31 julho 2019
As maiorias absolutas
Na verdade, é flagrante o
desejo dos dirigentes máximos do PS de se desembaraçarem dos
partidos de esquerda que têm dado suporte ao governo. A fórmula da
“geringonça” era, evidentemente, para ser transitória,
obedecendo a imperativos de táctica na conjuntura em que surgiu.
Porém, foi, na minha opinião, um dos melhores governos que tivemos
em Portugal. É incómodo partilhar o poder e ter de negociar com
outros partidos? Pois é, mas a verdadeira democracia exige esse
esforço permanente. O PS com maioria absoluta ganha em arrogância o
que perde em capacidade democrática. As maiorias absolutas têm
sempre um défice de democracia.
Sérgio Moro
Sérgio Moro está a mostrar a
sua verdadeira face, servindo-se do cargo de ministro da Justiça
para fazer sumir as provas que têm sido dadas a lume pelo site
Intercept e que
põem em causa a sua conduta no processo de Lula da Silva,
nomeadamente por colaborar com o Ministério Público, fazendo-lhe
sugestões, fornecendo-lhe pistas, dando-lhe indicações
e mesmo instruções,
revelando assim um comportamento parcial, interessado e a todos os
títulos reprovável. Outras revelações têm sido feitas que
denotam, para além de parcialidade, uma instrumentalização do
processo no sentido de conseguir determinados objectivos políticos.
Ora, a destruição dessas
provas que têm sido dadas a lume (porque se trata de uma verdadeira
destruição) parece que vai ser operada por meio da emissão de uma
medida legal adequada que as faria desaparecer com o fundamento de as
mesmas terem sido obtidas ilegalmente. Curiosa interpretação esta,
que com fundamento na ilegalidade do comportamento do jornalista, por
invasão da esfera da privacidade de autoridades públicas em
funções, vai fazer desaparecer a ilegalidade muito mais grave e de
inegável relevância pública, porque ofensiva, desde logo, do
princípio estruturante do Estado de Direito democrático, do
comportamento do juiz do processo e actualmente ministro da Justiça,
que assim, também, incorre num abuso de poder com a agravante de ser
para resolver um caso que lhe diz respeito.
Este comportamento revela o
vezo totalitário do actual ministro da Justiça do Brasil e põe
seriamente em causa a sua verticalidade ética.
26 julho 2019
Retificação parcial
Tenho que penitenciar-me por um erro evidente que cometi no último texto aqui publicado. Na verdade, defendendo a não punibilidade das opiniões emitidas por Fátima Bonifácio, e a não integração das mesmas no art. 240º, nº 2, b), do CP, citei uma versão do preceito anterior à atual, introduzida pela Lei nº 94/2017, de 23-8, que eliminou o elemento típico "com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar".
É óbvia a intenção da citada lei de alargar o âmbito da punibilidade, inserindo-se numa onda criminalizadora a nível global para combater o "negacionismo" e sobretudo o proselitismo muçulmano, inimigo figadal da "Cristandade".
Contudo, a criminalização de condutas não é arbitrária, tem de visar a proteção de bens jurídicos, como dispõe o art. 40º, nº 1, do CP, e indiretamente impõe o nº 2 do art. 18º da Constituição.
E não constitui bem jurídico a mera enunciação ou divulgação de posições ideológicas, ainda que censuráveis, por serem contrárias aos princípios constitucionais.
Não havendo apelo expresso à ação nem perigo concreto de que algum ato contrário ao direito se siga à assunção ideológica, esta não pode subsumir-se ao art, 240º do CP, mesmo na versão atual.
Os adeptos de um direito penal ao serviço de "causas" desconhecem a natureza residual do direito penal num Estado de Direito democrático.
Sobre esta matéria vale a pena reler Figueiredo Dias, "Direito Penal", vol. I, 2ª ed., especialmente pp. 125.
É óbvia a intenção da citada lei de alargar o âmbito da punibilidade, inserindo-se numa onda criminalizadora a nível global para combater o "negacionismo" e sobretudo o proselitismo muçulmano, inimigo figadal da "Cristandade".
