26 fevereiro 2012
Libelo por um direito penal sexual ao serviço das vítimas (ou seja, mulheres)
O artigo já aqui referido anteriormente por Pedro Soares de Albergaria, da autoria da Prof. Maria Clara Sottomayor, publicado no nº 128 da "Revista do Ministério Público", merece-me também algumas observações. Mais do que um comentário ao ac. da Relação do Porto de 13.4.2011, esse artigo, subscrevendo uma tese que não é inovadora e com a qual concordo (a recusa explícita e inequívoca de consentimento da vítima integra o elemento "violência" no crime de violação) constitui um libelo, um manifesto inflamado, por um direito penal abrangente e "promocional" no âmbito dos crimes sexuais (ao ponto de defender tribunais especializados em "violência de género"). Esta perspetiva investe contra a natureza necessariamente fragmentária e residual que o direito penal encerra num Estado de Direito democrático. Como se sabe, o direito penal não "promove" valores ou interesses, antes defende bens jurídicos em última instância. O direito penal é essencialmente contrafático, não promocional. Não lhe cabe fomentar a igualdade entre os sexos/géneros ou impulsionar a proteção dos direitos das crianças. Essa é uma tarefa do poder executivo, por ser materialmente de natureza administrativa. Ao direito penal cabe punir as condutas que ofendem bens jurídicos (como o são indiscutivelmente os casos de violação da liberdade e da autodeterminação sexual), não para promover os direitos ds vítimas, mas simplesmente para fazer a justiça do caso. O tribunal, ao fazer justiça, não está do lado do arguido ou da vítima, está necessariamente numa posição terceira, em defesa do ordenamento jurídico e dos valores que este tutela. Dum magistrado, dum juiz, o que se espera, o que lhe compete, é aplicar o direito, não alinhar num combate, ainda que por valores respeitáveis.
24 fevereiro 2012
Democracia doente
Com a devida vénia e porque comungo inteiramente desta visão, reproduzo o artigo do Manuel António Pina, publicado hoje no Jornal de Notícias:
Uma democracia doente
Que, após
anos de alternância entre o PS e o PSD (ou PSD/ CDS), sem que a alternância
governativa tenha significado alternância de políticas económicas, a
democracia portuguesa foi conduzida a um beco aparentemente sem saída, já se
sabia; que a tutela absoluta da "troika" sobre essas políticas e
sobre a acção dos partidos do chamado "arco da governação" afunilou
ainda mais qualquer hipótese de saída de tal situação no actual quadro
político, também já se sabia; não se sabia era que os desesperançados
eleitores portugueses tivessem plena consciência de tudo isso, embora fosse
possível suspeitá-lo pelo crescimento galopante dos números da abstenção
(bastará dizer que, tendo em conta a abstenção e os votos brancos e nulos, o
PSD alcançou o Governo representando pouco mais de 20% dos portugueses).
A sondagem
agora realizada pela Universidade Católica para a RTP comprova o pior: quase
dois terços (62%) dos eleitores consideram mau ou muito mau o desempenho do
Governo em funções, mas três quartos (73%), olhando em volta para as
alternativas viáveis - que é como quem diz para o PS - não vê que valha a
pena mudar de Governo por um outro que, com mais ou menos leis do aborto ou
do casamento homossexual, faça exactamente a mesma coisa.
Quando os
eleitores concluem que tanto dá votar como não votar porque o resultado será
o mesmo, a democracia está gravemente doente e madura para qualquer aventura
populista
Uma democracia doente
Que, após
anos de alternância entre o PS e o PSD (ou PSD/ CDS), sem que a alternância
governativa tenha significado alternância de políticas económicas, a
democracia portuguesa foi conduzida a um beco aparentemente sem saída, já se
sabia; que a tutela absoluta da "troika" sobre essas políticas e
sobre a acção dos partidos do chamado "arco da governação" afunilou
ainda mais qualquer hipótese de saída de tal situação no actual quadro
político, também já se sabia; não se sabia era que os desesperançados
eleitores portugueses tivessem plena consciência de tudo isso, embora fosse
possível suspeitá-lo pelo crescimento galopante dos números da abstenção
(bastará dizer que, tendo em conta a abstenção e os votos brancos e nulos, o
PSD alcançou o Governo representando pouco mais de 20% dos portugueses).
