29 agosto 2013

 

O corte mais eficaz


 

O Tribunal Constitucional chumbou o Decreto da Assembleia da República que previa os termos da requalificação dos funcionários. Era uma solução já esperada. O próprio presidente da República alinhou argumentos de peso a favor do “chumbo”.

A tática de dramatizar as consequências das decisões do Tribunal Constitucional que não sejam conformes às soluções que se pretende implementar, forçando os limites da Constituição, não dão resultado.

De sorte que o que a troika deverá propor, com o aplauso dos que querem mudar o regime, é o corte do próprio Tribunal Constitucional. Feitas as contas, poupar-se-iam uns milhares em funcionários, magistrados, assessores, serviços de apoio, motoristas, etc. E, além disso, podiam-se, depois, fazer os outros cortes à vontade, sem risco constitucional. A Constituição podia ficar como mero emblema.

28 agosto 2013

 

Nova guerra humanitária

Uma nova guerra humanitária está à vista, está mesmo já decidida: será na Síria. Os EUA e o Ocidente em geral assumem de novo o seu papel de depositários e garantes dos grandes princípios humanitários (papel atribuído diretamente pelo deus dos cristãos e por Jeová, com o voto contra de Alá), promovendo-os com recurso à guerra, como se impõe quando os bárbaros resistem. É uma guerra santa, que está inscrita na própria matriz da civilização europeia e ocidental desde as cruzadas medievais.

27 agosto 2013

 

As últimas alterações ao CP

Alguém me explica qual é a alteração introduzida pela Lei nº 60/2013, de 23-8, ao art. 11º, nº 2, do CP?

26 agosto 2013

 

O sentido das proporções


 

António Borges, uma vez defunto, tornou-se o maior economista, o mais brilhante académico, o maior génio nacional dos tempos modernos. Acontece é que o povo português não o apreciava, porque o povo português é conservador, enquanto que o ilustre finado era um revolucionário.

Caramba! Neste país a arder de ano para ano, a tornar-se cada vez mais pequenino e incinerado, não haverá o sentido das proporções?

 

O risco constitucional


O primeiro-ministro, a propósito das recentes propostas de lei que alteram o panorama da Administração Pública, sobretudo no que toca à célebre “requalificação dos funcionários”, afirmou que as decisões do Tribunal Constitucional (TC) constituem um risco e que esse risco é sério e grave do ponto de vista das consequências.

Ora, deixando de parte a questão da pressão sobre o TC – pressão que Fernando Madrinha não tem dúvidas em considerar legítima -, se as decisões do TC constituem um risco, isso é devido ao facto de o governo e a maioria que o apoia se arriscarem a determinadas soluções que forçam os limites da Constituição. Daí que Passos Coelho tenha explicitado a consciência desse risco. Se não fosse assim, se Passos Coelho estivesse à vontade sobre a matéria, não teria referido o risco em que incorre. Portanto, ele sabe que está a pisar o risco e que, por causa disso, se arrisca a ver declarada a inconstitucionalidade das soluções propostas.

A evidência desse risco é tanto mais consistente, quanto o próprio presidente da República, que manifestamente não tem querido pôr entraves à acção governativa, já veio requerer, em termos assaz persuasivos, a apreciação da constitucionalidade do diploma relativo à requalificação dos funcionários.

Por conseguinte, o risco não é das decisões do TC. O risco é das soluções propostas. Ou se se preferir, para quem entenda que não há alternativa às políticas seguidas, na linha do defendido por Fernando Madrinha ( e talvez seja essa, afinal, a mensagem subliminar da insistência na questão do tribunal, por parte de Passos Coelho), o risco é da Constituição, pois “(…) a Lei Fundamental existente garante tudo e mais alguma coisa sem que a realidade económica e financeira do país sustente tais garantias” (Madrinha dixit).   

Mas, sendo assim, não se peça ao TC que seja uma espécie de apêndice da acção do governo e da maioria parlamentar. Faça-se a reforma da Constituição, se se tiver força e coragem para isso.

