30 abril 2011

 

Um problema de "meritocracia aplicada"

Não vou aqui dizer que a Justiça está de saúde porque efectivamente não está. Também não me proponho afirmar que a maleita é de toda a Justiça, como efectivamente não é (se a acção executiva é um desastre - que, sem rebuço e tibiezas, deve ser endossado ao poder político - já por exemplo os recursos, nomeadamente os penais, são rápidos no panorama comparado). Hoje, qualquer declaração pública ou privada - num jornal, num blogue, num café, seja onde for - como a que a que acabei de fazer sobre o tempo dos recursos penais, que enalteça (e mesmo que acompanhada da proclamação de um ou outro facto constante de estudos internacionais abalizados) ou mesmo que tão são não diminua o sistema de justiça pátrio é imediatamente anatematizada.


Se é verdade que há razões de queixa objectivas, a expressão subjectiva da insatisfação popular (e não só, pois no desprestígio do sistema pontificam muitos responsáveis) pouca relação tem com aquelas. Tal insatisfação é desproporcionada e roça já o preconceituoso - e como alguém já disse (julgo que foi Einstein) "é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito". Quem, mais ou menos atento e de modo sereno acompanha os tortuosos rumos da vida pública e política lusa dos últimos anos sabe bem quais as razões que nos trouxeram até este doloroso e perigoso estado de desprestígio, de entre as quais não se contam, apenas ou primeiramente, os actos e omissões de quem dia a dia faz o melhor que pode e sabe nos tribunais. Julgo que não vale a pena perder tempo com tais muidezas, que além do mais são politicamente incorrectas.


Vem isto a propósito de mais uma daquelas ideias - para não designar a coisa de modo mais rústico - que não passa de uma articulação tosca de superficialidades mal reflectidas e menos ainda ponderadas acerca dos problemas da Justiça. Apresentada como "novidade" (uma espécie de fusão a frio da teoria da organização judiciária) é, no fim de contas, "velha e relha": "aplicar a meritocracia aos juízes"; "metodologia" que poderia ser propinada quer à "quantidade" de despachos quer à "qualidade" deles. Devo dizer, em primeiro lugar, que nunca me tinha ocorrido que a "meritocracia" se "aplicasse". Assim, em geral. Depois, fica a sensação que o ilustre autor da proposta dá de barato que os juízes únicos são os únicos (não só não são os únicos, como há muito são avaliados por critérios de mérito; bons ou maus, são melhores do que a nomeação partidária) a quem não foi ainda "aplicado" o eficaz remédio da "meritocracia". Supõe-se, pois, que são os botas-de-elástico da organização jurídico-política e judicial, o último e bafiento reduto da "mediocracia". Parece, assim, que a tal "meritocracia" já foi "aplicada" aos advogados (e, de facto, basta atentar no representante eleito dos mesmos, nomeadamente nas suas recentes performances mediático-jornaleiras) e, sobretudo, aos políticos (com resultados brilhantes, como se presume vir a ser certificado pelo FMI e agremiações afins).


Por outro lado, não explica bem o ilustre causídico proponente como "aplicar" a meritocracia à "quantidade" de despachos. Saberá, espero bem, que "despachar" não é bem "despachar": é decidir. E decidir não é o mesmo que encher chouriços. E o número de chouriços em Lisboa não é o mesmo que em Baião. E há sempre a possibilidade de um juiz menos aprumado do ponto de vista deontológico dar sistemática preferência aos chouriços mais fáceis de encher (a "complexidade" dos processos é coisa muito fluída e não falta quem a confunda com o número de folhas...). E muito mais que em matéria de enchidos se poderia aqui impugnar.


