26 outubro 2017
A decisão de que se fala
Tenho
uma certa relutância em tecer considerações sobre uma decisão
judicial alvo dos “media”, em primeiro lugar, por uma questão de
reserva que impende sobre os magistrados e, em segundo lugar, porque
já fui vítima de uma campanha mediática injustificada por causa de
uma decisão de que fui relator em que quase toda a gente falou sem
ter lido o acórdão e sem se ter apercebido da real situação que
lá se discutia (em deliberação da Entidade Reguladora da
Comunicação Social datada de 22/11/2007, esta acabaria por
“considerar procedente a queixa apresentada [por mim, contra o
jornal que despoletou o caso], por desrespeito do dever jornalístico
de relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com
honestidade e por ter violado direitos de personalidade do
queixoso”), mas não vou fazer comentários sobre o acerto ou
desacerto dessa decisão, muito menos a partir do que se diz na
comunicação social.
Apenas
quero referir-me ao teor daquela parte da fundamentação que fala do
adultério da mulher. Em bom rigor, a decisão seria exactamente a
mesma sem essa parte (aliás, breve), porque o acórdão confirma o
decidido na 1.ª instância (não atenua a pena, como erradamente tem
sido dito). O recurso foi interposto pelo Ministério Público (por
sinal, uma Procuradora), que pretendia o agravamento da pena. Porém,
a Relação manteve-a, considerando justos os critérios de
determinação da penalidade imposta. Simplesmente o aresto reforça
o decidido com as infelizes considerações sobre a Bíblia e o
Código de 1886 para fulminar o adultério da mulher (e só desta),
acrescentando que o tribunal de 1.ª instância até poderia ter
ponderado uma atenuação especial da pena.
Ora,
por aí é que o acórdão patenteia a ideologia de quem o assina,
ideologia na verdade ultrapassada (e quero crer que minoritária na
sociedade portuguesa actual) e desajustada dos valores
constitucionais. O que causa maior espanto é o mesmo ter sido
assinado por uma mulher (a desembargadora adjunta), sem que esta se
tenha distanciado dessa parte da fundamentação, que, como disse,
nem sequer tem relevância para o decidido a final. Isto, a menos que
a referida desembargadora comungue do que lá foi escrito, o que
parece incompreensível, atento o particular empenho das mulheres na
sociedade portuguesa actual (e não só) na materialização da
igualdade de género, um objectivo que, de resto, integra os valores
fundamentais da Constituição.
Talvez
seja ocasião para lembrar que o Código de Processo Penal também
foi penetrado pela ideia de austeridade, tendo-se diminuído
radicalmente o número de juízes que formam o colégio decisório
nos tribunais superiores, agora reduzido a dois, com o presidente a
desempatar no caso de empate, o que fragiliza a decisão e pode mais
facilmente dar origem a erros e deslizes como este.
Não
creio, no entanto, que o problema se subsuma a uma carência de
formação especializada dos juízes, pois ele tem a ver com a
formação geral e mais concretamente com a interiorização dos
valores e princípios constitucionais, porque estes, seja qual for a
ideologia própria de cada um (e os juízes têm inevitavelmente a
sua) têm de ser respeitados por força de um compromisso básico que
a profissão tem de envolver.
24 outubro 2017
O presidente e as suas imagens
Quem,
nos últimos dias, se tenha debruçado sobre a nossa imprensa e sobre
as emissões jornalísticas de radiodifusão e televisivas, há-de
ter notado uma quase unanimidade de pontos de vista no que toca à
leitura de comportamentos, atitudes e vários outros sinais
veiculados pela palavra, pela expressão corporal e pela
exteriorização de sentimentos polarizados nas figuras do presidente
da República e do primeiro-ministro.
A
par de uma clara rendição ao presidente da República, cuja
actuação foi frequentemente classificada de brilhante, a análise
jornalística
das
relações entre ele e o primeiro-ministro, enquanto figura máxima
do governo, foi predominantemente feita com o uso de um vocabulário
expressivo de força e dominação, muitas vezes recorrendo a
metáforas em que a força física, usada no confronto directo ou na
competição, tem um valor primacial.
