30 novembro 2010
Advocacia, ordem, interesses privados, corporativismo e interesses públicos
Este artigo da advogada Rita Matias escrito no exercício de um corajoso acto de cidadania revela, além de um caso exemplar, problemas no exercício de um dever do Estado que é fundamental para a administração da justiça: o controlo da violação dos deveres éticos e deontológicos dos advogados, e a praxis de órgãos da OA, que, curiosamente, no meio de tanto ruído permanece silenciosa.
A questão fundamental que hoje se impõe ao Estado é se uma associação que parece assumir, essencialmente, uma vocação representativa dos interesses dos profissionais que a integram continua a constituir entidade idónea para exercer os poderes públicos nessa área. E, neste ponto, a significativa vitória e reeleição do bastonário Marinho Pinto não deve ser desligada de um ponto de distinção nuclear relativamente às candidaturas vencidas, de irredutível afirmação de barreiras à admissão na profissão a novos licenciados, nem que seja através de taxas de reprovação de 90% num exame que não tem directa cobertura legal nem qualquer escrutínio externo.
Conhecendo as actuais roturas culturais e diversidades sócio-económicas da advocacia não surpreende, no plano empírico, que a preocupação de uma percentagem muito significativa se centre (1) no fechar da porta da profissão, limitando-a aos que já lá estão (sem quaisquer exames iniciais, avaliações de desempenho ou verificação superveniente de conhecimentos), (2) na defesa e, se possível, ampliação, dos actos reputados pela lei como exclusivos dos advogados (e consequentemente geradores da obrigatoriedade inscrição na Ordem para o respectivo exercício) incluindo muitos distantes do patrocínio forense em sentido estrito e (3) na oposição absoluta a alternativas que envolvam controlo público e externo do exercício de actividades cujos pagamentos são suportados pelo Estado (em particular a defesa oficiosa, apodando-se por exemplo sistemas de defesa pública de vícios de Estados anti-liberais... como os EUA).
Percebe-se o que os move, não se percebe é o desinteresse generalizado relativamente ao que a cedência aos interesses corporativos de parcela (ainda que maioritária) de uma classe profissional implica num dos alicerces fundamentais da administração da justiça: a advocacia.
A questão fundamental que hoje se impõe ao Estado é se uma associação que parece assumir, essencialmente, uma vocação representativa dos interesses dos profissionais que a integram continua a constituir entidade idónea para exercer os poderes públicos nessa área. E, neste ponto, a significativa vitória e reeleição do bastonário Marinho Pinto não deve ser desligada de um ponto de distinção nuclear relativamente às candidaturas vencidas, de irredutível afirmação de barreiras à admissão na profissão a novos licenciados, nem que seja através de taxas de reprovação de 90% num exame que não tem directa cobertura legal nem qualquer escrutínio externo.
Conhecendo as actuais roturas culturais e diversidades sócio-económicas da advocacia não surpreende, no plano empírico, que a preocupação de uma percentagem muito significativa se centre (1) no fechar da porta da profissão, limitando-a aos que já lá estão (sem quaisquer exames iniciais, avaliações de desempenho ou verificação superveniente de conhecimentos), (2) na defesa e, se possível, ampliação, dos actos reputados pela lei como exclusivos dos advogados (e consequentemente geradores da obrigatoriedade inscrição na Ordem para o respectivo exercício) incluindo muitos distantes do patrocínio forense em sentido estrito e (3) na oposição absoluta a alternativas que envolvam controlo público e externo do exercício de actividades cujos pagamentos são suportados pelo Estado (em particular a defesa oficiosa, apodando-se por exemplo sistemas de defesa pública de vícios de Estados anti-liberais... como os EUA).
Percebe-se o que os move, não se percebe é o desinteresse generalizado relativamente ao que a cedência aos interesses corporativos de parcela (ainda que maioritária) de uma classe profissional implica num dos alicerces fundamentais da administração da justiça: a advocacia.
