28 novembro 2011
Mais uma baixa
O Mouraz Lopes suspendeu a sua colaboração. Compreendo as suas razões. Mas o Sine Die está mais pobre. Há que reforçar os "quadros"! O silêncio é que não!
Quadrúplica (se é que existe...)
Respondendo ao Mouraz Lopes, talvez abusivamente porque a "quadrúplica" não existe, eu apenas direi que receio bem que com a "sentença abreviada" ficaremos sem fundamentação e com a mesma celeridade processual. E que em breve se concluirá, se se adoptar esse caminho, que novos "cortes" (estamos em tempo deles) é preciso fazer na sentença...
Em qualquer caso eu não trocaria a fundamentação por um acréscimo, mínimo que fosse, de celeridade. (Será que estou agarrado a valores arcaicos?)
Em qualquer caso eu não trocaria a fundamentação por um acréscimo, mínimo que fosse, de celeridade. (Será que estou agarrado a valores arcaicos?)
27 novembro 2011
Pausa
Assumir um projecto colectivo implica, naturalmente, uma limitação da expressão publica da individualidade.
Assim se legitima, também um espaço relevante de diálogo e liberdade, como o Sine Die.
Até já!
Assim se legitima, também um espaço relevante de diálogo e liberdade, como o Sine Die.
Até já!
25 novembro 2011
Tréplica...sobre a sentença
Caro Maia Costa
Sobre as tuas pertinentes dúvidas não posso deixar de citar um pequeno tópico do que escrevi mais aprofundadamente noutro local, recentemente publicado: «No que respeita à garantia da finalidade extraprocessual da fundamentação, nomeadamente a dimensão legitimadora que lhe é inerente, fica salvaguardada através da dimensão oral e pública da exposição das razões justificativas da decisão que necessariamente têm que ser publicamente expressas no acto da leitura da sentença.
O Tribunal tem, obrigatoriamente, que explicitar oralmente de uma forma concisa, mas suficientemente explícita, a fundamentação de facto em que sustenta a sua decisão.
A concretização do princípio constitucional da fundamentação da sentença pode compatibilizar-se com uma fundamentação oral, desde que suficientemente explícita e compreensível, que poderá inclusivamente ficar imediatamente registada por processos tecnologicamente adequados, nomeadamente em suporte digital de áudio (ou mesmo vídeo). A fundamentação, pelo facto de ser oralmente proferida pelo tribunal, não deixa de concretizar o dever de dar as razões através das quais o tribunal fundou a sua decisão. A oralidade garante, de forma inequívoca, a genuinidade das razões que sustentam a decisão proferida.
A sentença abreviada será, assim, sempre fundamentada não pondo, por isso, em causa qualquer das consequências que decorrem da estrutura constitucional que informa o princípio da fundamentação das decisões.
A indisponibilidade da fundamentação, como princípio decorrente da vinculação constitucional do modelo português nomeadamente, garantindo as relevantes exigências que a finalidade extraprocessual da fundamentação comporta, na medida em que não se verifique uma exigência de controlo posterior da decisão, fica garantida pela forma oral que a fundamentação tem que assumir nestes casos.
No caso de manifestação de vontade explícita de interposição de recurso, no prazo legalmente fixado para o efeito, então a sentença será completada com o teor integral da fundamentação escrita, que será disponibilizada aos sujeitos processuais.
Neste caso será assegurado um procedimento normativo que possibilite o acesso em tempo devido à fundamentação da sentença para que seja possível concretizar a necessária elaboração da motivação que consubstancia o recurso».
Sobre as tuas pertinentes dúvidas não posso deixar de citar um pequeno tópico do que escrevi mais aprofundadamente noutro local, recentemente publicado: «No que respeita à garantia da finalidade extraprocessual da fundamentação, nomeadamente a dimensão legitimadora que lhe é inerente, fica salvaguardada através da dimensão oral e pública da exposição das razões justificativas da decisão que necessariamente têm que ser publicamente expressas no acto da leitura da sentença.
