31 janeiro 2017
O povo americano começa a mexer-se
Trump está a governar os EUA como se fossem uma (sua) empresa. Senta-se na cadeira presidencial, como se fosse a de um "CEO", rodeia-se dos seus "colaboradores", todos respeitosamente em pé à sua volta, e depois de convocados fotógrafos e operadores de câmara, assina solenemente uma "ordem executiva", como se fosse uma diretiva ao pessoal da empresa. Não lhe interessa saber se a "ordem executiva" que suspendeu a entrada nos EUA de cidadãos oriundos de alguns "países muçulmanos" cabe no domínio das suas competências, pois ele acha que não há limites aos seus poderes presidenciais, como nunca os houve enquanto presidente do seu grupo empresarial. Já ouviu falar na Constituição, mas isso para ele é um texto histórico para emoldurar e colocar na parede. Não lhe falem em direito, muito menos em direito internacional, que ele despreza (a ambos), como obstáculos que são à boa administração de uma empresa, e logicamente de um país. Sabe que existe o parlamento, mas também sabe que aí tem a maioria do seu lado. Também sabe que existe o Supremo Tribunal e que aí pode haver problemas, mas já tem uma solução: hoje mesmo vai nomear um juiz, que vai "desempatar" a seu favor... Não se sabe ainda quem será o escolhido, mas pelo que foi antecipado adivinha-se que será um primata tão inculto como o próprio Trump.
Mas o que mais importa realçar é que o povo americano começou a mexer-se. As manifestações nos aeroportos, o ativismo de organizações de defesa dos direitos cívicos, as reações de setores importantes do mundo da cultura, algumas decisões judiciais derrogando a dita "ordem executiva" são demonstrativos de um movimento de "resistência" que pode engrossar se aquela ordem se mantiver e outras igualmente abstrusas sobrevierem.
Mas o que mais importa realçar é que o povo americano começou a mexer-se. As manifestações nos aeroportos, o ativismo de organizações de defesa dos direitos cívicos, as reações de setores importantes do mundo da cultura, algumas decisões judiciais derrogando a dita "ordem executiva" são demonstrativos de um movimento de "resistência" que pode engrossar se aquela ordem se mantiver e outras igualmente abstrusas sobrevierem.
25 janeiro 2017
A força da democracia
Ao
contrário do que muitos dizem para aí, é na aparente fragilidade
da actual solução governativa que se encontra a sua força. Força
porque obriga a um contínuo esforço de negociação, de procura e
consecução de soluções concertadas, de partilha e espírito
inventivo, de valorização da vertente parlamentar, em suma, de
enriquecimento da democracia. Bem sei que é mais cómodo governar
com maioria absoluta, mas esta favorece a arrogância e as soluções
autoritárias, a sobreposição das maiorias em relação às
minorias, a transformação do Parlamento em caixa de ressonância do
Executivo, o empobrecimento do jogo democrático.
A
actual solução de governo minoritário do PS com apoio à esquerda
tem-se mostrado benéfica e estimulante, muito mais do que se
houvesse um governo minoritário do PS com apoio de um outro partido
do centro. Essa fórmula governativa, que gerou o chamado “centrão”,
com alternância das mesmas figuras de um lado e do outro, troca de
favores e de lugares, clima político pantanoso, etc., já tinha
dado o que tinha a dar. Era preciso mudar de ares.
23 janeiro 2017
EUA: ano zero
O mundo está incrédulo com a chegada deste sujeito à Casa Branca. É a primeira vez que chega à presidência dos EUA um indivíduo sem credibilidade para o cargo. Bush filho estava mal preparado. Mas este Trump está abaixo dos mínimos exigíveis. É uma personagem burlesca, física (aquele cabelo solto que parece que vai fugir à frente dele, aquela gravata que chega ao fundo da braguilha) e mental (não tem programa, não tem ideias políticas, só meia dúzia de slogans dum primarismo rudimentar saem daquela boca). É uma autêntica personagem de opereta, mas que não faz rir, nem sequer sorrir. Incredulidade, perplexidade e receio são os sentimentos que ele desperta. A única boa notícia é que logo no dia da posse começaram as manifestações populares adversas. Será que a política, entendida não como jogos de poder nos corredores do Capitólio, mas como confronto de ideias e de práticas políticas a todos os níveis, incluindo a "rua", vai (re)nascer nos EUA? Sabemos que naquele país não existem propriamente partidos políticos, pelo menos no sentido de organizações políticas com projetos políticos diferentes para a sociedade (os partidos políticos americanos não são de direita nem de esquerda, servem apenas para propor candidatos às eleições). Não é previsível que a curto prazo, como a situação impõe, se reorganizem para viabilizar o aparecimento de projetos políticos anti-Trump. Por isso será necessariamente fora dos partidos tradicionais que esses projetos terão que aparecer. Não será, a meu ver, Obama, um homem perfeitamente "institucional", que poderá encabeçar qualquer movimento inovador. Talvez Bernie Sanders. Não é altura de ele reaparecer? Afinal se ele tivesse sido o candidato democrata talvez as coisas tivessem sido diferentes...