Vem depois a "qualidade" que, de acordo com o proponente, extrair-se-á, de modo simples e liso, da taxa de sucesso ("vencimento") dos recursos (sempre as taxas, sempre as percentagens...). Pormenores como o perfil deontológico do juiz, seu comportamento processual, relação com os demais intervenientes no processo e com os cidadãos, modo como administra o tribunal, e uma miríade de outros factores, dificilmente mensuráveis mas na verdade essenciais, parece que devem ficar pura e simplesmente dissolvidos na "taxa" ou na "percentagem" - ou melhor: no "vencimento" (tudo palavras - "meritocracia", "vencimento", etc. - que fazem de imediato soar as campainhas de qualquer cidadão moderno, progressista e desempoeirado). Sucede que também esse "vencimento" (palavra que julgo imprópria para designar o mérito de um juiz; nunca me julguei "vencedor" ou "vencido" em qualquer processo), visto desse jeito sincopado, é manipulável (atitudes "defensivas") e, a mais disso, se não for corrigido por outros critérios, é susceptível de levar a uma atitude "cinzenta" de pouca ou nenhuma ousadia em matéria de interpretação jurídica. O resultado é óbvio: "anquilosamento" jurisprudencial. Um aparente paradoxo que se desfaz quando se leve em consideração as leis e regulamentos que já hoje regem a avaliação do mérito dos juízes (sendo certo que tenha esta os defeitos que tiver - e tem-nos, certamente - não há por esse mundo fora sistemas perfeitos de avaliação, mesmo que assentes numa vagamente científica "meritologia aplicada") mandam que se leve em conta não apenas a citada "quantidade", como a muito apreciada "qualidade" (que não é o mesmo que "acerto", pois convinha não esquecer - e afloram uns "tiques" que apontam nesse sentido - o princípio da independência dos tribunais), critérios que sendo indubitavelmente relevantes, muito relevantes, só o são quando mediados por muitos outros (acima referidos), que precisamente servem para mitigar os efeitos deletérios de uma aplicação simplista daqueles dois ("quantidade" e "qualidade").


Toda esta requentada ideia - bem ao gosto da pós-moderna lógica actuarial que se pretende que impere onde não deve (Justiça) e que não impera onde deve (Finanças Públicas) - esconde, por rectas contas, um preconceito e assenta mais uma vez num pressuposto que convinha demonstrar: os juízes não trabalham, são mandriões (insisto, tão só a título de exemplo, que o apuramento das responsabilidades políticas pelo estado actual da acção executiva, aí sim com efeitos tremendos, trágicos, sobre a economia nacional, seria muito instrutivo). É a reedição da fábula das férias judiciais, que deu no que deu e significou o que hoje se sabe. Com uma diferença: aquela fábula só foi contada ao povo no dia em que o actual governo chegou ao poder...



29 abril 2011

 

Uma monarquia exibicionista e arrogante

Ao contrário da maioria dos meus compatriotas, não tenho especiais simpatias pela Inglaterra, agora denominada Reino Unido. Por várias razões, a começar pelo indisfarçável tique arrogante, ainda imperial, com que os naturais da ilha olham para a Europa, associado a um sentimento de "excepcionalidade", que nada justifica. É esse sentimento que os isola, os leva a manter anacronismos de toda a ordem, como os sistemas medievais de medição de distância, de pesagem, de capacidade, etc., e, no plano institucional, a conservação de um série de anacronismos, como a não separação entre o poder judicial e os demais. Mas o maior anacronismo, pelo menos o mais espectacular, é a instituição monárquica. Há várias monarquias por essa Europa fora e elas subsistem porque são discretas, se não mesmo invisíveis. É essa a sua forma de legitimação democrática. Mas em Inglaterra acontece o contrário: a monarquia legitima-se pelo exibicionismo arrogante dos seus eventos, casamentos, baptizados, funerais, tudo serve para exaltar a magnificência da instituição real, demonstrar a sua supremacia sobre os súbditos, ainda não cidadãos, o que constituía o fundamento do poder absoluto, mas ofende o princípio democrático. É certo que a instituição monárquica parece gozar ainda de um apoio maioritário entre a população autóctone. Creio até que, secretamente, a maioria dos ingleses estão convencidos de que nas veias da rainha corre mesmo sangue azul. Enfim, é lá com eles. Mas o que é mesmo insuportável é ver os três canais nacionais (porque não há mais) a prestar o mesmo tributo de vassalagem à monarquia inglesa. Ou será apenas uma questão de folclore, e o folclore da realeza é o mais sumptuoso, o mais deslumbrante para patego ver.
Eu, porém, proclamo a superioridade de Messi e dos seus pares e dos espectáculos que nos proporcionam, sobre os produtos e subprodutos reais e o seu folclore caduco e bafiento.