O Tribunal tem, obrigatoriamente, que explicitar oralmente de uma forma concisa, mas suficientemente explícita, a fundamentação de facto em que sustenta a sua decisão.
A concretização do princípio constitucional da fundamentação da sentença pode compatibilizar-se com uma fundamentação oral, desde que suficientemente explícita e compreensível, que poderá inclusivamente ficar imediatamente registada por processos tecnologicamente adequados, nomeadamente em suporte digital de áudio (ou mesmo vídeo). A fundamentação, pelo facto de ser oralmente proferida pelo tribunal, não deixa de concretizar o dever de dar as razões através das quais o tribunal fundou a sua decisão. A oralidade garante, de forma inequívoca, a genuinidade das razões que sustentam a decisão proferida.
A sentença abreviada será, assim, sempre fundamentada não pondo, por isso, em causa qualquer das consequências que decorrem da estrutura constitucional que informa o princípio da fundamentação das decisões.
A indisponibilidade da fundamentação, como princípio decorrente da vinculação constitucional do modelo português nomeadamente, garantindo as relevantes exigências que a finalidade extraprocessual da fundamentação comporta, na medida em que não se verifique uma exigência de controlo posterior da decisão, fica garantida pela forma oral que a fundamentação tem que assumir nestes casos.
No caso de manifestação de vontade explícita de interposição de recurso, no prazo legalmente fixado para o efeito, então a sentença será completada com o teor integral da fundamentação escrita, que será disponibilizada aos sujeitos processuais.
Neste caso será assegurado um procedimento normativo que possibilite o acesso em tempo devido à fundamentação da sentença para que seja possível concretizar a necessária elaboração da motivação que consubstancia o recurso».
Réplica
O Pedro Soares de Albergaria e o Mouraz Lopes tiveram a gentileza de contestar as minhas opiniões, o que eu agradeço, e daqui lhes respondo, como eles certamente esperam, esperando eu que eles usem do direito de tréplica, e que outras vozes se façam ouvir. Aí vai...
Pena consensual
O Pedro Albergaria defende que a solução proposta “distingue-se radicalmente da solução canónica norte-americana”. Diz ele que é “outra coisa”. E aponta algumas diferenças.
Não as nego e acentuo três delas: a exclusão da imputação do processo negocial, a proibição da “reformatio in pejus” e a obrigatoriedade de o MP dar a conhecer as provas ao arguido no processo de negociação. São diferenças de enorme relevância.
Contudo, não suficientes para se dizer que se trata de “outra coisa”. Mantém-se a matriz: a negociação da pena. E como regra geral do sistema processual penal, e não apenas regra particular de um sector limitado da criminalidade (pequena/média).
Admitiria eu, quando muito, a negociação para a criminalidade punível até 5 anos de prisão. Mas fazer da negociação a regra do processo penal é consagrar um outro tipo de processo, um processo que tudo faz para evitar o julgamento, um processo que procura tudo decidir nos bastidores, na secretaria!
A centralidade do processo deixa de ser a audiência pública de julgamento, passa a ser o regateio, o ajuste, no gabinete fechado. Este é um outro processo! Apesar das diferenças apontadas relativamente ao processo penal americano, a solução proposta é, quando muito, outra coisa dentro da mesma coisa.
Aliás, nada garante que a proposta venha a ter algum sucesso, ou um sucesso maior do que o insucesso que as já existentes formas alternativas à forma comum do processo têm tido. O problema está, insisto, na cultura judiciária burocrática, que tem impedido a utilização dos meios processuais disponíveis para tratar de forma diferente o que é diferente… Que razões há para pensar que agora as coisas correriam melhor?
Por último, volto a acentuar este aspecto: a negociação “mexe” com o estatuto do MP. Que critérios, que já não poderão ser de estrita legalidade e objectividade, regerão a actividade negocial do MP? De que mandato dispõe? Quem é o mandante (insisto)? Poderá sobreviver a autonomia do MP? Não constitui essa autonomia um valor decisivo da independência dos tribunais?
