31 julho 2012
Petição surpreendente
Está aberta à assinatura do "povo", e já com umas centenas de aderentes, uma petição dirigida ao PM e ao PR para nomearem PGR o juiz do TCIC.
É para mim estranho que um juiz de instrução, por definição "juiz das liberdades", seja visto pelo "povo" como quem está em melhores condições para dirigir o MP, que é, também por definição, o titular da ação penal, ou seja, quem dirige o inquérito e deduz acusação...
É óbvio que nenhum juiz está impedido de exercer o cargo (o atual PGR é juiz). O que é estranho é a perceção "popular" da especial aptidão daquele magistrado para esse cargo...
Será que está aberta a via para o aparecimento de outras "candidaturas"? Apresentará o "Correio da Manhã" o seu candidato (necessariamente um inimigo feroz dos pedófilos)? Vamos aguardar.
É para mim estranho que um juiz de instrução, por definição "juiz das liberdades", seja visto pelo "povo" como quem está em melhores condições para dirigir o MP, que é, também por definição, o titular da ação penal, ou seja, quem dirige o inquérito e deduz acusação...
É óbvio que nenhum juiz está impedido de exercer o cargo (o atual PGR é juiz). O que é estranho é a perceção "popular" da especial aptidão daquele magistrado para esse cargo...
Será que está aberta a via para o aparecimento de outras "candidaturas"? Apresentará o "Correio da Manhã" o seu candidato (necessariamente um inimigo feroz dos pedófilos)? Vamos aguardar.
28 julho 2012
Homenagem ao serviço público de saúde
O mais interessante de uma não muito interessante cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos foi uma homenagem ao serviço público de saúde criado na Grã-Bretanha logo após a 2º Guerra Mundial. É um serviço que faz parte dos "direitos adquiridos" dos ingleses e que nem os mais extremistas conservadores põem em causa, senhores opinadores da TV portuguesa! (Também me impressionou a parte em que a rainha do país teve de recorrer a um papel para dizer esta complexa frase: "Declaro abertos os XXX Jogos Olímpicos da era moderna". Um dos momentos mais altos do seu "jubileu").
27 julho 2012
Uma estranha "certidão"
Não li o famoso acórdão do caso Freeport. Mas, a confiar nas notícias dos jornais, algo de estranho ele encerra, que se pode resumir numa preocupação persecutória que extravasa ou mesmo conflitua frontalmente com o estatuto dos juízes/tribunais.
Na verdade, não compete a estes, no ato decisório, criticar a investigação por "insuficiente", nem, muito menos, tomarem a inciativa de "denunciar" ao MP uma infração, por meio de entrega de uma certidão do processado, com vista ao prosseguimento da investigação contra outro indivíduo, não acusado. Estando o MP, o órgão titular da ação penal, presente no processo, e conhecendo os factos alegadamente comprometedores para terceiro, é a ele, e só a ele, que compete tomar a inciativa de prosseguir/ampliar a investigação. Não faz parte do estatuto dos juízes/tribunais "obrigarem" o MP a investigar. Só teria sentido a denúncia (ou seja, a entrega da dita certidão) se o MP não tivesse conhecimento dos factos (por exemplo, tratando-se de infração constatada em processo civil em que o MP não intervém).
A decisão do tribunal mais não é do que um ato populista. E o populismo, que é sempre mau, é pior ainda nas decisões jurisdicionais.
Na verdade, não compete a estes, no ato decisório, criticar a investigação por "insuficiente", nem, muito menos, tomarem a inciativa de "denunciar" ao MP uma infração, por meio de entrega de uma certidão do processado, com vista ao prosseguimento da investigação contra outro indivíduo, não acusado. Estando o MP, o órgão titular da ação penal, presente no processo, e conhecendo os factos alegadamente comprometedores para terceiro, é a ele, e só a ele, que compete tomar a inciativa de prosseguir/ampliar a investigação. Não faz parte do estatuto dos juízes/tribunais "obrigarem" o MP a investigar. Só teria sentido a denúncia (ou seja, a entrega da dita certidão) se o MP não tivesse conhecimento dos factos (por exemplo, tratando-se de infração constatada em processo civil em que o MP não intervém).
