29 março 2016
Angola vista pela face da justiça
Em Angola é que a actuação
da justiça, no caso que agora conduziu à condenação de Luaty Beirão e
companheiros, parece pôr em causa não só a legitimidade democrática do poder judicial, como a legitimidade
democrática do governo.
A forma como foi
efectuada a prisão dos visados, o modo como decorreu o processo, as peripécias
do julgamento, em que avulta o incrível volte-face de uma acusação já de si
fantasmagórica e, finalmente, as condenações formuladas mostram, apesar de
todas as máscaras, o estado decadente da “democracia angolana”.
Boaventura e a justiça luso-brasileira
Boaventura Sousa
Santos, num artigo publicado no Público
do passado dia 26 de Março (sábado), descobriu “semelhanças inquietantes” entre
a operação “Lava Jato”, no Brasil, e o processo de José Sócrates. O que há de
inquietante, no artigo, é a descoberta dessas semelhanças. Talvez o
“Observatório da Justiça”, a que Boaventura preside, ofereça condições óptimas
de observação capazes de detectarem, ao microscópio, as “inquietantes
semelhanças” que ele descortina.
Boaventura adverte para
um facto grave: «A mobilização judicial-mediática do caso José Sócrates tem
sido de tal ordem que, se o réu não for definitivamente condenado pelos crimes
por que está indiciado, os portugueses não poderão deixar de pensar que o circo
montado à volta deste caso teve mais que ver com política do que com justiça. Em
meu entender, tal percepção, a concretizar-se, pode ser fatal para a
legitimidade democrática da justiça. E nesse caso os mais avisados terão
presente que, independentemente da culpabilidade que se venha a provar, alguma
relação deve haver entre o modo como o processo está a ser tratado e o facto de
o réu, quando primeiro-ministro, ter declarado logo no início do seu governo,
em 2005, que estava decidido a acabar com dois tipos de situação de privilégio
na sociedade portuguesa, a dos magistrados judiciais e a das farmácias.»
Ora, cá está! Por um
lado, a não ser o réu (terminologia
de Boaventura) definitivamente condenado, pode estar em causa a legitimidade
democrática da justiça (Da justiça ou do poder judicial?). Esta fatal
consequência já tem sido aventada por outros atentos observadores da actuação das
autoridades judiciárias neste caso, os quais já avisaram que, se a acusação não
vier a provar-se, terá de se repensar o estatuto dos magistrados, em especial no
que diz respeito à autonomia do Ministério Público. Por conseguinte, é caso
para os magistrados do Ministério Público e juízes envolvidos no caso medirem
bem a responsabilidade que têm às costas e fazerem tudo para que a acusação que
vier a ser formulada venha a ter êxito, culminando numa condenação definitiva do
visado, pois, de contrário, as consequências são de monta e atingirão o modelo
estatutário dos magistrados de ambas as magistraturas.
Mesmo nesse caso, porém
(isto é, independentemente da
culpabilidade que se venha a provar), há sempre a possibilidade de os mais avisados pensarem que alguma relação deve haver entre a forma
como o processo tem decorrido e o facto de o
réu ter-se proposto acabar com o privilégio dos magistrados judiciais.
Mais brilhante do que
isto não se podia ser.
28 março 2016
Pontos de vista sobre o terrorismo
«Não fora a guerra no
Iraque – dizem-nos – e estes tipos do Daesh não existiam, ou não tinham
expressão. É claro que o facto de a guerra ter sido decidida na sequência do 11
de Setembro de 2001, quando a Al-Queda derrubou as Torres Gémeas em Nova Iorque,
provocando uma matança de inocentes, nada significa para esta tese. Mas
admitamos que sim, que há uma relação direta entre isso e o terror. E mais:
entre a acção da Europa na Líbia e o terror; entre a nossa ação nas primaveras
árabes e o terror. Algumas consciências europeias adoram autofustigar-se, e
temos de fazer-lhes a vontade.
«Claro que esta tese
também não explica o terror do Boko Haram na Nigéria ou a matança jiadista na Costa
do Marfim, bem como os atentados do Bali e muitos outros. Mas tudo o que
atrapalha a teoria é colocado de lado. O interesse de se culpar Bush (independentemente
da culpa que ele tenha) é o centro da questão.»