Contudo, a criminalização de condutas não é arbitrária, tem de visar a proteção de bens jurídicos, como dispõe o art. 40º, nº 1, do CP, e indiretamente impõe o nº 2 do art. 18º da Constituição.
E não constitui bem jurídico a mera enunciação ou divulgação de posições ideológicas, ainda que censuráveis, por serem contrárias aos princípios constitucionais.
Não havendo apelo expresso à ação nem perigo concreto de que algum ato contrário ao direito se siga à assunção ideológica, esta não pode subsumir-se ao art, 240º do CP, mesmo na versão atual.
Os adeptos de um direito penal ao serviço de "causas" desconhecem a natureza residual do direito penal num Estado de Direito democrático.
Sobre esta matéria vale a pena reler Figueiredo Dias, "Direito Penal", vol. I, 2ª ed., especialmente pp. 125.
15 julho 2019
Criminalizar as opiniões?
Há aí uma certa esquerda que nutre uma paixão intensa pelo direito penal e uma confiança ilimitada na eficácia da sua ação nos comportamentos. A violência doméstica e os abusos sexuais são o terreno mais frequente de manifestação desse sentimento.
Agora, é a propósito do desgraçado artigo de MFB que se exorta à intervenção penal (ver artigo "Contra a banalização do racismo", "Público" de 13.7, p. 4), citando-se inclusivamente a al. b) do nº 2 do art. 240º do CP, quando pune "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional". Omitiu-se, porém, a parte final do texto, que é a seguinte:
"com a intenção de incitar à descriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar"...
A criminalização das meras opiniões, mesmo marginais e reprováveis segundo o sentimento da maioria, ou mesmo contra o sentido do texto constitucional, sem apelo a comportamentos ilegais, seria um ato claramente contrário ao princípio do Estado de Direito democrático.
Agora, é a propósito do desgraçado artigo de MFB que se exorta à intervenção penal (ver artigo "Contra a banalização do racismo", "Público" de 13.7, p. 4), citando-se inclusivamente a al. b) do nº 2 do art. 240º do CP, quando pune "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional". Omitiu-se, porém, a parte final do texto, que é a seguinte:
"com a intenção de incitar à descriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar"...
A criminalização das meras opiniões, mesmo marginais e reprováveis segundo o sentimento da maioria, ou mesmo contra o sentido do texto constitucional, sem apelo a comportamentos ilegais, seria um ato claramente contrário ao princípio do Estado de Direito democrático.
14 julho 2019
O racismoo de FB
Batam na Fátima Bonifácio, que ela merece, mas não a levem para o tribunal, que é uma tontice. Aquilo que ela escreveu, por muito abjecto que seja, releva da opinião, como o reconheceu o próprio Louçã, na SIC Notícias. A liberdade de opinião pára onde começa a prática de crime e o que ela escreveu, informado por um racismo descarado, não chega para preencher o tipo legal de crime de incitamento ao ódio ou violência racial.
12 julho 2019
"Ainda cara, ainda lenta": ainda o mesmo discurso?
Fui ler com interesse o relatório "Menos reformas, melhores políticas" do ISCTE, iniciativa muito de louvar. Infelizmente deparei, no referente à Justiça, com o discurso estereotipado e monocórdico que a dra. Conceição Gomes vem produzindo há anos. Ela ainda não percebeu que para a justiça deixar de ser cara e lenta são precisas reformas que não estão nas mãos do "sistema judicial", mas sim do poder político (AR e Governo)? E que o aprofundamento da eficiência dos tribunais e da qualidade da justiça não depende apenas da melhoria da formação dos "atores judiciais", como ela propõe? Ainda não compreendeu que esta desresponsabilização do poder político a faz passar ao lado das verdadeiras soluções para os problemas que "denuncia"?
09 julho 2019
Retomando um tema antigo
A
questão da composição dos Conselhos Superiores da Magistratura e
do Ministério Público é recorrente. Volta de tempos a tempos. Há
vinte, vinte e poucos anos, debateu-se o assunto a propósito da
alteração da Constituição que acabou com a obrigatoriedade de um dos dois
membros designados pelo presidente da República ser um juiz, o que
possibilitou a existência no Conselho Superior da Magistratura de
uma maioria de membros não oriundos da judicatura.
