30 janeiro 2014
Base de dados de pedófilos: uma ideia tenebrosa
Ontem, na sessão se abertura do ano judicial, a ministra da Justiça, depois de criticar as "derivas securitárias", anunciou uma medida hiper-securitária: criação de uma base de dados contra "agressores sexuais"...
Uma base de dados deste tipo significa que os indivíduos que alguma vez cometeram um crime sexual passam a fazer parte, porventura indefinidamente, sem direito a reabilitação, de um grupo de "inimigos sociais", que será submetido a restrições laborais, de deslocação, de residência, e eventualmente outras, e será submetido à vigilância permanente de entidades policiais, administrativas, ou mais amplamente de comunidades inteiras.
Poderia dizer-se que é um regresso àquelas penas arcaicas, como o ostracismo ou a deportação, ou a exposição à humilhação pública. Mas parece-me antes uma medida tributária de um novo processo penal, nascido nos EUA, que assenta, a pretexto de proteção da vítima, numa lógica totalitária, para não dizer fascizante, e que tem múltiplas manifestações: para além das bases de dados seletivas de delinquentes, tratamento degradante de detidos e prisioneiros, castração química de violadores, interceção generalizada das comunicações, tortura, tribunais especiais.
Este processo penal em marcha exige um "sobressalto cívico" (para utilizar uma expressão também utilizada ontem pela mesma ministra) contra cada uma das medidas que venham a ser propostas.
Mas o populismo reinante em termos de política penal, açulado pela imprensa tablóide, mas também pela dita de referência, não permite alimentar grandes ilusões quanto à emergência de um tal sobressalto...
28 janeiro 2014
Homenagem justa, mas tardia, mas ainda a tempo
Pode sempre dizer-se que mais vale tarde do que nunca. Neste caso foi mesmo muito tarde...
Mas valeu a pena evidentemente a homenagem, passados 40 anos sobre o 25 de Abril (neste caso Abril vai com letra grande, não por recusa da nova ortografia, mas pela grandeza da data), aos advogados dos presos políticos julgados nos tribunis plenários da ditadura.
Poderá talvez aos novos advogados de hoje parecer fácil o que aqueles homens (gratuitamente) fizeram, mas não foi. Eles correram sérios riscos, profissionais e pessoais.
Fizeram-no por militância democrática e enfrentando esses riscos, conhecendo-os. A barra dos plenários tornou-se, pela sua ação, uma barricada de luta. Contribuíram, no seu posto, para que a democracia fosse possível.
Hoje os problemas que enfrentamos são outros. Mas a luta pelo direito não acabou. E uma nova militância é necessária, para defesa dos direitos entretanto adquiridos e gravemente em risco de extinção.
Detenhamo-nos porém hoje nessa homenagem aos que nos tempos sombrios e difíceis estiveram presentes e enfrentaram magistrados que não mereciam esse nome, pois obedeciam às instruções da PIDE, desonra suprema para um magistrado.
Restringir o aborto é bom para a economia?
O PP espanhol acha que é preciso aumentar a natalidade, que isso favorece a economia do país, e por isso tem uma proposta de lei altamente restritiva da IVG.
Já se sabe que não há nenhuma relação, direta ou indireta, entre natalidade e interrupção de gravidez; a natalidade promove-se não com restrições ao direito das mulheres a uma maternidade livre e consciente, mas sim com políticas públicas, de diversa ordem, que as estimule a livremente querer ter filhos. Já se sabe que restringir o aborto não tem qualquer eficácia prática, apenas incentiva o aborto clandestino.
Num momento em que a legislação europeia em sede de IVG é razoavelmente homogénea e liberal e popularmente incontroversa (tirando os conhecidos e muito católicos exemplos da Polónia, de Malta e da Irlanda), para quê ressuscitar os velhos fantasmas da ortodoxia mais reacionária?
Uma coisa parece certa. Os direitos nunca estão definitivamente adquiridos. O retrocesso espreita sempre...