A
palavra “poder” foi a mais recorrentemente usada, não no exacto
sentido jurídico-político, mas
no sentido de força, demonstração de quem manda, atribuindo-se
ao presidente da República uma mais valia na afirmação de poder
pessoal e não propriamente institucional (“mostrou
quem manda”; “somou poder” foram expressões usadas).
“Dar
um murro na mesa”; “partir a louça toda”, eis outras
expressões significativas de uma autoridade mandona e insofrida
atribuídas
ao presidente da República.
Já
“ter dado um
soco no estômago”
e
“ganho o round” são expressões do âmbito da força bruta e de
desportos violentos, como o box, que certos jornalistas não se
coibiram de usar.
Nesta
pugna entre o presidente da República e o governo, houve mesmo quem
avançasse para o domínio político propriamente dito e configurasse
a partir daí o estatuto do presidente da República, parecendo
reconfortar-se euforicamente na ideia de um alargamento dos poderes
presidenciais, no sentido de uma sobreposição destes às
competências próprias do Executivo e de uma interferência do
presidente na agenda do governo.
Ora,
o que de todo este panorama verbal sobressai é uma visão
jornalística das relações entre o órgão “presidência da
República” e “governo” baseada no confronto e na truculência
e desbordando do figurino constitucional.
Esta
visão não será certamente a mais conveniente ao presidente da
República, que,
correndo incansavelmente a parte do país martirizado, confortando as
pessoas doridas, como é seu timbre, com exuberante
manifestação de ternura e compaixão,
conquistou, como
se diz,
“o coração
dos
portugueses” e aumentou a sua popularidade,
mas
que não terá querido,
nem com o seu discurso de chamada do
governo à
realidade, nem com o seu infatigável calcorreio, “dar um murro
no estômago de ninguém”, nem “partir
a
louça toda” ou simplesmente “mostrar quem
é que manda”.
Se
conseguiu
uma
quase unanimidade
de pontos de vista, isso dever-se-á
a
um enormíssimo mérito para “somar poder”, mas um poder que é
sobretudo o grande poder dos afectos.
Um
poder tão grande, tão
grande, que
levou a imagem compassiva do presidente e,
com ela, do país, além
fronteiras, à capa de revistas de renome internacional. Portugal
conquistou o mundo pelo coração do presidente e
não pelo “murro dado na mesa”.
A mulher adúltera
O adultério da mulher é naturalmente encarado como um cataclismo pelas sociedades patriarcais. Assim foi também em Portugal. Mas as coisas mudaram, aconteceu o 25 de Abril, data de rutura no sistema político e ordenamento jurídico, e também na sociedade.
Invocar, como faz um acórdão de um tribunal superior agora divulgado, normas jurídicas portuguesas revogadas e obsoletas e ordenamentos jurídicos e religiosos arcaicos para desculpabilizar um ato de violência doméstica "punindo" o adultério da mulher, é absurdo. Não só é absurdo, como revela um desfasamento com o ordenamento constitucional que o 25 de Abril inaugurou: laicização da sociedade, igualdade entre os sexos, liberdade de autodeterminação pessoal, etc.
Quem entende que "o adultério é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem" comunga de uma visão do mundo anacrónica, em que a família e a própria sociedade assenta na honra do "pater familias" e o adultério da mulher é um crime de lesa-majestade, legitimando que o marido por qualquer forma "limpe a sua honra", ainda que de forma brutal. Nessa visão do mundo, o adultério da mulher é necessariamente uma "provocação" ao marido, como aliás estabelecia o art. 372º do CP de 1886, artigo que foi revogado expressamente após o 25 de Abril, ainda antes da aprovação do novo CP, pelo DL nº 262/75, de 3-5. Será preciso lembrar que não são as normas revogadas que vigoram?
E que dizer da expressão: "as mulheres honestas são as primeiras a estigmatizar as adúlteras"? Que é isso de "mulheres honestas"? As adúlteras, isto é, as que violaram o dever de fidelidade conjugal, não são honestas? São delinquentes? Será preciso lembrar também que o adultério não é crime, nem constitui já sequer fundamento expresso para o divórcio litigioso?