A sondagem
agora realizada pela Universidade Católica para a RTP comprova o pior: quase
dois terços (62%) dos eleitores consideram mau ou muito mau o desempenho do
Governo em funções, mas três quartos (73%), olhando em volta para as
alternativas viáveis - que é como quem diz para o PS - não vê que valha a
pena mudar de Governo por um outro que, com mais ou menos leis do aborto ou
do casamento homossexual, faça exactamente a mesma coisa.
Quando os
eleitores concluem que tanto dá votar como não votar porque o resultado será
o mesmo, a democracia está gravemente doente e madura para qualquer aventura
populista
23 fevereiro 2012
A categoria
Lia eu um artigo publicado no último número da Revista do Ministério Público (ano 32, n.º 128, 2011), da autoria de uma académica recentemente graduada em 1.º lugar como "jurista de mérito" para o nosso mais alto tribunal, quando tropecei nesta extraordinária opinião (o texto é um comentário crítico a um polémico acórdão do TRP):
"Parece estranho, neste contexto, que a relatora do acórdão seja uma mulher. Contudo (...) a ideologia masculina ultrapassa as barreiras de género e não termina com a feminização das magistraturas. Talvez por força da circunstância de a magistratura ter sido uma profissão masculina até há cerca de 30 anos e de a composição dos Tribunais superiores se caracterizar por uma sobre-representação masculina, algumas mulheres, no exercício da função judiciária, tendam a adoptar o ponto de vista masculino em detrimento da fidelidade à sua categoria de pertença." (negrito meu) (p. 295).
Sempre pensei que, independentemente de qualquer preconceito (e quem não os tem!), só a Lei e a Constituição (e a consciência) são credoras da "fidelidade" do juiz (se são bem ou mal aplicadas ou dirigidas é outra questão, de que aqui não cuido). O juiz, mantenho até que me doa, não deve "fidelidade" a qualquer "categoria", seja ela o género, a raça, a idade ou o que quer que seja. Aliás, como se ensina neste livrinho, devemos é fugir das "categorias"...
Ilusões perdidas
Tenho 66 anos. Alimentava eu a secreta esperança de um dia vir a saber do trânsito em julgado (com condenações ou absolvições) do processo "Casa Pia". Hoje perdi definitivamente todas as ilusões.
22 fevereiro 2012
Esqueci-me de dizer que as entrevistas (com Albert Alschuler, John Langbein e outros pesos pesados do panorama académico norte-americano) estão aqui.
The plea
"The Plea" é um excelente documentário sobre a negociação das penas nos E.U.A. Já o havia visto há uns anos, mas porque a questão da justiça negociada está em debate entre nós (embora só remotamente o que aqui se discute tem que ver com o que se passa do lado de lá do Atlântico), aqui está a ligação. Atenção à entrevista com Albert Alschuler, um prestigiadíssimo jurista norte-americano e feroz opositor da negociação.
21 fevereiro 2012
Reciclagem de políticos desempregados ou aproveitamento oportuno de mais-valias
O anterior MNE, Amado de seu nome, figura de proa do socratismo, ficou desempregado, como outros seus colegas. Não ficou, porém, à espera de "novas oportunidades" em política, nem quis estudar (já sabe tudo o que precisa). Aderiu de alma e coração ao setor privado: vai ser proposto para presidente do conselho de administração do BANIF. Porquê? Que sabe ele disso? Em que pode ser útil ao banco? Muito simples: "... é considerado uma mais-valia pelos seus contactos internacionais, que poderão ajudar a encontrar novos investidores, nomeadamente fundos soberanos que ajudem a reforçar a base de capital". ("Público" de 18.2.2012 p. 14). Tudo claro e simples: primeiro, ao "serviço do povo" arranjam-se "contactos"; depois, põem-se esses conhecimentos a render em proveito próprio...
18 fevereiro 2012
O Pai, o papão
A troika funciona para muitos dos responsáveis pelos destinos do país como uma espécie
de entidade paternalista. Ela é o Pai de que precisávamos para, na perspectiva
desses responsáveis, pormos a casa em ordem, já que, pelos nossos próprios
meios, parece que não o conseguiríamos fazer. Muitas vezes desempenha mesmo o
papel de um papão, num recriado imaginário infantil.
Veja-se a obsessiva invocação da autoridade da troika, a propósito de tudo e de nada. Não
há praticamente decisão que se tome, sem se aludir ao célebre memorando da troika.