A decisão do tribunal mais não é do que um ato populista. E o populismo, que é sempre mau, é pior ainda nas decisões jurisdicionais.
24 julho 2012
Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional
No rescaldo dos efeitos produzidos pelo acórdão do TC e depois das declarações do seu presidente à Antena 1, muita gente, incluindo membros do governo, de que se destaca Paulo Portas, continua a insistir na questão das diferenças entre os trabalhadores do sector público (nomeadamente funcionários públicos) e dos trabalhadores do sector privado, para invalidar o julgamento efectuado pelo tribunal com base na violação do princípio da igualdade.
A insistência em tal questão tem um duplo objectivo que parece óbvio: por um lado, insinuar no público, à força de repetição, que o acórdão se baseou no facto de os cortes não abrangerem os trabalhadores do sector privado, mas só os funcionários públicos, por aí tendo dado como violado o princípio da igualdade; por outro, inculcar, contra o decidido, que há considerável diferença entre um e outro sectores, com vantagem para o sector público, prosseguindo-se, assim, na tentativa que teve início no consulado de Sócrates, de criar artificialmente uma luta de classes entre os empregados públicos e os trabalhadores do sector privado, na mira de desvalorizar os primeiros, reduzir o peso do Estado e reconduzi-lo às funções clássicas do Estado liberal: polícia, forças armadas, poder executivo, legislativo e judicial.
Ora, basta ler o acórdão em foco com a atenção devida para vermos que a sua fundamentação não foi a apontada.
Em primeiro lugar, não foram apenas os funcionários públicos (chamemos-lhes assim por comodidade) os abrangidos pelos cortes de subsídios de férias e de Natal; foram também os reformados ou pensionistas, quer a sua origem fosse do sector privado, quer do sector público. Aqui, já não valia a apregoada diferença entre os sectores. A razão está em ser o Estado, através da Segurança Social, a pagar a essas pessoas.
Em segundo lugar, o acórdão do TC não deixou de reconhecer que há algumas diferenças entre os trabalhadores do sector público e do sector privado; todavia, não avalisou esse fundamento, indicado no Orçamento do Estado para justificar a medida, como adiante se explicará.
A justificação da Lei do Orçamento é a de que os trabalhadores do Estado e outras entidades públicas beneficiam em média de retribuições superiores às do sector privado e gozam de uma maior garantia no que diz respeito à segurança no emprego.
Em relação à primeira (o nível de retribuições), o TC não a aceitou sem reservas, com o carácter de evidência com que foi apresentada, sobretudo por ser inoperante uma comparação feita apenas com base em termos médios, sem levar em conta a especificidade de funções de cada sector de actividade, e ainda porque a simples comparação, baseada no referido critério, seria sempre insuficiente para justificar a oneração apenas de uma classe de profissionais.
No que diz respeito à segunda, reconhecendo embora uma ainda subsistente maior segurança no emprego dos indivíduos que têm vínculo funcional ao Estado, o TC não a considerou como tendo relevância para justificar a discriminação dos que recebem por verbas públicas.
Isto porque o corte dos subsídios de férias e de Natal assenta no nível remuneratório das categorias atingidas e em proporção dos rendimentos auferidos, pelo que não há razão suficiente, do ponto de vista da invocada desigualdade entre os dois sectores, para discriminar os trabalhadores do sector público sobre os do privado. Se o corte incide sobre o nível remuneratório e proporcionalmente ao que se ganha, então não se justifica que os que percebem rendimentos do sector privado, às vezes de nível muito superior aos do sector público, fiquem excluídos da medida.
