31 dezembro 2009

 

Quem sou eu?

Quem sou eu? o de hoje, vertiginoso, o de ontem, olvidado, o de amanhã, impreviisível?
Bustos Domecq (escritor inventado por Jorge Luís Borges e Bioy Casares)

 

Tony, sempre ele

Tony Blair é sempre notícia e sempre por más razões.
Agora a imprensa noticia que este homem, que anda de conferência e conferência pelo mundo fora, conferências pagas a peso de ouro, porque ele não brinca em serviço, tendo já ganho a quantia de 20 milhões de euros desde 2007, tem uma segurança pessoal que custa 6,5 milhões de euros por ano aos seus concidadãos. Ele recebe o cacau, os contribuintes pagam a factura da segurança, para que ele possa continuar a andar pelo mundo fora a ganhar dinheiro! Está bem imaginado...
É Tony, no seu melhor...

 

Afeganistão: mais danos colaterais

No Afeganistão a NATO continua metódica e insistentemente a matar civis "por engano".
A coisa é de tal forma grave que o próprio comandante americano, o homem que comanda todas as tropas que matam por engano, já está a chatear-se e emitiu novas ordens visando a "redução" do número de mortos civis. Vamos lá ver se as ordens são cumpridas. Ou se é mera AP (acção psicológica), como se dizia nos tempos das nossas guerras coloniais.

 

Artigo 11º, nº 2, b) do CPP

Como jurista, não tenho por seguro e adquirido que o preceito em referência seja aplicável às conversações em que intervenham o PR, o PAR e o PM, interceptadas fortuita e acidentalmente em processo que contra eles não é dirigido e em que não são o alvo da escuta.
Admitir-se que sim leva à hipótese anómala de coexistirem dois juízes de instrução no mesmo processo, eventualmente conflituando entre si.
Pior do que isso. Seria possivelmente o reconhecimento de um estatuto pessoal próprio (de privilégio), que ultrapassaria a protecção do cargo para abranger a própria pessoa do titular do cargo na sua globalidade.
A constitucionalidade daquele preceito só se salva se for o cargo (e a inerente dignidade), e não a pessoa, o objecto da protecção.
Doutra forma, a norma teria conotações berlusconianas, que certamente não foram desejadas pelo legislador, nem passariam o teste de constitucionalidade.

28 dezembro 2009

 

Lembrando um homem raro,isto é, um homem

Vejo, por uma crónica de Manuel António Pina, que faleceu Rui Polónio Sampaio. Também eu senti o mundo, à minha volta, estreitar-se angustiantemente com o desaparecimento deste homem, que foi um probo advogado e cidadão discretamente interventivo, exemplo raro de lhaneza e elegância moral. Também a mim ele me tocou de uma forma indelével, desde o momento em que o conheci e nos poucos momentos em que privei com ele (normalmente em circunstâncias profissionais, em intervalos ou finais de actos transformados em festa de convivência). Curiosamente, foi o Manuel António Pina quem mo apresentou, a pedido dele, por causa de um acto meu que lhe pareceu digno de elogio. Exemplo de uma tocante humildade, sendo eu quem deveria curvar-se perante a sua grandeza.
Mas o melhor será passar à crónica de Manuel António Pina, que diz tudo deste homem raro de uma forma incisiva, concisa e poeticamente iluminante:


RUI POLÓNIO SAMPAIO

Noutro tempo e noutro lugar que não os nossos, a morte de Rui Polónio Sampaio não passaria despercebida pois o desaparecimento de homens com a sua estatura moral deixa o país (o pais que sabe o que isso significa)se possível ainda mais pobre e mais doente. A informação chegou-me por Germano Silva que deu, por acaso, com um pequeno anúncio necrológico num jornal e me telefonou dizendo: “A sua morte não foi notícia porque ele era um mau exemplo, o exemplo de um homem íntegro”. Se os cabalistas têm razão e o peso moral do Mundo assenta sobre os ombros de alguns justos existindo no meio de nós sem que os reconheçamos e sem que eles próprios saibam de si, Rui Polónio Sampaio foi provavelmente um deles. Na Net, habitualmente tão prolífica, a sua existência resume-se a duas ou três entradas acerca da sua passagem pela UEDS (União da Esquerda para a Democracia Socialista) em finais dos anos 70 e à notícia de que traduziu uma peça de Molière. Pelos vistos, cumpriu discretamente a sua missão, tocando de forma indelével todos aqueles que, como eu, de si se aproximaram, e partiu como chegou: inteiro.

 

Nem tudo está podre no Reino da Dinamarca

Reflexões à porta de um novo ano ou de como felizmente se revela ultrapassado o famoso dito de Marcelo em «Hamlet», essa grande tragédia da autoria do maior génio que escreveu na nossa gloriosa língua: Something is rotten in the state of Denmark.