 

Os fogos de Verão


Durante muitos anos a fio, indignei-me com os fogos, a devastação da floresta, a paisagem calcinada. Escrevi artigos sobre o tema em anos sucessivos, nos treze anos em que fui colaborador do Jornal de Notícias, e mesmo antes. Utilizei vários registos de escrita, desde o sério, em que meditava sobre possíveis soluções, ao irónico, ao sarcástico e ao satírico.

Participei em reuniões, na primeira metade dos anos oitenta, com várias autoridades (judiciais, policiais, autárquicas), em representação do Procurador-Geral Distrital, que delegou em mim essa tarefa. Já então se propunham soluções que continuam a ser as mesmas que se propõem trinta e tal anos depois: limpeza das matas no âmbito do serviço cívico, sistema coordenado de vigilância, reordenamento florestal, etc. O que é certo é que as soluções ficaram sempre no papel e os incêndios continuaram a devastar sistematicamente as nossas florestas, destruindo espécimes centenares em algumas das nossas serras mais emblemáticas.

Agora, já espero os fogos de Verão com a tranquilidade e a indiferença de quem se habituou a uma rotina. Os fogos são uma “inevitabilidade”, como disse há dias o ministro da Administração Interna. Pois é isso mesmo. Por isso, não me comovo nem me exalto. Os telejornais já não me tiram do lugar, nem me fazem levantar a cabeça, se estiver a ler qualquer coisa. As soluções que me chegam aos ouvidos, apontadas por qualquer responsável, fazem-me sorrir. A cantilena é a mesma: reordenamento da floresta, aumento das penas cominadas para os criminosos. Mas que criminosos? Os supostos incendiários? Os que, no exercício das suas competências e obrigações, privadas ou públicas, nunca fizeram nada para pôr cobro à situação?

Lérias! Afinal, isto é mesmo para arder, não é?

Só é pena é que haja pessoas que morrem, por um ainda existente ideal de abnegação.

 

Os direitos dos cidadãos e os tribunais

O artigo de Boaventura sobre "Tribunais e Democracia", saído no "Público" do dia 24 deste mês, é uma reflexão muito interessante sobre o papel dos tribunais nas democracias contemporâneas. Vou pegar somente no terceiro fator de intervenção dos tribunais de que ele fala: o que se refere à garantia dos direitos cívicos, políticos e sociais dos cidadãos. Refere ele que, para que o protagonismo dos tribuais nessa área resulte, é necessária a conjugação de três condições: que a lei proessual facilite o acesso; que sejam corrigidas as assimetrias no acesso aos tribunais; e que um número significativo de magistrados viva a "paixão racional de contribuir para a democracia fazendo valer os direitos, mesmo que com isso tenha de correr alguns riscos." Trata-se, a meu ver, de um análise certeira. Sem a efetivação conjugada dessas três condições, não é possível o cumprimento da função de garantia dos direitos dos cidadãos por parte dos tribunais. Que se passa em Portugal? Desde logo, é duvidoso afirmar que a lei processual "facilite" a defesa dos direitos. A existência de mecanismos expeditos para a salvagarda, individual ou coletiva, dos direitos dos cidadãos não me parece um dado adquirido. Pelo menos, não existe uma litigância que explore até aos seus limites as virtualidades da lei vigente. E daqui se passa para o segundo ponto: o do acesso aos tribunais. Este é seguramente o "buraco negro" da justiça em Portugal (geralmente escamoteado, em favor da morosidade e outras mazelas...). Na verdade, a inexistência de um patrocínio judiciário eficaz para todos os cidadãos é o grande problema, gerador das maiores desigualdades e mesmo injustiças na administração da justiça. Um problema que nunca foi atacado de frente. Por último, a necessidade de uma "paixão racional" dos magistrados pela efetivação dos direitos dos cidadãos. Sem esquecer o papel de iniciativa que cabe ao MP, a litigância é essencialmente uma tarefa dos próprios cidadãos, e sem ela não é possível testar a tal "paixão". Creio que o défice de litigância pelos direitos é o principal responsável pelos resultados insuficientes apresentados pelos tribunais. O "ativismo judiciário" protagonizado em Portugal pelas associações de magistrados foi globalmente no sentido de assumir a defesa da Constituição e do extenso catálogo de direitos que ela consagra. Mas, por via das dúvidas, espera-se o incremento da litigância, da iniciativa cidadã, para fazer a avaliação das "culpas"...