Enfim, uma decisão desastrosa, aliás, mais que desastrosa, absolutamente inaceitável no nosso ordenamento jurídico. Não haverá recurso processual, mas alguma coisa terá de acontecer!
É mau de mais para tudo ficar em águas de bacalhau.
Compreende-se o comunicado do CSM, cauteloso mas simultaneamente incisivo, mas não bastará.
Isto não é tolerável!
Invocar, como faz um acórdão de um tribunal superior agora divulgado, normas jurídicas portuguesas revogadas e obsoletas e ordenamentos jurídicos e religiosos arcaicos para desculpabilizar um ato de violência doméstica "punindo" o adultério da mulher, é absurdo. Não só é absurdo, como revela um desfasamento com o ordenamento constitucional que o 25 de Abril inaugurou: laicização da sociedade, igualdade entre os sexos, liberdade de autodeterminação pessoal, etc.
Quem entende que "o adultério é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem" comunga de uma visão do mundo anacrónica, em que a família e a própria sociedade assenta na honra do "pater familias" e o adultério da mulher é um crime de lesa-majestade, legitimando que o marido por qualquer forma "limpe a sua honra", ainda que de forma brutal. Nessa visão do mundo, o adultério da mulher é necessariamente uma "provocação" ao marido, como aliás estabelecia o art. 372º do CP de 1886, artigo que foi revogado expressamente após o 25 de Abril, ainda antes da aprovação do novo CP, pelo DL nº 262/75, de 3-5. Será preciso lembrar que não são as normas revogadas que vigoram?
E que dizer da expressão: "as mulheres honestas são as primeiras a estigmatizar as adúlteras"? Que é isso de "mulheres honestas"? As adúlteras, isto é, as que violaram o dever de fidelidade conjugal, não são honestas? São delinquentes? Será preciso lembrar também que o adultério não é crime, nem constitui já sequer fundamento expresso para o divórcio litigioso?
Enfim, uma decisão desastrosa, aliás, mais que desastrosa, absolutamente inaceitável no nosso ordenamento jurídico. Não haverá recurso processual, mas alguma coisa terá de acontecer!
É mau de mais para tudo ficar em águas de bacalhau.
Compreende-se o comunicado do CSM, cauteloso mas simultaneamente incisivo, mas não bastará.
Isto não é tolerável!
20 outubro 2017
Rentabilizar os mortos
A moção de censura do CDS é uma iniciativa ignóbil. Mais não visa do que procurar aproveitar a dor alheia para atingir objetivos políticos imediatos. A presidente do CDS põe-se outra vez nos bicos dos pés e fica mais alta que o PSD, sem presidente. Ela sabe que a moção vai ser derrotada, mas o que lhe importa é "chegar-se à frente"... Não se honram assim as vítimas!
E o que dizer do PR? Este é o terreno ideal para ele: ombro acolhedor para todas as lágrimas... Já tinha prometido ir passar o Natal a Pedrógão Grande, mas agora por quantos pedrógãos terá de passar para não falhar a sua missão misericordiosa?...
Assumindo-se como a "voz e o coração do povo" contra o insensível, distante e indiferente Estado, faz um ultimato ao Governo, sobre o qual faz cair demagogicamente todos os anátemas e agravos, ameaçando usar todos os seus poderes (mesmo o uso de armas nucleares). Mas irá ter de engolir a derrota da moção de censura e lá vai continuar a bomba atómica guardada no paiol presidencial...
E o que dizer do PR? Este é o terreno ideal para ele: ombro acolhedor para todas as lágrimas... Já tinha prometido ir passar o Natal a Pedrógão Grande, mas agora por quantos pedrógãos terá de passar para não falhar a sua missão misericordiosa?...
Assumindo-se como a "voz e o coração do povo" contra o insensível, distante e indiferente Estado, faz um ultimato ao Governo, sobre o qual faz cair demagogicamente todos os anátemas e agravos, ameaçando usar todos os seus poderes (mesmo o uso de armas nucleares). Mas irá ter de engolir a derrota da moção de censura e lá vai continuar a bomba atómica guardada no paiol presidencial...
