos
consabidos “custos de notoriedade”, que necessariamente restringem o âmbito da
reserva da vida privada desses cidadãos, há aspectos da vida privada deles que
têm inegável reflexo na credibilidade das funções que desempenham. Um deles é o
que se relaciona com o cumprimento das obrigações fiscais, sobretudo quando,
pelo cargo, exigem dos demais cidadãos a escrupulosa desoneração dessas
obrigações. Não se vai pôr-lhes um polícia a resguardá-los das consequências
das faltas que não admitem nos outros.
25 março 2015
Herberto Helder
Herberto Helder.
Faleceu o criador de um fascinante universo poético. “Criador” no exacto sentido
de manipulador dos elementos primordiais para construir o cosmo, a partir do
caos inicial.
Quando o comecei a ler,
em Coimbra, era época de exames. Como não tinha tempo para ler obras extensas,
lia poesia. Fiquei logo assombrado com a leitura dos primeiros poemas, como
esse, inicial, de A Colher Na Boca:
Falemos
de casas, do sagaz exercício de um poder
tão
firme e silencioso como só houve
no
tempo mais antigo.
Estes
são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo
com ironia e doçura no fundo
de
um alto segredo que os restitui à lama.
De
doces mãos irreprimíveis.
-
Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as
casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a
boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
(…)
Como resistir a esta
envolvente sedução das palavras, rodeadas da sua treva? Lia, cada estrofe
impelindo à leitura das seguintes, num movimento imparável, poemas extensos,
pois Herberto Helder pertence a uma casta de poetas de grande espraiamento e
largo fôlego. Entramos no poema como num mar aberto, deixando-nos levar pela
força hercúlea das suas imagens, pela absoluta novidade das paisagens que nos
vai desdobrando.
Falemos
de casas (…)
Fiquei com esses
primeiros versos nos ouvidos, de tal forma que os declamava de cor em todos os
sítios.
Andava com Herberto Helder
por toda a parte. Levava-o na pasta aos cafés onde estudava, a comer comigo nos
balcões dos snacks-bares. Levava-o ao
médico debaixo do braço. O médico, um amigo da família, sempre curioso de ver o
que eu andava a ler, tirou-mo de debaixo do braço. Abriu à sorte e leu: mulher de pés no branco, transportadora/da
morte e da alegria. Voltou para mim o rosto atónito, as sobrancelhas
arqueadas de espanto por cima dos óculos, o bigode em agudezas de interrogação.
Também nunca mais
esqueci esses versos. Fazem parte de um poema célebre: O Amor Em Visita. Os últimos quatro versos da terceira estrofe,
onde aparece a mulher de pés no branco
são deste jeito:
-
Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as
mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher
de pés no branco, transportadora
da
morte e da alegria.
Foi assim que fui
penetrando no mundo de uma beleza feroz de Herberto Helder, lendo livro atrás
de livro: A Colher na Boca, A Máquina
Lírica, O Corpo O Luxo A Obra, Última Ciência, Os Selos, Do Mundo, entre outros, até aos mais
recentes A Faca Não Corta O Fogo,
Servidões. Não só poesia, mas também prosa, ou assim parecendo ser: Apresentação Do Rosto e, sobretudo Os Passos Em Volta, este, um livro de
contos, que li e reli um sem número de vezes, mas que normalmente não aparece
em antologias do género. Porquê não sei. Porque não são bem contos? E, no
entanto, são dos melhores que li em toda a minha vida. Se eu quisesse, enlouquecia – assim começa o primeiro conto,
intitulado Estilo. Penso que o livro tem
muito de autobiográfico. No segundo conto, Holanda,
faz-se exactamente alusão a um poeta: Um
poeta está sentado na Holanda. E, a dado passo: Um poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O
Inferno não o deixa. Num dos outros contos, Vida E Obra De Um Poeta, a narrativa termina assim:
O
poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim
a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e
falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício – a ferocidade dos
outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina
para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse
numa retrete de Paris – só, com a minha visão – o pressentido segredo das
coisas.
19 março 2015
Listas de pedófilos e de "vips"
Parece que estamos em
maré de listas. De um lado, a lista dos pedófilos; do outro a lista dos vips.