Sempre
me preocupei muito com a questão da legitimação democrática do
poder judicial, o único poder do Estado que, na tradição europeia
continental, não é legitimado pelo sufrágio popular, sendo,
todavia, um poder de grandíssima incidência na vida e no património
dos cidadãos. Por isso, sempre vi com bons olhos medidas que
reforçassem a referida legitimação democrática. É que não é um
curso de direito e uma formação específica numa escola de
magistratura, aliadas a uma pressuposta seriedade de base, que
conferem essa legitimidade. Deste modo, defendi acaloradamente a
solução encontrada para os juízes e, de caminho, toquei também no
Conselho Superior do Ministério Público. Na altura, eu era
Procurador-Geral Adjunto. Ninguém me fez a mais pequena referência.
E se fosse hoje? Fiquei espantado quando soube que a MEDEL,
associação europeia de magistrados para a democracia e as
liberdades, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em
Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias
magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas
evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que
então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco
aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna
do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea
de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria
publicado, se tivesse encontrado uma editora.
Nunca como agora a batalha dos
juízes pelo que consideram ser o seu estatuto indeclinável adquiriu
tanta ressonância pública. Tal não significa, porém, que esse
extravasamento voluntário e tão enquistado, por força de
uma reacção de grupo que vai quase ao ponto de pôr em crise as
instituições, corresponda a um acolhimento favorável por
parte dos cidadãos em geral e, muito menos, a posições solidárias
fora do estrito âmbito profissional em que a luta tem sido travada.
Provavelmente, os efeitos serão exactamente ao contrário
dos pretendidos, se é que se pensou neles de cabeça fria, e não
obedecendo pura e simplesmente ao instinto de autodefesa.
O que motivou esta guerra (se
recorro a esta linguagem bélica é traduzindo a
interpretação dos media, que muito têm falado do "fogo
dos juízes sobre a classe política") foi a alteração, em
sede de revisão da Constituição, da norma da Lei Fundamentai
que versa a composição do Conselho Superior da Magistratura. Essa
alteração veio a traduzir-se no quase imperceptível apagamento de
duas ou três palavras: podendo o presidente da República designar
ao Conselho dois vogais, um deles tinha que ser obrigatoriamente
juiz. Agora, não se diz nada sobre essa obrigatoriedade,
pelo que os tais dois vogais são livremente designados pelo
presidente da República, podendo ser dois membros estranhos à
magistratura judicial.
O barulho que a dita alteração
está a provocar tem uma significação que é o verdadeiro pomo
da discórdia: o Conselho pode vir a ser constituído por uma
maioria (mais um) de membros não juízes. Se o presidente da
República designar dois membros não juízes, a juntar aos sete
eleitos pela Assembleia da República, serão nove não juízes para
oito oriundos da judicatura.
Ora, os juízes, na sua maioria,
enquadrados pela sua associação sindical, têm vindo a
repudiar a falada alteração com o argumento de que está em causa a
sua independência e o princípio da separação de poderes,
abrindo-se a via para o controlo político do poder judicial.
A meu ver, nada disto ocorre e,
aliás, não serei o único magistrado a entender desse modo:
veja-se, por exemplo, a opinião do Dr. Mário Belo Morgado, juiz de
círculo do Tribunal de Vila Franca de Xira, em artigo muito
contundente publicado no "Público" do passado dia 10 - «A
"teoria do granizo" adaptada aos tribunais» - e a opinião
do procurador-geral da República, em entrevista dada ao
mesmo jornal no passado dia 16, apesar de se confessar solidário
com a posição dos juízes.
Vejamos: a independência do
poder judicial vem a traduzir-se em os juízes decidirem
livremente, obedecendo apenas aos ditames da sua consciência e
aos imperativos da lei, sem obediência a qualquer hierarquia,
mesmo de juízes, ressalvado o caso de recurso para tribunal
superior e sem qualquer interferência, nomeadamente do
poder político.