Etiquetas: cultura judiciária, estado de direito, ética da discussão, interesse público, interesses privados, Justiça
22 outubro 2010
Imagem e preço (2)
Afinal há custos! Pena foi que há cerca de dois anos não comunicasse aos onerados o que lhes ia custar o pagamento da imagem, ou dissesse sem demonstrar que tomara a decisão menos onerosa, e até depois dissesse que aqueles cujo dinheiro gere nada iam pagar e mesmo agora não coloque transparentemente na mesa o preço da imagem, ou mais propriamente o preço que o senhor secretamente decidiu dar pela imagem e agora outros têm de pagar. Nada que surpreenda neste paradigma de credibilidade, ética e sentido de responsabilidade.
PS Acerca da parceria de negócio com o BPN, enquanto «contribuinte» mantenho a dúvida de há dois anos: (1) Quem determina superiormente que se tem de pagar não importa o quê para não se «prejudicar a nossa imagem» ? (2) Quem são os titulares da «nossa imagem» que por essa via não são «prejudicados» pelos seus erros?
PS Acerca da parceria de negócio com o BPN, enquanto «contribuinte» mantenho a dúvida de há dois anos: (1) Quem determina superiormente que se tem de pagar não importa o quê para não se «prejudicar a nossa imagem» ? (2) Quem são os titulares da «nossa imagem» que por essa via não são «prejudicados» pelos seus erros?
Etiquetas: a normalidade, democracia, interesse público, interesses privados, verdade
01 setembro 2010
União, facto, direito e ironias de um postal ilustrado (e com legendas…)
O regime legal da união de facto carece de uma reflexão crítica, nomeadamente à luz de uma perspectiva liberal (em termos da relação política do Estado com o cidadão), que permita repensar o respectivo sentido, horizontes, alternativas e efeitos colaterais num contexto jurídico e social inconfundível com aquele em que a regulação de uniões de facto deu os primeiros passos no sistema normativo português.
Algo que me pareceu ausente na discussão (nos "prós" e nos "contras") e aprovação da Lei 23/2010, de 23-08.
Para essa discussão, a bloga está longe de ser o espaço adequado, mas não deixa de servir para o brilhantismo subtil da critica à opinião publicada [que] vai assobiar para o lado, num texto ilustrado com uma fotografia, devidamente legendada para os ignaros: «Na imagem, Snu Abecasis e Francisco Sá-Carneiro, então primeiro-ministro, o mais célebre casal português unido de facto».
Quem não assobia para o lado e informa o povo que O mundo mudou, decerto que enquanto conhecedor e ilustrador da lei sabe que nesta se continua a prescrever que «Impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto:
[…]
c) Casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens».
Ou seja, o regime legal sobre as uniões de facto reguladas pelo direito português continua a não passar da soleira da porta de uniões de facto em que um dos unidos de facto se encontra ligado a alguém por casamento não dissolvido (e sem que tenha sido decretada a separação de pessoas e bens, ainda que exista uma prolongada separação de facto), os quais podem continuar unidos de facto, enquanto o tal casamento não for dissolvido, e subsistir preservados (na vida e morte) do farejar alheio (a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível).
Constitui aliás um dos curiosos paradoxos do regime jurídico das uniões de facto à portuguesa, que a contemporânea união de direito por casamento não dissolvido possa servir o exercício (limitado) do direito à não intromissão de terceiros na união de facto, sob pena de esta ser de direito (com necessário pagamento de liberdade de um dos «unidos», mesmo que em nome da «protecção» do outro*).
Trata-se de um reinventar, ainda que involuntário, de funções para o casamento, enquanto mecanismo de preservação da privacidade quanto a situações de facto que não afectam menores, nem ilegitimamente terceiros, quem sabe se para abrir um nicho ao mercado publicitário, eventualmente com fotos legendadas, «case-se para poder ser apenas unido de facto com outro sem que ninguém se meta na sua vida».
* Recorde-se que não se pode beneficiar da «protecção» da «união de facto» regulada pelo direito português se se tiver: a) Idade inferior a 18 anos à data da do reconhecimento da união de facto;
b) Demência notória, mesmo com intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, salvo se a demência se manifestar ou a anomalia se verificar em momento posterior ao do início da união de facto.
Etiquetas: a normalidade, casamento, estado de direito, interesse público, interesses privados
14 agosto 2010
Uma nota marginal e sem porto
Não quero escrever (pelo menos por ora) sobre o despacho e o inquérito de que toda a gente fala(*), embora me pareça imperativa a participação mais ampla (incluindo de meros juristas como o postador) nas questões «gerais» que têm sido suscitadas e levantadas a propósito do caso (até para contrariar monopolismos de múltiplos «interessados» casuísticos), sobre o direito que é e o direito que supostamente deve ser.