22 janeiro 2017
Trump
Donald
Trump. Ele aí está entronizado na presidência dos Estados Unidos
da América. Vai agora iniciar-se um período que todos os analistas
qualificam como “imprevisível”. De facto, não se sabe o que é
que este empreiteiro da construção civil pode construir ou destruir
no seu mandato. Parece ser perito em levantar muros. O muro na
fronteira com o México é uma das obras que ele se prontificou a
realizar. Mas há mais muros: um muro para vedar a entrada de
imigrantes indesejáveis; outro muro para isolar os islamitas; outro
para evitar a contaminação de drogados e outros criminosos; ainda
outro para defender a economia da concorrência de outras economias
perigosas para os interesses americanos; mais outro para defender os
mesmos interesses no Médio Oriente, ajudando os seus amigos
sionistas a expandirem o território contra os palestinianos. Uma
infinidade de muros com que Trump tenciona construir uma grande
muralha, abaluartada das torres que formam o império Trump e de onde
ele sonha construir, com os amigos bilionários, xenófobos, racistas
e anti-ambientalistas que escolheu para a sua administração, uma
nova América grande. E que grande América ele há-de construir.
A
máxima caricatura global (caricatura é como quem diz a outra face
da tragédia) é um homem destes ter sido escolhido para dirigir a
nação mais poderosa e rica do mundo. Se Bush Filho estava abaixo da
média, Trump está muitos furos abaixo de Bush.
O
que se vai seguir põe em sobressalto o mundo inteiro, porque
realmente se trata de um governo com implicações globais. Provam-no
as manifestações que se fizeram por toda a parte. Trump é um
timoneiro perigoso, para além de básico e caricato. God bless
America and the world.
19 janeiro 2017
O último dia de Obama
Termina amanhã o consulado de Obama, o primeiro homem de cor (embora não afro-americano, como por aí se diz, por não ser descendente de escravos, nem sequer propriamente negro) que dormiu na Casa Branca. Tinha uma imagem simpática e era um bom orador (a raiar por vezes a demagogia). Levou de qualquer forma ar fresco para a dita Casa, mas o seu legado positivo mostra-se demasiado frágil para poder aguentar-se. A sua herança é aliás ambígua. Por um lado, conseguiu impor o "Obamacare", uma medida "social", uma autêntica lança em África, aliás, na "América"... Essa a única grande medida internamente. Procurou outras reformas importantes e de sinal progressivo; a legalização dos imigrantes e o controlo da posse de armas. Não conseguiu: a América branca resistiu e ganhou. E Obama não apelou a nenhum apoio popular que sustentasse os seus esforços. Isso não estaria certamente nos seus horizontes, pois ele é indubitavelmente um "homem do sistema". Também não conseguiu melhorar a situação dos negros. Pelo contrário, radicalizou-se no seu mandato, nas suas barbas, perante a sua impotência, a atitude racista da polícia americana. Não lhe serviu de nada ir a Selma participar na manifestação comemorativa das lutas dos anos 60, os negros continuam a ser o alvo preferido dos polícias... A nível internacional, a atribuição do prémio Nobel foi precipitada e mesmo completamente injustificada. Obama foi, como os demais presidentes dos EUA, um "senhor da guerra", primeiro diretamente no Afeganistão, depois indiretamente na Ucrânia, na Líbia, na Síria. Por último "ressuscitou", de mãos dadas com a Alemanha, a guerra fria com a Rússia, que mesmo sem regime comunista voltou a ser o "inimigo principal"... Outros aspetos negativos: não apoiou a "primavera árabe" e inclusivamente agravou a situação no Médio Oriente com o apoio armado à oposição síria e não contribuiu minimamente para a resolução do conflito israelo-palestiniano. Aspetos positivos; acordo nuclear com o Irão, desbloqueamento das relações com Cuba, tratado de Paris sobre as alterações climáticas. Por último, um aspeto fortemente negativo: a manutenção do campo de Guantánamo. Enfim, uma herança contraditória e, no que tem positivo, ameaçada de esmagamento pela América branca que amanhã toma posse.
10 janeiro 2017
Soares
O que eu apreciava em Soares? A sua combatividade, a sua
persistência, a sua determinação em vencer, a sua capacidade de
luta, a sua inabalável fé na democracia pluralista. Foi quase
sempre um vencedor e atingiu todos os lugares cimeiros a que podia
ter aspirado na vida política do país, de cuja orientação e
modelação no pós-25 de Abril foi, sem dúvida, o maior artífice.