A verdadeira razão fundamentadora desta, enquanto restritamente aplicada aos titulares de rendimentos auferidos pelo exercício de funções públicas e pensionistas reside apenas na sua eficácia, ou seja na rapidez e certeza relativamente à obtenção de resultados, numa conjuntura em que se torna necessário reduzir rapidamente o défice. Porém, a eficácia tem limites do ponto de vista da igualdade proporcional entre os cidadãos e esses limites mostram-se ultrapassados, quando comparados os sacrifícios impostos aos funcionários públicos e pensionistas e aos restantes cidadãos que auferem rendimentos do sector privado, considerando as medidas que têm vindo a onerar os primeiros (cortes de vencimentos, congelamentos salariais, ablação de subsídios de férias e de Natal), implicando uma significativa redução dos vencimentos reais e impondo-se ao longo de vários anos, com efeitos cumulativos.
Daí a violação do princípio da igualdade proporcional.
Ora, o acórdão do TC, se pôs em confronto os trabalhadores com vínculo laboral ao Estado e os trabalhadores do sector privado, foi porque a Lei do Orçamento de Estado começou por fazer a distinção entre «a situação de quem tem uma relação de emprego público e os outros trabalhadores» para, fazendo avultar uma pressuposta desigualdade, baseada em dois níveis avaliados em termos genéricos e um deles – a segurança no emprego – aparecendo como um benefício ou mesmo como uma benesse, que teria de ser compensada com sacrifícios, quando se trata de um direito constitucional de todos os trabalhadores, onerar com cortes de subsídios de férias e de Natal apenas a categoria dos trabalhadores de emprego público.
O TC, embora reconhecendo essa diferenciação em certos aspectos, não a avalisou enquanto fundamento suficiente de uma discriminação razoável e materialmente justificada entre trabalhadores e agentes com vínculo ao Estado e titulares de rendimentos provenientes de actividade do sector privado, para efeitos de oneração, apenas dos primeiros, com cortes de subsídios de férias e de Natal. Aliás, como se viu, nem só os trabalhadores da função pública e outros agentes da Administração foram atingidos com a medida, mas também cidadãos que por serem reformados recebem pensões pagas pelo Estado.
Por outro lado, nada no acórdão permite considerar que a solução postulada ou sugerida pelo TC (porque nem sequer tal lhe competia) será a de estender os cortes de quaisquer subsídios aos restantes trabalhadores do sector privado, a fim de ser restabelecido o princípio da igualdade. O que nele se diz é que «poderia configurar-se o recurso a soluções alternativas para a definição do défice, quer pelo lado da despesa», como por exemplo, as medidas que constam dos memorandos de entendimento para a execução do Programa de Assistência Económica e Financeira, «quer pelo lado da receita (v. g., através de medidas de carácter mais abrangente e efeito equivalente à redução de rendimentos)».
Ora, esta formulação permite considerar o recurso a soluções pelo lado da despesa e daí que o presidente do TC, na sua entrevista à Antena 1, legitimamente e em interpretação pessoal do aresto, tenha mencionado, também a título de exemplo, despesas prescindíveis, como as relacionadas com os subsídios a partidos políticos, que, segundo notícias vindas na imprensa, têm sido canalisadas, em parte, para objectivos diferentes daqueles para que são atribuídos, e pelo lado da receita, através de medidas de carácter mais abrangente, tendo o presidente do TC, na citada entrevista, referido, igualmente a título de exemplo, a tributação do capital.
E por que não? O acórdão não fala nisso, como se apressaram a dizer certos comentadores? Pois não, mas é uma leitura possível. «Medidas de carácter mais abrangente» são aquelas que incidem sobre um leque, o mais alargado possível, de cidadãos, proporcionalmente aos respectivos rendimentos. Aliás, o acórdão do TC refere explicitamente «a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes». Por conseguinte, não há razão para excluir medidas sobre os rendimentos provenientes de outras fontes, que não exclusivamente do trabalho dependente, nestas se incluindo sem esforço os rendimentos do capital.