Henrique Monteiro, “De
Quem É A Culpa Do Terror”, Expresso
de 25 de Março de 2016)
«Não vale a pena perder
muito tempo com a invasão do Iraque, uma das decisões mais absurdas e graves da
história recente e que, para afastar um ditador tonto, provocou o caos numa
região e abriu espaço a uma nova onda de fundamentalismo sunita, de que o Estado
Islâmico é o exemplo máximo. Temos agora, e pela primeira vez, pela frente um
novo terrorismo, com controlo territorial extenso, estruturas administrativas e
fiscais, mecanismos de recrutamento de fanáticos e exportação contínua de
terroristas prontos a lançar o caos em qualquer cidade europeia.
(...)
O caso da Líbia é gravíssimo porque fica aqui à porta e porque foi criado pela precipitação e pela fuga europeia. Precipitação causada pela França e pelo Reino Unido, que apostaram tudo na queda de Kadafi e na salvação dos seus poços de petróleo sem terem a mínima ideiaa do que iam fazer a seguir. E fuga, porque depois da "vitória, deixaram o país sem rei nem roque, sabendo que a Líbia nunca teve unidade geográfica ou tribal desde o tempo dos romanos.»
(...)
O caso da Líbia é gravíssimo porque fica aqui à porta e porque foi criado pela precipitação e pela fuga europeia. Precipitação causada pela França e pelo Reino Unido, que apostaram tudo na queda de Kadafi e na salvação dos seus poços de petróleo sem terem a mínima ideiaa do que iam fazer a seguir. E fuga, porque depois da "vitória, deixaram o país sem rei nem roque, sabendo que a Líbia nunca teve unidade geográfica ou tribal desde o tempo dos romanos.»
Ricardo Costa, “Pensa
Que A Síria É Longe? Então Veja Onde Fica A Líbia”, Expresso de 25 de Março de 2016)
Penso que o único ponto
comum entre os dois pontos de vista é serem os seus autores ex-Directores do semanário Expresso. Ou estarei enganado?
22 março 2016
O mundo está mais perigoso
É um facto que o mundo
está mais perigoso.
Está a cumprir-se o
vaticínio de muitos que, em devido tempo, alertaram para o incremento de
perigosidade que poderia advir de aventuras completamente irresponsáveis como a
invasão do Iraque em 2003 – uma invasão fundada num embuste, no qual
pontificaram Georges W. Bush e Toni Blair. Esses senhores deviam responder em
tribunal internacional por essa aventura, que deu origem a uma guerra que ainda
persiste, destroçando completamente o país e lançando o seu povo num sofrimento
desmedido.
A guerra do Iraque
viria a ser um campo de treino fabuloso para a Al-Kaeda, tornando esta
organização terrorista muito mais aguerrida e experiente em técnicas múltiplas
de guerra e na qual se gerou a facção mais radical que deu origem ao Estado
Islâmico, enriquecido com muitos dos quadros das tropas de elite de Saddam
Hussein.
O terrorismo, de cariz
religioso fundamentalista, mas entranhando o ressentimento de povos árabes e
islâmicos contra potências ocidentais, por factos antigos e recentes de domínio
e partilha do Médio Oriente, não foi desencadeado pela guerra do Iraque, mas
esta contribuiu decisivamente para o agravar. O destroçamento da Líbia, por
força de uma desastrada intervenção em que o Ocidente teve também grandes responsabilidades
e a arrastada e devastadora guerra da Síria acabaram por completar o quadro sinistro
que desembocou no Estado Islâmico e no terrorismo cego que agora atinge também o
coração da Europa. Europa que, a braços com os seus graves problemas, acrescidos
de mais este, rejeita os foragidos destas guerras.
20 março 2016
A justiça brasileira na crise
Escrevi que o
Ministério Público brasileiro, ao pretender a prisão preventiva de Lula,
estaria a enveredar por um “protagonismo fútil”. Com o desenrolar dos
acontecimentos nas últimas horas, hesito. Não sei se o protagonismo visado não
assumirá, antes, uma forma de combate com ressonâncias políticas, no qual estão
envolvidos não só certos agentes do Ministério Público, como também elementos
da magistratura judicial.