27 janeiro 2014
A realidade ilusória e a verdadeira realidade
E
por falar em realidade nova, a ministra das Finanças disse que não podia haver
recuperação no sentido que muitas pessoas estavam a pensar, isto é, no sentido
de os portugueses que foram afectados pelas tais medidas de austeridade (e
foram muitos e muitos), recuperarem o que perderam, porque agora havia uma
realidade nova que não tinha a ver com o passado. No passado vivemos em ilusão,
disse.
Ora,
a realidade nova é a que foi criada com a política de cortes nos vencimentos e
salários, nas pensões e subsídios, na facilitação dos despedimentos, na
dispensa de funcionários públicos, no aumento das horas de trabalho não pagas,
na substancial diminuição do custo das horas extraordinárias, na diminuição das
férias, na redução de direitos por doença, nas restrições ao acesso à saúde, ao
ensino e à cultura, etc.
Este
elenco de consequências diz-nos bem quais foram os sectores da população
portuguesa afectados. Será que a tal ilusão de que se fala era o nível de vida
alcançado por esses estratos populacionais? A ilusão em que se viveu até aqui
deve ser imputada, fundamentalmente, às vantagens obtidas com o Estado Social?
Parece que sim.
E
será que o programa para essa transmutação da realidade, implicando esse
abaixamento de nível para os referidos estratos da população portuguesa foi claramente
submetido ao eleitorado, aquando das eleições? Parece que não. No entanto, esse
pareceria ser um ponto fulcral para o cumprimento dos protocolos democráticos,
para a legitimidade do exercício do poder e para a tal transparência que se
deseja.
Ou
será que, por suposta vivência ilusória, essa fatia substancial do eleitorado
não estava em condições de perceber, segundo os candidatos ao poder e seus
apoiantes mais esclarecidos, o tratamento que lhes devia ser infligido para se
criar a verdadeira realidade?
Corporativismo(s)
O Presidente do STJ disse ao "Expresso" que "há uma dissemetria demasiado intensa entre a realidade e a perceção que a comunicação social tem da Justiça". O que foi ele dizer!... O editorialista anónimo do "Público" traduziu imediatamente aquela frase: "O problema não está na Justiça, mas nos jornalistas."
Ora, como é sabido, todo e qualquer ataque aos jornalistas em geral é um ataque a cada jornalista em particular, como um ataque a um jornalista em particular é um ataque a toda a classe.
E daí que o editorialista anónimo do "Público" tenha sentido legitimidade para lavar a honra de todos os jornalistas. E assim, citando estudos com alguns anos, mas a que chama "recentes", e invocando o insuspeito Daniel Proença de Carvalho, autoridade suprema (e desinteressada) no assunto, o editorialista anónimo arrasa a "Justiça". Admite porém algumas melhorias recentes, mas logo passa ao ataque contra os "agentes do setor" [sic]: hoje há quatro vezes mais juízes e magistrados do MP do que em 1974 e cada magistrado tem menos 20% de processos do que tinha então, mas as pendências duplicaram... E depois vêm os exemplos virtuosos (talvez inesperados): a Suécia, a Espanha, a Eslováquia... Todos eles com menos tribunais e com maior celeridade processual... Para o editorialista anónimo do "Público", que não cita as suas fontes estatísticas, o problema está nos "agentes do setor", sobretudo daqueles que ousam dizer que a perceção da comunicação social está algo desfocada...
A honra de todos e de cada um dos jornalistas ficou lavada depois do enxovalho sofrido.
(Será que a maioria dos jornalistas se revê neste tipo de atitude?)
26 janeiro 2014
A nova realidade e as palavras
Como disse a ministra das Finanças, temos agora uma nova realidade que não tem nada a
ver com o que existia antes. O que existia antes é o passado de uma ilusão, para tomar de empréstimo o título de um
livro de François Furet. Ora, para encararmos as coisas como deve ser, para apreendermos o que
realmente se tem passado, temos de começar pela linguagem, porque é por aí que
tudo começa sempre. No princípio era o Verbo
e é ao Verbo que temos de regressar. Por isso, vou reproduzir aqui um
excerto de Hélia Correia do seu excelente ensaio “Com respeito às palavras”,
publicado no suplemento “Ípsilon”, do jornal Público do passado dia 17 de Janeiro, cujo lema podia ser o desta
frase desse ensaio: “(…) se aplicarmos ao hoje o alfabeto que aplicámos ao
“ontem”, nada lemos”.