Diga-se, por último, que o presidente do TC votou contra o acórdão, na medida em que considerou que só seria de julgar inconstitucional, na sua perspectiva, a suspensão continuada (isto é, acumulado ao longo de vários anos, como previsto no Orçamento) dos subsídios de férias e de Natal. No mesmo sentido votou um outro juiz – o conselheiro Vítor Gomes. Totalmente contra votou apenas uma conselheira – Maria Lúcia Amaral.
Os restantes três conselheiros que fizeram declarações de voto fizeram-nas no sentido de os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se deverem restringir apenas ao subsídio de férias deste ano, pelo que o próximo subsídio de Natal já estaria sob a alçada daqueles efeitos.
Um tão significativo consenso a respeito da inconstitucionalidade da suspensão dos subsídios (só um voto contra, se considerarmos que só uma conselheira votou contra a decisão, quer na perspectiva do corte de subsídios para este ano, quer para os anos seguintes, com efeitos acumulados) há-de por força traduzir uma sintonia de posições que não tem explicação na caluniosa afirmação de que os juízes votaram em causa própria, porque são funcionários públicos. Esse tipo de afirmações só desacredita e deslegitima um órgão de soberania tão importante para o funcionamento da democracia. Quem as faz não olha a meios para lançar o descrédito sobre as instituições, quando estas não servem os seus interesses ou os seus objectivos ideológicos.
21 julho 2012
A circuncisão
A circuncisão, enquanto prática religiosa de judeus e muçulmanos, vai estar expressamente prevista na lei na Alemanha.
O problema foi colocado por uma decisão judicial que, numa perspetiva típica do "politicamente correto", considerara a circuncisão uma "ofensa corporal". Não é assim, de facto: a circuncisão corresponde a uma prática ancestral daquelas culturas e nenhuma ofensa envolve para o visado. Não se pode comparar minimamente com a excisão do clítoris, que, embora também seja uma prática cultural enraizada em certos países, constitui uma forma de "castração" sexual e de rebaixamento da condição da mulher.
O que é mais interessante é que, embora a questão tenha sido desencadeada na Alemanha pela circuncisão de um muçulmano, a medida (e a urgência) legislativa foi provocada pela reação da comunidade judaica... Fosse a circuncisão prática exclusiva da comunidade muçulmana e muito provavelmente não só a lei não seria alterada, mas até a circuncisão seria tida por uma prática bárbara...
O problema foi colocado por uma decisão judicial que, numa perspetiva típica do "politicamente correto", considerara a circuncisão uma "ofensa corporal". Não é assim, de facto: a circuncisão corresponde a uma prática ancestral daquelas culturas e nenhuma ofensa envolve para o visado. Não se pode comparar minimamente com a excisão do clítoris, que, embora também seja uma prática cultural enraizada em certos países, constitui uma forma de "castração" sexual e de rebaixamento da condição da mulher.
O que é mais interessante é que, embora a questão tenha sido desencadeada na Alemanha pela circuncisão de um muçulmano, a medida (e a urgência) legislativa foi provocada pela reação da comunidade judaica... Fosse a circuncisão prática exclusiva da comunidade muçulmana e muito provavelmente não só a lei não seria alterada, mas até a circuncisão seria tida por uma prática bárbara...
O Cavaleiro das Trevas renascido
Na estreia, algures nos EUA, do filme "O Cavaleiro das Trevas renasce", o próprio Cavaleiro se apresentou em pessoa e assassinou uns tantos espetadores desprevenidos. Afinal, o Cavaleiro era um estudante de medicina e não havia referências desabonatórias a seu respeito. Agora vão procurar-se "explicações" para o massacre. Mas certamente não se pensará na facilidade no acesso às armas naquele país. Isso é um tabu. Ou melhor, um dogma constitucional: um homem, uma arma (2ª emenda constitucional).
Ainda o acórdão do TC
O acórdão do TC sobre os "cortes" apanhou mesmo a direita (política, governamental, económico-finandeira, e opiniativa) de surpresa e ela não se conforma facilmente com a "ousadia" dum tribunal que presumia como dócil e compreensivo com o "estado de emergência" do País (compreensão que imporia o reconhecimento da supremacia do pacto celebrado com a troika/tríade sobre a própria Constituição...).
