26 março 2012
O presidente de quem muito se espera
Mouraz Lopes, colaborador deste blogue, com colaboração suspensa por vontade própria,
por causa das novas funções que vai desempenhar, é o novo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Juiz de grandes qualidades e das mais elevadas habilitações académicas, da sua visão lúcida dos problemas da justiça será de esperar um contributo importantíssimo para a restauração da confiança dos cidadãos na administração da justiça em Portugal – objectivo primordial a que se propôs com a sua candidatura.
Perdemos um colaborador de grande craveira, mas vamos (todos, e não apenas os juízes) ganhar
a um nível mais importante e mais proveitoso para o país.
por causa das novas funções que vai desempenhar, é o novo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Juiz de grandes qualidades e das mais elevadas habilitações académicas, da sua visão lúcida dos problemas da justiça será de esperar um contributo importantíssimo para a restauração da confiança dos cidadãos na administração da justiça em Portugal – objectivo primordial a que se propôs com a sua candidatura.
Perdemos um colaborador de grande craveira, mas vamos (todos, e não apenas os juízes) ganhar
a um nível mais importante e mais proveitoso para o país.
A intervenção policial vista por outros olhos
Com a devida vénia, aqui se publica a crónica de Manuel António Pina, intitulada 50 anos depois.
50 anos depois
Colette Magny cantou-os chamando-lhes "les gens de la moyenne": "Os estudantes manifestaram-se,/ foram seviciados pela Polícia/ (..) em Lisboa, Portugal". Foi a 24 de Março de 1962, em plena ditadura, quando a Polícia de Choque atacou com grande violência estudantes que se manifestavam em Lisboa, dando origem à primeira das "crises académicas" (a segunda seria sete anos depois, em Coimbra) que abalaram os alicerces do regime salazarista.
Escreveu Marx que a História acontece como tragédia e se repete como farsa. 50 anos passados sobre esse episódio (e 38 anos sobre o 25 de Abril...), a Polícia de Choque mudou de nome para Corpo de Intervenção mas não parece ter mudado de métodos: violência e recurso a agentes provocadores para a justificar. E a ditadura é hoje uma farsa formalmente democrática - um "caos com urnas eleitorais", diria Borges - em que é suposto existirem direito à greve e à manifestação.
Quem viu na TV a imagem de um homem ensanguentado gritando "Liberdade! Liberdade!" em direcção à tropa do dr. Miguel Macedo que, como em 24 de Novembro último, espancou
selvaticamente jovens que, em vez de acatarem o conselho do primeiro-ministro e emigrarem, se manifestaram na quinta-feira em Lisboa, não pode deixar de descobrir afinidades (até nas agressões a jornalistas e nos comunicados oficiais falando de "ordem e segurança" e culpando as vítimas) com o que aconteceu há 50 anos. E de inquietar-se.
Manuel António Pina
Jornal de Notícias
26/03/2012
Colette Magny cantou-os chamando-lhes "les gens de la moyenne": "Os estudantes manifestaram-se,/ foram seviciados pela Polícia/ (..) em Lisboa, Portugal". Foi a 24 de Março de 1962, em plena ditadura, quando a Polícia de Choque atacou com grande violência estudantes que se manifestavam em Lisboa, dando origem à primeira das "crises académicas" (a segunda seria sete anos depois, em Coimbra) que abalaram os alicerces do regime salazarista.
Escreveu Marx que a História acontece como tragédia e se repete como farsa. 50 anos passados sobre esse episódio (e 38 anos sobre o 25 de Abril...), a Polícia de Choque mudou de nome para Corpo de Intervenção mas não parece ter mudado de métodos: violência e recurso a agentes provocadores para a justificar. E a ditadura é hoje uma farsa formalmente democrática - um "caos com urnas eleitorais", diria Borges - em que é suposto existirem direito à greve e à manifestação.
Quem viu na TV a imagem de um homem ensanguentado gritando "Liberdade! Liberdade!" em direcção à tropa do dr. Miguel Macedo que, como em 24 de Novembro último, espancou
selvaticamente jovens que, em vez de acatarem o conselho do primeiro-ministro e emigrarem, se manifestaram na quinta-feira em Lisboa, não pode deixar de descobrir afinidades (até nas agressões a jornalistas e nos comunicados oficiais falando de "ordem e segurança" e culpando as vítimas) com o que aconteceu há 50 anos. E de inquietar-se.