 

Liberais ou conservadores?

António Borges foi agora universalmente apresentado como "liberal"... Pelos vistos, já não há conservadores... Mesmo os mais retintos conservadores agora são liberais... Liberais na economia, é certo. Partidários da liberdade ilimitada do mercado. Mas em termos de ideologia política, tal significa geralmente ser conservador, ou seja, partidário de uma sociedade desigual, sem mecanismos de compensação ou sequer atenuação das desigualdades sociais. Todos os que hoje se reivindicam de "liberais" pensam que a sociedade é naturalmente desigual, que é uma selva, em que cada um deve tratar de si, vendo no outro um inimigo, um adversário, pelo menos, espezinhando-o, se for preciso, para subir na escala social. É o que se chama a "competitividade", palavra-chave da ideologia dominante. O liberalismo na economia é uma vertente do conservadorismo político atual.

21 agosto 2013

 

O antiterrorismo como instrumento de repressão das liberdades

Não há adjetivos suficientemente maus para caracterizar o aproveitamento pelas autoridades inglesas (em conivência com as americanas) da legislação anterrorista (uma lei do inconfundível Tony Blair...) para abafar o escândalo da espionagem da NSA americana e para perseguir aqueles que revelaram esse mesmo escândalo... Percebe-se bem agora que as leis antiterroristas da dupla Blair/Bush são um perigo para as liberdades, para a democracia. E que dizer da rendição do "Guardian" à pressão do governo de Cameron para destruir o material entregue por Snowden sobre a espionagem da NSA? Atitude muito pouco abonatória para o governo, mas menos ainda para o jornal...

 

O manso soldado Manning

O soldado Manning deixou-se de bravuras e decidiu, muito sensatamente, pedir desculpa por todo o mal que fez à sua pátria. E teve a devida recompensa: em vez de 139 anos, levou 35 anos de prisão... Um final feliz, muito americano...

14 agosto 2013

 

"Briefings" sem ruído

O ministro Maduro (afinal não tanto como diziam) não está contente com os "briefings" com a comunicação social que instituiu e delegou no dr. Lomba (o homem duplicado, ora em "on" ora em "off") para bem da "cultura política" deste povo ignaro, que não tem compreendido devidamente o esforço do governo para nos levar ao bom caminho. É que os ditos "briefings" não têm servido esse objetivo, antes têm assumido a natureza de "debate", com os jornalistas extravasando a sua função de reprodução estrita e fiel das informações e opiniões emitidas pelo governo, produzindo assim um enorme "ruído".
Para já os ditos "briefings" são suspensos até o ministro voltar das (merecidas) férias. Depois se verá, mas uma coisa é certa: o ruído (o "debate") vai acabar!

11 agosto 2013

 

Impressões sobre Urbano Tavares Rodrigues


Urbano Tavares Rodrigues. Infelizmente, não é um escritor que eu tenha lido muito, como ele merecia: contos, uma ou outra novela, livros de viagens. Virei-me mais para os livros de Maria Judite de Carvalho, sua mulher, uma outra mestra na escrita de crónicas, contos e novelas.

Conheci-o há muitos anos atrás, já depois do “25 de Abril”, tendo-me sido apresentado por amigos comuns e privei com ele durante alguns dias em que esteve no Porto. Conversámos muito sobre muitos assuntos, em noites prolongadas, cirandando pelos bares portuenses. Falei-lhe de Sá Coimbra, de quem era amigo, e dum livro que este tinha escrito – A Chancela – um romance sobre o exercício do poder judicial na ditadura, mas apanhando já o “25 de Abril”.

Um mês depois, na página literária dum periódico (não sei agora qual), fez uma curta resenha crítica ao livro, bastante elogiosa, no contexto de outras críticas, talvez a uma dezena de livros, entre ficção e ensaio, dando a esse conjunto um título do estilo Leitura de férias. Fiquei espantado com a sua capacidade de leitura.  

 Teve a gentileza de me oferecer alguns livros seus com dedicatórias muito amistosas.