Afinal, o TC limitou-se a dizer que a Constituição continua a vigorar... O governo diz que respeita o acórdão (e como não? poderia ser de outra maneira?). Mas uma vice-presidente do PSD, uma senhora que usa sempre uma vasto lenço ao pescoço, que lhe dá um certo ar majestoso e oriental, servindo de porta-voz governamental, vem clamar contra o "extravasar" de competências por parte do TC. Faz lembrar aqueles dirigentes desportivos que, perante uma arbitragem que consideram desfavorável, cobrem de injúrias o árbitro, na esperança de obter arbitragens favoráveis no futuro...
Esperemos que assim não suceda, embora ainda não saibamos ainda até que ponto a recomposição recente se refletirá nas decisões mais "quentes". De qualquer forma, o TC marcou presença no sistema político-constitucional, como nunca o fizera anteriormente. Há que contar com ele futuramente.
Afinal, o TC limitou-se a dizer que a Constituição continua a vigorar... O governo diz que respeita o acórdão (e como não? poderia ser de outra maneira?). Mas uma vice-presidente do PSD, uma senhora que usa sempre uma vasto lenço ao pescoço, que lhe dá um certo ar majestoso e oriental, servindo de porta-voz governamental, vem clamar contra o "extravasar" de competências por parte do TC. Faz lembrar aqueles dirigentes desportivos que, perante uma arbitragem que consideram desfavorável, cobrem de injúrias o árbitro, na esperança de obter arbitragens favoráveis no futuro...
Esperemos que assim não suceda, embora ainda não saibamos ainda até que ponto a recomposição recente se refletirá nas decisões mais "quentes". De qualquer forma, o TC marcou presença no sistema político-constitucional, como nunca o fizera anteriormente. Há que contar com ele futuramente.
13 julho 2012
A entrevista do presidente do TC
O presidente do
Tribunal Constitucional (TC) deu hoje uma entrevista à Antena 1, conduzida por
Maria da Flor Pedroso, que foi muito meritória, por vir repor as coisas no seu
devido lugar quanto à interpretação do recente Acórdão que declarou a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas do Orçamento de
Estado para 2012 que determinaram o corte dos subsídios de férias e de Natal
dos funcionários públicos e pensionistas, durante a vigência do Programa de
Assistência Económica e Financeira.
Muito se tem
falado desse acórdão na comunicação social de um ponto de vista errado e
deturpado, por força de uma leitura redutora, quer dos próprios agentes da
comunicação social, quer de pessoas que aparecem a fazer comentários nos
“media”. Nada a que não estejamos habituados. Frequentemente, os órgãos de
comunicação social não transmitem a complexidade de uma decisão judicial,
reduzindo-a a esquemas simplistas e a fórmulas que induzem em erro os
destinatários da informação.
Não se trata
apenas de uma inadaptabilidade dos tribunais à comunicação social, como muitas
vezes se pretende fazer crer, mas também de uma falta de aptidão desta para
lidar com a realidade dos tribunais. Ia a dizer, uma falta de aptidão para
lidar com a complexidade das coisas, seja dos tribunais, seja de outro sector
da vida social. Os “media” têm a tendência para simplificar e até para um certa
negligência na busca e no tratamento das fontes. Captam a superfície dos
fenómenos, fazem leituras apressadas e por isso redutoras, gostam de mensagens
de impacto e que causem sensação. O resultado é maltratarem o próprio material
informativo, sobretudo quando este tem alguma densidade e complexidade.
Foi isso mesmo o
que aconteceu com o acórdão do TC. O que passou para o senso comum foi que o TC
chumbou o corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e
dos pensionistas, por não estarem abrangidos os trabalhadores do sector privado,
e daí resultar ferido o principio da igualdade.