Países de todo o mundo estiveram recentemente reunidos, durante duas longas semanas, em conclave, no Reino da Dinamarca, com o pretexto de encontrarem soluções para o que se vem apelidando de «aquecimento global». Mudanças climáticas, por força do aumento geral da temperatura no orbe terráqueo, atribuído aos chamados «gases de estufa» (os gases que são lançados para a atmosfera, em consequência da acelerada industrialização da nossa era e que, segundo dizem, destroem a «camada de ozono», que nos protege da crua incidência dos raios solares) têm preocupado algumas mentes de indivíduos e organizações alarmistas. O futuro traçado por esses indivíduos e organizações, que se armam de uma amedrontadora prosápia científica, é apresentado com proporções verdadeiramente catastróficas: derretimento de gelos polares, aumento do nível dos mares, que invadiriam áreas populacionais, que seriam sorvidas na voragem, desaparecimento de certas espécies animais, por efeito da destruição dos seus habitats, desaparecimento, a prazo, do próprio homem, liquidação, em último termo, do nosso belo planeta. Medonho cenário, hein?
Apraz-me, contudo, registar que o conclave deixou tudo na mesma. Ainda bem, caros concidadãos do mundo inteiro. É que a visão aterrorizadora que os ditos indivíduos e organizações crismados de «ambientalistas» (outro termo novo para justificar uma causa sem nexo) nos dão do futuro não passa de mistificação e de lamentável embuste. Se não vejamos. Tivemos nestes últimos decénios um ligeiro aumento da temperatura, o que até é um bem, não um mal, dado que ninguém gosta de tiritar de frio. Que o digam os naturais do nosso reino, se não se sentem melhor com um pequeno acréscimo de calor, sobretudo no pino do inverno, em que há tanta pobre gente regelada, sem lenha nem fogões que a aqueça. E então que dizer de povos de reinos mais frios, onde se verifica anualmente um grande morticínio provocado pelas baixas temperaturas!
O que é certo é que os tais indivíduos e organizações aproveitaram logo para extraírem consequências terríficas do designado “aquecimento global” e para poluírem as mentes de tanta gente incauta com as suas fantasmagorias, propalando que, a prazo, se nada for feito, a Terra (a «Mãe Terra», como eles dizem na sua linguagem sentimental) vai dar um estouro e nós com ele. Oh pobres visionários! Oh Cavaleiros do Apocalipse! Como se houvesse uma relação cientificamente provada entre estes fenómenos e as consequências catastróficas que eles visionam!
Mas nada nos garante com a certeza das verdades científicas que o chamado “aquecimento global” seja devido a qualquer acção do homem sobre a natureza. É ver como surgem agora tantos cientistas com dúvidas sobre as causas do fenómeno, se fenómeno é. A tal propósito, tem-se falado mesmo em manipulação de dados científicos por parte de muitos desses anunciadores do fim do mundo, que assim pretenderiam forçar o conseguimento dos seus objectivos.
De modo que, mesmo pondo de lado a congeminação de uma criminosa trapaça, como aconteceu recentemente noutros domínios em que se falsificaram dados da realidade para desencadear guerras extremamente mortíferas, a verdade é que existe uma impossibilidade de se obter uma certeza quanto à causa dos referidos «fenómenos». Ora, nessa ausência de certeza, devemos continuar a agir como até aqui, ou seja, devemos continuar na senda do radioso Progresso, porque este é o único bem que temos como certo. É ele que nos proporciona conforto, bem-estar material, riqueza e essa incontável soma de objectos de todas as espécies, que são produzidos, uns para satisfação de necessidades básicas, outros (a maior parte), para gáudio das nossas existências e sem os quais o nosso mundo não seria justo nem razoável. Se não fosse o Progresso, ainda não tínhamos saído da idade da pedra lascada e rasparíamos uma pedra na outra para obtermos uma chispa de lume, em vez de termos a portentosa iluminação que transforma a noite em dia nas nossas cidades.
Os Cavaleiros do Apocalipse do nosso tempo o que pretendem é inverter toda a caminhada do homem até aqui e meter-nos a todos, outra vez, dentro das cavernas que abrigaram os nossos antepassados mais remotos. Como está à vista de toda a gente, esses profetas da desgraça, que os tem havido em todos os tempos, não passam de uma minoria. Uma minoria algo ruidosa, é certo, mas que se alimenta de pesadelos mórbidos.
Ainda bem que, no conclave de Copenhague, ninguém lhes deu importância. Nem os soberanos dos grandes países desenvolvidos, acusados de lançarem para a atmosfera, com a sua indústria poluente, a maior quantidade de «gases de estufa»; nem os dos países em desenvolvimento, que também se acham, como é natural, no direito de emitirem os seus, para igualarem os países desenvolvidos; nem, finalmente, os dos países pobres, que se queixam, com razão, de os quererem marginalizar e evitar que eles próprios cheguem ao Progresso.
O conclave de Copenhague foi, assim, uma grande vitória do Progresso e um estrondoso fracasso dos Cavaleiros do Apocalipse. Nem se percebe bem a razão de esse conclave ter existido, a não ser por uma questão de as nações quererem afectar escrúpulo e condescendência com as dúvidas que têm sido lançadas sobre o dito «aquecimento global», que, no fundo, até ver, até tem trazido vantagens. Vantagens não só relativamente à necessidade de afugentar o enregelamento de muitos povos e nações, como também quanto às possibilidades que abre de novos empreendimentos lucrativos. Refiro-me às explorações dos miríficos «combustíveis fósseis», nomeadamente do chamado «ouro negro», prevendo-se que alguns deles possam vir a ser explorados à volta do Círculo Polar Ártico, em zonas que se prevê venham a ser acessíveis, a breve prazo, graças ao tão denegrido degelo. Vários povos já desenham nos mapas, com entusiasmo, essas inesperadas vias de acesso e já se digladiam, com um salutar espírito de concorrência, sobre a quem competirá explorá-las. Jurisconsultos de variegadas partes do mundo terão aqui, certamente, uma nova oportunidade para desenvolverem o fecundo ramo do direito internacional público (o ditoso ius gentium).
Quanto ao futuro, mesmo que fosse de levar a sério as teses dos apocalípticos bandos protestatários, o futuro … (digamo-lo sem medo) não existe, tal como não existe o passado. Só o presente nos toca. Só o presente nos interessa. Acaso nos devemos preocupar com o que já se foi ou com o longínquo amanhã?
E quem nos diz a nós que o inesgotável engenho humano não há-de inventar novos mundos, a tempo de as gerações futuras se porem a safo de qualquer hipotética catástrofe e mandarem, de dentro de um desses mundos recém-descobertos, uma fortíssima gargalhada à espectacular destruição do velho planeta?

Jonathan Swift
(1665 – 1745)

24 dezembro 2009

 

Mensagem de Natal (de António Gedeão)

Segundo a maioria dos jornais e dos comentadores o país político está de tal forma crispado que a própria Pátria poderá estar em perigo.
Nada melhor do que a poesia para serenar os ânimos.
Aí vai um poema de Natal como mensagem de paz (embora um pouco heterodoxa).

DIA DE NATAL

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem em fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos esfuziantes.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeus enluvados aos bons amigos que passam mais distantes.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra - louvado seja o Senhor - o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama, corre à cozinha em pijama.

Ah!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que masceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicmente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e de Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Himens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

21 dezembro 2009

 

Continuar Guantánamo fora de Guantánamo

Segundo parece, Obama, que quer a todo o custo cumprir a promessa de "fechar" Guantánamo no prazo de um ano a contar da posse, vai reabrir Guantánamo no Illinois, para um número restrito dos prisioneiros (os tais especiais que nunca poderão ser libertados, presumivelmente).
Assim se cumprirá a "promessa".
E com uma vantagem suplementar: é que a abertura da prisão naquela região empobrecida do Illinois será um factor de desenvolvimento económico, com criação de postos de trabalho...
Os americanos de tudo fazem dinheiro e a indústria penitenciária é das mais prósperas.
Guantánamo vai ter, pois, um final (e uma continuação) feliz.