Ora, o Conselho Superior da
Magistratura é um órgão de gestão e disciplina,
competindo-lhe, fundamentalmente, nomear, transferir, exonerar,
inspeccionar os magistrados judiciais e exercer a acção
disciplinar. A nomeação, transferência e exoneração
dependem de critérios clara e precisamente estabelecidos na lei,
podendo, em caso de violação, o acto ser impugnado, inclusive
por recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: a inspecção,
destinando-se a apurar a qualidade técnica e o nível de
cumprimento da função pelo magistrado, é atribuída a juízes de
grau superior, nomeados pelo Conselho em comissão de serviço, e só
funciona em relação aos juízes colocados na 1.ª instância,
não obstante o Conselho, na sequência de reclamações, poder
mandar verificar o trabalho de juízes colocados nos tribunais
superiores, o que releva mais da acção disciplinar do que do mérito
do magistrado: quanto à acção disciplinar, ela só se exerce,
obviamente, em relação a faltas disciplinares cometidas
pelos juízes e não no que toca ao exercício concreto da função
de decidir. A independência desta permanece intangível.
Por outro lado, a maior parte das
funções assinaladas é exercida pelo conselho permanente
(restrito), assegurado sempre por uma maioria dos juízes,
reservando-se para o plenário a decisão dos recursos hierárquicos
interpostos das decisões daquele.
Acresce que os membros não
juízes - os eleitos pela Assembleia da República e os
indicados pelo presidente da República - não ficam vinculados
ao órgão político que os elegeu ou nomeou, nem, muito menos, aos
partidos políticos, agindo com um estatuto legalmente
assegurado de independência e não de comissários políticos.
A isto se junta o facto de as individualidades indicadas pelo
presidente da República não serem necessariamente
políticos, mas, fundamentalmente, cidadãos de reconhecido
mérito. E, em última instância, a Assembleia da República e
o presidente da República são órgãos políticos de soberania, mas
de uma natureza muito diferente do Executivo, quer pelas
funções, quer pela base plural mais diversificada formada pelas
maiorias que os elegeram.
Neste contexto complexo, onde se
vislumbra, ainda que por arremedo, a subordinação do poder judicial
ao poder político? O que é que justifica a visão
catastrofista de uma iminência de controlo político do poder
judicial?
Punhamos os olhos no Tribunal
Constitucional: os seus juízes são praticamente todos eleitos, por
maioria qualificada, pela Assembleia da República. Diz-se, por
vezes, que são juízes políticos, para os menorizar. No
entanto, é patente o grau de independência, de elevada
qualificação técnica e de seriedade com que, de modo geral,
exercem a função. Cavaco Silva, quando primeiro-ministro, não
os poupou ao seu famoso qualificativo de “forças de bloqueio”.
O carácter ideológico que, por vezes, se manifesta nas suas
decisões acontece em certos casos mais extremados, em que é
patente a divisão em blocos. Mas o Tribunal Constitucional é um
tribunal com uma jurisdição de vertente predominantemente
política e, de qualquer modo, nada de semelhante se passa com os
chamados tribunais comuns.
A separação de poderes, que
também se aponta como estando em risco com a referida
alteração constitucional, não tem ponta por onde se lhe
pegue. O cerne do poder judicial, como se viu, não é minimamente
beliscado na sua independência relativamente aos outros
poderes com a referida alteração constitucional, que, como referiu
Miguel de Sousa Tavares, é mais simbólica do que real e,
provavelmente, para não ser exercida nunca. Mas, já agora, vem a
propósito perguntar por que é que a separação de poderes deve ser
tão exacerbadamente defendida, quando se trata de pretensas
imiscuições no poder judicial e não se observa o mesmo princípio
relativamente a intromissões dos juízes no poder legislativo;
como tantas vezes acontece, a propósito de leis cujo figurino
não compete aos magistrados traçar.
Vejamos o autogoverno. O
autogoverno das magistraturas pode ser entendido (nem todos os
autores assim o entendem) como condição para se garantir a
independência do poder judicial. Mas será que o autogoverno
significa uma autogestão completa, uma supremacia de magistrados
sobre membros não magistrados, sobretudo nas matérias
atrás referidas e com o estatuto que é assinalado a todos os
membros do Conselho?