Vejamos:
Porque usam a palavra
“austeridade”?
(…) Se há uma
austeridade que castiga, é porque andamos na dissipação. Pressupõe-se que nós
baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade não há austeridade
aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto
por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E
imposto, no sentido também da inocência. Estamos a pagar o quê?, porquê? Em que
momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos
uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar
ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia
alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos
seus pais? (…)
Mas, porque eu ando de
transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o
cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que
não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto o gasto vil, onde
se oculta? Não, não nos pedem a austeridade. Eles exigem a pobreza e as suas
consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de
desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com
empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs?
(…)
Uma palavra envenenada
estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia” (…)
Diz-se: o eleitor votou
em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar
pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem
que “não vale a pena” – quando os factos lhe dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistam em louvá-la.
Se a olharmos sem a
ilusão, veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o processo,
ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A
palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos.
Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um
exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste
assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O
sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão
vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superiordade da
República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento
temporal vicia. (…)
No reino da praxe
A
minha geração quis acabar com a praxe, porque era medieval e caduca. Já o era
no tempo de Eça de Queirós, que, num texto notável – «Santo Antero» - , depois inserto nas Notas Contemporâneas, se referia ao “praxismo
poeirento” de Coimbra. Foi uma das nossas ilusões, termos pensado que tínhamos
enterrado a praxe.
Afinal,
ela voltou, como voltaram tantas outras coisa abomináveis, que pensávamos que
tinham sido proscritas para sempre (ou para me exprimir de outro modo, muito em
sintonia com a linguagem dialéctica da época, que tinham sido superadas). Não existe um para sempre.
Hoje
sabemos que a História, para além de não ter uma teleologia, não segue uma linha em progressão contínua. A praxe não
só voltou, como se generalizou a todo o
país, incluindo a capital, onde os espectáculos praxísticos, no seu cortejo
macabro de capas pretas e actos públicos
de humilhação de uns tantos caloiros por meia dúzia de imbecis que passam por doutores, se incrustam nas ruas mais movimentadas
de Lisboa. No recanto mais obscuro onde haja um estabelecimento de ensino
baptizado de universidade, a praxe arvora a sua grande colher de pau, como um
pendão com direito a território. Ou seja, os valores caducos e ultramontanos da
praxe, com os seus signos macaqueados do praxismo coimbrão, estenderam-se a todo
o país académico.
Mais
grave do que isso: os desvios malsãos, sado-masoquistas, de dominação e de prepotência,
assentando em personalidades patológicas, que a velha praxe já tinha tendência
para fomentar, converteram-se no cânone reinante. Motivo para grande preocupação
e para se encarar a sério o problema.
As
imagens que a televisão tem transmitido de certos cerimoniais de praxe, a
propósito do que aconteceu na praia do Meco e que ainda está por apurar, não
são só revoltantes; causam agonia, aquele sentimento indefinível da repulsa
mais funda e do enjoo insuportável perante a abjecção e o aviltamento. Fazem
lembrar o Saló de Pier Paolo
Pasolini.
PS
– A ser verdade a existência de associações para praticarem esses actos
abomináveis da praxe, regendo-se pelo secretismo, o silêncio das vítimas e a
vingança sobre os que faltam a esse dever, estamos perante associações
criminosas, que devem ser investigadas como tal.
24 janeiro 2014
Obama, versão negra
Obama tanto veste de branco como de negro. Geralmente de branco, pois esse é o traje que lhe dá respeitabilidade interna. É com esse traje que debita com firmeza sobre a luta contra o terrorismo e as vantagens imprescindíveis da espionagem universal sobre as comunicações entre cidadãos, mesmo que insuspeitos (a verdade é que para o governo americano não há cidadãos insuspeitos, nem fora nem dentro de muros).