Sentença abreviada
Diz o Mouraz Lopes que a sentença abreviada não seria uma sentença sem fundamentação, esta seria oral, mas com suporte digital…
Bom, se a fundamentação for sempre obrigatória, não vejo por que razão não fica incluída na própria sentença… Ou será que o juiz a vai redigir mais tarde, se houver recurso? Estará então nas condições ideais para elaborar a fundamentação?
Se não for obrigatória, isso é inconstitucional…
Não me parece que se ganhe nada em tempo. O que se ganhar em tempo, perde-se em transparência e legitimação! Há economias que só dão prejuízo! A celeridade não é um valor absoluto… Se é que a celeridade vai ganhar alguma coisa…
De qualquer forma, gostaria de acrescentar o seguinte: a fundamentação da matéria de facto, consagrada pela reforma processual de 1998, constituiu um enorme ganho em termos de qualidade e transparência, assegurando simultaneamente a sindicabilidade da decisão pelo tribunal de recurso, reforçando, pois, as garantias da qualidade da justiça.
E outra coisa muito importante: a redacção da fundamentação de facto e de direito é essencial na elaboração da sentença. Quando o juiz começa a escrever a fundamentação (a escrever, repito) inicia necessariamente um processo de reflexão que o obriga a enfrentar e resolver racionalmente, e argumentadamente, as questões que tem a decidir.
Este procedimento é precioso para a elaboração de uma sentença correcta. Uma fundamentação posterior à leitura da sentença é um verdadeiro perigo, na minha maneira de ver…
Cá fico à espera da continuação do debate...
Pena consensual
O Pedro Albergaria defende que a solução proposta “distingue-se radicalmente da solução canónica norte-americana”. Diz ele que é “outra coisa”. E aponta algumas diferenças.
Não as nego e acentuo três delas: a exclusão da imputação do processo negocial, a proibição da “reformatio in pejus” e a obrigatoriedade de o MP dar a conhecer as provas ao arguido no processo de negociação. São diferenças de enorme relevância.
Contudo, não suficientes para se dizer que se trata de “outra coisa”. Mantém-se a matriz: a negociação da pena. E como regra geral do sistema processual penal, e não apenas regra particular de um sector limitado da criminalidade (pequena/média).
Admitiria eu, quando muito, a negociação para a criminalidade punível até 5 anos de prisão. Mas fazer da negociação a regra do processo penal é consagrar um outro tipo de processo, um processo que tudo faz para evitar o julgamento, um processo que procura tudo decidir nos bastidores, na secretaria!
A centralidade do processo deixa de ser a audiência pública de julgamento, passa a ser o regateio, o ajuste, no gabinete fechado. Este é um outro processo! Apesar das diferenças apontadas relativamente ao processo penal americano, a solução proposta é, quando muito, outra coisa dentro da mesma coisa.
Aliás, nada garante que a proposta venha a ter algum sucesso, ou um sucesso maior do que o insucesso que as já existentes formas alternativas à forma comum do processo têm tido. O problema está, insisto, na cultura judiciária burocrática, que tem impedido a utilização dos meios processuais disponíveis para tratar de forma diferente o que é diferente… Que razões há para pensar que agora as coisas correriam melhor?
Por último, volto a acentuar este aspecto: a negociação “mexe” com o estatuto do MP. Que critérios, que já não poderão ser de estrita legalidade e objectividade, regerão a actividade negocial do MP? De que mandato dispõe? Quem é o mandante (insisto)? Poderá sobreviver a autonomia do MP? Não constitui essa autonomia um valor decisivo da independência dos tribunais?
Sentença abreviada
Diz o Mouraz Lopes que a sentença abreviada não seria uma sentença sem fundamentação, esta seria oral, mas com suporte digital…
Bom, se a fundamentação for sempre obrigatória, não vejo por que razão não fica incluída na própria sentença… Ou será que o juiz a vai redigir mais tarde, se houver recurso? Estará então nas condições ideais para elaborar a fundamentação?