Ora, não foi
nada disso. O princípio da igualdade foi considerado beliscado por se ter
seleccionado um grupo específico de titulares de rendimentos do trabalho ou
dele derivados (funcionários públicos e pensionistas, estes não só da função
pública) para contribuírem com o seu esforço para a redução do défice, sem que
houvesse idêntico esforço de titulares de outros rendimentos de trabalho fora
da função pública e titulares de outros rendimentos, como os do capital, e
ainda sem se encontrarem outras formas de diminuição da despesa do Estado.
Portanto, um
complexo de situações que não podem resumir-se à dicotomia trabalhadores da
função pública/ trabalhadores do privado, de sorte que nada no aresto do TC
autoriza a que a solução a encarar para repor o princípio da igualdade seja
pura e simplesmente o de cortar também nos subsídios ou nos salários dos
trabalhadores do sector privado, como infelizmente tanto se tem propalado nos
“media”, quer por leitura redutora destes, quer de outras pessoas (algumas com
grandes responsabilidades em várias áreas do conhecimento e do universo
profissional, incluindo juristas, economistas, políticos e constitucionalistas)
que têm acesso ou lugar privilegiado naqueles. O presidente do TC criticou
algumas dessas visões apressadas, incluindo a do primeiro-ministro, que, segundo
disse, reagiu a quente.
Ora, o exemplo
desta entrevista devia ser seguido em muitas outras situações em que os “media”
e outras pessoas que neles intervêm (os fazedores de opinião) veiculam versões
erradas e deturpadas de muitas ocorrências da nossa vida judiciária.
É certo que a
entrevista foi também (ou sobretudo) um acto exemplar de um órgão da
comunicação social, protagonizado por uma jornalista de mérito – Maria da Flor
Pedroso – e seria uma injustiça não o realçar.
11 julho 2012
Acordos sobre a sentença penal
Entre Princípios
A recente decisão de um tribunal de Colónia que refere que a integridade física dos bebés circuncidados e o seu direito a escolher uma religião mais tarde devem prevalecer sobre a liberdade religiosa dos seus pais apanha-me a meio da leitura do livro Between Two Streams a diary from Bergen-Belsen de Abel J. Herzberg. Trata-se do diário da permanência desse advogado e escritor holandês no pequeno grupo de privilegiados na possível troca com civis alemães em poder dos aliados no Sternlager daquele Campo de Concentração.
Aparentemente o único mérito da supra aludida decisão judicial será a comunhão da indignação que provocou em vários líderes religiosos (o caso, tem, na sua origem, uma criança muçulmana), tendo a comunidade judaica sido mais intensa no protesto e a Conferência de Rabis Europeus marcado uma reunião de emergência para analisar a decisão pelos ecos de intransigência de outros tempos.
Na verdade, a mencionada prevalência de uns princípios sobre outros numa lógica e escolha mais que discutível (mas aparentemente em voga) lembrou-me a justificação dada pelo autor para o nome do livro, na sua introdução:
“This account of Bergen-Belsen is called Between Two Streams. The title occurs several times in the diary, where it is explained. Two streams manifested themselves in the camp-and not only there: National Socialism and Judaism. Not only persecutors and persecuted, powerful and powerless, took part in this lugubrious drama. Two irreconcilable principles of life fought invisibly in the visible battle”.
Luís Eloy
Nota: Depois de vários posts e insistências acedi a entrar directamente no Sine Die. Faço-o pelo grande apreço que tenho por todos os colaboradores regulares deste espaço esperando não o desmerecer em excesso.
06 julho 2012
Escuta telefónica
Transcrição de uma breve conversação, hoje de manhã, entre membros não identificados da troika/tríade que nos tutela:
- O quê? Os gajos tem um tribunal constitucional?
- É de facto um luxo e só atrapalha, como se vê!
- Devíamos ter exigido a extinção do tribunal no memorando...
- Mas os gajos esconderam-nos que tinham tal coisa...
- Será melhor aprendermos português para não voltarmos a ser enganados.