18 dezembro 2009

 

A propósito das minorias na comunicação social

O problema das minorias na comunicação social apresenta ainda uma outra faceta: a de que a comunicação social no seu conjunto (incluindo, portanto a imprensa clássica) não tem posições mais avançadas do que qualquer outro sector, isto ao contrário do que muitos gostam de propalar. Até tem posições francamente conservadoras em áreas sensíveis, reproduzindo ideologias de dominação, segregação e discriminação.
Por outro lado, também não é nenhum contrapoder, como muitos gostam de afirmar. É mais um poder (o tal 4.º poder), que, numa grande parte dos casos, está ao lado dos poderes dominantes na sociedade.
E mais grave ainda: muitos dos seus profissionais acobertam-se frequentemente no direito à informação e à comunicação como direito fundamental intocável, quando defendem limitações ou espezinham direitos fundamentais de outros.

16 dezembro 2009

 

As minorias em notícia

Os dados de um estudo realizado pela Universidade de Coimbra sobre o tratamento das minorias étnicas na comunicação social são eloquentes e aterradores. Em síntese: as minorias são notícia pelos maus motivos, sobretudo pela prática de actos criminosos.
É assim que se insinua a xenofobia e o racismo na opinião pública: subtilmente.

 

Uma agressão em directo

É caso para dizer: se a agressão não foi encomendada, veio mesmo a calhar.
Numa altura em que estava acossado pelos tribunais, que a Igreja se distanciara, devido aos sucessivos escândalos sexuais e outros que tais, que o divórcio o punha numa situação difícil perante a opinião pública, que vinha baixando constantemente a sua admiração pelo "Cavaliere", esta agressão transmitida em directo por todos os canais televisivos (agressão praticada por alguém que estranhamente conseguiu facilmente furar a barreira da segurança) é mais do que uma bóia de salvação para Berlusconi, é uma oportunidade única de cavalgar até ao limite o populismo e forçar de vez a mudança do sistema político, com a aprovação de um estatuto específico (de impunidade) para o chefe de governo (para ele próprio), e com alterações profundas no sistema judiciário, como a governamentalização do MP, a limitação de poderes do CSM e a descaracterização do TC.
Conseguirá ele isso tudo? Já sabemos que ele não tem quaisquer escrúpulos nem sentimentos democráticos. Irá certamente até onde puder. O Estado de Direito está efectivamente em perigo em Itália.

15 dezembro 2009

 

A reincidência de Blair

A propósito da entrevista de Toni Blair, ocorre-me o seguinte: o derrube de Saddam Hussein, para o qual era necessário arranjar qualquer pretexto, ainda que falso, não foi só o derrube de Saddam Hussein; foi o desmantelamento de um país, a infernização do quotidiano de um povo, que já dura há mais de 6 anos, o acirramento de ódios religiosos e tribais, o terrorismo como «pão nosso de cada dia», milhares de mortos, estropiados e feridos, o êxodo e o exílio forçados de outros quantos milhares. Que mal fez este povo para merecer tanto infortúnio? Que extirpação de que mal justifica a criação de outro mal e, ainda por cima, maior do que o que se pretendia extirpar? O que é que pode fundamentar um tão hediondo crime, uma tamanha catástrofe humanitária?
Por isso, a entrevista de Blair, ao reiterar agora, que tudo isto está à vista, a necessidade de inventar um pretexto, ainda que falseando a realidade, para invadir o Iraque, é um crime acrescentado ao crime já cometido.

 

Um exemplo singular

Uma mulher como Aminatu Haidar, em greve da fome desde o passado dia 16 de Novembro, arrostando o poder ditatorial de Marrocos, com a cumplicidade (por conveniência diplomática ou por outra coisa qualquer que tenha o nome de hipocrisia), do poder de Hespanha, obstando conjugadamente ao seu regresso ao país de origem e ao seu lar, e que, em risco iminente de morte, encontra ainda força para dizer: “Os meus filhos podem viver sem mãe, mas não sem dignidade”, é indiscutivelmente um ser superior que, mais do que a nossa compaixão, merece a nossa solidariedade activa e o nosso mais alto apreço por tão irredutível vinculação ao que ainda resta de valores na nossa sociedade globalizada.

 

Algumas ideias jurídico-judiciárias de António Lobo Antunes

Lá para o fim de "O Arquipélago da Insónia", que acabei de ler há pouco, encontro uma referência a um casamento feito num notário! Estará Lobo Antunes convencido que são os notários os funcionários competentes para celebrar o casamento? Para que servirão então os conservadores do registo civil? Para fazer escrituras de contratos e testamentos? Será que Lobo Antunes, que conta no activo com dois casamentos, se casou alguma vez num cartório notarial?
Pegando agora em "Explicação dos Pássaros", livro já antigo e que agora comprei na "edição definitiva", deparo logo na 1ª página com a seguinte imagem (pesada): "reposteiros pesados como arrotos de juiz".
Algumas dúvidas se me suscitam. Ter-se-á baseado o escritor nalgum juiz concreto, ou num conjunto deles? Será a classe dos juízes especialmente (ou mais pesadamente) arrotadora? Distingue-se, portanto, o arroto de um juiz (pelo peso) dos arrotos dos demais mortais? Será que o arroto dos juízes se vai agravando (em peso) com a progressão na carreira? E as juízas, também arrotam? Mais vezes e mais forte do que as demais representantes do mesmo sexo (ou género, conforme queiram)?

14 dezembro 2009

 

Tony e a verdadeira razão da guerra

Numa jogada de antecipação relativamente ao inquérito parlamentar em que vai ser ouvido, Tony Blair explicou numa entrevista à BBC que se não fossem as armas de destruição maciça teria sido necessário "recorrer a outros argumentos" para justificar a invasão do Iraque. Duas "confissões" encerra esta declaração: primeira, que sabia que as armas não passavam de um "argumento"; segunda, que um argumento haveria sempre que encontrar para justificar um objectivo definido antecipadamente: derrubar Saddam Hussein. (Primeiro o objectivo, depois o "argumento").
Cinismo, falta de princípios, falta absoluta de ética, manipulação de factos (ou melhor, falsificação de factos), desprezo pela opinião pública do seu próprio país: a imagem crua de um dirigente político da actualidade (da "modernidade líquida", como lhe chama Bauman; aliás Blair é um típico político "líquido").
Esta foi uma entrevista, no palco da televisão, de que tanto gosta. Mas no parlamento ele não vai ser entrevistado, vai ser ouvido, interrogado, vai ser instado por deputados, e não por jornalistas, a justificar a guerra. Parece que ele não gosta tanto desse cenário, pois já disse querer ser ouvido em "privado".
Vamos ver se lhe fazem a vontade. E que "argumentos" vai tirar da cartola.