Recordo desse tempo uma convivência extremamente agradável, uma ímpar delicadeza de trato, uma grande abertura, para lá de condicionamentos ideológicos, uma plena disponibilidade para estar, para conversar, para ouvir, uma vastíssima erudição que surgia fluente e discreta na conversa, uma viva curiosidade pelas coisas fora do seu universo cultural, como, por exemplo, pela magistratura, de que eu, nesse grupo de amigos, era o único representante.

Por tudo isso, deveria ter sido um mais assíduo leitor da sua obra.

O seu desaparecimento, no fim de uma vida tão longa, plena e vivida apaixonadamente até ao fim, vai ser – prometo-o a mim mesmo – um incentivo para um maior aprofundamento da sua obra. É, como se diz, a melhor maneira de homenagear o intelectual, o escritor, o cidadão exemplar e o homem dotado de um raro poder de empatia.

07 agosto 2013

 

A abolição do tempo


 

A chamada convergência das pensões do sector público com as do sector privado vem muito embrulhada em “equidade”, que é o invólucro com lacinho constitucional para disfarçar o conteúdo de má qualidade.

Fazer a convergência através do retrocesso de um dos sectores, cortando nas pensões dos reformados a pretexto de igualar ambos os sistemas, faz lembrar aquela história contada na recente novela de Nuno Júdice, A Implosão, em que, não havendo bancos para todas as  crianças de uma escola, o remédio não é dar um banco a cada uma, «mas pôr todas as crianças sem banco para que a igualdade seja um princípio universal».

Mas pior ainda do que isso: os cortes são para operar retroactivamente, isto é, mesmo em relação a quem já tinha as suas pensões fixadas no passado (já nem falo de quem passou toda uma vida a descontar para obter uma dada reforma, mas ainda não está reformado, que também esses são confrontados com uma mudança de sistema no decurso de uma longa carreira).

É a primeira vez que acontece tal coisa. Governos anteriores haviam editado diplomas legais com o fito na convergência dos dois sectores, mas só para os que viessem a ingressar no sistema depois da lei; nunca se atreveram a legislar para trás.

Agora, deixou de haver “para trás” e “para a frente”. Já não há um “antes” e um “depois”, em termos legais. A lei pode ir para trás e para frente sem impedimentos. É a abolição do tempo do ponto de vista legal.

 

Os livros (prosa de férias)


 

Uma coisa de que não me posso queixar é dos livros. Gosto deles e eles gostam de mim.

Quase sempre encontro os que procuro, vasculhando em livrarias, em alfarrabistas, em feiras do livro, em saldos, em barracas de ocasião, em vendedores de rua, em lugares esconsos. Por vezes, num amontoado de livralhada colocada a esmo, entre muita escória e farrapada, lá me aparece, perdido e sedutor, um exemplar que procurava há muito ou cuja existência já se me tinha delido na memória. E até me sucede depararem-se-me livros que nunca esperava encontrar, como, por exemplo, a 1.ª edição das obras completas de Bocage e algumas primeiras edições de Almeida Garrett, que fui descobrir num centro comercial (quem diria?), numa lojeca que vendia medalhas de bronze e colecções de numismática.

A 1.ª edição das Encruzilhadas de Deus, de José Régio, cuja capa, ostentando um desenho de Júlio, abriu para mim um riso cintilante, pôs-se-me diante dos olhos numa loja de província, que miraculosamente se encontrava aberta numa manhã de domingo. Enfim, poderia contar uma história a propósito de cada livro, cada qual mais interessante e inesperada.

Mas também me sucede andar anos a desejar possuir um certo livro, sobretudo uma primeira edição dum livro de que goste muito, até quase perder a esperança. Lá vem, contudo, um belo dia em que ele me surge, gritando-me com frenesim: “Aqui estou, seu pateta!”

Foi assim que se me deparou há dias, numa das estantes de um alfarrabista, precisamente a começar as férias, a 1.ª edição de O Mundo dos Outros, de José Gomes Ferreira, numa encadernação em meia pele ainda bem conservada. Oh, que fantástico começo de férias! Ah quanto tempo ambicionava esta obra do poeta que nasceu na Rua das Musas, na cidade do Porto, uma obra de magníficas crónicas urbanas que, por certo, nem por isso é das mais significativas dele, mas que, lida de empréstimo na minha mocidade coimbrã, me ficou gravada na memória com tinta indelével. Ficou?