19 outubro 2017
As tragédias portuguesas
Se
a tragédia de Pedrógão revelou falhas também a nível do governo,
nomeadamente no que diz respeito ao ministério da Administração
Interna, como resulta do relatório dos peritos, que só conheço
através das sínteses dos jornais, a tragédia destes últimos dias
torna-se mais grave, por, aparentemente, o governo não ter
aproveitado os ensinamentos daquela e ter relaxado após a cessação
oficial do Verão e a entrada no Outono, reduzindo os meios de
combate, quando é manifesto que as estações andam trocadas e
alteradas. Porém, os que agora aparecem a gritar a sua indignação,
que quota-parte é que não têm nas mais de 100 mortes que ocorreram
nas duas tragédias, para assim fingirem de inocentes e exibirem o
seu mais do que duvidoso luto, enchouriçados de preto até ao
pescoço?
Costa
teve o azar de ambas as tragédias terem ocorrido no seu governo, mas
elas podiam ter acontecido, mais coisa menos coisa, com qualquer
outro governo, pois cada qual tem vindo a contribuir com a sua acção
ou inacção, ao longo destas décadas, para a deflagração delas. O
governo anterior não está isento e além do mais, cedendo a
interesses particulares, até procedeu à liberalização do
eucalipto, que tem sido apontado, conjuntamente com o pinheiro, como
o combustível mais propício, na nossa ordenação florestal, ao
alastramento dos fogos. E os governos centrais não são, como já
referi em escritos anteriores, os únicos culpados; também o são
as autarquias, outras entidades singulares e colectivas e os próprios
cidadãos.
Nós,
portugueses, somos mesmo assim. Na hora da verdade, o nosso país
revela imensa fragilidade e pouca ou nula credibilidade. Quando a
tragédia nos bate à porta, não falta quem lamurie, quem se
indigne, quem responsabilize o outro, como não falta quem se
desentranhe em solidariedade e quem mostre o rosto compungido diante
das câmaras da televisão ou nas capas dos jornais. Mas, passada a
hora do luto e da lágrima, já estamos a cair no comportamento
relaxado e, pior do que isso, a defraudar as regras que nós próprios
criamos para prevenirmos tragédias futuras.
O
Marquês de Pombal foi dos raros homens de Estado que, diante da
tragédia, voltou costas à lamentação e à carpidura e enfrentou
as dificuldades com energia, denodo e lucidez, lançando uma
fantástica obra de recuperação e de prevenção de desastres
futuros, mas as gerações posteriores não só não lhe deram
continuidade, como se encarregaram de a ir destruindo, até que
sobrevenha a próxima catástrofe.
Ora,
do que nós precisamos é desse espírito de coragem, rasgo e
tenacidade, mais do que de lamentação e de pedidos de desculpa (as
mortes não se desculpam). Precisamos é de mudar de mentalidade e de
atitude para iniciarmos um novo ciclo, não apenas político, mas de
vivência colectiva.
16 outubro 2017
Outra vez a ronda dos incêndios
Não
adianta pegar no fogo para incendiar este governo. Se faltam
fundamentos para uma oposição consistente, não são os fogos deste
Verão que desborda da quadra própria, tendo começado na Primavera
e prolongando-se pelo Outono, que os vão fornecer a quem anseia por
exibir a voz grossa da indignação. Culpados são todos os governos
que nos têm governado e não só eles, mas os responsáveis aos
vários níveis da administração, os proprietários de terrenos que
os descuram, os interessados em que o fogo lavre, os cidadãos que
negligenciam comportamentos perigosos, enfim, os incendiários
dolosos, porque os há e cada vez se suspeita mais da sua acção
criminosa, em atenção a um conjunto de indícios que parece apontar
para isso.