 

Estatísticas da violência doméstica

Alinhando com o provedor do "Público", gostaria de saber se o marido abatido a tiro pela esposa há dias em São Bartolomeu de Messines foi incluído nas estatísticas das vítimas mortais da "violência doméstica". E, caso negativo, qual o critério que preside a essas estatísticas.

 

Chumbo provisório

Não deixa de ser supreendente que a candidata negociada pelo bloco central para o TC tenha chumbado na (primeira) tentativa de eleição: 67 votos brancos e 10 nulos significa que houve deputados desse bloco que não respeitaram o "acordo".
Mas toda a gente ficou avisada: da próxima vez a candidata é a mesma! A eleição acabará por consumar-se. O chumbo foi meramente provisório.
Curioso é que alguns deputados tenham acentuado a "importância" do currículo da candidata, nomeadamente a sua passagem (longa) por diversas estruturas governamentais.
Pelos vistos, esses deputados pensam que não há melhor escola para a formação de juízes do que a passagem por departamentos governamentais.
Formação em quê: na cultura de independência ou na da fidelidade ao partido?

12 dezembro 2009

 

Uma proposta Orwelliana







O crime de enriquecimento ilícito continua a ser visto como uma espécie de toque de Midas que, uma vez em vigor, tornará a nossa alegada cleptocracia numa verdadeira e impoluta democracia de tipo nórdico. Vários partidos, por oportunismo político ou por ingenuidade militante, desdobram-se em propostas de lei que visam acabar de vez com o que levam à conta de lacunas punitivas, de inadmissíveis buracos na malha legislativa penal. Como se não fosse suposto o Direito penal, precisamente o Direito penal, arredar-se de qualquer vocação totalitária na abrangência do universo do ilícito. São propostas umas a seguir às outras, do PSD, do PC, enfim, do BE. Em geral, equivalem-se na sua rebeldia contra princípios constitucionais como o da presunção da inocência, da culpa ou mesmo da legalidade na vertente de determinação da matéria proibida. Mas – faça-se justiça –, há diferenças no plano da lealdade política para com o cidadão, que é o destinatário dessas propostas, se vierem a ser leis. Além de uma proposta celerada do PSD, que já comentei e agora em parte recuperada, na sua enunciação linguística, pelo Bloco de Esquerda, conheço as seguintes propostas:

Do Partido Comunista:


«Artigo 374.º-A
Enriquecimento ilícito

1 - Os cidadãos abrangidos pela obrigação de declaração de rendimentos e património prevista na Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 38/83, de 25 de Outubro e n.º 25/95, de 18 de Agosto que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património e rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriormente prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita, são punidos com pena de prisão até três anos e multa até 360 dias.
2 – O disposto no número anterior á aplicável a todos os cidadãos relativamente a quem se verifique, no âmbito de um procedimento tributário que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património e rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriormente prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita.
3 – O disposto no n.º 1 é ainda aplicável aos cidadãos cujas declarações efectuadas nos termos da lei revelem a obtenção, no decurso do exercício dos cargos a que as declarações se referem, de património e rendimentos anormalmente superiores aos que decorreriam das remunerações correspondentes aos cargos públicos e às actividades profissionais exercidas
4 – O património ou rendimentos cuja posse ou origem não haja sido justificada nos termos dos números anteriores, pode, em decisão judicial condenatória, ser apreendido e declarado perdido a favor do Estado.
5 – A Administração Fiscal comunica ao Ministério Público os indícios da existência do crime de enriquecimento injustificado de que tenha conhecimento no âmbito dos seus procedimentos de inspecção da situação dos contribuintes.»


Do Bloco de Esquerda:

“Artigo 386.º
(Enriquecimento ilícito)

1 – O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou adoptar modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 – Para efeitos do número anterior entende-se por património todo o activo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, acções ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito.
3 – Para efeitos do n.º 1 entende-se por modo de vida todos os gastos com bens de consumo ou com liberalidades realizados no país ou no estrangeiro.
4 – Para efeitos do n.º 1 entende-se por rendimento todos os rendimentos brutos constantes da declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar.
5 – A prova da desproporção manifesta que não resulte de outro meio de aquisição lícito, a que se refere o n.º 1, incumbe por inteiro ao Ministério Público, nos termos gerais do art. 283.º do Código de Processo Penal

Dizia, pois, que as propostas não se equivalem no plano da lealdade política porque, muito embora discorde de todas, ao menos à do Partido Comunista não se pode apontar o vício da hipocrisia político-legislativa. Nela, assume-se de modo claro a inversão do ónus da prova, fazendo-o recair, em parte, sobre os ombros da defesa: é a esta que cabe infirmar o elemento central do tipo de ilícito. Já a proposta do Bloco de Esquerda (como a do PSD, acima “linkada”), é mais do tipo “gato-escondido-com-o-rabo-de-fora”. Mais ainda do que a do PSD, pois chega a deixar expresso que “a prova da desproporção manifesta que não resulte de outro meio de aquisição lícito (sic.), a que se refere o n.º 1, incumbe por inteiro ao Ministério Público”. A mais da péssima técnica, trata-se de uma simples truque destinado a lançar areia para os olhos dos incautos. Pois uma de duas: ou se pretende efectivamente onerar o MP com a prova de um facto negativo (património ou modo de vida que não resultem de outro meio de aquisição lícito) e então o crime em causa será de prova incomparavelmente mais difícil do que a dos demais ilícitos já previstos (e, aliás, mais do que suficientes) e que pretendem responder ao mesmo fenómeno – caso em que, em virtude da sua inverificação prática, apenas se lança mais lenha para a fogueira do desprestígio das instituições (ou seja, um caso digno de integrar o que os autores apodam de Direito penal simbólico); ou então, como julgo ser o caso, espera-se que a dita prova do facto negativo se faça (como não pode deixar de ser) em termos meramente indiciários ou, pior ainda, se extraia a mesma da circunstância de a defesa não provar o facto positivo de da proveniência lícita do património. É o que a prática irremediavelmente provaria se uma tal proposta vingasse.