Neste último segmento, ao ler esta posta, escrita por um actual deputado, constato o levantamento de uma nova asserção / questão de debate que amplia os termos da discusssão relativa ao mais recente interesse público sobre a metódica dos despachos de arquivamento e o aspecto particular da legitimidade / proibição de referência a perguntas / diligências por fazer (sobre a qual não me pretendo aqui pronunciar).
Com efeito, aí diz-se: «eu parto do pressuposto de que não pode haver impunidade para responsáveis por um processo de investigação que produzem um documento que condena alguém a ser eternamente suspeito», afirmação autónoma e que está está muito para além daquela questão sobre a referência no despacho de encerramento do inquérito ao que não se fez (indagou ou inquiriu) nessa fase processual.
Na posta em causa formula-se uma asserção geral ao preconizar-se a responsabilização, por exemplo, de todos os despachos (e já agora sentenças) que concluam pela ausência de indícios suficientes por via de «dúvida razoável» sobre a responsabilidade de A ou B. Via que põe em causa, na minha leitura, normas vigentes como as que constam do arts. 262.º, n.º 1, 277.º, n.º 2 e 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que o dever de fundamentação dos despachos (e ainda mais das sentenças) pode obrigar à formulação de juízos positivos sobre suspeita contrabalançados pela insuficiência de provas.
(*) Por várias razões pessoais, entre as quais se conta o facto de múltiplos desenvolvimentos / afirmações só terem sido conhecidos decorrido algum tempo da sua ocorrência (por força de higiénica ausência, sem notícias portuguesas...).
Etiquetas: democracia, estado de direito, ética da discussão, interesse público, interesses privados, processo penal
17 junho 2010
Corporativismo e esparguete à bolonhesa
Mesmo quem não deixa escorrer saliva pelos cantos da boca sempre que fala ou grita corporativismo sabe que uma das manifestações mais repugnantes do dito cujo é a criação artificial de obstáculos de acesso a uma profissão / função social por quem acedeu a ela sem ter que prestar quaisquer provas específicas usando para o efeito poderes públicos atribuídos pelo Estado à corporação. Assim, parece-me que dizer que uma taxa de reprovação no acesso à profissão de 90% se deve a Bolonha, sem indicar o critério de excelência dos julgadores, nem a forma como os mesmo foram seleccionados cheira mal, a um prato indigesto tipo esparguete à bolonhesa com calda de tomate bolorenta e massa demasiado cozida.
Etiquetas: interesse público, interesses privados
04 dezembro 2008
Imagem e preço
«Podia prejudicar a nossa imagem»!
Anda um tipo a tentar aprender algo sobre racionalidade económica, relação custo / benefício, percepção dos riscos, responsabilidade individual e colectiva, papel do Estado Regulador, etc, etc e agora mostram-lhe que afinal estava enganado e lhe faltava o primeiro axioma que afasta, quando necessário e superiormente determinado, todas as regras: A «nossa imagem» pertence a alguns e é um valor sem preço.
Agora que é necessário começar a aprender tudo de novo, agradece-se a indicação dos dados essenciais que não constam dos manuais: (1) Quem determina superiormente que se tem de pagar não importa o quê para não se «prejudicar a nossa imagem» ? (2) Quem são os titulares da «nossa imagem» que por essa via não são «prejudicados» pelos seus erros.
Etiquetas: interesse público, interesses privados, verdade
11 abril 2007
Perplexidades procedimentais
Em relação ao anterior texto do Maia Costa e à conferência de imprensa aí comentada, também fiquei perplexo pelo facto de o representante do Estado, no quadro de uma comunicação sobre um acto de exercício da autoridade do Estado com incidência numa entidade privada, assumir a valoração política e ética dos interesses de uma personalidade concreta (especialmente quando a mesma não tem qualquer relação com o acto estatal de acordo com a fundamentação deste).