Às vezes, os livros que estão na nossa memória não são exactamente os que um dia lemos. O tempo encarrega-se de os modificar pela sobreposição de outros textos que fomos construindo sobre eles, pela interposição de outras imagens que não correspondem às que formámos no momento da leitura e até pela deformação que lhes fomos introduzindo.

Já um dia, numa crónica intitulada Leitura e aventura, escrevi que, tendo procurado afanosamente nas Prosas Bárbaras, de Eça de Queirós, uma sentença que tinha por fatalmente escrita, não fui capaz de a encontrar, e tendo andado, na mesma obra, à cata de um texto sobre a Sinfonia Fantástica, de Berlioz, que também tinha por absolutamente existente, não dei com ele, tendo-se-me deparado, em sua vez, um conto em que duas personagens trocavam correspondência acerca de Paganini. Uma dessas personagens era “Berlioz”, ao tempo em que trabalhava na sua sinfonia de Harold, e outra, “um pintor” cujo nome nunca é revelado. Mas que prazer ao (re)descobrir esse texto, em cuja leitura mergulhei como  em ondas virginais. Um texto que ficara sepultado sob as camadas imaginárias do outro que eu tinha escrito mentalmente.

Pois desta vez, mal cheguei a casa com a preciosidade encontrada no alfarrabista, sucedeu-me andar na perseguição de uma crónica que eu imaginava ser sobre o dia da árvore.

Percorri o índice e encontrei um título  - “Árvore: vinga-nos!” - e disse “Cá está!”, mas não estava nada. O título não tinha qualquer relação com o dia da árvore. Procurei outros títulos que se relacionassem com o mundo vegetal: “A sombra”, “Banco de jardim”, Dona Musgo”, mas nenhum dos textos se referia, nem vagamente, ao dia da árvore. Folheei o livro todo e continuei sem enxergar o que queria. Estava quase aterrado com a ideia de os livros que li se reescreverem na minha cabeça, mas sem qualquer relação com os assuntos que eles tratavam. Já desesperado, espiolhei o livro página a página, lendo-o em diagonal e, às vezes perdendo-me no encanto de algum trecho. Por fim, acabei por encontrar o almejado tema inserido numa crónica cujo título nem remotamente lembrava o dia da árvore: “Infância estragada”.

O curioso é que o assunto principal, como o título sugere, não é o da árvore, nem nele se fala especificamente do dia celebratório da árvore. Na crónica, do que se trata, fundamentalmente, é de exautorar um universo escolar (o colégio) baseado no medo, na repressão, na arbitrariedade, na imposição do saber livresco, no sufoco da imaginação e da sensibilidade, no terror do exame. “Infância estragada” é, à sua maneira, nos limites apertados de uma crónica, uma espécie de Manhã Submersa, o romance que Vergílio Ferreira haveria de publicar cinco anos mais tarde.    

O assunto da árvore aparece em contraposição a esse universo fechado e livresco, nele se rememorando, em clima francamente republicano e pagão (estava-se em 1911, tinha o autor 11 anos de idade) um dia em que um professor se lembrou de levar os alunos a plantar uma árvore nas avenidas novas da capital. Essa árvore é para o autor o símbolo nostálgico da liberdade e do contacto com a natureza. Nostálgico e um pouco frustre, uma vez que ele, dispersada a turma de rapazitos depois de entoarem em uníssono A Sementeira, nunca mais soube do destino dessa árvore, perdida, se acaso vingou, na paisagem urbana, mas que tão ternamente ficou arreigada na sua memória.

O mais curioso é que, indo, como leitor, à procura da árvore que o livro imprimira na minha memória, fui, afinal, desembocar num texto mais complexo, que por aquela ficara submerso, e de significado sociológico muito mais rico, enganando-se quem, porventura, julgue o tema obsoleto. Ainda mais curioso é que a crónica me tenha ficado na cabeça aparentemente por causa da árvore, quando o que deveria ter ficado retido na minha memória era o assunto que ficou escondido por ela: o universo escolar de clausura e violência, o ambiente colegial, que eu fiquei a detestar, como o autor. A árvore, portanto, a ânsia de liberdade.