A nossa cartilha, a nossa lei suprema é a troika. A troika é a autoridade que está acima das autoridades do país, a autoridade por excelência, a única autoridade que passamos a conhecer e a reconhecer. Tem de se fazer isto ou aquilo, porque a troika disse para se fazer, e o que ela diz ou disse não se discute.
Está no memorando da troika! – eis o argumento com que se emudecem as bocas, o látego representando a autoridade do Pai com que se constrangem as consciências.
A troika é o olho omnipresente que nos vigia, que está sempre alerta, que vê o que fazemos
ou deixamos de fazer. O papão. Tão forte é o seu poder real e oculto, que os nossos governantes até têm demonstrado a vontade de ir além daquilo que ela determina ou exige. Quer-se não apenas cumprir, mas exceder-se no cumprimento, como um subordinado que pretendesse cair nas boas graças do chefe fazendo mais do que lhe seria exigível e impondo aos de baixo, na cadeia hierárquica, um rigor ainda mais acentuado. Tiques que conhecemos bem de repressões e aviltamentos mal recalcados.
de entidade paternalista. Ela é o Pai de que precisávamos para, na perspectiva
desses responsáveis, pormos a casa em ordem, já que, pelos nossos próprios
meios, parece que não o conseguiríamos fazer. Muitas vezes desempenha mesmo o
papel de um papão, num recriado imaginário infantil.
Veja-se a obsessiva invocação da autoridade da troika, a propósito de tudo e de nada. Não
há praticamente decisão que se tome, sem se aludir ao célebre memorando da troika.
A nossa cartilha, a nossa lei suprema é a troika. A troika é a autoridade que está acima das autoridades do país, a autoridade por excelência, a única autoridade que passamos a conhecer e a reconhecer. Tem de se fazer isto ou aquilo, porque a troika disse para se fazer, e o que ela diz ou disse não se discute.
Está no memorando da troika! – eis o argumento com que se emudecem as bocas, o látego representando a autoridade do Pai com que se constrangem as consciências.
A troika é o olho omnipresente que nos vigia, que está sempre alerta, que vê o que fazemos
ou deixamos de fazer. O papão. Tão forte é o seu poder real e oculto, que os nossos governantes até têm demonstrado a vontade de ir além daquilo que ela determina ou exige. Quer-se não apenas cumprir, mas exceder-se no cumprimento, como um subordinado que pretendesse cair nas boas graças do chefe fazendo mais do que lhe seria exigível e impondo aos de baixo, na cadeia hierárquica, um rigor ainda mais acentuado. Tiques que conhecemos bem de repressões e aviltamentos mal recalcados.
Agora que a troika está de novo connosco para mais uma “visita”, quis-se fazer-lhe mais uma demonstração de que somos “meninos” bem comportados e estamos na disposição de penitenciarmo-nos pela má imagem que provavelmente lhe causamos, quando ela desembarcou pela primeira vez em Lisboa para nos impor a sua lei, como credora das nossas vidas, e nós fomos gozar uns feriados e umas “pontes”. Aboliu-se, à última hora, a habitual tolerância de ponto concedida aos funcionários públicos na terça-feira de carnaval. Nada de mascaradas, nem de folia. Ela está aí, a troika. E como dizia Alexandre O´nneil, «neste país em diminutivo/ respeitinho é que é preciso.»
12 fevereiro 2012
Garzón: estrela cadente
Estamos todos agradecidos, creio eu, pela sua atuação no caso Pinochet e também no caso GAL. Mas este juiz tem manifestamente um problema antigo: o do voluntarismo, ainda quando "bem intencionado". Ordenar a escuta do diálogo entre arguidos detidos (suspeitos de graves crimes de branqueamento e outros adjacentes) e os seus advogados pode até ser muito popular, mas constitui uma grave violação dos direitos de defesa se não estiverem reunidos diversos requisitos, entre os quais a existência de indícios seguros de que os advogados (aqueles advogados concretos) estão, não a preparar a defesa dos seus clientes, mas sim a colaborar na prática de qualquer ilícito. O TS espanhol concluiu que Garzón, ao ordenar as escutas naquelas circunstâncias, sem que tivesse fundamentado o perigo de colaboração dos advogados em prática criminosa, não fez propriamente um interpretação errada da lei; fez, sim, uma interpretação a que não se chegaria utilizando os métodos da interpretação jurídica reconhecidos, "mas sim somente impondo a sua própria vontade, o seu desejo ou o seu critério sobre a interpretação racional da lei", praticando "um ato arbitrário, por carecido de razão, que desmantela a configuração constitucional do processo penal como um processo justo", incorrendo assim no crime de prevaricação. O despacho de Garzón, volto a dizer, até poderá ser bem visto pela população, porque dirigido à repressão de crimes graves. Mas esqueceu Garzón, movido pelo seu voluntarismo impenitente, que há regras inultrapassáveis em processo penal. Os direitos de defesa em processo penal são muito importantes na sociedade democrática (ele agora, na qualidade de arguido, tem motivos de reflexão sobre esse tema...). Os juízes devem decidir de acordo com a lei, quer a decisão seja popular quer não. O popularismo é o pior vício de um magistrado. (Aconselha-se a leitura da sentença do TS, exaustivamente fundamentada, que o Pedro Albergaria anexou ao seu texto).