Se não for obrigatória, isso é inconstitucional…
Não me parece que se ganhe nada em tempo. O que se ganhar em tempo, perde-se em transparência e legitimação! Há economias que só dão prejuízo! A celeridade não é um valor absoluto… Se é que a celeridade vai ganhar alguma coisa…
De qualquer forma, gostaria de acrescentar o seguinte: a fundamentação da matéria de facto, consagrada pela reforma processual de 1998, constituiu um enorme ganho em termos de qualidade e transparência, assegurando simultaneamente a sindicabilidade da decisão pelo tribunal de recurso, reforçando, pois, as garantias da qualidade da justiça.
E outra coisa muito importante: a redacção da fundamentação de facto e de direito é essencial na elaboração da sentença. Quando o juiz começa a escrever a fundamentação (a escrever, repito) inicia necessariamente um processo de reflexão que o obriga a enfrentar e resolver racionalmente, e argumentadamente, as questões que tem a decidir.
Este procedimento é precioso para a elaboração de uma sentença correcta. Uma fundamentação posterior à leitura da sentença é um verdadeiro perigo, na minha maneira de ver…
Cá fico à espera da continuação do debate...
Os números da greve
Os números da greve costumam inserir-se numa guerra ideológica entre o Governo e as organizações sindicais. Têm, por isso, o valor de uma mistificação, chegando a tais extremos que caíram no completo descrédito. Desta vez, as organizações sindicais guardaram-se avisadamente de divulgar qualquer número, acentuando apenas a magnitude da greve. Só o Governo é que caiu no infantilismo ideológico de divulgar números. Baixos como sempre, pois outra coisa não se esperava (do Governo, claro).
24 novembro 2011
Em letargia aparente
Uma coisa que me causava espanto, nos últimos tempos, sempre que consultava o blogue, era ver uma ausência quase sistemática de colaboração por parte dos nossos companheiros, pelo menos os mais habituais. Perguntava-me se o vendaval em que têm sido envolvidas as nossas vidas à pala da «crise» tinha entupido os nossos colegas, porque o caso não seria para menos. O certo é que, timoratamente, questionando-me sobre se o meu próprio levantar de cabeça no meio de um silêncio geral não seria acto temerário, eu lá fui metendo umas muito modestas tiradas, a ver se ia alimentando a chama. Afinal, constato agora que os meus colegas de blogue estavam muito caladinhos para, de repente, se desdobrarem em eloquentes e chorudas lucubrações. Umas atrás das outras. Pás, pás, pás… É de ficar aturdido e, ao mesmo tempo, fascinado com tão fecundas e percucientes (porque o são, sem qualquer ponta de ironia) exposições, dignas praticamente todas de uma reflexão demorada. Não são “posts”; são estudos para imprimir e digerir. E ainda bem que foram publicados no blogue, pese embora a sua extensão e densidade. Quer dizer que os nossos colegas estiveram aparentemente em letargia, mas na realidade o que estiveram a fazer foi a municiarem-se para produzirem trabalhos de grande fôlego e darem-nos grandes trabalhos para os digerirmos.
Um desses trabalhos intitula-se significativamente Sobre o direito do trabalho em época de crise, da autoria de Henriques Gaspar. Foi o primeiro que li, porque segui a ordem cronológica. Eis uma exposição fascinante pela densidade, pelo rigor certeiro e pelo brilho das ideias, ainda que se possa discordar de uma ou outra afirmação. Os outros trabalhos são igualmente muito bons, a um outro nível, mas não quero, ao menos para já, comentar nenhum deles em pormenor.
Pego apenas numa afirmação do primeiro trabalho que referi (o do Henriques Gaspar).
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não é um acidente da natureza como um tremor de terra; foi sobretudo a falência de teorias económicas que induziram, capturando-as, políticas suicidárias de desregulação financeira.