O
malogrado escritor Paulo Varela Gomes chamou-lhes “os incêndios do
regime” num livro de crónicas fascinante intitulado Ouro E
Cinza (Tinta da China,
2016). Escreveu ele:
«O
território português que está a arder – que arde há vários
anos – não é um território abstracto, caído do céu aos
trambolhões: é o território criado pelo regime democrático
instalado em Portugal desde as eleições de 1976 ( a Terceira
República portuguesa). Está a arder por causa daquilo que o regime
fez, por culpa dos responsávies do regime e dos eleitores que
votaram neles.
«Ardem,
em Portugal, dois tipos de território: em primeiro lugar, a floresta
de madeireiros, as grandes manchas arborizadas a pinheiro e
eucalipto. A floresta arde, porque as temperaturas não param de
subir e porque, como toda a gente sabe, está suja e mal ordenada.
(…)
«O
segundo tipo de território que está a arder, em particular neste
ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características
dos distritos mais feios e mais destruídos do país: os do litoral
centro e norte.
«(…)
é o território das casas espalhadas por todas as encostas e vales,
uma aqui, outra acolá, encostadas umas às outras sem espaço para
passar um autotanque, separadas por caminhos serpenteantes que
ficaram em parte por alcatroar, é o território das oficinas no meio
dos matos de restolho sujo de óleo, montanhas de papel amarelecido
ao sol, garrafas de plástico rebentadas. É o território dos
armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas,
mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos
em eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros
(…), de lixeiras clandestinas.
«Este
rerritório foi criado, inteiramente criado, pela Terceira República.
Nasceu da conjugação entre um meio-enriquecimento das pessoas, que,
trinta anos depois do 25 de Abril, não chega para lhes permitir uma
verdadeira mudança de vida, e o colapso da autoridade do estado
central e local, este regime de desrespeito completo pela lei, que
começa nos ministros e acaba no último dos cidadãos» …
Doze
anos depois, o panorama, se não é o mesmo, é porque se agravou,
comendo pessoas, animais e casas. Um panorama sério e trágico, pelo
qual a responsabilidade começa nos ministros e acaba no último dos
cidadãos.
Que
os que pretendem fazer processos de intenções, sobretudo os
politiqueiros do costume, comecem por levar a mão ao peito e dizer:
mea culpa.
11 outubro 2017
O problema catalão
Dá-me
a impressão que nós, portugueses, somos de uma forma geral
sensíveis ao problema catalão, independentemente de posicionamentos
ideológicos, o
que é compreensível num povo que conquistou a independência com
rebeldia e teimosia.
Tenho verificado essa
sensibilidade através
da leitura de vários textos de opinião e da audição radiofónica
de vários depoimentos e mesmo de entrevistas que tenho visto na
televisão. Confirmei-o mais uma vez ontem, lendo o magnífico artigo
de Paulo Rangel no Público,
intitulado “Catalunha: nem só de pão legal e razão formal vive o
homem”. Muitas vezes abandono a leitura dos seus artigos, quando
descambam para a apologia político-partidária, o que é frequente,
mas este lê-se com gosto do princípio ao fim. Trata-se de um texto
muito bem informado e recheado de erudição política, jurídica e
histórica, que nos dá um quadro através do qual a compreensão da
pretensão à independência, por parte do povo catalão, se nos
torna mais luminosa, muito embora o seu autor declare que vê «no
processo independentista catalão algo muito nefasto e perigoso».
Porquê,
então, este afã de demonstrar que existe, na história da
Catalunha, esta legitimidade que confere ao povo catalão
a pretensão à independência? Porque o problema é político e não
se resolve com a força policial, nem com a invocação da legalidade
que exisitiria do lado das autoridades centrais, face à
desobediência das autoridades da
Catalunha, como tem sido argumentado por Madrid de forma atrozmente
inflexível. Diz Rangel: «… não vamos lá apostando tudo no
direito; não vamos lá invocando argumentos formais de vácuo
histórico e de marco sem precedentes. É preciso mais, muito mais.
Sabedoria e sageza.»
Ora,
isso é precisamente o que falta.
Carles
Puigdemont, declarando
a independência sem efeitos imediatos, isto é, uma independência
meramente simbólica (
e mais não lhe era possível, dada a situação a que se chegou),
deu agora um passo para
que uma solução negociada seja possível. Porém, Rajoy e companhia
parecem determinados em prosseguir o caminho da vingança e da
cegueira repressiva. Mas com isso estão a alimentar a fogueira do
separatismo e da irreconciliabilidade.