Manuel António Pina
Jornal de Notícias
26/03/2012
25 março 2012
Pequena homenagem a Tabucchi
«O quarto era uma pequena divisão modesta, com uma cama de ferro, um armário branco e uma mesinha. Pessoa meteu-se na cama, acendeu a luz da mesinha de cabeceira, pousou a cabeça na almofada e passou a mão pelo lado direito. Felizmente, as dores tinham-se atenuado, a enfermeira trouxe-lhe um copo de água e um comprimido e depois disse: Tenha paciência, mas vou dar-lhe uma injecção, foi o médico que mandou.
»Pessoa pediu uma poção de láudano, era um sonífero que se tinha habituado a tomar quando, enquanto Bernardo Soares, não conseguia adormecer. A enfermeira trouxe-lha e Pessoa bebeu-a.
Chamo-me Catarina, disse a enfermeira, se precisar de mim, toque que eu venho imediatamente.»
(Antonio Tabucchi, Os Últimos Três Dias De Fernando Pessoa)
»Pessoa pediu uma poção de láudano, era um sonífero que se tinha habituado a tomar quando, enquanto Bernardo Soares, não conseguia adormecer. A enfermeira trouxe-lha e Pessoa bebeu-a.
Chamo-me Catarina, disse a enfermeira, se precisar de mim, toque que eu venho imediatamente.»
(Antonio Tabucchi, Os Últimos Três Dias De Fernando Pessoa)
A irressistível tentação da judicialização da política
A falta e/ou fragilidade de controlos da atividade política em Portugal vem conduzindo irresistivelmente à tentação de fazer intervir o poder judicial como instrumento de punição de decisões de caráter meramente político, quando não de vindicta de interesses político-partidários. O populismo à solta, açulado pela imprensa, mesmo pela mais responsável, em torno do tema "corrupção" favorece e estimula a tendência justiceira. A criminalização da enriquecimento ilícito encerra um perigo enorme de envolvimento do poder judicial nas querelas político-partidárias. O poder judicial tem, pois, de ter o maior rigor em distinguir o que é da política e o que é matéria criminal. Porque haverá muitas rasteiras para a instrumentalização abusiva da justiça...
Tabucchi
Escreveu alguns belíssimos livros, que fazem parte de um núcleo restrito dos meus livros preferidos. Escreveu belas páginas sobre Portugal e a nossa literatura. Era um inimigo feroz de Berlusconi e um militante ativo da democracia em Itália. Mas o que mais admiro em Tabucchi é que ele mudou de vida por causa de um escritor. Em Paris "conheceu" Pessoa e a partir daí tudo mudou: aprendeu português, veio para Portugal, casou com uma portuguesa, fez de Portugal a sua segunda pátria, ou melhor, pátria alternativa. É esta aposta total na literatura, sem quebra dos compromissos cívicos e políticos, que me fascina.
24 março 2012
A actuação policial
A nossa polícia continua a não se saber conter. Ou então será mesmo ódio invencível o que a comanda em relação às manifestações (pelo menos,certas manifestações), ou fantasmas que lhe criam os responsáveis pelo seu treino e actuação. Basta um mínimo pretexto, e é como se uma mola dispare e active o movimento cego daqueles agentes e eles desatem, como autómatos, a
correr todas as pessoas a eito à bastonada, varrendo ruas, passando por cima de obstáculos, levando tudo na sua frente. Uma máquina repressiva em movimento, incapaz de pensar, de discernir, de ter mão nos seus impulsos. Ramalho Ortigão escreveu nas suas “Farpas” que a polícia não se fez para dar, mas para levar. E, com o exagero e a ironia que se contém nessa afirmação, a verdade é que lhe subjaz toda uma filosofia policial. A polícia fez-se para suportar, mais do que o cidadão comum, a provocação e até certas formas de agressão, respondendo
proporcionada e friamente a elas, e não, como muitas vezes se vê e ouve, levando à conta de agressão intolerável qualquer insulto ou gesto inamistoso, e pondo-se logo a escaqueirar desenfreadamente tudo o que vê pela frente.
correr todas as pessoas a eito à bastonada, varrendo ruas, passando por cima de obstáculos, levando tudo na sua frente. Uma máquina repressiva em movimento, incapaz de pensar, de discernir, de ter mão nos seus impulsos. Ramalho Ortigão escreveu nas suas “Farpas” que a polícia não se fez para dar, mas para levar. E, com o exagero e a ironia que se contém nessa afirmação, a verdade é que lhe subjaz toda uma filosofia policial. A polícia fez-se para suportar, mais do que o cidadão comum, a provocação e até certas formas de agressão, respondendo
proporcionada e friamente a elas, e não, como muitas vezes se vê e ouve, levando à conta de agressão intolerável qualquer insulto ou gesto inamistoso, e pondo-se logo a escaqueirar desenfreadamente tudo o que vê pela frente.