Na verdade, são infinitos e sempre renovados, por vezes, até misteriosos, os caminhos que os livros nos abrem.

06 agosto 2013

 

Culpa coletiva?

A propósito de uma polémica decisão recente de um tribunal superior foi dito que "é toda a justiça que paga" (Paulo Rangel hoje no "Público"). Contesto veementemente este entendimento. Na "justiça", isto é, nos tribunais, é responsável apenas quem assina a decisão. Não existe responsabilidade coletiva de toda a magistratura! A culpa coletiva é própria das sociedades (e das mentalidades) totalitárias!

05 agosto 2013

 

Berlusconi e a "reforma da justiça"

Berlusconi reclama veementemente uma "reforma da justiça". Percebe-se bem o que ele quer: a impunidade (a que está habituado).
A expressão "reforma da justiça" é equívoca e polissémica.
Em Portugal é muito utilizada, sem se explicar o que se pretende. A partir de agora será bom que os que reivindiquem essa "reforma" expliquem melhor o que querem.

 

Memorandos e plágios

A revelação de que o texto dos memorandos celebrados entre Portugal, Irlanda e Grécia com a troika são quase iguais é curiosa, mas não surpreende. Confirma apenas que a troika impõe uma "receita", sempre a mesma, a da flexibilidade/austeridade, sem atenção mínima às especificidades dos países "capturados". É a imposição da ideologia neoliberal (ou "neoclássica", como os neoliberais preferem dizer) no estado puro, uma cartilha dogmática e grosseiramente ortodoxa, que se autoplagia sucessivamente.

01 agosto 2013

 

O bravo soldado Manning

O soldado Bradley Manning, autor de uma fuga de informação militar, escapou à condenação pelo crime de traição à pátria americana e consequentemente à pena de prisão perpétua. Arrisca somente uma pena de 136 anos de prisão. Estimulado pela benevolência da justiça militar do seu país, o soldado já está a fazer planos de vida honesta para a data em que sair em liberdade, no ano de 2149.

 

Secretário de Estado da Ideologia

De um secretário de Estado da Cultura espera-se, e exige-se mesmo, a tutela e promoção da dita cultura. Mas o que aconteceu no "caso Crivelli" foi, como resulta da confissão do próprio F. J. Viegas, a submissão da cultura (que determinaria a não autorização da saída do quadro para o estrangeiro) à ideologia governamental (que eleva a propriedade privada a valor supremo e ilimitado).
Em todos os domínios o atual executivo tem agido no cumprimento de um programa ideológico. Mas não se esperava que, numa área aparentemente menos marcada politicamente como é a cultura, a ideologia saltasse para o primeiro plano e impusesse os seus "direitos"... Faz lembrar os tempos de António Ferro, titular simultaneamente da informação/propaganda, da cultura e da ideologia...

 

A propósito da descida do IRC


A propósito da descida do IRC, vi ontem, na SIC Notícias, uma entrevista de Silva Lopes, conduzida pelo comentador de assuntos económicos, José Gomes Ferreira, em que ambos concordaram que a medida vai favorecer as grandes empresas, que praticamente não têm concorrência no “tecido” económico português e que não será por causa dessa descida que essas empresas vão fazer maiores investimentos.

Silva Lopes, que não é propriamente um “esquerdista” (bem antes pelo contrário) não se coibiu de dizer que a medida se traduz em mais uma transferência de rendimentos das classes que mais têm sido sacrificadas com impostos para os detentores do capital, pois quem vai arcar com as consequências dela são os mesmos de sempre, e que os fiscalistas que estiveram envolvidos no estudo da baixa do IRC ocupam, eles próprios, cargos de relevo nas grandes empresas.   Mais ainda, disse ele, “isto é outra TSU”.

A ser assim, há uma conclusão a tirar: continua a política de transferência dos custos da “crise” das classes, grupos e instituições que lhe deram origem para os que mais têm sofrido os seus efeitos e, sob a capa de reformas necessárias, prossegue-se na execução de todo um programa ideológico de ataque ao Estado Social, aos direitos laborais e à classe média.

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