Apostou e não foi o Kerenski da Europa, mas o demiurgo da Fonte
Luminosa e o homem que introduziu Portugal no espaço europeu, que
outros viam muito de viés. Podemos pôr em dúvida muitas das suas
opções (não certamente a da descolonização, que lhe granjeou
ódios mortais, ainda persistentes), mas a verdade é que foi um
ganhador em quase todas as batalhas em que se empenhou. Muitas vezes
exaltámos com as suas vitórias, conseguidas no fio da navalha;
outras, ficámos decepcionados com os caminhos que trilhou. Meteu
muitas coisas na gaveta e foi-as deixando um bocado aferrolhadas, mas
também bateu o pé com denodo em situações-limite, de refluxo de
direitos, liberdades e garantias, como aconteceu ainda muito
recentemente.
Também apreciava nele a sua descontracção, em virtude da qual era
capaz de dormir nem que fosse com a cabeça pousada numa pedra, como
chegou a dizer, ou de dormir a sono solto antes de um interrogatório
da PIDE, ou ainda de se rir dos seus próprios lapsos, e eram muitos
(lembram-se daquele, em Caminha, quando se dirigiu aos caminhenses
como “Povo de Cabinda”?). Era notável a forma como convivia com
todos os estratos populacionais, como dialogava com todos, como se
inseria tão facilmente nas camadas populares e como aceitava os
epítetos com que o “brindavam”, muitas vezes tradutores de uma
liberdade paródica. Porém, isso talvez fosse a outra face do
monarca que o socialista, republicano e laico gostava de ser, a do
rei que vê com bonomia soberana as malandrices do seu povo, que se
imiscui com ele nas festanças, mas que também não enjeita o
espavento da sua condição. Essa era uma das facetas contraditórias
da sua personalidade. Essa e talvez uma certa descontracção em
demasia, que parecia cair numa forma de laxismo. Às vezes parecia
não escolher muito bem algumas das figuras que o rodeavam. E foi
protagonista de manifestações onde escusava de se ter envolvido. Na
área da justiça, por exemplo.
As suas exéquias fúnebres, executadas com pompa e circunstância,
evocando velhos tempos da Monarquia, deviam ter-lhe agradado, se
acaso as pudesse viver. Mas já não era ele que viajava de charrete,
puxada por vários cavalos, mas apenas o corpo de onde tinha
desertado há vários dias.
Mário Soares: um percurso sinuoso
Umas vezes à esquerda, as mais das vezes à direita, foi assim o percurso político de Soares, umas vezes com o socialismo na lapela, a maior parte do tempo com ele dentro da gaveta... Há quem na direita não o suporte, mas essa é a direita trauliteira, saudosista, colonialista. A direita inteligente reconhece nele o seu herói, o que a salvou do "comunismo"... Mas vamos por partes e comecemos após o 25 de Abril. Desde a revolução até à institucionalização do regime, a ação de Soares foi guiada pela procura de reduzir a democracia aos "mínimos" prescritos pela "democracia liberal", ou seja, a um estado de direito circunscrito às liberdades, sem componente social. Institucionalizadas contra sua vontade certas transformações sociais entretanto ocorridas (nacionalizações, reforma agrária, contratação coletiva e direitos dos trabalhadores), ele empenhou-se denodadamente na sua eliminação quando chegou ao poder, primeiro sozinho, depois aliado ao CDS. Foi sempre contra a esquerda que ele governou. O caso da reforma agrária foi muito significativo, pois ele demitiu o ministro da Agricultura socialista António Lopes Cardoso, que pretendia dar continuidade à reforma agrária, embora com algumas modificações, para meter no governo António Barreto, que levou a cabo uma política pura de razia da reforma agrária, entregando a terra aos seus "legítimos proprietários", os latifundiários absentistas, abdicando completamente da viabilização de uma reforma agrária alternativa, Toda a governação de Soares foi a de destruição do que tinha sido construído após o 25 de Abril pelos governos provisórios, para gáudio da direita. O socialismo estava lá bem no fundo da gaveta. Um momento particularmente sinistro foi a sua atitude, quando das eleições presidenciais de 1980, de se autossuspender do cargo de secretário-geral do PS, favorecendo fortemente a candidatura francamente direitista do general Soares Carneiro. Ele nunca explicou esta atitude... Depois, foi eleito PR com o apoio de toda a esquerda (muita dela engolindo elefantes vivos). Dá-se então um distanciamento em relação à direita, que se acentua no segundo mandato, em que assumiu uma posição crítica da política de Cavaco. Com a saída de Belém, passou a assumir posições mais à esquerda, que soavam tantas vezes a falso, dados os antecedentes... Mas é de registar a sua oposição à guerra no Iraque, por exemplo, e as suas críticas contundentes à deriva autoritária e austeritária da UE. No entanto, há também que registar que se recusou a comentar a "geringonça" (o que se compreende porque fora ele o construtor do "arco da governação"). Um aspeto fortemente negativo da sua personalidade era a proteção dos "amigos", mesmo quando estes eram acusados de condutas delituosas de direito comum (o primeiro foi Melancia, depois houve outros e mais outros...) Enfim, um percurso cheio de curvas (algumas perigosas), sobretudo para a direita.