10 outubro 2017
Catalunha: adiamento da independência, não renúncia
Decisão avisada e responsável esta do governo catalão de adiar a declaração de independência, para abrir uma pausa para o diálogo...
Mas o governo espanhol está tão cego que pode não querer aproveitar a oportunidade de negociar, como lhe foi recomendado sensatamente por Tusk.
É claro que o governo espanhol não pode perder completamente a face, tem de manter grandiloquentes declarações de princípios, etc,
Mas seria bom que discretamente começasse a dialogar, retirar a Guardia Civil para onde gostam mais dela, aliviar a tensão em todo o país. E com a consciência de que os catalães não vão esperar pela independência lá para as calendas... Se não vier a haver um calendário tudo se vai complicar de novo... Se não for estabelecido um sério processo negocial o governo de Espanha, este ou outro, arrisca-se a perder a Catalunha da pior maneira, para a Catalunha e para a Espanha...
Mas o governo espanhol está tão cego que pode não querer aproveitar a oportunidade de negociar, como lhe foi recomendado sensatamente por Tusk.
É claro que o governo espanhol não pode perder completamente a face, tem de manter grandiloquentes declarações de princípios, etc,
Mas seria bom que discretamente começasse a dialogar, retirar a Guardia Civil para onde gostam mais dela, aliviar a tensão em todo o país. E com a consciência de que os catalães não vão esperar pela independência lá para as calendas... Se não vier a haver um calendário tudo se vai complicar de novo... Se não for estabelecido um sério processo negocial o governo de Espanha, este ou outro, arrisca-se a perder a Catalunha da pior maneira, para a Catalunha e para a Espanha...
09 outubro 2017
As preocupações presidenciais com a "justiça"
Aproveitando o dia da República, mais uma vez o PR fez algumas "alusões" à "justiça", agora na perspetiva da "morosidade". Embora uma concreta morosidade: a que atinge certos "cidadãos", aos quais se deve garantir "que a sua inocência ou culpabilidade não será um novelo interminável",,, Preocupação decerto justa, mas que pecará por ter referências muito explícitas, tão explícitas que não foi preciso explicitá-las para serem logo decifradas por todos...
Mas este tipo de alusões (ou "recados", como habitualmente se diz na imprensa) não ajuda nada... Mais vale dizer as coisas direitas se se quer contribuir para a solução dos problemas. O PR já falou diversas vezes sobre a "justiça", mas ainda não se percebeu o que quer, ou seja, quais os problemas que aí deteta. Onde foi mais explícito foi na obscura proposta já por várias vezes enunciada de um "pacto" entre todos os "corpos" (já não me lembro que palavra exatamente usou) intervenientes. Essa ideia pactícia não me parece nada boa, não estamos na "concertação social"...
Mas aguardemos que as ideias presidenciais sobre a "justiça" venham a beneficiar de alguma clarificação... Talvez na abertura do ano judicial, quem sabe...
Mas este tipo de alusões (ou "recados", como habitualmente se diz na imprensa) não ajuda nada... Mais vale dizer as coisas direitas se se quer contribuir para a solução dos problemas. O PR já falou diversas vezes sobre a "justiça", mas ainda não se percebeu o que quer, ou seja, quais os problemas que aí deteta. Onde foi mais explícito foi na obscura proposta já por várias vezes enunciada de um "pacto" entre todos os "corpos" (já não me lembro que palavra exatamente usou) intervenientes. Essa ideia pactícia não me parece nada boa, não estamos na "concertação social"...
Mas aguardemos que as ideias presidenciais sobre a "justiça" venham a beneficiar de alguma clarificação... Talvez na abertura do ano judicial, quem sabe...
Fachada democrática, coração franquista
Hoje um representante do PP espanhol lembrou o destino de Lluis Companys, o primeiro que ousou declarar a Catalunha uma república independente. Fugiu-lhe a boca para a verdade: fossem outros os tempos e o "problema" da Catalunha seria rapidamente "resolvido"... Mas, pensando bem, com o fuzilamento de Companys não morreu o sentimento autonomista, como agora está demonstrado à evidência...