No caso da lista dos
pedófilos, de que foi aprovada em Conselho de Ministros a respectiva proposta
de lei, trata-se de fixar numa base de dados os nomes de pessoas condenadas por
crime de abuso sexual sobre menores e que se manterá em aberto, após o
cumprimento da pena, por um lapso de tempo que vai de cinco a quinze anos,
conforme a gravidade do crime. Trata-se de exercer vigilância especial sobre
essas pessoas, com fins preventivos, e de possibilitar informação policial às
famílias com crianças a cargo, mediante pedido justificado.
O que essa lista traduz
materialmente é uma flagrante desconfiança no sistema punitivo. Mesmo depois de
cumprida uma pena, o condenado continua sujeito a um regime de vigilância
policial, institucional e social (por via de informações que podem ser obtidas
pelas famílias).
São princípios
basilares do direito penal e consagrados na Constituição e na lei ordinária,
como o princípio da culpa, enquanto função e limite da determinação da pena, e
os princípios ligados aos fins das penas (prevenção geral e prevenção
especial), visando prevenir a prática de futuros crimes, pela aplicação da pena
justa, que, por um lado, satisfaça as exigências de defesa do ordenamento jurídico
e, por outro, seja instrumento adequado de reintegração do agente na sociedade,
que ficam comprometidos.
A proposta de lei vem
dizer que o cumprimento da pena não é suficiente para satisfazer aquelas
finalidades e que se impõe a adopção de outras medidas adicionais para prevenir
a prática de futuros crimes. E que medidas são essas? Qual a sua natureza?
Medidas de segurança baseadas na perigosidade do agente? Aplicadas como e por
quem? Que efeito têm sob o ponto de vista da coerência do sistema?
*
No caso da lista de
“vips,” pretende-se exactamente o contrário da lista de pedófilos. Salvaguardar
determinadas personalidades de qualquer curiosidade alheia relativamente à sua
situação fiscal, evitando a ocorrência de casos de denúncia pública de
irregularidades, como a que foi detectada no primeiro-ministro.
Enquanto ali se
pretende expor, aqui visa-se ocultar; enquanto ali se almeja seguir cidadãos
que cometeram determinadas crimes, aqui intenta-se ocultar das vistas públicas
determinadas infracções que possam acarretar responsabilidade de pessoas ditas
“vip”, isto é, cidadãos tidos como de “primeira”, pois é disso mesmo que se
trata. Mas é precisamente porque se trata de “figuras públicas” que mais avulta
o interesse em conhecer aspectos relacionados com o cumprimento das suas obrigações
fiscais. A protecção da sua privacidade é menor do que a requerida para os
outros cidadãos. Diz o art. 80.º, n.º 2 do Código Civil que a extensão da
reserva da vida privada “é definida conforme a natureza do caso e a condição
das pessoas”.
Algumas dessas pessoas
(as que desempenham certos cargos públicos) até são obrigadas a declarar no
Tribunal Constitucional os seus rendimentos, precisamente em nome de um
princípio de transparência. Ora, a informação sobre o cumprimento de obrigações
fiscais por parte dessas pessoas até deveria ser tornada pública, como regra e
não objecto de ocultação, como se pretenderia com a lista “vip”.
18 março 2015
A luta contra o terrorismo
A propósito das
atrocidades cometidas pelos combatentes do Estado Islâmico (EI) a que se refere
o meu texto intitulado “As palavras e o silêncio” e, de um modo geral, todas as
acções hediondas perpetradas pelos islâmicos radicais em vários países da
África, do Médio Oriente e da Ásia, queria lembrar um excelente artigo – “A
luta contra o terrorismo: um desafio comum” - que foi publicado no Público do passado dia 16
(segunda-feira), assinado por Saloua Bahri, embaixadora da Tunísia em Portugal.
Li e reli, porque nos
dá uma perspectiva que me parece correcta, bem enquadrada e contemplando os vários
aspectos (sociais, culturais, históricos, políticos, económicos e
internacionais, embora nos limites estreitos de um artigo) sob que o terrorismo
do islão político e radical pode ser analisado quanto à sua proliferação e conquista
de adeptos em certas camadas sociais. E não só: também adianta reflexões úteis para
uma acção integrada de combate eficaz a esse flagelo.
Tudo num tom objectivo
e nada carpidor de desgraças.
Após o meu texto, senti
necessidade de chamar a atenção deste. Talvez como antídoto.