03 janeiro 2017
Mister Belzebu
Ou
da confiança que devemos depositar nas moscambilhas de Demon
O
novo ano é ainda um infante a dar os primeiros vagidos. Muita coisa
nos alvoroça, a imaginarmos o que poderá surgir ao longo dos dias e
dos meses durante os quais se vai estender o ano que agora principia.
Os nossos amigos das gazetas e dos meios sonoros e visuais e dos
novíssimos meios digitais apreciam sobremaneira pôr-se a fazer
adivinhações acerca do que, estando escondido no bojo do novo ano,
vai aparecer em forma de acontecimento. Pois eu vou tentar também,
num exercício sério e despudorado, contribuir para o desvelamento
do que pode vir a surgir no nosso país tão pequeno e tão
maltratado, mas tão magnífico.
O
ano que passou foi um ano para esquecer. Os nossos adversários (e,
em bom rigor, adversários não só nossos, mas do próprio país)
assenhorearam-se do leme da governação, aliando-se a forças
marginais e defraudando os sãos princípios que até aí regeram a
vida democrática da Nação. Uma vez instalados no posto de mando,
iniciaram a sua obra de reconstrução de tudo aquilo que nós
havíamos deitado por terra, a bem de uma ordem aceitável em que se
desse poder aos de cima e os de baixo perdessem espaço de manobra.
Assim, começaram a repor os soldos e vencimentos das classes
obreiras, a restaurar prestações compensatórias, ditas sociais, a
abrir os cordões à bolsa a quem, por idade, já não tem préstimo,
a restituir as horas e dias feriados que tinham sido recuperados ao
povo trabalhador, enfim, a restabelecer as leis laborais que tanto
trabalho deram para serem revogadas.
Tão
calamitosa tem sido, do ponto de vista dos nossos interesses (e,
evidentemente, do país) a rota seguida por esta governação, que
nós, os usurpados do poder, começámos a invocar a grande figura de
Belzebu para vir em nosso auxílio. Com efeito, Belzebu foi o monstro
sagrado em que nós confiámos para nos dar sorte e nos restituir o
poder que nos foi roubado. Belzebu seria a figura excelsa do Bem, o
autêntico Messias do qual dependeria a nossa salvação (e,
evidentemente, a do país).
De
tempos a tempos, com uma insistência ansiosa, o nosso
ex-ministro-mor vinha anunciar que Belzebu iria, enfim, chegar e com
ele a Boa-Nova: o regresso do nosso reinado. Fazia lembrar aqueles
que anunciam o fim do mundo para determinadas datas e, surgindo o dia
aprazado, o mundo continua a rolar como se nada fosse. No dia em que
Belzebu aparecesse, tanbém o errático mundo político em que temos
vindo a viver viraria de cangalhas, o governo dos esquerdinos seria
atirado para as profundas do Inferno e os Eleitos, colocados à mão
direita do Senhor dos Passos, voltariam a reinar e a colocar tudo na
devida ordem.
Belzebu
viria com certeza, ornamentado com os seus chifres e abanando o seu
rabicho arteiro e, insinuado nas mentes débeis dos nossos
adversários, levá-los-ia a multiplicar as benesses ao povinho
ingénuo e, quando eles mal se precatassem, bêbedos de tanto
forrobodó, seriam atirados abaixo da geringonça que montaram. Seria
bonito e uma festa rija para todos nós (e do nosso país,
evidentemente) ver o actual
ministro-mor cair de costas e rojar no chão, vencido pelas
travessuras de Belzebu.
Mister
Belzebu não veio, afinal, durante todo o ano que acabou de expirar.
Nem sempre, porém, o nosso Salvador vem quando mais desejamos, mas
não devemos desesperar. Estão para chegar novas tentações de
Belzebu e elas já se fizeram anunciar sob novas formas de benesses
sedutoras a distribuir pelo governo dos esquerdinos. Apesar de um
pouco desacreditado pelas falhas de previsão na sua vinda, confiemos
em Belzebu e nas suas travessuras, porque ele há-de ar-nos a sua
protecção.
Bom
Ano para todos os nossos correligionários (e para o nosso país,
evidentemente) do vosso sempre
Fiel
Jonathan
Swift (1665-1745)