Mas o franquismo está de tal forma enquistado na mentalidade daquela gente que eles não conseguem pensar em saídas que não sejam repressivas: ministério público, tribunais, polícia de choque (espanhola, a patriótica Guardia Civil). O TC anda também muito empenhado em "amparar" com todas as suas forças e urgências a legalidade... Será que os juízes do TC de Espanha conhecem apenas as leis espanholas, não conhecem os grandes textos jurídicos internacionais que consagram o direito à autodeterminação dos povos?
Alguém de bom senso acredita que é possível sair do atual impasse sem negociação? Alguém pode acreditar que o recurso pelo governo de Madrid à repressão policial/criminal terá sucesso, mesmo só a curto prazo? Vai o governo espanhol prender os governantes catalães, acusá-los de traição à pátria? Como reagirá a Catalunha (independentistas e os outros)?
A única solução é negociar, e já, ainda hoje, que amanhã poderá ser tarde... Às vezes a história anda depressa...
Mas o franquismo está de tal forma enquistado na mentalidade daquela gente que eles não conseguem pensar em saídas que não sejam repressivas: ministério público, tribunais, polícia de choque (espanhola, a patriótica Guardia Civil). O TC anda também muito empenhado em "amparar" com todas as suas forças e urgências a legalidade... Será que os juízes do TC de Espanha conhecem apenas as leis espanholas, não conhecem os grandes textos jurídicos internacionais que consagram o direito à autodeterminação dos povos?
Alguém de bom senso acredita que é possível sair do atual impasse sem negociação? Alguém pode acreditar que o recurso pelo governo de Madrid à repressão policial/criminal terá sucesso, mesmo só a curto prazo? Vai o governo espanhol prender os governantes catalães, acusá-los de traição à pátria? Como reagirá a Catalunha (independentistas e os outros)?
A única solução é negociar, e já, ainda hoje, que amanhã poderá ser tarde... Às vezes a história anda depressa...
Schäuble: o reconhecimento implícito da derrota
Schäuble, na sua última presença no Ecofin, dá Portugal como exemplo de sucesso da ditadura da austeridade que ele impôs na Zona Euro! Mas quem pretende ele enganar? Julgará que as pessoas se esqueceram que ele excomungou a geringonça, que pressagiou os maiores infortúnios para Portugal se o novo governo continuasse a inverter a política seguida por Passos Coelho, aumentando salários, pensões e rendimentos?! É uma estratégia dos vencidos: elogiarem a obra dos vencedores, como se fosse sua!
05 outubro 2017
O Nobel da Literatura
Este ano é um inglês, mas com cara de japonês. Não sei se o Farage (e o Boris Johnson) vai gostar... Não o conheço, mas a Academia Sueca diz que é uma mistura de Jane Austen com Kafka e ainda com um bocadinho de Proust... Os ingredientes são bons, a mistura não sei...
Mas uma coisa é certa: desta vez é um escritor o premiado, um escritor mesmo.
Mas uma coisa é certa: desta vez é um escritor o premiado, um escritor mesmo.
04 outubro 2017
O discurso de Filipe VI
O
rei de Espanha demorou tempo a reagir. Dir-se-ia que teve o tempo
suficiente para amadurecer a sua posição e exercer o seu poder
moderador com régio equilíbrio. Afinal, saiu-se de uma forma
desastrada, desequilibrando ainda mais os pratos da balança. Falando
grosso, acusou o governo da Catalunha de “deslealdade
inadmissível”. Falou da unidade de Espanha, mas utilizando uma
linguagem de desunião e fornecendo mais argumentos para o
separatismo. Sobre a violência “inadmissível” da Polícia
Nacional e da Guardia Civil, nem uma palavra.