Há porém ocasiões em que Obama traja de negro. São raras, mas por vezes acontecem. Aconteceu há tempos quando comentou o assassinato de um delinquente negro jovem por um segurança, dizendo subliminarmente que ele, quando jovem, era parecido com ele. Aconteceu também há dias quando falou da necessidade alterar a política de drogas, acentuando o caráter terrivelmente discriminatório que ela envolve, sob a capa de defesa da saúde pública.
Disse ele: "Os miúdos da classe média não são detidos por fumar erva, os miúdos pobres são. Os miúdos afro-americanos e os miúdos latinos têm mais probabilidades de serem pobres e menos probabilidades de ter os recursos e o apoio para evitar sentenças excessivamente duras."
Nem mais! Um tiro em cheio no porta-aviões! Mas será que alguma coisa vai mudar? Alguém acredita nisso?
20 janeiro 2014
Uma questão de princípios
O recibo do vencimento
do primeiro mês do ano deu-nos a medida do rombo (atenção: digo “rombo”) no orçamento
de cada um de nós. A diferença para o último mês do ano transacto, segundo as
minhas contas, corresponde à anulação do subsídio de férias e ultrapassa-o, diferença
que acresce, evidentemente, a outros cortes que já vigoravam no passado.
Portanto, o subsídio de férias que foi reposto por força do “chumbo” do
Tribunal Constitucional, foi novamente surripiado com os novos cortes. Foi como
se esse “chumbo” não tivesse produzido qualquer efeito. Pior ainda: avançou-se
um pouco mais na escalada dos cortes. O subsídio de Natal, esse, também já
tinha sido comido pelo agravamento fiscal.
O governo já tinha
avisado que aos “chumbos” do Tribunal Constitucional iriam seguir-se medidas
mais gravosas. Para quem tivesse dúvidas, ficou a saber-se que essas medidas
mais gravosas iriam recair exactamente sobre os mesmos a quem as anteriores, que
foram “chumbadas”, eram destinadas: funcionários públicos e reformados. O mesmo
aconteceu com o “chumbo” da chamada “lei da convergência de sectores”.
Conclusão: se o
Tribunal Constitucional segue determinados princípios constitucionais, também o
governo não abdica dos seus.
19 janeiro 2014
O malfadado segredo de justiça
Para
falar com franqueza, já quase que abomino falar do “segredo de justiça”. Nas
minhas andanças por colóquios e seminários cujo tema era a comunicação social e
a justiça, essa questão era quase sempre aflorada e elevada a questão magna das
relações entre uma e outra. Para dizer o que sinto: é uma questão que adquire
as proporções de uma doença neurótica.
Em
mais de 20 anos que levo nestas lides, nunca senti que houvesse um milímetro de
progresso sobre o assunto. Uma discussão vã. Um diálogo de surdos entre
jornalistas, magistrados e advogados. Enquanto persistir uma cultura que
postula que os jornalistas não têm nada a ver com o segredo de justiça, pois a
sua missão é a de tornarem tudo transparente, enquanto os magistrados encarregados
da investigação criminal forem tidos como os exclusivos e quixotescos guardiães
do sigilo processual, enquanto, enfim, o segredo de justiça não servir para
mais nada senão para arma de arremesso, quando convém fazer saltar para as
páginas dos jornais uma notícia (in)oportuna
sobre um caso judicial, com muito escândalo, que suspeito hipócrita, da banda
de quem, porventura, lucra com a divulgação, não se vai a lado nenhum.
A
verdade é que sobremaneira me repugna este histerismo ou esta guerra de nervos à
volta do segredo de justiça. Não me parece que a solução esteja em reacções
extremadas, do tipo de se mobilizarem instrumentos de investigação que devem,
por definição, estar destinados para os crimes mais graves e, mesmo assim, com
ponderação muito minuciosa e escrupulosa dos interesses em conflito numa dada
situação concreta.
É
o caso das escutas telefónicas. É um meio investigatório manifestamente
desproporcionado em relação à magnitude do crime de violação do segredo de
justiça. Não se pode banalizar um meio tão intrusivo e tão oneroso para os
direitos fundamentais das pessoas.