O comportamento de
alguns desses elementos, como os juízes Catta Preta e Sérgio Moro deixam muitas
dúvidas quanto à lisura da sua actuação e à intencionalidade que a enforma. O
primeiro, tendo deferido uma providência cautelar de suspensão da nomeação de
Lula, costuma intervir no Facebook – uma rede social onde, pelos vistos, até
magistrados gostam de se enredar – escrevendo diatribes contra o governo, e o
segundo ultrapassou as suas competências, interceptando uma conversação
telefónica entre Lula e a presidente Dilma e divulgando-a publicamente, para
além de ter sido gravada já depois de terem sido interrompidas, por esse meso
juiz, as intercepções e gravações telefónicas.
Aliás, não concordo com
a ideia defendida por este último de que é necessário envolver a opinião
pública nas “batalhas” judiciais – ideia essa que provavelmente o terá levado a
fazer a referida divulgação pública da ilegítima intercepção da gravação
telefónica entre Lula e Dilma. E não acredito numa espécie de missão salvífica
da justiça, que tem como paradigma a “Operação Mãos Limpas”, de Itália.
Quanto a Lula, mantenho
a opinião já expendida.
17 março 2016
Lula
Tinha por Lula a
consideração que se tem por um homem que se transcendeu a si próprio e à sua
condição e que, tendo subido as escadas do poder, guindou milhares de
marginalizados socialmente ao patamar da dignidade. Mas agora não tenho mais
consideração por ele. Ninguém é perfeito, bem o sei. E Lula podia ter-se
deixado escorregar no plano inclinado das tentações com que o diabo do poder
costuma seduzir os que a ele ascendem. Porém, não era ainda um homem na lama.
O Ministério Público
brasileiro estava, quanto a mim, a exceder-se, ao reclamar a sua prisão
preventiva - um excesso que cheirava a protagonismo fútil. Lula podia bem
ter-se mantido de pé, ainda que tivesse prevaricado, e enfrentado com coragem o
repto dos que o queriam ver atrás das grades, mas preferiu fugir covardemente,
metendo-se atrás da muralha do poder, cujas escadas voltou a subir precipitada
e ilegitimamente.
Os seus pés de barro
estilhaçaram-se nessa subida e o mito Lula acabou por cair mesmo na lama.
15 março 2016
Um povo farto de corrupção
Haverá aí muita gente à esquerda a pensar que as multidões imensas que se manifestaram no Brasil não passam de ajuntamentos de refinados reacionários e fascitóides procurando derrubar um governo de esquerda, por ser de esquerda. Não me parece. Essas manifestações elegeram como inimigo a corrupção e as suas ramificações múltiplas no aparelho de estado brasileiro. O PT, se foi o alvo, é porque assumiu como sua a herança da pior tradição política brasileira: a corrupção. E o pior que o PT pode fazer (mas nisso parece apostado) é persistir no mesmo caminho, e tentar golpadas (como seria a nomeação de Lula para ministro...) para se proteger da mão da lei... Não é a esquerda que está a ser contestada. É o aparelho de estado corrupto, é a corrupção como forma de governar. Não se esqueça: corrupção e esquerda são incompatíveis! O povo brasileiro parece estar realmente farto. Em Portugal a corrupção também é motivo de repúdio. Mas depende de quem é o suspeito...
Hans Kung e a "eutanásia"
Falei há dias do
teólogo católico Hans Kung, a propósito da “eutanásia”, citando de cor uma sua
afirmação que tinha lido não sei em que
publicação. Pois agora Hans Kung, de 88 anos, veio-me ter à mão ou aos olhos,
noutra publicação e também a propósito do mesmo tema. No suplemento “Babelia” do El País, de sábado passado.
O artigo - “Una buena muerte” - fala deste teólogo, de
origem suíça, e, em particular, da sua obra mais recente, justamente intitulada
Uma Morte Feliz, que já se encontra editada
em Espanha pela editora Trotta, Madrid. Nessa obra, o teólogo volta a insistir
na ideia de que a eutanásia se não opõe ao cristianismo.
Constato, assim, o
rigor da informação que veiculei no meu texto anterior e a falta de unanimidade
em relação a esta questão mesmo no seio dos crentes católicos.