O prof. Figueiredo Dias, que não
é suspeito de atraiçoar o espírito de independência que deve
nortear o poder judicial, há dois anos (Revista
de Legislação e Jurisprudência,
n.ºs 3849,3850 e 3851), defendeu sem rebuço que os Conselhos
Superiores da Magistratura e do Ministério Público nem membros
eleitos corporativamente deviam ter. Fossem eles magistrados
ou não magistrados, deveriam ser eleitos por maioria
qualificada pela Assembleia da República, tal como sucede em
Espanha, e, mesmo assim, os magistrados em posição de minoria. Ora,
se se fosse para uma solução dessas, a independência dos tribunais
iria por água abaixo?
Por tudo isto, entendo que a
reacção a que temos vindo a assistir é desproporcionada e
injustificável. Mesmo com o pretexto suplementar do discurso do dr.
Almeida Santos, cujas palavras não me parecem assim
desassisadas, nem proferidas fora de um direito de crítica, nem
desgarradas de um certo sentimento dominante em determinados meios.
Ora, isto não ajuda a luta dos
juízes, que, de resto, não pode aspirar a mais do que à
negociação, na impossibilidade de fazer uma nova e
extraordinária revisão constitucional. Como, também, o seu
discurso, por vezes de pendor maniqueísta e redutor, não
encontrando eco favorável na opinião pública, divorciada dos
acontecimentos ou dominantemente hostil em certas camadas cultas
(basta ler a imprensa e a autêntica onda de artigos que o caso
fez surgir), só pode conduzir ao isolamento um tanto suicida.
Mas o crescente interesse dos media pela temática em causa e,
sobretudo, o alargamento de tomadas de posição no campo
opinativo, alargamento esse também propiciado pela mediática
auto-exposição dos magistrados, significa inevitavelmente que
algo está a mudar, mas não no sentido dominante e fechado que
aqueles veiculam.
(JN de 20/11/97)
des, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em
Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias
magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas
evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que
então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco
aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna
do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea
de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria
publicado, se tivesse encontrado uma editora.
Chega, senhora doutora!
O artigo de M. Fátima Bonifácio do passado sábado no "Público" suscitou alguma repulsa, com a qual me solidarizo completamente. Na verdade, e tirando as diatribes eleitorais do "Chega", que não chegaram a incomodar, não conheço no espaço público "respeitável" uma afirmação tão crua de racismo e xenofobia por parte de uma pessoa com estatuto universitário. Descaradamente, a dita senhora exclui da "civilização" as "tribos" bárbaras dos ciganos, africanos e muçulmanos, todos eles "inassimiláveis" pela nossa sociedade. Como é possível que o "Público", sempre orgulhoso dos seus créditos liberais, tenha aceitado divulgar teses tão tacanhas, tão incultas, tão despudoradamente contrárias aos princípios constitucionais que nos regem?
O acórdão do Tribunal de Justiça sobre o ST da Polónia (leitura aconselhável a Rui Rio)
No passado dia 24.6.2019, o TJ europeu publicou a decisão sobre a lei aprovada na Polónia que permitia ao PR daquele país escolher habilidosamente os juízes do ST: por um lado, estabelecendo a reforma antecipada dos juízes nomeados antes de 3.4.2018 (em que o poder estabelecido não tinha "confiança"), por outro lado, permitindo ao PR prorrogar a função judicial dos juízes para além da nova idade de reforma. Esta intervenção direta do PR na composição do ST, à margem do CSM, foi considerada contrária ao art. 19º, nº 1, 2º §, do TUE, que estabelece o princípio da tutela jurisdicional efetiva, que impõe por sua vez a independência dos órgãos jurisdicionais.
Uma decisão importante e de leitura aconselhável aos "reformistas" portugueses.
Uma decisão importante e de leitura aconselhável aos "reformistas" portugueses.
03 julho 2019
Salgueiro Maia
Salgueiro
Maia faria ontem 75 anos, se fosse vivo. Para comemorar a passagem
desse aniversário do seu nascimento, o canal 1 da TV transmitiu um
documentário sobre a sua vida. Vi-o com todo o interesse. Foram 45
minutos bem passados, e mais que fossem, não choraria o tempo
perdido, eu que raramente vejo televisão, para não me sentir
pesaroso pela perda de tempo.