22 março 2012
O rosto do Estado
Funcionários das finanças têm-se mostrado apreensivos e até intimidados com a crescente
agressividade de muitos cidadãos que são alvo das suas medidas. Alguns dos representantes desses serviços encontram justificação para essa agressividade no facto de eles constituírem como que o “rosto do Estado nocivo” (acho que foi esta a expressão usada por um desses representantes). E têm razão.
Na verdade, o Estado tem revelado, ultimamente, uma das suas facetas mais opressivas, sobretudo para com os mais fracos. É natural que estes se revoltem e dirijam a sua
agressividade contra os directos executores (muitas vezes, modestos funcionários) de uma política que sistematicamente os está a espoliar e a roubar as já magras esperanças do seu quotidiano. Entre os agressores não consta que estejam pessoas bem estabelecidas na vida. Estão apenas alguns daqueles que mais têm sentido o peso duríssimo das medidas de austeridade.
Esses é que manifestam essas explosões de revolta, de resto, casos que apenas são “faits divers” e que não fazem as “caixas” dos noticiários dos meios de comunicação social.
São algumas das pequenas/grandes vítimas de um Estado não só opressivo, como exibindo de uma forma ostensiva o lado para onde pende a sua opressão.
agressividade de muitos cidadãos que são alvo das suas medidas. Alguns dos representantes desses serviços encontram justificação para essa agressividade no facto de eles constituírem como que o “rosto do Estado nocivo” (acho que foi esta a expressão usada por um desses representantes). E têm razão.
Na verdade, o Estado tem revelado, ultimamente, uma das suas facetas mais opressivas, sobretudo para com os mais fracos. É natural que estes se revoltem e dirijam a sua
agressividade contra os directos executores (muitas vezes, modestos funcionários) de uma política que sistematicamente os está a espoliar e a roubar as já magras esperanças do seu quotidiano. Entre os agressores não consta que estejam pessoas bem estabelecidas na vida. Estão apenas alguns daqueles que mais têm sentido o peso duríssimo das medidas de austeridade.
Esses é que manifestam essas explosões de revolta, de resto, casos que apenas são “faits divers” e que não fazem as “caixas” dos noticiários dos meios de comunicação social.
São algumas das pequenas/grandes vítimas de um Estado não só opressivo, como exibindo de uma forma ostensiva o lado para onde pende a sua opressão.
DSK: ostracismo puritano e hipócrata
Pouco importa que até agora nada se tenha provado contra DSK: o que vale é o princípio da presunção de culpa nas sociedades virtuosas do norte (e do outro lado do Atlântico) em que triunfou um puritanismo hipócrata, que por um lado promove o sexo como espetáculo e indústria, e por outro recupera o mais anacrónico moralismo como modelo de comportamento, e o impõe como virtude. Os novos pregadores (e pregadoras) da moral arrogam-se o direito de policiar o comportamento íntimo dos outros. São os inquisidores contemporâneos. Esquecem ou ignoram que, no nosso tempo, nas sociedades liberais e laicas que tanto gostam de exaltar, o único valor a proteger, no domínio da sexualidade, é a liberdade (e a autodeterminação) das pessoas.
A pena de morte restaurada em França?
Assim parece, face ao que sucedeu em Toulouse. E aplicada informalmente, como deve acontecer com os terroristas... Um episódio mesmo a calhar para a campanha eleitoral de Sarkozy, esse napoleãozeco com a sobrevivência em risco.
16 março 2012
Como ler um acórdão do TC?
A leitura de um acórdão do TC pode não ser fácil, sobretudo para um jornalista. Por isso, o melhor é ir perguntar a um jurista, o que é que o TC decidiu. E o jurista ideal para explicar é mesmo o advogado que interpôs o recurso. Esse, sim, sabe dizer quem ganhou e quem perdeu. E sabe até dizer que ganhou, ainda que perdendo. E assim fica a opinião pública esclarecida sobre o verdadeiro sentido do acórdão do TC.