Mas talvez não seja ainda tempo para desesperos. Um deputado da República acabou de nos obsequiar com mais uma proposta. Orwelliana, é certo, mas em todo o caso uma proposta. Justifica assim a solução milagrosa para a maleita corruptiva que corrói a diminui da Nação: "Nós vivemos em sociedades de transição. De transição entre uma sociedade industrial e uma sociedade digital, de transição entre uma sociedade nacional e uma sociedade global. Nós vivemos cada vez mais numa sociedade onde o risco e o perigo imperam. Todos nós sentimos isso todos os dias. E por isso é preciso construir o crime de enriquecimento ilícito, com base numa figura jurídica que é a figura jurídica do crime de perigo. E com base nessa figura jurídica nós podemos construir um pré-crime, no sentido de acautelar as situações que não têm tido acautelamento jurídico." Portanto, a solução é simples e lisa. Sempre esteve à mão, mas como todas as coisas simples escapou à atenção dos simples mortais (foi assim com as leis da relatividade; será assim com a fusão a frio): um “crime de pré-crime”!

Vamos lá ver se percebo o Sr. deputado. Como vivemos numa sociedade de risco (desde o famoso trabalho de U. Beck que tal afirmação se tornou num chavão, muito embora não fossem os riscos que atormentam o Sr. deputado – os da corrupção – os estudados pelo sociólogo alemão), é preciso construir um crime que … não seja crime (pois, note-se, é um pré-crime!) e, assim, acaba-se com o crime que ao que parece não existe … pois de acordo com o Sr. deputado esse crime (o tal que vem depois do pré) corresponderá “situações que não têm tido acautelamento jurídico”. Desconsiderando a barafunda argumentativa, conclui-se que o pensamento do ilustre representante da República se nutre da obra ficcional de Orwell: daqui ao “crime-de-pensar” vai um passinho. E tudo, segundo o Sr. deputado, tão só lançando mão da elementar figura do crime de perigo (abstracto, presumo). Sucede que para contrariar o Sr. deputado, vejo-me na incómoda obrigação de informar que o crime de enriquecimento ilícito, em qualquer das formas já publicitadas e propostas, não merece a classificação, relativamente anódina, de crime de perigo abstracto. Trata-se, antes, como já em tempos referi a este propósito, de um crime de suspeita. Temos ainda, na nossa lei penal, um ou outro deste jaez que não mereceu a atenção do TC, como é o caso do crime de detenção de objecto de uso indiferenciado susceptível de ser usado como arma, quando o portador não justifique a detenção. Tais formas criminais estão amplamente estudadas noutras paragens (como em Itália, por ex.). A sua natureza resulta da confluência, num preceito penal, de dois planos – o processual e o substantivo –, em termos de a verificação do elemento presumido (no caso, o enriquecimento ilícito) resultar da omissão da justificação (no caso, da proveniência lícita do património) por banda da defesa.

Seja como for, tais figuras são incompatíveis com a nossa tradição constitucional, por razões que não vou repisar e que já mencionei em dois postais, acima "linkados". Apenas cito um conhecido liberal alemão que já em 1792 se dava conta de preocupações que parecem arredadas de uns quantos representantes da Nação. Questionava-se W. Von Humboldt (o filósofo, irmão do naturalista) sobre “até que ponto está obrigado o Estado, ou lhe é permitido, prevenir o delito antes que seja cometido.” E não obstante reconhecer que “dificilmente se encontrará outra tarefa que esteja eivada de propósitos tão humanitários”, concluía que a mesma “parece entranhar perigos para a liberdade”. Pois é, isso foi há dois séculos. E não consta que nessa altura a vida publica fosse um exemplo de ética e virtude.



11 dezembro 2009

 

Uma nova figura jurídica: o pré-crime

Involuntariamente, Fernando Negrão denunciou toda a aberração contida no enriquecimento ilícito: é um "pré-crime"!!!
Temos pois uma nova figura dogmática em direito penal, cujos contornos vão ser teorizados pelos deputados, sobretudo por economistas e engenheiros. Os resultados serão seguramente esmagadores.
Presentemente um frenesim percorre a AR: mostrar serviço no combate à corrupção. Os deputados atropelam-se em iniciativas, qual delas a mais ousada.
Ficamos à espera do produto legislativo.
E se amanhã algum deles (ou um amigo) for apanhado na engrenagem perversa do "pré-crime" não se queixem...

 

Oslo: mais guerra do que paz

Quem falou ontem em Oslo não foi o premiado da Paz, mas o presidente dos EUA. Mais parecia um discurso na ONU, anunciando e justificando a guerra.
A retórica argumentativa não foi inovadora, antes pelo contrário. Foi sempre em nome do bem, da "guerra justa" (contra os infiéis, contra os bárbaros, etc. e tal) que todos os impérios se impuseram e expandiram.
E o direito à auto-defesa foi mais uma vez mascarado de direito à guerra preventiva.
Foi o grande "senhor da guerra" que discursou em Oslo.
Como "explicou" Anatole France, num texto de "A ilha dos Pinguins" que há tempos aqui publiquei, os EUA fazem as guerras que considerarem precisas para manterem o seu domínio no mundo (é a chamada "segurança global").
É claro que hoje, por razões de legitimação, têm de ser mais subtis. É a grande diferença entre Obama e Bush: a subtileza.

10 dezembro 2009

 

Liberdade sexual e ignorância pura

Moradores escandalizados com a cena chamaram a polícia e os jovens respondem por atentado ao pudor.
Um casal foi apanhado a praticar sexo oral no interior de um carro, no Largo José Barbosa, a menos de cem metros da Avenida da República. A cena, que ocorreu em plena manhã, foi denunciada pelos moradores de uma das mais movimentadas artérias da cidade de Paredes que, "escandalizados", não hesitaram em chamar a Polícia Municipal. O caso foi comunicado ao Ministério Público e os dois vão responder pelo crime de atentado ao pudor.
Devia ter sido uma manhã de domingo como tantas outras, mas os actos de um casal alteraram a rotina dos moradores do Largo José Barbosa. No interior de um Fiat Uno cinzento estacionado entre as lojas Desgaste e Casa Gina, atrás da Academia de Música de Paredes, um rapaz e uma rapariga escandalizaram quem por ali passou entre as 10.00 e as 11.30. "Eles não se largavam. A rapariga estava sem camisola e o rapaz estava com as calças para baixo. Eu e outras pessoas passámos junto ao carro, mas eles não se importavam com ninguém", descreve um dos moradores. Conta que o casal esteve a "namorar" hora e meia, tempo durante o qual chegaram a ter sexo oral. "Até chamei a minha mulher para ver e da janela da minha casa assistia-se a tudo", afirma.
Quem foi passando na rua ficou "escandalizado" com o que viu, sobretudo por ainda ser de manhã, e chamaram a Polícia Municipal. A patrulha chegou ao local ainda a tempo de apanhar os jovens em flagrante delito. DN.10.12.2009