28 abril 2011

 

Uma mirífica proposta

Uma coisa que, graças a Deus, não vai faltando é o futebol.
Quase todos os dias vamos tendo espectáculos de futebol transmitidos pela televisão, para gáudio das gentes. Ainda assim, é uma boa maneira de fazer esquecer a “crise”, os graves problemas do quotidiano, os cortes salariais, o desemprego galopante, as restrições de toda a ordem, enfim, as duríssimas medidas de que toda a gente fala. O futebol é uma droga de grande efeito anestesiante. Como nos velhos tempos.
Foi por causa do interesse patriótico do futebol que, no tempo do governo socialista de Guterres, se construíram estádios faraónicos, que nos custaram imenso dinheiro (o tal dinheiro gasto ao desbarato e sem critério). Agora, temos estádios de luxo num país em pantanas, a braços com a sua enorme dívida, que os estádios contribuíram para aumentar. Ainda por cima, segundo se diz, uma grande parte desses estádios não gera receitas que os sustentem.
Mas, então, não seria de aproveitar, devidamente adaptada, aquela generosa ideia de Angela Merkel, a propósito das ilhas gregas? A Grécia vendia as ilhas (ou parte delas) para pagar a dívida. Por que não vendermos nós os estádios de futebol, como riqueza genuína, nossa, aos credores internacionais? Excelente ideia! Teríamos estádios dentro do Estado, como ilhas valiosas, que poderiam atrair jogos internacionais de qualidade, gerar receitas turísticas e mobilização de vários serviços públicos, como bombeiros, polícias e pessoal administrativo. E abatíamos a dívida de forma significativa.

 

Juízes pagos à peça

Não sei se a proposta será levada a sério, mas o simples facto de ter sido sugerida é inquietante.
Eu conto. Há aí um "movimento", que dá pelo nome de "Mais Sociedade", que junta notáveis pensantes alinhados ao neoliberalismo mais radical, e esse movimento propõe que a remuneração dos juízes e a progressão na carreira devem depender dos "resultados", ou seja, da quantidade e qualidade das suas decisões.
Não viria daí talvez grande mal ao mundo se não fosse divulgado que o autor da ideia (um advogado de nome Jorge Bleck, que integra as hostes do tal movimento) está a "colaborar" com o PSD na elaboração do programa eleitoral desse partido.
A ideia é demasiado peregrina para poder ter sucesso (não falando já da sua exequibilidade), mas merece alguns comentários.
É evidente desde logo a perspectiva funcionalista que lhe subjaz. O propósito de fazer dos juízes e dos magistrados em geral meros funcionários não é nova e o actual (e o anterior) governo navegaram nas mesmas águas. Mas agora dá-se mais um passo, ao introduzir-se a lógica dos "objectivos" e "resultados" (como com os gestores ou os jogadores de futebol), o que seria uma regressão institucional e cultural profunda, um verdadeiro atentado à independência dos tribunais e, por extensão, ao Estado de Direito. Os titulares dos órgãos de soberania não podem ser remunerados segundo aqueles critérios. Seria obviamente absurdo remunerar os deputados conforme os projectos de lei apresentados ou o número de intervenções feitas no plenário, ou os ministros segundo o número de portarias publicadas, ou o PR de acordo com o número (e a qualidade...) dos discursos, das mensagens à AR, ou dos vetos legislativos... Da mesma forma, os juízes não podem ser pagos à peça...
O frenesim neoliberal, que pode beneficiar de uma aceleração com as próximas eleições, coloca graves riscos de perversão democrática, sob a capa da promoção da "meritocracia".

 

Obama é americano

Afinal, Obama é americano. O próprio demonstrou o facto, através de certidão de narrativa completa do nascimento.
Falta-lhe ainda provar que é cristão, condição não escrita, mas indispensável para ser legitimamente presidente dos EUA. Não sei se conseguirá a correspondente certidão.
Mas o que importa é reter que a "América profunda" não se conformou ainda com um presidente mestiço, que, apesar dos esforços que faz para mostrar a sua fidelidade ao "sistema dos brancos", está sempre debaixo de fogo, sempre à defesa, sempre a ter que dar provas dessa fidelidade.
É a investida tenaz da "América" do preconceito, das "bruxas de Salem", a "América" segregacionista e racista, a "América" dos pregadores e da KKK, que renova por vezes as suas formas de expressão, chegando a promover encontros para tomar chá, mas inevitavelmente recai nas mais primárias manifestações de brutalidade, física ou verbal, como quando queima o Corão, ou mantém o presidente eleito permanentemente acossado com base nas calúnias mais vis...