14 março 2016
Pessimismo antropológico
Por falar neste mundo-cão em que vamos vivendo e que me
levou há dias a recorrer à ficção alegórica de Camus e de José Saramago, a
propósito dos refugiados, lembrei-me de um outro texto, este de Eça de Queirós,
todo ele repassado de um pessimismo antropológico. Li-o por ocasião do Natal e
chama-se precisamente “O Natal” e vem inserto nas Cartas De Inglaterra. Não é a primeira nem a segunda vez que leio
este e outros textos desse volume, mas só desta vez reparei, com o espanto de
ter encontrado uma novidade absoluta, numa passagem que parece ter sido escrita
pelo nosso escritor sociólogo, como
lhe chamou Eduardo Lourenço, num momento de profundo desânimo relativamente à
esperança de perfectibilidade humana. Isto prova, mais uma vez, que os livros
são uma fonte inesgotável de descoberta.
Eis a passagem
referida:
«De facto, pode-se dizer
que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai – o macaco; excepto em
duas coisas temerosas – o sofrimento moral e o sofrimento social.
«Deus tem só uma medida
a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la num dilúvio; mas afogá-la toda,
sem repetir a fatal indulgência que o levou a poupar Noé; se não fosse o
egoísmo senil desse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para
continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos…»
Desejo sincero de
extinção da incorrigível raça humana? Ou chocante forma de exprimir uma
cruel decepção?
12 março 2016
A nova peste e a nova cegueira
Já me tem ocorrido que o problema
dos refugiados dava um romance alegórico à maneira de A Peste de Camus ou do Ensaio
Sobre A Cegueira, de José Saramago. Isto, sem querer reduzir esse grave
problema a termos romanescos.
Na verdade, o que tem vindo a
acontecer diariamente com milhares de pessoas a fugirem da guerra e a
pretenderem entrar no continente europeu faz lembrar que muitos países da União
Europeia encaram esse fenómeno como uma invasão da peste, fechando fronteiras, construindo
barreiras de arame farpado, atirando a polícia contra os portadores do “mal”,
isolando-os em campos de "concentração" e enjeitando o seu acolhimento. Ao
contrário da ficção de Camus, não é a solidariedade que desponta na sequência da
assunção plena da condição humana, pela consciencialização forte dos seus
limites e das suas fragilidades, mas precisamente o contrário: o
ensimesmamento, a indiferença ao sofrimento e à morte, o fechar a porta à
tragédia dos outros, o cruel abandono e mesmo a repulsão de quem pede ajuda,
porque esses são encarados como a peste
a que é preciso pôr cobro.
O que se está a passar com os
refugiados faz pensar no lado mais negro da humanidade, retratado em muitas
cenas de o Ensaio Sobre A Cegueira. A
par do egoísmo europeu, que abandona os que sofrem à sua sorte, que os enxota,
que os empurra para longe da vista, há essa enormidade da rede criminosa
montada para explorar de todas as formas seres humanos em fragilidade ou
totalmente indefesos.
Uma indústria sinistra tem florescido
à custa do sofrimento e da aflição de quem procura fugir dos horrores da
guerra, da devastação das suas cidades e aldeias, da ruína dos seus lares, do
destroçamento das suas famílias, da perseguição dos seus algozes, da investida
da morte. Os agentes dessa indústria, depois de esmifrarem até mais não poderem
essas pessoas em fuga, carregam-nas em magotes, acima da lotação admissível,
como gado empilhado, em frágeis botes ou em escalavradas embarcações, que se
afundam no oceano e, quando não se afundam, grande parte desses forçados
viajantes não chegam ao destino, morrendo por asfixia, como já aconteceu muitas vezes, nos porões onde foram
trancados.
O mesmo destino tiveram outros quando
puseram o pé em terra firme, sufocando em camiões ou carrinhas de caixa fechada,
onde eram amontoados como fardos. Muitos metem-se ao mar com pseudo-coletes
salva-vidas, falsificados em indústrias da Turquia. Crianças desaparecem às
dezenas de milhar para serem submetidas, segundo se supõe, a escravidão laboral
e sexual.
Enfim, o que é que tudo isto faz
ecoar de sinistro no nosso imaginário de pós-guerra, alimentado por tanto cinema,
tanta literatura, tanta narração histórica do que há de mais abjecto na
natureza humana?
Precisávamos do talento de um
José Saramago, para só nos atermos à esfera nacional e à área da criação
literária, para pintarmos, num outro “ensaio sobre a cegueira”, o que há de
execrável nestes novos episódios da nossa contemporaneidade.
10 março 2016
Proximidade, afetos, beijinhos
Tomou posse o novo PR, num espetáculo original como seria de esperar com o protagonista, o primeiro telepresidente eleito em todo o mundo. Cabe-lhe agora a tarefa urgente de unir todos os telespetadores portugueses, acabando pois com as discriminações a que estavam submetidos os que não viam a TVI. Vai ser fácil: afetividade não vai faltar. Daqui a 10 anos faremos o balanço.