Pendo
há muito tempo para uma solução próxima de algumas modalidades do contempt of court anglo-saxónico. O tribunal deveria, em certas
situações, de forma preventiva ou ex-post,
poder fazer uma injunção aos meios de comunicação social no sentido de não
publicarem notícias de certo teor ou estancarem a divulgação que tiverem
iniciado sobre certos processos, durante um certo lapso de tempo ou enquanto
vigorasse uma determinada fase processual. A violação dessa injunção é que
daria azo a procedimento criminal contra o prevaricador.
13 janeiro 2014
Cristiano Ronaldo para o Panteão, já!
Não é preciso explicar por quê.
11 janeiro 2014
Para o Panteão, já!
Esta ideia de os restos mortais de Eusébio irem
para o Panteão de imediato, sem se esperar pelo interregno de um ano, faz-me
lembrar aqueles clamores de católicos aquando da morte do papa João Paulo II: santo subito. O papa devia ser
proclamado santo, sem passar pelo processo normal, demorado, de canonização.
Com o Eusébio, o
processo é idêntico, ressalvadas as devidas e divinas proporções.
A troika motor de reformas
Eis o que disse o ministro Pires de Lima numa
entrevista ao jornal Público do
passado dia 9, a propósito dos compromissos com a troika:
Os
compromissos têm uma componente boa, e uma que condiciona a economia. A componente boa é a reformista, o facto de
termos um ambiente mais concorrencial, de termos executado ou estarmos a
executar algumas medidas que tornam o país menos burocrático. A troika tem tido
um papel positivo porque acelerou a dinâmica destas reformas.
Aqui está, preto no
branco, a identificação das elites dirigentes e, mais concretamente, do governo
com o programa da troika. Ideologicamente,
o governo sintonizou com as medidas da troika
e até as aplicou em excesso, aproveitando o ensejo para fazer uma reviravolta e
moldar o país segundo um programa ideológico que era o de certa inteligentzia da direita desde há muito tempo. Desse ponto de
vista, a crise foi uma benesse caída
do céu para inverter, de uma assentada, o
rumo do país e ajustar contas com o “25 de Abril”, forçando a revisão da
Constituição, mesmo sem o processo formal de revisão que ela própria prevê.
Desta forma, “soam a
falso” as declarações de certos governantes no sentido de se mostrarem
constrangidos com a presença da troika
e de começarem a avocar a glória de libertarem o país da sua tutela.
Uma outra nota da
entrevista, no respeitante ao orçamento para 2014.
Pires de Lima diz:
O
Orçamento para 2014 tem uma dose de sacrifícios muito grande, mas vai mais pelo
corte na despesa pública.
Ora, este corte na despesa pública é a expressão
burocrática em uso para significar o abate dos funcionários públicos e dos
reformados à dívida, segundo a estratégia política que tem vindo a ser seguida,
de parceria com a troika.
07 janeiro 2014
Como era Lourenço Marques
A propósito da morte de Eusébio, lembrei-me da Lourenço Marques dos anos 50, na qual vivi alguns anos.
Era uma cidade maravilhosa, para os brancos. Mau de obra barata, obediente, pessoal doméstico com fartura e a baixo preço. No centro viviam os brancos, geralmente em boas moradias, e levando vida desafogada, por vezes faustosa, em qualquer caso muito superior à da "metrópole". Os negros (ou seja, os pretos) viviam nos subúrbios, quase sempre em palhotas e só iam ao centro para trabalhar para os brancos. Podiam viajar nos machimbombos, mas no último banco (cinco lugares, se estivessem preenchidos com parceiros da mesma cor, já não entravam). Obviamente que não entravam nos cafés, nos restaurantes ou nos cinemas dos brancos, a não ser para trabalhar. Um único rapazinho negro frequentava o liceu Salazar naquele tempo. Quando um negro se portava mal (isto é, quando o seu grau de obediência ficava aquém do considerado exigível pelo branco), era ameaçado logo com uma queixa à "Administração", o que punha de imediato o negro a tremer. Com razão, uma passagem por esse serviço era suficientemente convincente para garantir a submissão para o resto da vida...