09 dezembro 2009

 

Mestre Gil

Do meu fim-de-semana cultural, em que entram sobretudo cinema (Capitalismo – Uma História de Amor de Michel Moore) e teatro, para além da indispensável leitura, destaco a peça de Gil Vicente Breve Sumário da História de Deus, actualmente no Teatro Nacional de S. João, no Porto.
O texto vicentino foi brilhantemente encenado por Nuno Carinhas, oferecendo-nos uma das mais interessantes transposições para o palco de uma peça de Mestre Gil muito pouco representada, talvez devido à sua temática de cariz fortemente bíblico e teológico. Em duas ou três penadas, Gil Vicente, com um notável espírito de síntese e de efeito dramático, dá-nos a sua história de Deus, desde a criação de Adão e da fatídica Eva (mas quem teve a culpa foi Lúcifer, que já estava preparado para, muito matreiramente, levá-la a cair e fazer-nos perder a todos), passando por patriarcas, reis e profetas salientes do Antigo Testamento, até à vinda do Messias, Deus encarnado que nos voltou a salvar com o seu sacrifício.
A verdade é que se passa ali uma boa hora e meia de saborosa fruição artística. A encenação, como disse, dá pleno esplendor à riqueza verbal e imagética de Gil Vicente, criando um espectáculo moderno, em que a questão central é, na verdade, a da condição humana, sem cair em exageros de purismo clássico ou excentrismos de pretensa actualização modernista.
A par do espectáculo, o Teatro Nacional de S. João tem levado a cabo várias iniciativas, particularmente debates, com pessoas de variadas origens culturais, sobre o tema «O que resta de Deus» e, na próxima segunda-feira, dia 14, vai proporcionar a quem quiser, numa maratona de 5 horas, a partir das 20,00, a leitura integral do Paraíso Perdido, de Milton. Conto lá estar.
Quanto a Mestre Gil, vejam só estes pequenos extractos: o dito certeiro, a máxima filosófica e até o espírito iconoclasta:

Onde força há perdemos direito
Que o fino pecado há-de ser de vontade
.
(fala de Lúcifer, a magicar a forma de seduzir Eva)


Este relógio não se destempera,
he muito certo e muito facundo.

(personagem Tempo)


O bem que é mudável não pode ser bem,
mas mal, pois he causa de tanta tristura.
(personagem Job)

Nos bens desta vida não está o perder
que assi como assi ca hão-de ficar…
(Job)

Julgai pelas obras, e não pela cor,
sereis bons juízes.
(Cristo)

E agora a iconoclastia de Gil Vicente, para não dizer a sua quase heresia:

Seja papa quem quiser,
seja rei quem tu quiseres;
que os impérios e poderes
a morte os ha de prover
e tirar a quem os deres.

(Cristo em diálogo com o Mundo)

 

As escutas, a privacidade e as figuras públicas

Ultimamente o tema da privacidade tem sido objecto de posições contrapostas, o que não admira, dado o melindre que a questão envolve. Há quem entenda que o teor das conversas em que interveio uma alta figura do Estado como interlocutora da pessoa alvo de uma escuta autorizada pelo juiz competente, no âmbito de um processo crime, deve ser trazido a público, considerada a sua relevância social ou política, mesmo que não se confirme a sua relevância criminal; e há os que, do outro lado, antepõem sistematicamente o direito à privacidade a essa pretensão. São conversas de teor privado, dizem, e ninguém tem o direito de conhecer o seu conteúdo.
O problema, porém, parece-me mal focado. É verdade que todas as pessoas gozam do direito à reserva da vida privada e familiar (art. 26.º da Constituição). Este direito, no entanto, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluto. Conflituando com outros direitos de igual valia, como, por exemplo, o direito à informação sobre a coisa pública, a solução não reside em dar-lhe primazia incondicional em relação a esses outros direitos, mas em estabelecer um regime de concordância prática em que, por vezes, o direito á privacidade tenha de ceder face à realização de outros direitos fundamentais, sem que, todavia, fique descaracterizado no seu núcleo impostergável. A medida da cedência tem de ser pautada por princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade, como decorre do art. 18.º da Constituição, de forma a que cada um dos direitos possa ter, na situação, o máximo de eficácia possível, de acordo com as regras da mútua compressão e da proibição do excesso. Na linguagem própria do Código Civil, «havendo colisão de direitos iguais da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes» (art. 335.º).
E já que falei no Código Civil, consagra este, na secção dos direitos da personalidade, art. 80.º: «1 – Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem; 2 – A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.» Daqui decorre que os indivíduos que são «figuras públicas» (os políticos, os membros de órgãos de soberania, os detentores de cargos públicos, etc.) têm uma extensão de protecção de reserva da sua vida privada menor do que a que é conferida a cidadãos anónimos. Escreveu Kundera em "A Insustentável Leveza do Ser": «Quem escolhe, por exemplo, uma carreira política, escolhe deliberadamente o público para seu juiz».
Ora, a menor extensão da reserva é justificada não só porque essas pessoas têm os olhos dos seus concidadãos permanentemente em cima de si, mas também e sobretudo porque os actos da sua vida privada são muitas vezes indesligáveis das funções públicas que exercem. Nessa medida, certos desses actos são inescapáveis ao julgamento da opinião pública, e o público tem o direito a ver esclarecidos muitos dos comportamentos dessas pessoas que decorrem, aparentemente, na esfera privada, mas que têm reflexo ou estão mesmo imbricadas nas funções públicas de que estão investidas.
Por conseguinte, não é pelo facto de serem privadas que as conversas em que interveio uma figura pública, ainda por cima dizendo-se que têm conteúdo politico relevante, não podem ser reveladas. Podem ser sonegadas ao conhecimento público por outras razões: por terem sido obtidas por meio de intercepção nas telecomunicações em condições ilícitas, estando feridas de nulidade; por dizerem respeito a um processo em segredo de justiça; por terem sido mandadas destruir por quaisquer das razões indicadas no n.º 6 do art. 188.º do Código de Processo Penal (CPP), havendo, ainda assim, quem defenda que, nestes casos, a destruição só seria possível depois de exercido o contraditório pelos outros intervenientes processuais.
De resto, a publicação de conversações mantidas no processo pode ser permitida, se se verificarem duas condições: se o processo já não estiver em segredo de justiça e se os intervenientes expressamente consentirem na publicação (n.º4 do art. 88.º do CPP), o que significa que a interdição de publicação de conversações telefónicas realizadas no âmbito dum processo não é absoluta.
Ora, não sendo absoluta, pode justificar-se a revelação em face do exercício de um direito que, em dado contexto, tenha prevalência sobre o direito à reserva da palavra ou da vida privada.
Acresce que a lei visa «a publicação por qualquer meio de conversações ou comunicações interceptadas no âmbito de um processo» e já não a explicitação do assunto sobre que versaram essas conversas ou comunicações, supostamente de interesse público.
Em todo o caso, o titular do cargo público pode e deve dar explicações sobre o teor de supostas conversas e comunicações que foram objecto de controvérsia pública e deveria, por imperativo moral e político, consentir na revelação delas no momento azado, desde que constantes do processo, sob pena de ficar a pairar a suspeita de que pretende furtar-se a qualquer coisa que lhe é desfavorável e que o poderia penalizar em termos da função que exerce.