11 fevereiro 2012
Sobre a negociação das penas
Através do Patologia Social, dei conta de um interessante debate sobre a negociação das penas. Pena que o “representante” da judicatura não estivesse, manifestamente, à altura, ele que tem “insistido tanto com a formação dos juízes” e lutado tanto pelo “perfil” ideal do juiz (que, suspeito, seja o dele).
10 fevereiro 2012
Os compromissos são para ser honrados
Os compromissos são para ser honrados e nós honramos os nossos! Estas palavras têm vindo a
ser repetidas pelo nosso Primeiro Ministro que insiste em garantir aos investidores de dívida portuguesa que não vai haver qualquer renegociação como está a ocorrer na Grécia.
No que toca a compromissos internos, já não há qualquer garantia, pois na verdade, para honrar os ditos compromissos externos é preciso tirar a alguém, internamente. Os infelizes ontemplados foram os trabalhadores, que viram os seus salários serem reduzidos em dois-catorze-avos com a erradicação dos subsídios de férias e de Natal.
Seja como for, vale a pena o esforço em nome da nação e da nossa honra. Hmmmm! Será mesmo?
Como é do conhecimento de todos, o actual Governo tem reduzido postos de trabalho e diminuído os salários da função pública (retirando os subsídios). Muitos portugueses que trabalham no sector privado talvez se regozijem com as perdas dos seus compatriotas do sector público, como se a desgraça dos outros lhes enchesse a mesa. E que muitos dos que perderam os subsídios no sector público exijam que a medida se estenda a todos os portugueses, como se a pobreza dos outros os enriquecesse. Tem-se perdido muito tempo a apontar o dedo uns aos
outros. O Governo conseguiu colocar os portugueses uns contra os outros para que se esquecessem da realidade. A realidade da incompetência negocial com a troica e da ingenuidade de acreditar que estamos no caminho certo.
Em 2010 o Estado gastou 10,8 mil milhões de euros na categoria Pessoal. Em 2011 gastou 9,6 mil milhões e projecta-se um gasto de 8,8 mil milhões para este ano. Ao mesmo tempo, em 2010
gastou-se 5,5 mil milhões em juros, 6,3 mil milhões em 2011 e projecta-se um gasto de 8 mil milhões para este ano. Enquanto houve uma poupança de 2 mil milhões com Pessoal, os juros aumentaram 2,5 mil milhões. Só neste ano de 2012, projecta-se um aumento de 1.7 mil milhões.
Era suposto que a ajuda financeira oriunda da UE nos ajudasse a redenominar a anterior dívida, ou seja, usar os novos fundos para refinanciar a dívida a uma taxa de juro mais baixa. A aceitação de uma série de medidas de austeridade tem por função dar garantias aos novos credores, para que estes aceitem conceder um empréstimo a uma taxa de juro mais favorável. Mas, embora isso tenha acontecido, Portugal continua a financiar-se no mercado secundário a taxas escabrosas. Basicamente o ganho monetário decorrente da supressão de trabalhadores e subsídios serve para pagar o acréscimo dos juros decorrente da especulação. O esforço não serve para nada, pois o Estado não tomou medidas para evitar este descalabro. Assim, quando nos dizem que é um esforço que precisamos fazer, ou nos enganam, ou são ingénuos.