08 março 2016
Boa viagem até à Quinta da Coelha
O PR cessante escreveu uma mensagem de despedida a "todos" os portugueses... Lembrou-se agora de todos os portugueses, mas na verdade durante os seus longos 10 anos em Belém foi sempre e apenas o presidente da direita portuguesa, um chefe sectário, que nomeou para o Conselho de Estado apenas os seus amigos (e alguns deles de um calibre...), que apoiou entusiasticamente a governação mais à direita de sempre, procurando arregimentar para esse projeto o PS, que tentou até onde era possível evitar o empossamento do governo PS com a esquerda... Nunca houve um PR tão sectário, tão mesquinho nas suas opções. Pelo que me concerne, rejeito a mensagem, não sou da fação dele. Desejo-lhe apenas uma boa e definitiva estadia na Quinta da Coelha.
06 março 2016
Lula no labirinto
Lava Jato bateu à porta de Lula anteontem de manhã cedo. Nada de espantar porque vários "íntimos" já tinham sido apanhados na rede... Num estado de direito ninguém está acima da lei, nem da ação das suas instituições legítimas. Lula começa mal, ao vitimizar-se, procurando deslegitimar a atividade do MP. Nada que não seja conhecido naquelas paragens (e nas nossas...). Mas não será assim que contribuirá para robustecer a democracia, nem sequer para salvar a credibilidade do seu PT...
03 março 2016
Os heróis do presidente
Cavaco Silva tem andado
a fazer, em fim de mandato, uma espécie de antologia, em acto, da sua
ideologia particular. Para isso, para além de declarações mais ou menos acintosas,
tem recorrido às condecorações de várias personalidades. O último desses actos
foi a condecoração de uma série de empresários. O mais curioso do acto foi a
forma como o ainda presidente da República tratou os condecorados. Chamou-lhes,
em tom épico, heróis da economia.
Cavaco Silva parece que
não é particularmente forte em Literatura, nem mesmo, ao que se chegou a dizer,
em relação ao nosso épico – Camões,
grande Camões… Porque se fosse versado nessa área, haveria de se lembrar de
um célebre poema de Bertolt Brecht (ah!, mas parece que era comunista…), que se
chama Perguntas de um operário leitor
e que começa assim:
“Quem construiu a Tebas
das sete portas?
Nos livros estão os
nomes de reis.
Foram os reis que
arrastaram os blocos de pedra?”
(…)
Discorrendo sobre "eutanásia"
Decidir sobre a sua própria morte
é uma faculdade que se inscreve no âmbito da autonomia individual. Cada qual é
que sabe se deve ou não pôr fim, voluntariamente, à sua vida. Pedir ajuda a
terceiros para o efeito já é mais complicado e tanto mais complexo quanto maior
ou menor for a intervenção requerida desses terceiros: se só uma ajuda nos
meios para o próprio pôr termo à existência (suicídio assistido); se a
ministração da morte por esses terceiros. Em qualquer dos casos, tal sucede para
proporcionar uma morte com dignidade ao solicitante da ajuda, em condições
extremas (doença incurável, normalmente associada a intenso sofrimento físico e
psíquico).
O problema surge, portanto,
quando há terceiros a intervir. Concebem-se, porém, situações, como as
referidas, em que se pode admitir que um terceiro, nomeadamente um
profissional, possa prestar ajuda, por qualquer das formas indicadas, ao
indivíduo que pede auxílio para morrer. A questão é que essas situações estejam
perfeita e exaustivamente regulamentadas na lei para garantir tanto a sua
excepcionalidade (situações devidamente tipificadas), como a genuinidade da
vontade de quem pede ajuda.
A questão não é fácil, mas isso não nos deve
impedir de encará-la seriamente, com realismo e sem preconceitos, nomeadamente
de ordem confessional, sobretudo quando se tem em vista a sua regulamentação
normativa, de forma a que sejam respeitadas as várias sensibilidades e concepções
de vida.
Ora, o facto de se consagrar em
lei a possibilidade de uma pessoa poder solicitar ajuda para morrer, em
determinadas circunstâncias extremas, não implica o sacrifício de nenhuma
sensibilidade ética particular ou as concepções de vida de quem quer que
seja, visto que cada um continua a
poder ter as suas em plena liberdade de consciência
e a agir em consonância com elas.