Parece-me que em diferentes temas tratados no Sine Die tem sido uma preocupação generalizada entre os seus membros reflectir sobre o relevo (interno e externo) das separações funcionais no seio do aparelho de Estado, contudo, não menos importante é a distinção entre o exercício do poder do Estado e a representação de interesses particulares (ainda que legítimos e de altos titulares de órgãos do Estado). A falta de cuidado na clara separação de águas, independentemente dos efeitos imediatos, tem necessários efeitos mediatos sobre as representações da imparcialidade do Estado (objecto, aliás, de histórica desconfiança em Portugal, por boas e más razões). Será o ocorrido na conferência de imprensa expressão de uma diferente concepção jurídico-política?
Etiquetas: interesse público, interesses privados, separação de funções
07 dezembro 2005
Apontamentos sobre a(s) verdade(s) do judiciário e da política
A recorrente distinção entre responsabilidades judiciariamente reconhecidas (nomeadamente penal e cível) e outras responsabilidades sociais (em particular política) compreende não só a vertente jurídica mas também a factual sobre os juízos quanto aos factos, ao que se passou.
Para a leitura dos efeitos extraprocessuais dos enunciados de facto do procedimentos judiciários, importa destacar que (1) nos mesmos, enquanto actividade social, não é apenas a verdade que está em causa e (2) o princípio da segurança obriga a que exista um momento de encerramento da controvérsia, o caso julgado em que se conheceu o mérito da causa (com afirmação de convicções ou apenas de dúvidas razoáveis) ou mesmo em que este não foi conhecido (por falta de pressupostos processuais, como uma queixa tempestiva, ou por superveniente ocorrência de uma causa extintiva do procedimento, por exemplo por prescrição ou amnistia).
Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado).
A questão que se coloca é saber se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode conviver com outras verdades, nomeadamente afirmadas por outros órgãos do Estado (por exemplo comissões parlamentares de inquérito) ou pela sociedade civil (no quadro de indagações factuais levadas a cabo, por exemplo, no âmbito do jornalismo ou da história).
Os argumentos apresentados no sentido negativo podem ter por referentes interesses públicos ou direitos subjectivos. No plano público era muitas vezes invocada (1) a necessidade de salvaguardar o prestígio do poder judicial e a sua legitimação; e (2) a preservação da independência para evitar influência extra-processual das futuras causas quando o procedimento judicial ainda pode vir a ser accionado ou reactivado. Claramente tem havido uma deflacção da protecção desses interesses públicos por força de uma maior horizontalidade social com reflexos na relação com o Estado e dos crescentes apelos ao escrutínio público dos diferentes poderes estaduais em que se exige a inclusão do judicial (em que diga-se de passagem me parece que no sistema anglo-americano existe uma tradição democrática enformadora muito mais forte do que no continental, mas isso são contas de outro rosário que podem até vir a animar uma discussão no Sine Die).
Quanto aos direitos subjectivos, os limites a supervenientes indagações é muito marcado por perspectivas centradas no direito à paz jurídica (sejam do condenado ou do absolvido, do acusado ou do não acusado), conexas com a protecção da presunção de inocência e seus corolários, em particular o direito a que imputações graves sejam impugnadas no contraditório do processo com o arsenal dos direitos de defesa consagrados na Constituição e na lei, que não têm correspondência com outros quadros de controvérsia e tensão social. Em contraponto, quem defende perspectivas mais restritivas de tais direitos subjectivos, argumenta com o carácter circunscrito do que está em jogo em cada processo (em particular no penal a sujeição a uma pena) e ainda certas aporias geradas por uma limitação mais intensa da liberdade de expressão quanto a factos socialmente mais danosos (porque objecto ou susceptíveis da repressão penal) por comparação com factos menos graves.
A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como sobre a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos (a estória sobre o que X fez e suas presumíveis vítimas está encerrada com a decisão judicial, já a estória sobre o que Y fez tem de ser conhecida para além do que o tribunal disse pois esse é um direito das vítimas).
Como nota final sublinhe-se que neste post apenas se pretendeu reflectir sobre a problemática do espaço aberto (ou fechado) para a controvérsia racional sobre factos objecto de processos judiciários, enquanto problema essencial da esfera pública (sobretudo quando se multiplicam os «discursos de verdade»). Outra coisa são as questões relativas a rejeições socio-políticas de afirmações epistémicas do judiciário ou mesmo de dados recolhidos no quadro de indagações judiciárias («aquilo não pode ser verdade», «aquilo tem de ser verdade», «tem de haver uma verdade», «a verdade é esta», «o que importa é»), independentes de uma discussão vinculada a cânones éticos de comunicação e sobretudo independente de qualquer quadro alternativo ao judiciário de verificação e falsificação, ou seja estritas expressões de um poder e uma autoridade (ou se se quiser de afirmação de uma hierarquia).