 

Vitorino Magalhães Godinho

Há homens que são maiores que os países onde (por azar) nascem. Este é um deles.
(Quando me lembro que a grande referência cultural dos nossos dias nesta ditosa Pátria é o Prof. Martelo tenho vontade de rir e de chorar simultaneamente).

27 abril 2011

 

Vitorino Magalhães Godinho

Acabei de saber da morte de Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), numa altura em que me tenho lembrado com frequência das suas reflexões sobre a sociedade burguesa irrealizada do Portugal do século XIX e o drama nacional de então:

«Drama das goradas tentativas industrializadoras, da impossível industrialização da sua estrutura económica. Drama também da impossibilidade da sociedade burguesa, de uma cultura que não consegue a eficácia social» (A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa, Arcádia, 1971, p. 123).

26 abril 2011

 

Uma queixa simbólica e ineficaz

A queixa apresentada há duas semanas na PGR por alguns professores de prestígio contra as agências americanas de "rating", embora bem intencionada e bem fundamentada, não terá sido uma boa ideia.
É que é evidente que a investigação da actividade daquelas empresas de consultadoria exigiria a cooperação internacional e especialmente a do governo americano, o que é obviamente impensável.
A apresentação da queixa constitui-se como acto de protesto sem alvo político definido, e como acto puramente simbólico, sem consequências a nível judiciário.
O que sobrecarregará as "frustrações" pela "ineficácia" do sistema de justiça...

 

25 de Abril: sempre ou nunca mais?

É ocioso indagar se o 25 de Abril "valeu a pena". A liberdade vale sempre a pena (mesmo quando a alma é pequena). E ponto final.
Mas há por detrás daquela "dúvida" uma evidente desilusão pelo defraudamento das esperanças nascidas naquele dia já longínquo (o tal dia "inteiro inicial e limpo").
É que, contrariamente ao que diz um recente catedrático de Varsóvia, de nome João Carlos Espada, a democracia não é apenas um "sistema de regras que permite a discussão e a escolha livres". Isso temos nós (bem, verdadeiramente até nem isso, dada a flagrante desigualdade de acesso à palavra no debate público...); mas não chega para caracterizar uma democracia constitucional, que não é meramente procedimental. A democracia não existe seguramente sem direitos sociais, sem uma distribuição da riqueza que permita um padrão de bem-estar mínimo para todos os cidadãos.
E aí falta muito, e cada vez mais. No actual momento, vivemos uma ameaça sem precedentes contra todos os direitos sociais e económicos conquistados com o 25 de Abril e as próximas eleições podem abrir as portas a uma revisão constitucional que atinja o cerne esses direitos e, afinal, o próprio coração da Constituição.
Esperemos pela "palavra" do povo, deste povo que é o nosso, que somos nós, que ainda não se libertou do espectro do Zé Povinho, desconfiado, manhoso, pacóvio, por vezes desobediente, mas poucas vezes rebelde, no fundo suspeitoso do poder, mas, mais no fundo, temeroso e respeitador dos que o exercem, e com um pavor tremendo da mudança.

 