No "mato" (concelho de Magude), onde passei algumas férias, lembro-me do tratamento duro, muitas vezes cruel, dado a todos os trabalhadores. Recordo-me especialmente dos "contratados", que eram homens apanhados nas aldeias e obrigados a trabalhar à força nas explorações agrícolas dos brancos.
Particularmente humilhante e cruel era a "justiça" dos administradores coloniais no "mato". Eram de facto os funcionários coloniais (brancos, evidentemente) que administravam a justiça, e faziam-no muitas vezes com requintado sadismo (os castigos corporais eram a regra). De assinalar que a pena de prisão era acompanhada com uma "sova" todos os dias, pois se considerava que, se fosse apenas a privação da liberdade, o condenado a aceitaria de bom grado, comendo e bebendo à custa dos brancos e não fazendo nada...
Tudo isto eu vi, claramente visto!
O mais recente herói nacional
Só posso admitir como jocosa a proposta avançada por vários deputados no sentido de remeter o caixão de Eusébio para o Panteão... Eles estão certamente a gozar connosco, como aliás têm feito nos últimos anos...
Não me venham com o caso de Amália, por favor. Não se compare a habilidade de pontapear a bola com a criatividade artística... Amália foi uma artista do sentido pleno e autêntico do termo e encarnou como ninguém o mito nacional do fado!
A concretizar-se o propósito daqueles ilustres representantes do povo, deverá reservar-se desde já espaço para Cristiano Ronaldo, cujos feitos ameaçam ultrapassar os de Eusébio...
Mas não é de excluir que a maioria dos atuais residentes no Panteão requeiram a transferência para outras paragens...
06 janeiro 2014
Eusébio
Eusébio
é, sem dúvida, um símbolo nacional, ao mesmo título que Amália o foi, em campo
diverso. Porém, não se queira fazer dele o expoente máximo do génio nacional,
como se não houvesse mais nada a que nos agarrarmos. A sua fortuna deve-se, inquestionavelmente,
ao seu talento, mas teve nisso grande influência a modalidade em que se distinguiu,
merecendo os favores de grandes massas, e a centralidade mediática que o
chamado “desporto-rei” sempre obteve, quer em relação a qualquer outra
modalidade desportiva, quer em relação a qualquer sector da vida social, por
mais vital e proeminente que se configure, quer ainda em relação ao sistema de
representações simbólicas.
Há
mesmo nesta hipervalorização do talento futebolístico uma espécie de inversão
de valores, que leva a que se subalternizem e se ofusquem outros valores e
talentos que contribuem, de uma forma insofismável, para o progresso social, científico,
cultural e artístico de um país, de um povo e até da humanidade. Muitos dos
expoentes nessas áreas, para além do talento com que são dotados, são exemplos
de tenacidade invulgar, de esforço e de trabalho, e fazem das suas existências
holocausto a causas altruístas e humanitárias, sem que sejam devidamente recompensados e
reconhecidos no universo mediático-simbólico.
Ainda
há poucos dias, como lembrou Marcelo Rebelo de Sousa, faleceu Albino Aroso, um
homem que contribuiu surpreendentemente para a queda da mortalidade infantil em
Portugal, após o “25 de Abril” e para a divulgação do chamado «planeamento
familiar». No entanto, não mereceu uma palavra do presidente da República, nem
de qualquer outra entidade oficial, a não ser do Director-Geral da Saúde,
Francisco Georges, que me lembre.
É
certo que Eusébio, para além do talento futebolístico, tem um capital simbólico
invulgar, projectando o país para além fronteiras e, mesmo, a nível global, mas,
seja como for, há que relativizar as coisas e reconhecer-lhes o lugar próprio.
Post-Scriptum
– Louve-se em Eusébio, para além do já referido, a sua simpatia humana e o
facto de nunca ter mudado de clube e ter resistido (por imposição alheia?) a
alistar-se em clubes estrangeiros. Hoje, os jogadores, o amor à camisola que têm, é serem dos clubes e
dos países que lhes pagam melhor. Estão, quase todos, deslocalizados.