- Parece-me que estou a ouvir uns ruídos esquisitos... Estaremos a ser escutados? Em que mundo vivemos?
- Não podemos confiar em ninguém, ninguém gosta de nós, mas é injusto, pois nós só fazemos o Bem!
- Deixa-te de tretas comigo, e vai lá telefonar já aos gajos, não preciso de te dizer o que tens que lhes dizer...
- O quê? Os gajos tem um tribunal constitucional?
- É de facto um luxo e só atrapalha, como se vê!
- Devíamos ter exigido a extinção do tribunal no memorando...
- Mas os gajos esconderam-nos que tinham tal coisa...
- Será melhor aprendermos português para não voltarmos a ser enganados.
- Parece-me que estou a ouvir uns ruídos esquisitos... Estaremos a ser escutados? Em que mundo vivemos?
- Não podemos confiar em ninguém, ninguém gosta de nós, mas é injusto, pois nós só fazemos o Bem!
- Deixa-te de tretas comigo, e vai lá telefonar já aos gajos, não preciso de te dizer o que tens que lhes dizer...
A decisão do TC sobre os cortes de subsídios
Há tempos, num postal que inserineste blogue, tomei a liberdade de criticar a ministra da Justiça, por, numa
entrevista à Antena1, ter afirmado que, se o Tribunal Constitucional (TC)
viesse a “chumbar” os cortes dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários
públicos, seria “uma tragédia para o país”. Considerei, então, que essa
advertência, por assim dizer, consubstanciava uma ingerência ilegítima no
estatuto de independência de um órgão jurisdicional.
Esse postal veio a tornar-se
muito polémico, sobretudo depois que se tornou pública a minha indigitação pelo
PS para o TC, a qual foi rejeitada, ao cabo de uns largos dias de espera, pelo
PSD, dizendo-se que foram determinantes nessa rejeição vários artigos que eu
escrevi no blogue, sobretudo, segundo vários órgãos de comunicação social, o
sobredito postal em que eu critiquei a ministra.
Pois bem! Nada tenho de pessoal
contra a ministra e até se dá o caso de o primeiro postal que eu coloquei no blogue sobre ela
enaltecer a sua experiência na área da justiça, em vários planos, e fazer
esperar que dela resultasse um bom desempenho no sector. Acontece que a
critiquei a propósito da entrevista (e já a tinha criticado por outro motivo), por ser, a
meus olhos, inadmissível a sua atitude, a ponto de me questionar sobre o efeito
das suas palavras no comportamento dos juízes do TC, sobre cujos ombros era
colocada tão pesada e trágica responsabilidade, do ponto de vista das
consequências para o país, de uma decisão de inconstitucionalidade.
A decisão do TC aí está, como
plena afirmação da sua independência. O corte dos subsídios dos funcionários
públicos e pensionistas foi mesmo declarado inconstitucional por larga maioria,
incluindo, portanto, juízes que foram indigitados pelo partido do governo.
Alguns desses juízes foram mesmo ao ponto de declarar que teriam ido mais além
na questão dos efeitos da inconstitucionalidade, que teriam feito operar a
partir da publicitação do acórdão e não só a partir do próximo ano, pelo que o
corte do próximo subsídio de Natal estaria já abrangido pelos efeitos da declaração
que fulminou de inconstitucional a lei que
mandou proceder à referida ablação.
Esta decisão representa, assim,
uma derrota para a ministra da justiça (e só me refiro a ela por ser a
veiculadora da “ameaça” catastrofista), em duas frentes:
1.ª - O TC não se deixou intimidar pelas palavras
da ministra, demonstrando que o primado do Estado de direito democrático, de
onde decorrem os princípios considerados violados, nomeadamente o da igualdade,
está acima de qualquer visão político-partidária ou das concepções ideológicas
ou simplesmente pragmáticas do governo;
2.ª - O TC
demonstrou, com esta
decisão, aliás cauta, ser indiferente
a pressões ou “recados” ministeriais, apesar da sua natureza e modo de
recrutamento dos juízes, com isso dando uma resposta eloquente aos alertas da
ministra.