Trinta e sete anos depois

Trinta e sete anos sobre o “25 de Abril”. Uma enorme sombra paira sobre as grandes esperanças que então se abriram. Provavelmente nenhum daqueles que viveram esse acontecimento com a vibração de uma incontida alegria, que não era senão a materialização de um sonho de liberdade acalentado ao longo de décadas de repressão e de uma mudança radical de vida, imaginariam, então, que o País viesse a resvalar para o beco onde hoje se encontra e a encafuar-se de novo numa “apagada e vil tristeza”.
Temos liberdade, sim, pelo menos a liberdade de falarmos à vontade nas ruas e nos cafés sem termos os esbirros da Pide à perna, liberdade para votarmos periodicamente e, assim, teoricamente escolhermos os representantes que deveriam defender as nossas justas ambições, liberdade de pensamento e de expressão, de imprensa e de informação (cada vez mais condicionadas por interesses espúrios). Quanto ao mais (direitos sociais, económicos e culturais), quase tudo o que se conseguiu está em derrocada e em fase de reversão total. Estamos agora a caminhar ao invés e, em certos aspectos, a regressar ao statu quo ante.
Apesar de tudo, acho lamentável o que disse Otelo Saraiva de Carvalho: que se soubesse que iríamos chegar ao ponto a que chegamos, nunca se tinha empenhado no “25 de Abril”. É uma daquelas afirmações que definem a personalidade daquele que, nos tempos áureos da esperança, em que tudo era ainda novo e, de certa maneira, puro, foi o rosto da revolução. Depois, meteu-se em cavalarias que só o desacreditaram. Para dizer a verdade, eu nunca tive grande fé nele, sobretudo a partir do momento em que ele, impulsionado por alguns visionários, começou a achar que tinha um papel imprescindível a desempenhar. As suas proverbiais contradições voltaram a aparecer nas suas declarações recentes, ao sugerir que os militares, por força das suas actuais condições de vida, poderiam canalizar a sua revolta para uma nova saída dos quartéis. Mas adiante.
Dos discursos proferidos na cerimónia que o actual presidente da República resolveu empreender, fiquei sobretudo sensibilizado por uma ideia que foi, salvo erro, batida por Jorge Sampaio e Ramalho Eanes: a de que nós, cidadãos, também não cumprimos o papel que nos compete, na medida em que ou nos conformamos ou somos indiferentes, ou apenas barafustamos, sem contudo nada fazermos. E o nosso papel é fundamental na criação de uma sociedade civil forte, exigente, interventora, condicionadora da acção dos nossos chamados “representantes”, exercendo um poder crítico, questionando, pedindo contas, desenvolvendo formas de associativismo para defesa dos interesses colectivos.
O “25 de Abril” também se fez (ou fez-se sobretudo) para isso: para que fôssemos cidadãos de pleno direito, ou seja, “políticos” no verdadeiro sentido da palavra.

25 abril 2011

 

De antologia


Três textos reveladores de um bastonário elucubrante (o do próprio resume todo um programa).

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24 abril 2011

 

O mau exemplo


Saraiva, presidente da CIP, abespinhou-se por ter sido concedida tolerância de ponto aos funcionários públicos na quinta-feira santa. Diz ele que é um mau exemplo para os restantes trabalhadores que não são funcionários públicos. E que assim não pode ser, pois os líderes devem dar o exemplo, a começar por ele. Ora este é um mau exemplo, em tempos de crise. E dá muito mau aspecto aos senhores da troika, que estão cá em casa com o olho posto no nosso comportamento.
Aí está um cidadão (digamos, um líder) que sabe o que está a dizer. De facto, isto tem de acabar. Ainda não perceberam? Concebe-se que os funcionários públicos tenham meio feriado na 5.ª feira santa? E ainda por cima com os senhores da troika a verem esse desconchavo? É altura de mostrarmos que agora estamos mesmo dispostos a trabalhar, seja 5.ª feira santa, seja outro dia qualquer.
Eu concordo com o Sr. Saraiva, porque ele é um cidadão (um líder) preocupado com o nosso futuro e com o novo rumo que as coisas têm de tomar. E também com a figura que estamos a fazer diante de quem, vindo do estrangeiro, veio cá para nos ajudar, digamos, a sair da crise.

PS – Já depois de escrito este texto, que não consegui introduzir no blogue na 4.ª feira passada, outros “líderes” e outros moralistas do trabalho vieram arengar no mesmo sentido de Saraiva. É um facto que só os honra e que só os prestigia como cidadãos exemplares, preocupados com o tempo que perdem os nossos trabalhadores e os nossos funcionários públicos (sobretudo agora que têm de se habituar a trabalhar mais e por menos dinheiro) e a má impressão que causam a esses senhores da troika, tão assediados por jornalistas, como se fossem extraterrestres desembarcados em Lisboa.