A negociação tripartida foi um insucesso. Os nossos líderes tinham a obrigação de garantir que o esforço dos portugueses valeria a pena. Isso significava garantir que a austeridade não seria canalizada para o pagamento de juros especulativos. Garantir que ela serviria para diminuir a nossa dívida. Ao negociar os empréstimos da EU,aceitamos uma série de medidas austeras. Ao mesmo tempo, devíamos ter exigido os montantes necessários para não ir ao mercado secundário em situação alguma.
Isto cortaria o link especulativo e deixar-nos-ia concentrar no real problema. A situação actual é
insustentável. O Estado vai conseguir diminuir o défice à custa do aumento da receita da venda de património até que não reste uma pedra na calçada. Os salários vão continuar a diminuir, as exigências vão ser cada vez maiores, a recessão mais profunda, e o défice cada vez mais difícil de cumprir. Assim, terei de concluir que o esforço dos portugueses de nada vale. O ganho vai parar às mãos de especuladores, numa catastrófica transferência de riqueza do trabalho para o
capital. Concordo que os compromissos são para ser honrados, mas não cegamente. Se podemos atravessar a linha quando o comboio não está a passar, porquê metermo-nos debaixo dele, suicidariamente?
Filipe Costa
ser repetidas pelo nosso Primeiro Ministro que insiste em garantir aos investidores de dívida portuguesa que não vai haver qualquer renegociação como está a ocorrer na Grécia.
No que toca a compromissos internos, já não há qualquer garantia, pois na verdade, para honrar os ditos compromissos externos é preciso tirar a alguém, internamente. Os infelizes ontemplados foram os trabalhadores, que viram os seus salários serem reduzidos em dois-catorze-avos com a erradicação dos subsídios de férias e de Natal.
Seja como for, vale a pena o esforço em nome da nação e da nossa honra. Hmmmm! Será mesmo?
Como é do conhecimento de todos, o actual Governo tem reduzido postos de trabalho e diminuído os salários da função pública (retirando os subsídios). Muitos portugueses que trabalham no sector privado talvez se regozijem com as perdas dos seus compatriotas do sector público, como se a desgraça dos outros lhes enchesse a mesa. E que muitos dos que perderam os subsídios no sector público exijam que a medida se estenda a todos os portugueses, como se a pobreza dos outros os enriquecesse. Tem-se perdido muito tempo a apontar o dedo uns aos
outros. O Governo conseguiu colocar os portugueses uns contra os outros para que se esquecessem da realidade. A realidade da incompetência negocial com a troica e da ingenuidade de acreditar que estamos no caminho certo.
Em 2010 o Estado gastou 10,8 mil milhões de euros na categoria Pessoal. Em 2011 gastou 9,6 mil milhões e projecta-se um gasto de 8,8 mil milhões para este ano. Ao mesmo tempo, em 2010
gastou-se 5,5 mil milhões em juros, 6,3 mil milhões em 2011 e projecta-se um gasto de 8 mil milhões para este ano. Enquanto houve uma poupança de 2 mil milhões com Pessoal, os juros aumentaram 2,5 mil milhões. Só neste ano de 2012, projecta-se um aumento de 1.7 mil milhões.
Era suposto que a ajuda financeira oriunda da UE nos ajudasse a redenominar a anterior dívida, ou seja, usar os novos fundos para refinanciar a dívida a uma taxa de juro mais baixa. A aceitação de uma série de medidas de austeridade tem por função dar garantias aos novos credores, para que estes aceitem conceder um empréstimo a uma taxa de juro mais favorável. Mas, embora isso tenha acontecido, Portugal continua a financiar-se no mercado secundário a taxas escabrosas. Basicamente o ganho monetário decorrente da supressão de trabalhadores e subsídios serve para pagar o acréscimo dos juros decorrente da especulação. O esforço não serve para nada, pois o Estado não tomou medidas para evitar este descalabro. Assim, quando nos dizem que é um esforço que precisamos fazer, ou nos enganam, ou são ingénuos.
A negociação tripartida foi um insucesso. Os nossos líderes tinham a obrigação de garantir que o esforço dos portugueses valeria a pena. Isso significava garantir que a austeridade não seria canalizada para o pagamento de juros especulativos. Garantir que ela serviria para diminuir a nossa dívida. Ao negociar os empréstimos da EU,aceitamos uma série de medidas austeras. Ao mesmo tempo, devíamos ter exigido os montantes necessários para não ir ao mercado secundário em situação alguma.