Querer impor determinadas
concepções a outras pessoas, proibindo, como é o caso em análise, o recurso à
“eutanásia” (e eu confesso que não sou militante da causa), é que me parece
abusivo e enfermar de um resquício de velhas formas de dominação. A questão nem
sequer é unânime para os que professam uma fé religiosa. Ainda há pouco tempo
atrás li uma declaração do teólogo católico Hans Kung em que ele afirmava que
não punha de parte recorrer à eutanásia para evitar um sofrimento atroz,
provocado por doença incurável, pois, segundo ele, Deus não deixaria de aprovar
esse acto (não tenho bem a certeza dos termos exactos deste segmento final, mas
a ideia seria mais ou menos essa). Tenho pena de não ter recortado essa
declaração, eu que recorto tantos papéis, mas, na altura, não vi necessidade de
o fazer. Recorrendo à Internet, vi que o referido teólogo há muito tempo que
aborda essa problemática em livros onde tem exposto a evolução do seu
pensamento sobre o assunto.
A Constituição não consagra um direito
à morte, como escrevia há dias (Público de
01 do corrente) o meu colega e amigo Souto de Moura? Pois não, nem é preciso.
Por um lado, a Constituição consagra o princípio fundamental e estruturante da
dignidade humana e toda esta problemática tem a ver com ela. Por outro, não
existe nenhum direito absoluto, nem o direito à vida. Todos os direitos fundamentais
estão, na Constituição, num plano de horizontalidade e não de hierarquia, o que
implica, para além da existência de limites imanentes, a existência de limites
derivados da correlação de uns direitos com os outros.
Ainda sobre a eutanásia
Com este mesmo título José Souto de Moura publicou anteontem no "Público" um artigo contra a eutanásia onde produz algumas afirmações que me parecem merecer resposta, o que faço frontal e amigavelmente... Vou apenas referir-me à eutanásia voluntária, que é a que o manifesto publicitado propõe que seja despenalizada. Afirma Souto de Moura que se a decisão de morrer for do próprio estará legitimado o suicídio e a ajuda ao suicídio. E acrescenta: "...porque a vida da pessoa não é, para si mesma, a coisa de que, como tal, deva poder dispor. Ninguém começou a viver por obra sua." Discorda-se profundamente! Se, como disse A. Gedeão, ninguém foi ouvido no ato de que nasceu ("Fala do homem nascido"), isso não significa que a pessoa humana não tenha, em certas circunstâncias, uma palavra a dizer sobre o ato de morrer... Sem que tal signifique um irrestrito "direito ao suicídio", com que Souto de Moura nos tenta atormentar a consciência... Na verdade, a legalização da eutanásia voluntária (e a consequente "ajuda" de terceiros, se necessária) não se destina a abranger todas as situações em que o sujeito decida, por qualquer razão, morrer, mas sim e apenas aqueles casos restritíssimos em que a vida não só perdeu "qualidade" como se tornou meramente "vegetativa". É para esses casos que a vontade de morrer, antecipadamente afirmada pelo sujeito, deve relevar... A eutanásia deve pois assentar em requisitos subjetivos, mas também objetivos... Não vale a pena falar das consequências da eutanásia por decisão unilateral de outrem, fantasma que Souto de Moura agita, porque está de fora das intenções do manifesto. Ninguém quer dar uma injeção atrás da orelha aos velhinhos...
02 março 2016
O desconforto dum viajante da CP Conforto
Viajar na classe Conforto do comboio é uma aventura que
pode deitar por terra todos os nossos honestos desejos de conforto.
Venho de fazer uma
intervenção no CEJ sobre um tema chato: cúmulo jurídico de penas. Oxalá tenha
servido de bom proveito aos novos e futuros juízes. Depois da tensão da
parlenda, sobrevém a distensão gostosa, o passo lento pelas ruas, mesmo que o
frio, particularmente duro nesta sexta-feira, enregele a face e as mãos, e a
chuva nos vá fustigando a espaços. Mas é a pé que me apetece percorrer velhas
ruas lisboetas. Entro num alfarrabista e adquiro dois ou três volumes por baixo
preço, depois de vadiar pelas estantes e percorrer, à vol d’oiseau, os montes de livros empilhados numa mesa e oferecidos
para venda a pataco.