Salgueiro
Maia é bem o símbolo da Revolução que, na época contemporânea,
mudou o nosso destino. Uma revolução que se popularizou com a
imagem de uma flor, de miríades de cravos espetados no cano das
espingardas, mas que deveu a sua sorte à coragem, ao espírito
intrépido, à vontade persistente e à disposição de sacrificar a
própria vida de muitos jovens oficiais das Forças Armadas, em prol
da libertação de todo um povo, sendo Salgueiro Maia uma encarnação
perfeita daquelas qualidades.
Mais:
Salgueiro Maia representa a pureza e a gratuitidade e até um certo
sentido trágico do verdadeiro herói. Não quis honras nem
privilégios, não quis distinções especiais nem cargos
honoríficos, rejeitou protagonismos, regressou à singeleza da sua
vida profissional e familiar, valorizou-se academicamente e, ao
contrário de muito falso herói, foi remetido para funções pouco
consentâneas com as suas brilhantes qualidades, a ponto de parecerem
ou serem mesmo a expressão de má vontade ou perseguição por ter
tido o papel que teve no “25 de Abril”. Por fim, teve a desdita
de ter uma doença cancerosa que o levou à morte ainda muito jovem.
No seu testamento especificou que queria ser sepultado em campa rasa.
Dele
bem se poderia dizer com toda a propriedade que “morrem cedo os que
os deuses amam”.
António Hespanha
Faleceu
António Manuel Hespanha. Era um tipo bem disposto, cheiinho, alegre,
inteligente, a estuar de vida, de olhos bem espetados no interlocutor
e, sobretudo, um académico reputado. Lembro-me dele, recém-formado
e já assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, de passo
apressado pela Via Latina, a pasta na mão. Mas onde eu tive
oportunidade de o conhecer não foi em Coimbra; foi em Lisboa, no
pós-25 de Abril. Ele tinha sido nomeado Director-Geral do Ensino
Superior, sendo ministro da Educação Eduardo Correia e Secretário
de Estado Avelãs Nunes. Eu tinha acabado o 2.º ciclo de instrução
em Mafra (atirador de Infantaria) e estava de licença à espera de
colocação no Lumiar, já aspirante, na sequência de
reclassificação para a especialidade que me era devida – a de
Licenciado em Direito.
Alguém,
sabendo da minha situação de licença, indicou o meu nome ao
Secretário de Estado para fazer um inquérito aos Serviços
Médico-Sociais Universitários de Lisboa, e o Secretário de Estado,
após uma entrevista, nomeou-me. Esses serviços eram uma amostra de
como funcionava a Administração no tempo da ditadura: um director
todo-poderoso (um tal Bruto da Costa, que tinha sido professor da
Faculdade de Medicina) e sua mulher, enfermeira, superintendo ambos
com mão-de-ferro e total arbítrio em médicos e enfermeiras, como
se fossem patrão e patroa a superintender em casa própria, viajando
ambos em carro oficial com motorista às ordens; um ambiente de medo
e de submissão, de intriga e de maledicência; total ausência de
regras na admissão e despedimento do pessoal, em suma, um microcosmo
do nosso fascismo caseiro.
Foi
no curso da realização desse inquérito que tive oportunidade de
privar com o Hespanha, dirigindo-me frequentemente ao Ministério e
conferenciando com ele. Três meses de convívio, que foi o tempo que
durou a licença militar, até ser chamado para o Lumiar, e mais umas
fugas para acabar o inquérito, entre Outubro e Fevereiro, que foi
quando fui mobilizado para Luanda, em plena efervescência de 1975,
já como licenciado em Direito (isto é, com a especialidade militar
de licenciatura em Direito), onde fui servir na Chefia de Justiça,
dependente do Quartel General, até às vésperas da independência.
Um convívio frutífero e de que conservo gratas recordações. Só
tenho pena é de não conhecer muito bem a obra dele, que sei ser de
grande importância, mas não directamente relacionada com o trabalho
que sempre foi o meu, pois mais ligada à história das instituições
(jurídicas e não só). Apesar disso, li com prazer partes de alguns
escritos seus, nomeadamente da História
das Instituições – Épocas Medieval e Moderna.
A
sua morte provocou-me tristeza e uma recordação melancólica desses
tempos passados.