O que é um mandado de detenção europeu
Creio que os juízes ingleses não sabem o que é o MDE (também os jornalistas portugueses não sabem, mas não são juízes...).
o MDE, estabelecido pela Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, não é extradição, é antes um mecanismo expedito de cooperação judiciária no âmbito da UE, cooperação que atua diretamente entre os tribunais dos estados membros, e que assenta no princípio do reconhecimento mútuo entre os estados (art. 1º, nº 2 da DQ). Por isso mesmo, o MDE só pode ser recusado em casos muito contados (arts. 3º e 4º da DQ), não podendo os tribunais do estado requerido avaliar a "correção" substancial do pedido: não têm que julgar o que já foi julgado pelos tribunais do estado requerente. Têm que confiar! É o reconhecimento mútuo, expressão da integração europeia a nível judiciário. Por outro lado, o prazo para a decisão final (final) é em princípio de 60 dias, podendo ir até 90, não mais (art. 17º da DQ).
As peripécias que têm rodeado o (ou os) MDE remetidos aos tribunais ingleses desde 20008 (!!!) para entrega de um português muito conhecido só podem ser explicadas por desconhecimento da DQ (explicação benigna) ou por arrogante desobediência à mesma, certamente por euroceticismo impenitente (explicação mais plausível). Nenhuma das explicações é boa. Ontem houve finalmente uma decisão, mas em 1ª instância. Haverá recurso(s) certamente. A procissão ainda vai no adro...
13 março 2012
Havemos de vencer
ou de como atalhar à Crise com as armas singelas, mas verdadeiramente poderosas, que temos à mão e que hão-de confirmar o nosso povo como povo heroico que sempre foi.
Alguns dos leitores do pequeno círculo que habitualmente lê as arengas que eu, de muito raro em raro, aproveitando os fugazes momentos de inspiração que me bafejam, vou lançando ao papel, têm-me questionado ultimamente sobre qual o meu entendimento da melhor maneira para levarmos de vencida esta crise que nos assola, como a outros povos da Confederação Europeia.
Não sou nenhuma luminária, nem tenho soluções à mão para ofertar a esses meus benévolos
leitores e, porventura, estarei tão perplexo como eles nesta situação tão complexa, quão espinhosa. Certo é que tenho dado voltas à mioleira, a ver se topo alguma saída airosa. E vai daí, não encontro outra melhor, senão a que se pode definir em duas exortações complementares do nosso ministro-mor. Vêm a ser elas as seguintes: «Não sejamos piegas!» e «é preciso trincar a língua”. Aí estão duas pequenas frases que ficam para a História como frases imortais e que
se ajustam às maravilhas ao combate que fomos chamados a travar.
Nessas duas frases lapidares estão enunciadas as armas com que devemos lutar para vencermos a guerra contra o moderno inimigo que nos ataca – A Crise. E as armas são: não sermos piegas e trincarmos a língua, sempre que preciso for. Vejamos em que consiste o uso e o manejo destas armas e aquilatemos da sua capacidade para derrotar o inimigo.
Estas armas, como logo se alcança, são armas singulares, qual a batalha a que somos movidos. São armas que cada um de nós pode exercitar em si mesmo e manejá-las de uma forma assaz
inédita, virando-as para o interior de nós mesmos, de forma a vencermos os ímpetos que nos impelem para a revolta e a luta contra o exterior. É que a guerra que temos que travar é uma guerra contra nós próprios – os nossos instintos, o nosso inconformismo, a nossa falta de resistência. Seremos tanto mais vencedores, quanto mais nos dermos por vencidos; tanto mais triunfadores, quanto mais nos conformarmos aos ataques de que formos alvo. Parece um
paradoxo, mas não é. A Crise exige de nós sacrifícios de toda a ordem e nós só poderemos anulá-la, sacrificando-nos e calando em nós a revolta e a recalcitração que o sacrifício suscita. É por isso que todos os sacrifícios que nos vão sendo impostos são motivo de grande regozijo e aplauso por parte de outros povos que nos têm ajudado a sacrificarmo-nos, para merecermos o lugar honroso a que temos direito.
O nosso povo (o povo-povo), as classes medianas são quem, naturalmente, mais tem de dar o corpo ao manifesto, não só devido à sua posição (à frente do campo de batalha, como não pode deixar de ser), mas também pela sua valentia, provada ao longo dos vários séculos de existência da nossa gloriosa Nação.
Destarte, muitos serão aqueles, para além dos que já se encontram nessa situação, que vão ficar sem pão, sem emprego e mesmo sem casa. Muitos hão-de ficar doentes, sem terem possibilidade de recorrer a meios de cura; muitos outros, sobretudo dos mais idosos e carenciados, hão-de perecer. Mas, meus amigos, não há vitória que se alcance sem perda desses bens: o sustento, a saúde, o trabalho, a habitação e a própria vida. A solução para resistir a tais perdas, sem dúvida muito lamentáveis, é não sermos piegas. Mais: trincarmos a língua, se necessário for.