16 março 2015
Nós e a Grécia
Também foram figurantes dos dois países ibéricos que pretenderam
um endurecimento dos países da União Europeia e, nomeadamente, da Alemanha,
face à Grécia. Isso mesmo foi reconhecido pelo presidente da Comissão, embora
este ilibasse aqueles figurantes de pretenderem derrubar o governo grego. Foi,
justamente, essa atitude que deu causa à ideia que tem circulado de que há quem
seja mais alemão do que a própria Alemanha. O mesmo Junker a expressou. Tem
sido, aliás, muito notada a forma como os nossos representantes parecem esquivar-se
a qualquer encontro directo com o ministro grego das Finanças, pese embora a
afabilidade com que este aborda todos os
intervenientes nas reuniões entre membros dos diversos países pertencentes à
União.
É como se o governo
grego tivesse peste e devesse ser colocado à distância sanitária conveniente. Pior
do que isso: devesse ser alvo de uma humilhação estigmatizante, protagonizada por
certos responsáveis europeus, com destaque para o inevitável Shauble e, pelos vistos, com particular acento,
pelos seus acólitos ibéricos, entre alguns outros.
Todavia,
é, se não me engano, o exemplo grego de contestar o caminho da austeridade
imposta pelos actuais big bosses
europeus e a assunção de uma verticalidade que parecia arredada do comportamento
de pequenos países periféricos como o nosso, que tem levado o nosso actual
governo, nos últimos dias, a engrossar a voz face às exigências do FMI, classificando-as
(vejam a ousada linguagem psiquiátrica) de sindrome
de abstinência, bem como a ter uma certa displicência para com as
recomendações da Comissão, cujo vice-presidente acaba de vir solicitar por favor ao Governo português para
fazer as reformas estruturais que se impõem (isto é, o aprofundamento da via de
desbaste do Estado Social). Sim, não é só a proximidade das eleições e o facto
de ter sido concluído formalmente o chamado processo
de ajustamento que leva a esse comportamento tão cioso da sua independência.
O mundo está mais perigoso
O
mundo está mais perigoso, pois claro!, mas há responsáveis por esse aumento de
perigosidade, por esta situação em que agora nos encontramos. Estou a pensar em
quem despoletou a chamada “guerra global contra o terror” de uma forma
desastrosa, começando por invadir o
Iraque à custa de um formidável embuste e menosprezando os perigos que uma
grande parte da opinião pública mundial já
anunciava.
O
senhor Bush, o senhor Cheeney, o senhor Donald Rumsfeld e outros falcões com
ligações ao negócio de armamento e às indústrias de reconstrução após a invasão,
o senhor Tony Blair, da chamada “terceira via”, que já se vê qual foi, alguns
actores secundários que enfileiraram na coligação internacional, que agiu sem
mandato das Nações Unidas. Esses foram os responsáveis pelo incremento da
perigosidade. Também houve pequenos figurantes ibéricos que acolitaram os
prelúdios da invasão e apareceram no retrato para memória futura. E que
memória!
As palavras e o silêncio
Gostava de exprimir o meu horror
em relação às vandálicas acções dos combatentes jihadistas do denominado Estado
Islâmico (EI) no Iraque, saqueando e destruindo obras de arte milenares em
Mossul e Nimrod, cidades antiquíssimas,
como Hatra, mas não encontro as palavras justas. Provavelmente estão fora do
dicionário e mesmo para além de qualquer forma de expressão verbal. Selvajaria,
actos bárbaros, actos hediondos, crimes abomináveis, crimes contra a
humanidade. Palavras e expressões correctas, mas, todavia, insatisfatórias,
escassas e banais.
Queria palavras que gritassem,
que ferissem, que fossem facas como as que os jihadistas usam para degolar as
suas inocentes vítimas, que fossem o equivalente do fogo destruidor que eles
empregam para incinerar pessoas e cidades. Palavras que fossem tão chocantes,
como o uso que eles fazem de crianças para praticarem actos criminosos.
Porém, não encontro tais
palavras. Às vezes, penso que só o silêncio perante actos destes está à altura
da terrível monstruosidade que eles exprimem. E, no entanto, como diria Manuel António Pina,
face à impotência das palavras,“Já não é
possível dizer mais nada/mas também não é possível ficar calado”. Não é reduzir-nos a um
silêncio sufocante, paralisante, o que eles precisamente querem com o seu
terrorismo?