08 dezembro 2009

 

Tribunal Constitucional: juízes/funcionários

Já se sabe que o TC tem um tipo de recrutamento próprio, que é recomendado pelas específicas funções do órgão.
Não se contesta esse tipo de recrutamento. Mas, como tribumal que é, o TC é composto por juízes. E a mais elementar e primordial característica de um juiz é a sua capacidade "natural" para decidir com independência.
A designação parlamentar de 10 dos 13 juízes do TC potencia evidentemente a intromissão de critérios de estratégia partidária nessa designação. Mas, apesar de tudo, até há poucos anos, tinha prevalecido a consciência, por parte do "bloco central", da necessidade de salvaguardar uma certa e salutar distância entre os nomeados e os nomeantes.
Parece que esse cuidado cessou há alguns anos. Desde logo, com a designação de políticos com a carreira temporariamente suspensa. Depois, e mais grave, com a escolha de juristas oriundos da administração pública, em lugares de confiança partidária.
É claro que não se contestam as qualificações jurídicas e pessoais dos recrutados nestas condições, nem se duvida do desejo de exercerem o cargo com independência.
O que gera desconfiança é o "método", que aliás "afunila" o próprio espectro ideológico do TC, reduzido ao bloco central. E é óbvio que esta lógica de "partilha do bolo" entre os seus componentes (que se alarga a outros órgãos constitucionais) nada tem de democrático.

02 dezembro 2009

 

A guerra do Afeganistão vista por Eça de Queiroz

Eça de Queiroz foi um observador arguto da guerra do Afeganistão, não a do Obama, mas a dos ingleses imperiais do sec. XIX, e sobre ela escreveu páginas implacáveis que talvez os nossos governantes, já que os estrangeiros não sabem português, tivessem interesse e proveito em ler e meditar. Aí vão elas (escritas em 1880):

"Os ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia,a verdade desse humorístico lugar comum do sec. XVIII: 'A História é uma velhota que se repete sem cessar'.
O Fado e a Providência, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.
Em 1847 os ingleses, "por uma Razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia..." e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes - invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em 1880.
No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, Messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os grandes nomes de "Pátria" e de "Religião", pregam a guerra santa: as tribos reunem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário conra o estrangeiro, o "homem vermelho", e em pouco tempo é tudo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia... E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravacado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.
Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se nalguma das cidades da fronteira, que ora é Ghasnat ora Kandahar: os afegãos correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o viso-rei da Índia, reclamando com furor "reforços, chá e açúcar"! (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia, gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa... Foi assim em 1847, assim é em 1880.
Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Kandahar ou Ghasnat;- e num momento, é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Kandahar está livre! Hurrah! Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.
No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela "fronteira científica", lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.
E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica...
Consoladora filosofia das guerras!
No entanto, a Inglaterra goza por algum tempo a "grande vitória do Afeganistão" - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A "política" portanto é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades dum grande império.
Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de verão..."
("Cartas de Inglaterra")

Foi assim em 1847, foi assim em 1880. É assim em 2009 (digo eu).
Alguém será capaz de traduzir estas páginas para Obama?

 

O enriquecimento ilícito volta a atacar

O caso "Face oculta" veio revigorar as preocupações gerais com a corrupção e condutas equiparáveis. Todos estão contra evidentemente. E todos se chegam à frente para mostrar serviço nesta cruzada. Uma cruzada em que todos os meios são lícitos. É assim nas cruzadas, sejam do Oriente, sejam do Ocidente. Aconteceu assim no combate às drogas. E no combate ao terrorismo. Agora, no combate à corrupção (embora mais moderadamente, porque os inimigos podem ser nossos amigos...).
É neste quadro que regressam as tentativas de criminalização do enriquecimento ilícito, propostas, mais uma vez, pelo BE e pelo PCP. Em que consiste o tipo legal proposto: simplesmente na obtenção de património ou de rendimentos superiores aos declarados para efeitos fiscais desde que "não resultem de nenhum meio de aquisição lícito" (BE), ou quando os suspeitos "não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origemn ilícita".
Ou seja, o crime consuma-se com a mera obtenção dos bens ou rendimentos "anormais", sejam eles ilícitos ou lícitos!!!
Caberá então o suspeito provar que a origem é lícita para não ser condenado. Tudo o que não for lícito é (automaticamente) ilícito!
Esta aberração jurídica viola o princípio da presunção de inocência (ao impor ao suspeito o ónus da prova da licitude da sua conduta) e viola eventualmente o princípio do "non bis in idem", caso a conduta que permitiu a aquisição ilícita tenha sido punida ou esteja a ser perseguida em processo próprio, e ainda o princípio da culpa, caso nada se prove quanto à proveniência dos bens ou rendimentos adquiridos.
Isto para além da dificuldade de densificar os conceitos de "valor manifestamente discrepante" ou "rendimentos anormalmente superiores", que suscitam dúvidas quanto ao respeito pelo princípio da legalidade.
É claro que aos promotores pouco interessam estas dificuldades jurídicas, que não serão mais do que "chinesices" dos juristas, obstáculos "formais" ao "combate necessário" e "imperativo nacional", obstáculos esses que devem ser removidos sem contemplações nem piedade.
E, uma vez legislado, se o for (e espera-se que haja na AR juristas preocupados com a Constituição), os promotores ficarão tranquilos: agora há lei; os tribunais que a cumpram. E se surgirem dificuldades, constitucionais ou meramente práticas, se os resultados não vierem a ser os esperados, a culpa é obviamente dos tribunais (da "justiça", como agora se diz). O que é preciso é mostrar serviço e encontrar culpados, mesmo que os problemas continuem...
Para terminar, diga-se que é argumento menor o da "recomendação" do art. 20º da Convenção da ONU contra a Corrupção, que "aconselha" a criminalização do enriqueimento ilícito. É que essa recomendação é feita "sem prejuízo da sua [do Estado parte] Constituição e dos princípios fundamentais do seu sistema jurídico".
Portanto, é o Estado parte que ajuíza da conveniência da criminalização. Aliás, trata-se de uma situação idêntica à da criminalização do consumo de estupefacientes, também "recomendada" pela Convenção de Viena de 1988 e que o Estado Português interpretou soberanamente como violando a Constituição.