Virarmos a revolta para dentro de nós próprios.
Contemplai o espectáculo lamentável do povo helénico. Vede aquela desordem que vai pelas ruas, os afrontamentos com as forças policiais, os estragos em tantos bens públicos e particulares, o caos semeado pelas cidades. E qual tem sido o resultado de tudo isso? O afundamento do país de dia para dia, a iminência de ruptura e o isolamento de uma Nação do concerto das nações civilizadas. Como já alguém aventou, ninguém chorará o seu desastre.
Pois não é isso que queremos para nós. Queremos vencer, vencer, vencer. E havemos de vencer, custe o que custar, sem pieguices, suportando os sacrifícios que nos forem impostos.
Trincando a língua e mordendo para dentro, mordendo, mordendo. Temos pelo nosso
lado um povo que sabe sofrer, um povo heroico que sabe resistir, que aceita as desgraças, não como um fardo, mas como um fado. O fado é o nosso lado genial, que transforma a pieguice em canto e faz do trincar a língua uma arte do sofrimento.
Eis, meus amigos, o que sinceramente pensa este vosso criado.
Jonathan Swift
(1665-1745)
Alguns dos leitores do pequeno círculo que habitualmente lê as arengas que eu, de muito raro em raro, aproveitando os fugazes momentos de inspiração que me bafejam, vou lançando ao papel, têm-me questionado ultimamente sobre qual o meu entendimento da melhor maneira para levarmos de vencida esta crise que nos assola, como a outros povos da Confederação Europeia.
Não sou nenhuma luminária, nem tenho soluções à mão para ofertar a esses meus benévolos
leitores e, porventura, estarei tão perplexo como eles nesta situação tão complexa, quão espinhosa. Certo é que tenho dado voltas à mioleira, a ver se topo alguma saída airosa. E vai daí, não encontro outra melhor, senão a que se pode definir em duas exortações complementares do nosso ministro-mor. Vêm a ser elas as seguintes: «Não sejamos piegas!» e «é preciso trincar a língua”. Aí estão duas pequenas frases que ficam para a História como frases imortais e que
se ajustam às maravilhas ao combate que fomos chamados a travar.
Nessas duas frases lapidares estão enunciadas as armas com que devemos lutar para vencermos a guerra contra o moderno inimigo que nos ataca – A Crise. E as armas são: não sermos piegas e trincarmos a língua, sempre que preciso for. Vejamos em que consiste o uso e o manejo destas armas e aquilatemos da sua capacidade para derrotar o inimigo.
Estas armas, como logo se alcança, são armas singulares, qual a batalha a que somos movidos. São armas que cada um de nós pode exercitar em si mesmo e manejá-las de uma forma assaz
inédita, virando-as para o interior de nós mesmos, de forma a vencermos os ímpetos que nos impelem para a revolta e a luta contra o exterior. É que a guerra que temos que travar é uma guerra contra nós próprios – os nossos instintos, o nosso inconformismo, a nossa falta de resistência. Seremos tanto mais vencedores, quanto mais nos dermos por vencidos; tanto mais triunfadores, quanto mais nos conformarmos aos ataques de que formos alvo. Parece um
paradoxo, mas não é. A Crise exige de nós sacrifícios de toda a ordem e nós só poderemos anulá-la, sacrificando-nos e calando em nós a revolta e a recalcitração que o sacrifício suscita. É por isso que todos os sacrifícios que nos vão sendo impostos são motivo de grande regozijo e aplauso por parte de outros povos que nos têm ajudado a sacrificarmo-nos, para merecermos o lugar honroso a que temos direito.
O nosso povo (o povo-povo), as classes medianas são quem, naturalmente, mais tem de dar o corpo ao manifesto, não só devido à sua posição (à frente do campo de batalha, como não pode deixar de ser), mas também pela sua valentia, provada ao longo dos vários séculos de existência da nossa gloriosa Nação.
Destarte, muitos serão aqueles, para além dos que já se encontram nessa situação, que vão ficar sem pão, sem emprego e mesmo sem casa. Muitos hão-de ficar doentes, sem terem possibilidade de recorrer a meios de cura; muitos outros, sobretudo dos mais idosos e carenciados, hão-de perecer. Mas, meus amigos, não há vitória que se alcance sem perda desses bens: o sustento, a saúde, o trabalho, a habitação e a própria vida. A solução para resistir a tais perdas, sem dúvida muito lamentáveis, é não sermos piegas. Mais: trincarmos a língua, se necessário for.