Isto cortaria o link especulativo e deixar-nos-ia concentrar no real problema. A situação actual é
insustentável. O Estado vai conseguir diminuir o défice à custa do aumento da receita da venda de património até que não reste uma pedra na calçada. Os salários vão continuar a diminuir, as exigências vão ser cada vez maiores, a recessão mais profunda, e o défice cada vez mais difícil de cumprir. Assim, terei de concluir que o esforço dos portugueses de nada vale. O ganho vai parar às mãos de especuladores, numa catastrófica transferência de riqueza do trabalho para o
capital. Concordo que os compromissos são para ser honrados, mas não cegamente. Se podemos atravessar a linha quando o comboio não está a passar, porquê metermo-nos debaixo dele, suicidariamente?
Filipe Costa
O bom aluno e o mestre
Quando o aluno é esforçado, humilde e submisso, o mestre é compreensivo, mesmo magnânimo se for preciso. Se o aluno levantar cabeça e tentar dialogar com o mestre está tudo estragado. Entre alunos e mestres não há diálogo possível, uns pedem ou mendigam, os outros atendem ou rejeitam conforme lhes dá na gana. É esse o "modelo europeu" na atualidade. Felizmente temos governantes que compreendem perfeitamente as regras do jogo.
09 fevereiro 2012
..."previniendo el derecho de defensa"..., é todo um programa ideológico...
Os juízes do STE não foram piegas
Numa sociedade democrática julgar implica estrita obdediência à Lei e à Constituição; implica não escutar à margem da lei, ainda que os escutados ou os seus mandantes possam ser pessoas desagradáveis ou até repugnantes; implica não avançar com processos por crimes prescritos e/ou amnistiados, por muito hediondos que fossem, como efectivamente foram. Implica ser juiz e não historiador e menos ainda justiceiro. Respeitar a Lei e a Constituição pressupõe também, por vezes, não "aparecer", negar o vedetismo, não ser e nem querer ser "super". Esse é um dos mais graves vírus que pode infectar um juiz. Foi tão só isso que sete juízes do STE, sem medo das brigadas dos que confudem política com justiça, explicaram hoje de modo unânime.
08 fevereiro 2012
Eu piegas me confesso
Sim, sou piegas. Tenho medo de agulhas, de levar injeções, de tirar sangue. Cada vez que faço análises é uma tragédia...
Mas agora, depois do apelo-desafio do nosso PM, não posso ficar agarrado à minha pieguice! Vou encher-me de energia! Vou vencer o destino! Prometo ao nosso PM enfrentar todas as seringas que me ponham pela frente! Como lhe estou agradecido por me ajudar a dar um pontapé no destino!
05 fevereiro 2012
Gerrit Komrij
Este é o nome de um poeta holandês que vive em Portugal há perto de trinta anos. Ontem a RTP2 dedicou-lhe um programa de meia hora. Komrij pertence a um grupo alargado de escritores europeus de países do norte que na década de 80 partiram para o sul à procura de outros horizontes (não propriamente das praias...). Muitos foram para o sul de França, para Itália. Este veio para Portugal, com o seu companheiro. Não veio para Lisboa nem para nenhuma cidade. Instalou-se numa aldeia de Trás-os-Montes num solar parcialmente arruinado, onde meteu dezenas de milhar de livros. Não se deu bem com o padre, como é natural, que o acusou e ao companheiro de serem "bruxos" ou mágicos". Teve que mudar-se, foi para as Beiras, também para uma aldeia pequena. Nesta não se dá bem com o presidente da Junta de Freguesia, cuja principal preocupação é mais com os mortos que com os vivos: construir um segundo cemitério numa povoação com noventa habitantes... Acha divertido o cerimonial da igreja católica, as procissões... (Já se sabe que para alguém do norte da Europa a relação com deus, quando existe, é pessoal, direta, não mediada por nenhuma igreja.) Trabalha incansavelmente, tem uma extensa obra literária é considerado um dos primeiros escritores holandeses, colabora periodicamente na respetiva inmprensa, etc. Apesar dos diferendos que tem com a Junta, não pensa sair de Portugal, nem sequer da aldeia. Vai à Holanda de vez em quando, mas quando regressa à aldeia pensa: "Aqui é a minha casa". E tem mesmo a intenção de ser enterrado no cemitério da aldeia, no velho ou no novo... É um privilégio ter um homem destes entre nós. Publicou entretanto uma antologia de poesia de língua neerlandesa do sec. XX chamada "Uma migalha na saia do Universo", Assírio e Alvim. Tem igualmente publicada uma antologia da sua poesia, com o nome de "Contrabando", também na Assírio e Alvim, com tradução de Fernando Venâncio. (Tem também dois livros em prosa que não conheço.)