Os
milhares de catalães que o seguiram pela televisão (e, certamente,
não só estes) ficaram desiludidos. Alguns, que nem eram pela
independência da Catalunha, segundo declararam, mas que se
encontravam entre os manifestantes por causa da referida violência
policial, manifestaram o seu desapontamento: “Afinal, só há culpa
dos catalães?...”, interrogavam-se, perplexos. “O rei devia era
ter apelado ao consenso entre os políticos, os de cá e os de
Madrid…», diziam. Esperavam, com razão, que o rei tivesse mais
equanimidade e bom senso. Mas os reis, como se sabe, já não são
assistidos por uma sageza que lhes vinha
do sangue que lhes corria
nas veias.
02 outubro 2017
Cá e lá
Por
cá, o resultado das eleições acabou por dar a machadada definitiva
nas sucessivas vindas redentoras do diabo, o qual rondaria por aí
até ao momento azado de mandar para o inferno a actual fórmula de
governo e repor no poder quem nos governou entre 2011 e 2015, fazendo
uma política de inversão dos valores fundamentais do Estado de
direito democrático e social.
Quanto
aos nossos vizinhos da Península, é caso para dizer que Rajoy
acabou por dar um fantástico e dramático empurrão à causa catalã.
O diabo tece-as, não há dúvida, sobretudo quando encontra pela
frente apropriados
servidores.
Oeiras: esse enigma
Houve ontem muitos vencedores, mas o vencedor de Oeiras destaca-se acima de todos.
E a pergunta é: como é possível? É que não estamos no interior do Brasil, nem nalguma parcela remota e obscura do território nacional, à margem da informação e do conhecimento. Oeiras fica encostada a Lisboa e, segundo dizem, tem a maior densidade nacional de licenciados por metro quadrado (ou cúbico, não sei bem). Este caso precisa de estudo, não uma qualquer tese de mestrado de um mestrando, mas um estudo profundo por uma equipa multidisciplinar (sociólogos, psicólogos, antropólogos, psiquiatras, historiadores, filósofos, enfim, especialistas de todos os saberes). É imperioso decifrar o enigma.
E a pergunta é: como é possível? É que não estamos no interior do Brasil, nem nalguma parcela remota e obscura do território nacional, à margem da informação e do conhecimento. Oeiras fica encostada a Lisboa e, segundo dizem, tem a maior densidade nacional de licenciados por metro quadrado (ou cúbico, não sei bem). Este caso precisa de estudo, não uma qualquer tese de mestrado de um mestrando, mas um estudo profundo por uma equipa multidisciplinar (sociólogos, psicólogos, antropólogos, psiquiatras, historiadores, filósofos, enfim, especialistas de todos os saberes). É imperioso decifrar o enigma.
Catalunha: um processo acidentado, mas sem recuo
Rajoy, julgando que basta ter a Guardia Civil para impor a "ordem", cometeu um erro histórico e provavelmente irreparável para a sua "causa"... A Guardia Civil cometeu também o erro elementar de "atuar" à velha e boa maneira franquista, esquecendo-se que hoje há sempre gente a filmar nem que seja com telemóveis. Depois essas imagens passam para a TV (é uma chatice não se poder impedir isso), para o estrangeiro,e por aí fora, e lá se vai a "reputação democrática" do regime.
A independência da Catalunha não está ainda garantida, vai ser um processo longo e acidentado. Mas alguém acredita verdadeiramente que doravante será possível trazer "democraticamente" a maioria dos catalães ao seio da "mãe Espanha"?
As imagens que vimos ontem, os cravos vermelhos e de outras cores apontados às carapaças dos guardas, as lágrimas ou as palmas de muitos dos votantes, ao depositarem o voto, assinalam provavelmente o momento histórico do "nascimento de uma nação"...
A independência da Catalunha não está ainda garantida, vai ser um processo longo e acidentado. Mas alguém acredita verdadeiramente que doravante será possível trazer "democraticamente" a maioria dos catalães ao seio da "mãe Espanha"?
As imagens que vimos ontem, os cravos vermelhos e de outras cores apontados às carapaças dos guardas, as lágrimas ou as palmas de muitos dos votantes, ao depositarem o voto, assinalam provavelmente o momento histórico do "nascimento de uma nação"...