 

O que aí vai


Dois autores muito distanciados no tempo, mas falando da crise actual. Um, Camilo Castelo Branco, não sabendo ainda muito bem o que se está congeminando nas «altas regiões»; outro, António Guerreiro, definindo já a derrocada.
Ora vejamos:
Chegam aqui os terríveis boatos do que aí vai nos bancos.
Esta gente ainda não sabe o que está fermentando nas altas regiões. Eu também não sei; mas, se não me engano, soou a hora de virem a lume todas as podridões modernas, como diz Guerra Junqueiro.
(Camilo Castelo Branco – Carta ao Visconde de Ouguela, publicada por Beatriz Berrini, JL – 12 a 15/01/2011).

Ora, hoje começamos a perceber os contornos de uma nova fase que já se iniciou: a classe média, a mais forte e expansiva, capaz de se alargar e conquistar cada vez mais espaço – a classe, em suma, que se reproduziu alimentando-se de tudo -, começa a declinar enquanto classe universal, imortal e infinitamente dúctil. Aquilo a que hoje chamamos “crise” é isto: a condição de fragilidade deste larguíssimo estrato intermédio, o fim do triunfo da classe média, cujo advento tinha sido o verdadeiro fim da História.
(António Guerreiro – Expresso – Actual, 16-04-2011)

12 abril 2011

 

Qual grandeza, qual quê?

Um fim-de-semana deprimente, em contraste com o sol e a temperatura estival, fora de época. Não só por causa do horizonte carregado que se anuncia com a vinda do FMI & Companhia, mas também pelo completo desatino que se apossou da política portuguesa. O Congresso de Matosinhos foi um pavor, a avaliar pelas poucas, mas significativas intervenções que ainda tive coragem para ouvir, dominando os acessos de enjoo que me iam tomando. Aquilo foi uma “remake” de outros congressos que ficaram na História pela grandiloquência balofa, unanimista e incensatória.
Também Fernando Nobre, o grande altruísta da AMI, o ex-candidato à presidência da República, que fez da independência em relação aos partidos a sua grande bandeira de campanha, esqueceu os valores que dizia serem o baluarte indestrutível na condução da sua intervenção cívico-política, para se deixar seduzir pelo primeiro isco suculento que lhe foi lançado por um dos partidos responsáveis pela situação que ele tanto criticou como candidato.
Qual nobreza, qual política? E que ética é que merece esse nome?

11 abril 2011

 

Confissão de derrota da NATO

Rasmussen, o amigo e aliado de Bush, que agora faz de secretário-geral da NATO, já reconheceu a incapacidade de vitória militar na Líbia e preconiza agora uma "solução política"...
Sarkozy perdeu a guerra. Não entrará em Tripoli como Napoleão (o autêntico) entrou no Cairo (aliás, por pouco tempo). Vai ficar em Paris a fiscalizar as muçulmanas que usam burqa...
Na Líbia, chegou o tempo das negociações. Melhor, da palavra do povo. O regime líbio precisa de uma refundação, de uma relegitimação. O povo líbio não precisa mais de "guias" eternos. Precisa de exercer o poder por ele próprio.
Sem tutela de iluminados, nem a intromissão de estrangeiros.
E a NATO que recolha as suas garras, que saíram chamuscadas da contenda.

 

Não se paga, não se paga!

Disseram os islandeses no referendo de sábado.
Parafraseando Kennedy, direi que hoje sou islandês!
Mas este grito de soberania popular já está a fazer a Islândia correr o perigo de excomunhão por uma "agência de rating" que dá pelo nome de Moody's, que ameaça pô-la no "lixo"!!!
Arrogância típica destes senhores anónimos, que ninguém controla, que nada legitima, mas que são elevados pelo "sistema" a sacerdotes infalíveis, a juízes implacáveis decretando penas sem recurso, nem audiência prévia dos condenados...
Quem lhes deu esses poderes?

10 abril 2011

 

Líbia: empate técnico?