Eis um pensamento que tantas vezes tenho repetido para mim mesmo, mas que não fui capaz de pôr em letra impressa. Isto a que nós estamos a assistir não é um acidente da natureza como um tremor de terra. Digam isto bem alto, caramba! Sobretudo hoje, que é dia de greve geral. E digam-no bem alto, porque todas as iniciativas que se têm tomado, toda a política que tem sido adoptada vai no sentido inverso. Corresponde a uma falsificação ideológica. Têm-nos querido meter na cabeça que isto é uma desgraça que nos bateu à porta, o tal acidente da natureza que nos caiu em cima. Isto é, têm querido naturalizar (e este trabalho de naturalização é o primeiro trabalho da ideologia) uma «crise» que tem causas e responsáveis e grandes aproveitadores das consequências dela. Quando muito, fazem-nos crer que somos todos responsáveis, porque vivemos todos acima das nossas possibilidades (outra forma de fazer intervir a ideologia pela generalização). Logo, todos temos de pagá-la igualmente, o que não passa de outra forma de falsificar as coisas. Basta ver quem são os verdadeiros sacrificados e quem os verdadeiros aproveitadores. Basta ver as imagens da televisão e quem anda num corrupio constante à volta do poder.
Um desses trabalhos intitula-se significativamente Sobre o direito do trabalho em época de crise, da autoria de Henriques Gaspar. Foi o primeiro que li, porque segui a ordem cronológica. Eis uma exposição fascinante pela densidade, pelo rigor certeiro e pelo brilho das ideias, ainda que se possa discordar de uma ou outra afirmação. Os outros trabalhos são igualmente muito bons, a um outro nível, mas não quero, ao menos para já, comentar nenhum deles em pormenor.
Pego apenas numa afirmação do primeiro trabalho que referi (o do Henriques Gaspar).
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não é um acidente da natureza como um tremor de terra; foi sobretudo a falência de teorias económicas que induziram, capturando-as, políticas suicidárias de desregulação financeira.
Eis um pensamento que tantas vezes tenho repetido para mim mesmo, mas que não fui capaz de pôr em letra impressa. Isto a que nós estamos a assistir não é um acidente da natureza como um tremor de terra. Digam isto bem alto, caramba! Sobretudo hoje, que é dia de greve geral. E digam-no bem alto, porque todas as iniciativas que se têm tomado, toda a política que tem sido adoptada vai no sentido inverso. Corresponde a uma falsificação ideológica. Têm-nos querido meter na cabeça que isto é uma desgraça que nos bateu à porta, o tal acidente da natureza que nos caiu em cima. Isto é, têm querido naturalizar (e este trabalho de naturalização é o primeiro trabalho da ideologia) uma «crise» que tem causas e responsáveis e grandes aproveitadores das consequências dela. Quando muito, fazem-nos crer que somos todos responsáveis, porque vivemos todos acima das nossas possibilidades (outra forma de fazer intervir a ideologia pela generalização). Logo, todos temos de pagá-la igualmente, o que não passa de outra forma de falsificar as coisas. Basta ver quem são os verdadeiros sacrificados e quem os verdadeiros aproveitadores. Basta ver as imagens da televisão e quem anda num corrupio constante à volta do poder.
Greve geral
Hoje é o primeiro braço de ferro entre o mundo do trabalho e os "bons alunos da Alemanha" que nos governam. É uma "luta incerta", como diria o Steinbeck dos bons tempos, mas sem luta é que a derrota é certa. A "guerra" não vai ficar decidida hoje, será certamente longa, e a arena decisiva terá de ser alargada ao espaço europeu, se e quando houver a percepção por parte dos outros povos europeus que o problema não é do "Sul", também é deles.
Até lá, resta a resistência possível na marcha inexorável para a desgraça e a miséria, ao compasso dos sucessivos cortes de "rating", directamente proporcionais aos sucessivos sacrifícios impostos, numa espiral sem fim...
Até lá, resta a resistência possível na marcha inexorável para a desgraça e a miséria, ao compasso dos sucessivos cortes de "rating", directamente proporcionais aos sucessivos sacrifícios impostos, numa espiral sem fim...