Para a leitura dos efeitos extraprocessuais dos enunciados de facto do procedimentos judiciários, importa destacar que (1) nos mesmos, enquanto actividade social, não é apenas a verdade que está em causa e (2) o princípio da segurança obriga a que exista um momento de encerramento da controvérsia, o caso julgado em que se conheceu o mérito da causa (com afirmação de convicções ou apenas de dúvidas razoáveis) ou mesmo em que este não foi conhecido (por falta de pressupostos processuais, como uma queixa tempestiva, ou por superveniente ocorrência de uma causa extintiva do procedimento, por exemplo por prescrição ou amnistia).
Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado).
A questão que se coloca é saber se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode conviver com outras verdades, nomeadamente afirmadas por outros órgãos do Estado (por exemplo comissões parlamentares de inquérito) ou pela sociedade civil (no quadro de indagações factuais levadas a cabo, por exemplo, no âmbito do jornalismo ou da história).
Os argumentos apresentados no sentido negativo podem ter por referentes interesses públicos ou direitos subjectivos. No plano público era muitas vezes invocada (1) a necessidade de salvaguardar o prestígio do poder judicial e a sua legitimação; e (2) a preservação da independência para evitar influência extra-processual das futuras causas quando o procedimento judicial ainda pode vir a ser accionado ou reactivado. Claramente tem havido uma deflacção da protecção desses interesses públicos por força de uma maior horizontalidade social com reflexos na relação com o Estado e dos crescentes apelos ao escrutínio público dos diferentes poderes estaduais em que se exige a inclusão do judicial (em que diga-se de passagem me parece que no sistema anglo-americano existe uma tradição democrática enformadora muito mais forte do que no continental, mas isso são contas de outro rosário que podem até vir a animar uma discussão no Sine Die).
Quanto aos direitos subjectivos, os limites a supervenientes indagações é muito marcado por perspectivas centradas no direito à paz jurídica (sejam do condenado ou do absolvido, do acusado ou do não acusado), conexas com a protecção da presunção de inocência e seus corolários, em particular o direito a que imputações graves sejam impugnadas no contraditório do processo com o arsenal dos direitos de defesa consagrados na Constituição e na lei, que não têm correspondência com outros quadros de controvérsia e tensão social. Em contraponto, quem defende perspectivas mais restritivas de tais direitos subjectivos, argumenta com o carácter circunscrito do que está em jogo em cada processo (em particular no penal a sujeição a uma pena) e ainda certas aporias geradas por uma limitação mais intensa da liberdade de expressão quanto a factos socialmente mais danosos (porque objecto ou susceptíveis da repressão penal) por comparação com factos menos graves.
A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como sobre a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos (a estória sobre o que X fez e suas presumíveis vítimas está encerrada com a decisão judicial, já a estória sobre o que Y fez tem de ser conhecida para além do que o tribunal disse pois esse é um direito das vítimas).
Como nota final sublinhe-se que neste post apenas se pretendeu reflectir sobre a problemática do espaço aberto (ou fechado) para a controvérsia racional sobre factos objecto de processos judiciários, enquanto problema essencial da esfera pública (sobretudo quando se multiplicam os «discursos de verdade»). Outra coisa são as questões relativas a rejeições socio-políticas de afirmações epistémicas do judiciário ou mesmo de dados recolhidos no quadro de indagações judiciárias («aquilo não pode ser verdade», «aquilo tem de ser verdade», «tem de haver uma verdade», «a verdade é esta», «o que importa é»), independentes de uma discussão vinculada a cânones éticos de comunicação e sobretudo independente de qualquer quadro alternativo ao judiciário de verificação e falsificação, ou seja estritas expressões de um poder e uma autoridade (ou se se quiser de afirmação de uma hierarquia).
Etiquetas: ética da discussão, interesse público, interesses privados, processo penal, separação de funções, verdade