Virarmos a revolta para dentro de nós próprios.
Contemplai o espectáculo lamentável do povo helénico. Vede aquela desordem que vai pelas ruas, os afrontamentos com as forças policiais, os estragos em tantos bens públicos e particulares, o caos semeado pelas cidades. E qual tem sido o resultado de tudo isso? O afundamento do país de dia para dia, a iminência de ruptura e o isolamento de uma Nação do concerto das nações civilizadas. Como já alguém aventou, ninguém chorará o seu desastre.
Pois não é isso que queremos para nós. Queremos vencer, vencer, vencer. E havemos de vencer, custe o que custar, sem pieguices, suportando os sacrifícios que nos forem impostos.
Trincando a língua e mordendo para dentro, mordendo, mordendo. Temos pelo nosso
lado um povo que sabe sofrer, um povo heroico que sabe resistir, que aceita as desgraças, não como um fardo, mas como um fado. O fado é o nosso lado genial, que transforma a pieguice em canto e faz do trincar a língua uma arte do sofrimento.
Eis, meus amigos, o que sinceramente pensa este vosso criado.
Jonathan Swift
(1665-1745)
04 março 2012
Manifesto contra a metadona ou o gato escondido com o rabo de fora
A direita política e ideológica detesta a redução de danos em matéria de toxicodependência. É um ódio sobretudo ideológico, que aposta na "desintoxicação", na "abstinência do vício", na "limpeza do corpo e da alma" como única estratégia contra o "mal". Tratar um toxicodependente é, para ela, sobretudo salvar a alma através da abstinência. E quem não aceitar a salvação, será condenado ao abandono, será entregue ao diabo. Por isso a política de redução de danos, nomeadamente na vertente da administração de substâncias de substituição, e a face mais visível da sua execução, o dr. João Goulão, presidente do IDT (até ver...), são sistematicamente zurzidos pelos ideológos de serviço, em nome dos grandes ideais salvíficos, de que as comunidades terapêuticas, vocacionadas para o "tratamento", são os grandes pilares. Mas, por detrás desses ideais, espreitam outros motivos, mais comezinhos... Ora, vejamos. No manifesto "Novo Impulso - a mudança necessária", recentemente assinado e divulgado por 36 comunidades terapêuticas, defende-se que deveria existir um prazo-limite prévia e genericamente definido para a duração do programa de substituição, findo o qual, seria proposto ao dependente um leque de propostas, "onde se incluiriam a desabituação física, entrada em comunidade terapêutica e formação profissional." Pois é, o que é preciso é arranjar clientes para as comunidades terapêuticas. A redução de danos, permitindo aos dependentes viverem com autonomia e inseridos na família, no emprego, na sociedade, é o maior inimigo de tais comunidades, tira-lhes os clientes...
01 março 2012
A criminalização do "negacionismo" declarada inconstitucional
O Conselho Constitucional francês declarou, por decisão de 28 de fevereiro, inconstitucional a lei de 31 de janeiro passado, que punia (com um ano de prisão e 45.000 € de multa) a negação (ou "minimização") do "genocído arménio", por ofensa à liberdade de expressão e de comunicação. É absurdo estabelecer por lei a verdade histórica. Mais absurdo é ainda punir quem a contesta. O CC defendeu a liberdade contra o totalitarismo dos "donos da verdade".
Desocupar a City, em nome da ordem, da segurança, do dinheiro
Os campistas que desde Outubro ocupavam em parte a praça da Catedral de São Paulo em Londres foram despejados por não terem carta de campista e porem em perigo a liberdade de circulação e a segurança das pessoas.
Esta forma original de protesto veio em qualquer caso mostrar a importância da criatividade na escolha dos meios de luta política (legítima) no mundo de hoje. Os meios tradicionais não estarão esgotados, mas não há dúvida de que a eficácia da luta, nomeadamente através do direito de manifestação, depende muito da originalidade dos meios escolhidos, que podem ser especialmente mobilizadores e ter uma particular repercussão pública. Veremos se os ocupantes das City eram apenas um grupo de jovens desocupados (de preocupações ou de trabalho) ou se tinham um projeto político. De qualquer forma, incomodaram os senhores do dinheiro, lá isso incomodaram...