23 novembro 2011
Leitura imprescindível
A pena negociada
Um debate sério e franco é coisa a que não se deve fugir, sobretudo em questões de Justiça. Inflelizmente, o "debate" público em redor dos problemas (magnos) que a afectam tem-se pautado por uma indisfarçável superficialidade, pela "tirada" irreflectida, pela fulanização, enfim pela confusão entre o acessório e o principal. Por isso - e também por ser um dos co-autores do trabalho analisado por Maia Costa - entendo alinhar uma ou outra observação sobre a "solução" do grupo de trabalho da Associação S. dos Juízes Portugueses. Por ter estado mais directamente envolvido no tema da "justiça negociada" é sobre ele que me ocuparei nessas observações. Em defesa da dama, pois.
Em primeiro lugar, uma frontal convergência de "sentir": não há reforma judicial ou processual, por mais ousada que seja, por mais cortante que se mostre, que resista a atavismos judiciais, a culturas judiciárias passivas e menos ainda àquilo que os criminologistas há muito apodam de second codes dos "agentes" das instâncias formais de controlo, que não raro substituem os seus programas pessoais, a sua visão do que devia ser a lei, aos programas legislativos, àquilo que a lei é. Com especial relevância para o Ministério Público. Num sistema processual penal de estrutura (basicamente) acusatória, como é o nosso, compete àquela importantíssima instituição, pela proactividade que se lhe assinala (em confronto com uma relativa passividade do juiz), a primeira e decisiva responsabilidade na execução das linhas de política criminal legitimamente desenhadas pelo poder legislativo. Breve, se o MP não promove o juiz não decide. É esse o drama (e a razão da falência) dos mecanismos (que alguns, 40 anos depois, ainda chamam de "novos"...) de diversão processual como é o caso, de entre outros, da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo. Portanto, "apontar o dedo" ao MP, como primeiro responsável pela execução do programa político criminal que vai neles (naqueles institutos) implícito e, correspectivamente, pelo insucesso dessa execução, não pode ser levado à conta de "juizite" ou de pulsão para uma estéril "guerrilha corporativa" - é um facto que qualquer pessoa minimamente atenta aos problemas da Justiça rapidamente intui e apreende. Trata-se, pois, de um problema de formação profissional. Mas também é mais do que um problema de "mera" organização hierárquica: é um problema de hierarquia! E um problema de critérios inspectivos! Ou seja, como um dos companheiros deste blogue já várias vezes demonstrou em trabalhos seus, os "controlos internos", por via da hierarquia e da inspecção são tão ou mais importantes que os estritamente processuais para conter derivas discricionárias reais (para usar um chavão criminológico) dentro de um sistema de legalidade formal como é o nosso.
Posta esta limitação a qualquer reforma, também não se pode esquecer que a lei tem, apesar de tudo, algum "potencial performativo" - possibilitar a negociação de penas não é o mesmo que vedá-la. Abrir essa possibilidade é sempre melhor, em termos de eficácia (fico-me por aqui, por agora), do que fechá-la. De resto, não se trata de um "salto no escuro". Com a recente reforma alemã, Portugal será mesmo o último resistente às soluções de justiça negociada. O argumento da emulação vale o que vale, bem sei. Mas também é verdade que, descontando os exageros norte-americanos, não consta que a consagração de várias formas de justiça negociada (aliás recomendadas pelas instâncias europeias) por essa Europa fora tenha tido resultados que se possam globalmente considerar injustos ou incompatíveis ainda com um sistema de justiça penal de um Estado de Direito.
Por outra banda, se falei nos exageros norte-americanos não foi por acaso. Sempre que se fala de "justiça negociada" é inevitável o reflexo diante dos nossos olhos do exemplo daquele país (veja-se, abaixo, o postal de Maia Costa). Mas sendo isso compreensível, em razão da vocação totalizante da cultura jurídica daquele país (veículada, antes do mais, por agentes da comunicação social de formação jurídica - e mais ainda jurídica comparada - altamente duvidosa; diria mesmo que entre eles e o Direito há uma espécie de Muralha da China), não nos deve levar à conclusão, precipitada, de que ocorre uma pura e simples "marcha triunfal" do processo penal norte-americano pelo Mundo (para usar uma expressão de um conhecido penalista). Pois se pararmos e reflectirmos, logo concluiremos que as diferenças entre a esmagadora maioria das soluções de justiça negociada na europa (e também na Améria do Sul) e a solução (na realidade são várias) norte-americana não é menor do que as diferenças na fase do julgamento na maior parte da europa e nos E.U.A. São até bem maiores! - a ninguém ocorrendo dizer que há também, naquele aspecto (do julgamento), uma "americanização" do direito europeu!