Afinal a Constituição não está suspensa...
Estava generalizada a opinião/sensação, propagada ativa e diariamente pelos abundantes comentadores televisivos, de que a Constituição não estava em vigor quanto a um certo número de normas enquanto perdurasse o "período de resgate".
O que o TC ontem veio lembrar foi muito simples: que a Constituição continua a vigorar apesar de tudo, que o princípio da igualdade se mantém vivo (um pouco mal de saúde, é certo), e que também ele, TC, está vivo. Foi, no fundo, uma prova de vida que o que o TC (sob pena de ser declarado irrelevante ou supervenientemente inútil, e como tal extinto).
Saúda-se essa prova de vida (que deixou de queixos caídos governantes e comentadores). Mas há algumas notas de rodapé a acrescentar.
A primeira nota vai para a ginástica que o TC faz para encontrar alguma coerência entre a posição agora tomada e a subscrita no ac. 396/2011. É que, perante situações absolutamente idênticas (cortes salariais apenas aos funcionários públicos), o TC decidiu de maneira oposta... E no primeiro escreveu-se, preto no branco: "...quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos." No acórdão ontem divulgado, mantém-se essa desgraçada doutrina, quando se diz: "Nestes termos, poderá concluir-se que é certamente admissível alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo considerar, no atual contexto económico e financeiro, injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros." (sic)
Deste pressuposto seria de concluir que a solução deveria ser a mesma. Mas não, desta vez é de mais, diz o TC. (E por que não era de mais à primeira, quando se cortaram os vencimentos em 10%?) Não se percebe a rutura com a solução anterior, mas agradece-se...
Não pode deixar de se assinalar, também em rodapé, que o TC se furtou a tratar da questão em termos de violação do princípio da confiança. Algum dia terá talvez de o fazer (embora as esperanças, quanto à decisão, sejam poucas...).
Em qualquer caso, uma saudação ao TC e desejos de longa vida (deste cidadão que recebe por verbas públicas e por isso pode de vez em quando levar uns cortezinhos aqui e ali).
O que o TC ontem veio lembrar foi muito simples: que a Constituição continua a vigorar apesar de tudo, que o princípio da igualdade se mantém vivo (um pouco mal de saúde, é certo), e que também ele, TC, está vivo. Foi, no fundo, uma prova de vida que o que o TC (sob pena de ser declarado irrelevante ou supervenientemente inútil, e como tal extinto).
Saúda-se essa prova de vida (que deixou de queixos caídos governantes e comentadores). Mas há algumas notas de rodapé a acrescentar.
A primeira nota vai para a ginástica que o TC faz para encontrar alguma coerência entre a posição agora tomada e a subscrita no ac. 396/2011. É que, perante situações absolutamente idênticas (cortes salariais apenas aos funcionários públicos), o TC decidiu de maneira oposta... E no primeiro escreveu-se, preto no branco: "...quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos." No acórdão ontem divulgado, mantém-se essa desgraçada doutrina, quando se diz: "Nestes termos, poderá concluir-se que é certamente admissível alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo considerar, no atual contexto económico e financeiro, injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros." (sic)
Deste pressuposto seria de concluir que a solução deveria ser a mesma. Mas não, desta vez é de mais, diz o TC. (E por que não era de mais à primeira, quando se cortaram os vencimentos em 10%?) Não se percebe a rutura com a solução anterior, mas agradece-se...
Não pode deixar de se assinalar, também em rodapé, que o TC se furtou a tratar da questão em termos de violação do princípio da confiança. Algum dia terá talvez de o fazer (embora as esperanças, quanto à decisão, sejam poucas...).
Em qualquer caso, uma saudação ao TC e desejos de longa vida (deste cidadão que recebe por verbas públicas e por isso pode de vez em quando levar uns cortezinhos aqui e ali).