01 dezembro 2009

 

As violações do segredo de justiça

A acreditar nas últimas notícias com cunho de veracidade, o segredo de justiça no processo chamado da “Face Oculta” já tinha sido quebrado antes de a coisa saltar para os jornais. Foi isso em Junho passado, tendo então os principais arguidos sido avisados de que estavam a ser alvo de escutas. Mudaram de telefones e de cartão, o que interrompeu o nexo das intercepções, mas estas foram reatadas pouco depois, porque, num caso ou noutro, a operação de substituição não foi bem urdida e a polícia veio a apanhar os novos números de telefone, para além de as vozes terem sido identificadas há muito.
Se a quebra do segredo de justiça tivesse tido êxito completo, provavelmente as investigações teriam sido prejudicadas (e não se sabe mesmo se, apesar disso, o não foram). Esta violação do segredo de justiça é que poderia ter sido verdadeiramente atentatória do Estado de direito democrático, porquanto conduzindo à frustração da realização da justiça. No entanto, a quebra do segredo só começou a ser denunciada com veemência depois de os jornais trazerem para a praça pública os nomes dos implicados e as acções em que estavam envolvidos, isto quando já era praticamente imparável o alastramento do conhecimento de certos actos do processo notificados a certos sujeitos e participantes processuais, com descrições mais ou menos pormenorizadas dos crimes indiciados.
Então, caiu o Carmo e a Trindade. Vieram políticos, juristas e arguidos clamar indignadamente contra as sistemáticas violações do segredo de justiça. Uma das acusações frequentes e já habitual é a da selectividade de tais violações. Há uma retórica vitimológica muito característica nessas denúncias, mas quase sempre, com isso, procura esconder-se o essencial, sem embargo de os julgamentos antecipados na praça pública, através dos meios de comunicação social, serem uma triste realidade de perniciosos efeitos.
Todavia, há um facto curioso a assinalar: muitos dos que falam indignadamente contra a sistematicidade e selectividade das violações do segredo de justiça foram protagonistas, enquanto legisladores, da mudança de paradigma mais radical em matéria de segredo de justiça, nas últimas alterações ao Código de Processo Penal: o estabelecimento do princípio-regra da publicidade do processo penal, sendo o segredo de justiça excepcional e devendo ser requerido ao juiz de instrução pelo arguido pelo assistente ou pelo ofendido, para defesa dos seus interesses, ou ser aplicado pelo Ministério Público, principalmente no interesse da investigação, mas carecendo da validação do juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas. Foi o caso deste processo. E ainda está na memória de toda a gente o caso do processo da «Operação Furacão», em que um juiz pretendeu aplicar as novas regras a esse processo, uma vez terminados os prazos da investigação, determinando a sua publicidade quando ainda estavam a correr diligências importantes que convinha recatar do público.

 

Acidente estatal

O acidente entre veículos do Estado na passada 6ª-feita tem de ser bem esclarecido, até porque os prejuízos pessoais e materais são avultados.
É geralmente sabido que os carros do Estado circulam, pelo menos muitas vezes, com velocidade que excede os limites estabelecidos, usando frequentemente da sirene como sinal de prioridade. Não se contesta que em alguns casos esse excesso poderá justificar-se. Mas há a suspeita de que se abusa. Por exemplo, não é fundamento para ultrapassar os limites um "atraso" para uma reunião, para uma cerimónia, etc. É caso para dizer: ponham-se mais cedo a caminho!
Esperemos que o susto por que passaram os ocupantes dos veículos intervenientes lhes faça ver, a eles e aos outros "interessados", os perigos das velocidades...

 

Os minaretes da Suíça e não só

São só quatro os minaretes das mesquitas em toda a Suíça, mas para a extrema-direita, que representou nas últimas eleições quase um terço do eleitorado, já bastam, e conseguiu que 57,5% dos suíços, em referendo para o efeito convocado, aprovasse a inscrição na própria Constituição de uma norma proibindo expressamente a construção de novos minaretes!!!
Importa salientar não só a intolerância que a decisão encerra, universalmente reconhecida pela sociedade civil (e por todas as confissões) e pelos órgãos de soberania (mas que agora ficam vergados ao peso da decisão "popular"), como também e talvez sobretudo que a Constituição, e as suas garantias fundamentais, está agora nas mãos do mais desenfreado populismo xenófobo. Basta convocar um referendo, o que não é demasiado difícil na Suíça, bastam 100.000 assinaturas de eleitores.
Esse populismo manifesta-se noutros domínios, como o penal, onde também por via do referendo têm vindo a ser introduzidas normas hiper-securitárias, incompatíveis com um direito penal democrático. É o caso do art. 123, a) da Constituição, aprovado por referendo de 8.2.2004, que prevê o internamento perpétuo de delinquentes sexuais e violentos, se forem qualificados como "extremamente perigosos e irrecuperáveis". E também do art. 123, b), que declara imprescritíveis o procedimento criminal e a pena por acto de ordem sexual ou pornográfica cometido contra criança impúbere (aprovado por referendo de 30.11.2008). É certamente ao abrigo desta norma que a extradição de Polanski pode vir a ser deferida.
Grão a grão a extrema-direita vai reescrevendo a Constituição suíça... e muito democraticamente, pois é o "povo" que vai ditando as normas...
O referendo, mecanismo de consulta popular, vem assim assumindo o papel de instrumento de perversão da democracia. Dá para pensar.

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