O meu prazer mora na Fábrica Cofee Roasters e é para lá que
dirijo os meus passos. Ambiente acolhedor de madeiras, desde o soalho às mesas.
Afundo-me num sofá e peço a uma das meninas do balcão que me prepare um café de
filtro a seu gosto. Um quarto de hora depois, ela apresenta-me um café da
Etiópia, servido no recipiente de vidro onde foi confeccionado.
Vou bebendo o café com
vagares de ocioso, enquanto folheio os livros adquiridos e leio apaixonadamente
alguns trechos. No comboio de regresso prolongarei este prazer da leitura, penso
eu, e eis que já me reclino no assento, antegozando o conforto do interior, em
contraste com o tempo invernoso do exterior.
Na estação do Oriente
entra uma leva de gente e o lugar ao lado do meu é ocupado por um sujeito forte
e alto, de óculos sem aros, que acomoda a extensa bagagem por cima dos assentos
de ambos os lados da carruagem. Depressa dispõe o estenderete do computador e
acessórios na mesinha instalada nas costas do assento da frente. O fio do rato
é agora a divisória entre o meu e o lugar dele. Começa a clicar e imagens e
textos desfilam pelo ecrã.
O sujeito digita um
número no telemóvel: «Está? Ora viva! Cá estou no comboio. Cheguei ontem à
noite ao aeroporto da Portela…» A voz irrompe agressivamente. O homem enumera
nomes, não sei se fala de um congresso.
Regressa ao clicar. De
novo digita um número no telemóvel. Agora parece falar com a mulher. Volta a
clicar e outra vez digita no telemóvel:«Buenas noches! Como vás tu, Manolo? Y
tua mujer? Estoy regressando ao Porto. Ya no podemos ir, el próximo domingo, a
Ferrol. Está un tiempo mui malo…» A voz adquire ressonâncias altíssonas, num
português espanholado que soa muito pior do que o do ex-primeiro-ministro
Sócrates a discursar no país vizinho.
Olho desolado a
paisagem desolada, através dos vidros onde a chuva embate, formando pequenos
riachos, o livro no regaço, os braços cruzados sobre o peito, como que em
atitude de protesto passivo. Retomo a
leitura, quando o sujeito recomeça a clicar, pois já conheço a espécie a que
pertence: a dos clicadores, nos
intervalos de telefaladores. É preciso aproveitar este pequeno espaço de
paz.
- Viva! Em Maio não
posso ir, pois encontrar-me-ei no Brasil. Sim, vou outra vez ao Brasil.
Leitura interrompida. Sensação
de estar preso com o meu bocado de tortura; nem sequer bebo a água com que a CP
me brindou num gesto de boas-vindas, pois tenho medo que me dê a vontade de
fazer chichi e é uma trapalhada pedir ao sujeito que me deixe sair. Era o que
ele merecia: que me levantasse tantas vezes, quantas as que ele me interrompe e
o obrigasse a fechar o computador, recolher o fio do rato, tirar a tralha de
cima da mesinha, para me deixar passar. Era mesmo isso, catano! No mínimo. Mas
lembro-me tarde. E, além disso… Bom… adiante! Vingo-me para dentro: Estes gajos
têm alguma coisa no bestunto? Alguma vez souberam o que é estar em sociedade ou
conhecem algum princípio de civismo? São analfabetos é o que é, analfabetos a fingirem
de ilustrados e lustrosos. Olhe! O senhor é um analfabeto frequentador da
classe Conforto da CP, está a ouvir, seu
imbecil? E agarro-o pelos colarinhos,
abano-o bem abanado na minha imaginação de raiva.
Estamos a chegar. Com
antecedência o sujeitinho (aliás, sujeitão) começa a recolher a bagagem e eu
vou a correr à casa-de-banho, sem ter bebido a água toda que a CP tão gentilmente
me ofereceu.
Síntese ideológica
Passos Coelho disse hoje (ouvi-o na rádio): "O que é bom para as empresas é bom para Portugal". É uma tradução/adaptação do célebre lema: "O que é bom para a General Motors é bom para a América" (ou para o mundo, já não sei bem, mas para os americanos é a mesma coisa). Aí está: em poucas palavras toda uma ideologia, toda uma visão do mundo (e do futuro que nos esperaria se alguma vez ele voltasse a governar)...