O "Ocidente" foi autorizado a intervir militarmente (e aereamente) na Líbia para proteger civis, mas desde o princípio se percebeu (para quem não tivesse antes percebido) que o objectivo da intervenção era combater o regime de Khadafi e preparar o caminho à vitória dos rebeldes.
Mas, como muitas vezes acontece ao nosso Ocidente, este preparou-se mal, acreditou que aquilo eram favas contadas, bastava despejar algumas bombas e o povo líbio virar-se-ia em bloco "contra o tirano" e tudo acabava em bem, com muitos abraços e as torneiras do petróleo abertas.
O problema é que as coisas não correram bem assim, os rebeldes do Leste não progridem para Oeste, apesar dos bombardeamentos das posições governamentais, não há no terreno político ou militar alterações significativa, o regime não dá mostras de ruir a Oeste.
Para mais, começaram os malfadados "danos colaterais", que acompanham sempre os bombardeamentos "cirúrgicos" da NATO, mas a culpa já se sabe, não é de quem bombardeia, mas de quem é bombardeado, que não devia estar naquele sítio...
Enfim um infindável empate técnico, em termos militares e até políticos...
Que fazer? Ir "lá para baixo" nem pensar. Talvez contratar uns mercenáros, perdão, uns voluntários de outros países árabes, é preciso que não sejam brancos, obviamente.
Enfim, uma encrenca para o napoleãozeco Sarkozy e outros gorilas ditos democráticos.

 

Valerá a pena ir votar?

Valerá a pena ir votar no dia 5 de Junho? Tenho fortes dúvidas. Porque o programa de governo já está feito, "lá fora", e tem que ser aplicado qualquer que seja o partido vencedor.
Isto não é demagogia nem cepticismo. É o que está escrito no comunicado dos ministros do Eurugrupo e do Ecofin, dos nossos amigos europeus, enfim. Está lá escrito, preto no branco, que o programa de apoio financeiro a Portugal terá de ser aprovado em meados de Maio (cerca de três semanas antes das eleições) "e aplicado rapidamente após a formação de um novo governo" (qualquer que ele seja, acrescento eu).
É exigido um programa de reformas concreto, que inclua um "ambicioso" programa de privatizações, e reformas que ultrapassem a "rigidez nos mercados de produtos e de trabalho", o que significa, flexibilização das leis laborais, nomeadamente em sede de despedimentos e respectivas indemnizações, inclusivamente abrangendo a possibilidade de redução dos salários.
Impõe-se (é imposto!) ainda um "ajustamento orçamental ambicioso" (mais uma ambição!), o que significa cortes na despesa pública, com pessoal (salários, pensões,eventualmente até com despedimentos de funcionários), cortes nas prestações sociais (saúde, ensino, segurança social, rendimento de inserção, etc.), aumento dos impostos sobre pessoas singulares...
Estes são os princípios básicos, que não são negociáveis. A concretização dos mesmos deve estar pronta lá para os tais meados de Maio. Nessa altura ficaremos a saber o que nos vai em concreto acontecer...
Depois, em 5 de Junho, podemos ir ou não ir votar, podemos votar neste ou naquele, mas os resultados das eleições só irão determinar quem irá "aplicar" o (obrigatório) programa.
Escolher os "aplicadores" do programa/ultimato valerá a maçada da deslocação à mesa de voto?

06 abril 2011

 

A ética e a justiça

«Nos últimos anos impôs-se a ideia de que era suficiente que a economia funcionasse. Foi um erro. Não se pode eliminar a perspectiva política e não se pode pensar que o mercado estabelece por si mesmo a justiça e a equidade. A fé no mercado eliminou qualquer debate público sobre a ética e a justiça. (…) «Dever-se-ia perguntar por que é que os contribuintes têm que contribuir para o enriquecimento daqueles que propiciaram a crise pelas suas condutas imprudentes. Mas não nos devemos fixar apenas no que se passa agora: há que analisar o que sucedeu nos tempos de bonança. Por exemplo: ver se os altos vencimentos que então se atribuíram banqueiros e agentes financeiros correspondiam ao seu talento e dedicação, ou, antes, obedeciam a causas externas». (Michael Sandel, filósofo, ao El Pais de sábado passado, 2 de Abril).

05 abril 2011

 

Lixo

Somos “lixo”, dizem as agências de “rating”. Só que se esquecem de dizer que elas próprias andaram impunemente a promover “lixo”, contribuindo, assim, para a “lixeira” em que nos encontramos. “Lixo” é este sistema que nos governa – o capitalismo financeiro global. As agências de “rating” são parte desse “lixo”. Falta haver quem lhes faça a devida notação e as mande para o “lixo” que merecem. Falta haver um tsunami a sério que varra este “lixo”, que é isto em que vivemos. O planeta tornou-se um lugar insuportável.

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