A poesia é sarcástica, ácida, cruel. Tem a ver com um certo surrealismo radical. Quero, portanto, dizer que é uma poesia profundamente humanista. Eu atrevo-me a transcrever um poema, pedindo aqui autorização superveniente ao autor e ao tradutor:
"Amor
Um sobre o outro, a sarna e o eczema.
Escamas estalam em nuvens de caspa.
Ela afaga-lhe, terna, o inchado bócio.
Os crânios brilham como um diadema.
Some-se um dedo em sangrento tumor.
Ela baba-se, retorcendo. Um abcesso
Rebenta. O bócio mais azul, ele se anima.
Rola-a sobrer as costas. Mostra-se senhor.
Os gastos quadris entram em loucura.
É um rangido aparatoso. Empapam
Muco com pus numa orgia sem fim.
Ela vomita. É o divino em miniatura."
Mais medidas cirúrgicas?
Ao que parece, a projetada revisão cirúrgica em matéria penal irá incluir, além de outras já anunciadas, mais estas: a interrupção do prazo da prescrição do procedimento criminal com a decisão em 1ª instância; e o alargamento do prazo da prisão preventiva até ao limite da pena da condenação.
Estou resolutamente contra qualquer delas. Quanto a esta segunda, o atual nº 6 do art. 215º do CPP já contém uma previsão ampliativa bastante significativa: o alargamento do prazo da prisão preventiva para metade da pena fixada, se esta tiver sido confirmada em sede de recurso. Ir além disto é excessivo. Aliás, mesmo esta norma já é excessiva, já que permite prazos de prisão preventiva de 10 ou mesmo de 12 anos e meio, no caso de confirmação da condenação (em 20 ou 25 anos de prisão) pelo tribunal superior, o que é intolerável do ponto de vista constitucional. Não precisamos de mais prisão preventiva!
E também a primeira medida se afigura injustificada. Com efeito, para lutar contra as manobras dilatórias em sede de recurso, o CPC prevê já soluções, nomeadamente o art. 720º: é ler e aplicar, quando for caso disso.
Não vale a pena legislar quando a lei já prevê soluções...
A ilha de Páscoa como metáfora
Anteontem o articulista José Manuel Fernandes, arauto incansável do liberalismo económico no "Público", que lhe concede uma página inteira à sexta-feira para a respetiva doutrinação, enriqueceu o seu ensinamento com uma metáfora inovadora e incisiva.
Falando da insustentabilidade, ou melhor, da irracionalidade dos "direitos adquiridos" nas sociedades de hoje (incluindo o direito à reforma), explica com clareza que se continuarmos a insistir nos ditos direitos adquiridos, nos vai acontecer o mesmo que aos desaparecidos habitantes daquela emblemática ilha (mal sabiam eles que iriam servir de metáfora), que abateram as árvores, como era seu "hábito adquirido", até à última, após o que despareceram sem deixar rasto (as árvores e eles).
Aceitando que a causa do desaparecimento do povo e da flora daquela ilha tenha sido essa, resta explicar algumas coisas mais: quem deitou (ou mandou deitar) as árvores abaixo? quem se aqueceu ao lume? quem comeu os frutos? quem teve madeira para construir casas? em resumo, quem beneficiou e em que medida do corte das árvores? por outras palavras, qual foi o nível de distribuição da utilidade das árvores abatidas?
É que o problema está sempre na distribuição da riqueza... Essa a questão que anda a ser discutida desde os alvores da civilização...
03 fevereiro 2012
A resistência à nova ortografia
Não compreendo esta resistência. A serem coerentes, os resistentes reivindicariam a ortografia dos tempos de Garrett e Eça, ou mesmo de Camões. Isso, sim, seria uma atitude cultural e identitária. A recusa deste último acordo ortográfico cheira a nacionalismo serôdio, ou até a preguiça, mental e física, na aprendizagem das novas (e simples) regras.
02 fevereiro 2012
A exequibilidade das sentenças penais condenatórias
Quando é que uma sentença penal condenatória, mesmo em pena de prisão, se torna exequível?
Responde o art. 467º do CPP: quando transita em julgado.
Não há nada como ir aos códigos.