04 janeiro 2014
Carta a um vivaz comentador público
Carta
a um vivaz comentador público
Onde
se fala do Tribunal da Magna Carta e do princípio da confiança, tal como tem
sido invocado e como deveria ser entendido
Prezado
Senhor:
Li
o seu comentário na gazeta “Golpe de Vista” e tive logo vontade de lhe dirigir
a palavra, mas as festividades natalícias, com o alvoroço da parentela e
filharada a pôr a casa em constante agitação, se bem que com dominante de
alacridade, e depois a estrelouçada da passagem de ano, impediram-me de me
concentrar o suficiente para redigir umas breves linhas.
Vem
ao caso mais uma peripécia do Tribunal da Magna Carta. Vossa Mercê teve o
desassombro, que, aliás lhe é merecido apanágio, granjeado com o acerto e bom
senso que informam os seus comentários falados e escritos, de acertar em cheio
no alvo. Na verdade, aqueles juízes têm vindo a conferir à nossa jurisprudência
um acento deveras conservador e a degradar a qualidade dos seus arestos para um
nível nunca antes visto, como V.ª M. já tinha acentuado num dos seus
comentários anteriores.
Desta
feita, porém, os juízes foram mais longe, fulminando em bloco, sem uma única
quebra, a projectada lei de igualação dos privilegiados servidores públicos às
classes laboriosas do sector privado. Ora esta unanimidade, em que se bandearam
para o mesmo lado todos os juízes do Tribunal da Magna Carta, incluindo os que
era suposto afinarem pelo diapasão das reformas que os nossos governantes tão determinadamente
vêm implementando, só pode ter a explicação que V.ª M. acentuou – a de que os
juízes reagiram corporativamente, por um sentimento de orgulho ferido, já que parte
dos nossos governantes, incluindo o ministro-mor, e outras individualidades da
maioria da Câmara dos Eleitos, assim como vários ilustres cavalheiros, mui
doutos no que diz respeito aos articulados da Magna Carta, e altas
individualidades de organismos internacionais nossos aliados, têm vindo a
exprobar ao mencionado Tribunal a sua jurisprudência reactiva.
Desse
modo, quiseram os ditos juízes mostrar a sua independência – uma independência
perigosa, para além do carácter de rebeldia que a enforma, pois o Tribunal da
Magna Carta não existe para fazer obstrução, mas para dar suporte jurisprudencial
às reformas que o nosso abnegado governo quer levar por diante, isto, bem
entendido, dentro das variações de
sensibilidade dos respectivos juízes, mas sempre sem sair da particular visão com que se
pretende refundar o país.
Um
tribunal, a actuar desta maneira obstrucionista ou independentista, não é
tolerável em tempos revolucionários como estes. Os juízes deveriam capacitar-se
do novo espírito das mudanças que urge empreender, contra os absurdos
privilégios adquiridos por determinadas classes sociais, com destaque para os servidores
públicos e para a classe dos anciãos.
Ora,
o Tribunal da Magna Carta tem-se vindo a entrincheirar em princípios mui
dignos, como o da confiança, mas interpretando-os de maneira ardilosa. Com
efeito, o Tribunal tem invocado esse princípio em defesa de classes que acumularam
privilégios, como os referidos servidores públicos e os anciãos, ignorando
deliberadamente que são essas classes que devem ser abatidas, como vulgar despesa
que são, em nome de uma nova ordem mais justa. Por outro lado, ignora também o “excelso”
Tribunal que o verdadeiro princípio de confiança seria aquele cuja observância
desse à nossa elite dirigente suporte bastante para a sua patriótica missão.
Em
suma, meu prezado amigo, o Tribunal da Magna Carta invoca o princípio da confiança
apenas para defender o statu quo. É
uma instituição passadista, que não tem em conta as novas realidades do país; diria
mais, que se prevalece do seu independentismo e do espírito de corporação para
boicotar as reformas em curso. Foi um grave erro não se ter pensado, logo no
início, em substituir esta instituição do passado por um conselho de pessoas
arejadas, da absoluta confiança (esse,
sim, seria o entendimento mais actualizado do famoso princípio) de quem dirige
actualmente os destinos da nossa Pátria.
Queira
V.ª M. aceitar as saudações mais amistosas do seu
Indefectível
Admirador
Jonathan Swift
(1665-1745)