Pois bem, revertendo à proposta da ASJP, ela distingue-se radicalmente da solução canónica norte-americana: não se trata meramente de que aquela nossa visão "não propõe a reprodução integral do sistema americano". Ela é radicalmente distinta; não é um problema de grau - é outra coisa. Deixo assim relacionados sete critérios pelos quais entendo que essa diferença se pauta (e que mostram aliás as linhas gerais do que efectivamente se propõe):
1 - Em primeiro lugar, ao contrário do que se passa em pelo menos alguns estados norte-americanos não se pode negociar a imputação, mas apenas a pena - a negociação da imputação é incompatível com o princípio da culpa e da verdade material. Ou seja, se o carro vai de sul para norte não se pode negociar que vai de norte para sul. Isto é possível e sucede frequentemente nos E.U.A.
2 - Ao contrário do que se passa no ordenamento processual penal norte-americano, não se pode negociar qualquer pena (discute-se aí a bizantinisse do "suicídio judicial", no caso de a declaração de culpa corresponder a crime punível com a morte...). A negociação está limitada a penas concretas até 5 anos de prisão.
3 - Em terceiro lugar, a atenuação de pena que é conatural a qualquer sistema de negociação (sem ela não há qualquer incentivo à negociação) não depende, na proposta da ASJP, da dinâmica de negociação, da relação de forças entre as partes negociadoras (um dos maiores problemas do lado de lá do Atlântico) - ela é fixada por lei, tal como sucede em vários países, nomeadamente na Itália e em estados escandinavos.
4 - Em quarto lugar, e importantíssimo, ao contrário do que sucede no procedimento de negociação norte-americano (aspecto muito criticado naquele país e que já suscitou várias tentativas de reforma), na proposta da ASJP, para o caso de o arguido a final recusar a aplicação de pena consensual, fica vedada a aplicação, na forma comum, de pena mais gravosa do que a proposta pelo MP e aceite pelo juiz sem a atenuação prevista na lei. Esta proibição de reformatio in pejus é essencial para obstar a um uso retorsivo do processo que infecta o processo penal norte-americano. Consegue-se assim um justo equilibrio entre as garantias do arguido e os incentivos necessários à vigência de soluções negociadas.
5 - Em quinto lugar, ao contrário do que se passa no processo penal norte-americano - desenhado sobre um modelo "two cases approach" -, ao negociar a pena o arguido conhece os indícios que constam (ou não) do processo. Não negoceia no "escuro". Pode por si e em conferência com o seu defensor ponderar as suas reais possibilidades: nada que já não faça quando se propõe confessar em julgamento. Nos E.U.A. a obrigatoriedade de o "MP" dar a conhecer ao arguido prova esculpatória não tem vigência no processo de negociação...
6 - Não é por acaso que há autores (norte-americanos) que referem que são precisamente os modelos de "investigação oficial" ("one case approach"), como o nosso e muitos outros na europa, os mais adequados (pela concentração do material probatório num dossier) ao escrutínio da conformidade entre a realidade dos factos e a admissão da culpa por banda do arguido. É precisamente isso que acontece com a proposta da ASJP e não sucede com o modelo americano.
7 - Por fim mas não menos importante, a proposta da ASJP fez finca pé em preservar a imagem de (e a) imparcialidade do juiz, o que dificilmente sucede em modelos (como em certos estados norte-americanos e no recente modelo alemão) em que o juiz surge como dinamizador da negociação e que, perante o insucesso dela, prossegue ele próprio a dirigir o julgamento...
Como disse, essas são diferenças radicais, de tomo. A consideração delas não faz da proposta em causa uma coisa de mais ou menos relativamente à hipótese clássica da negociação norte-americana: é outra e muito diferente coisa.
22 novembro 2011
sentença abreviada
Este é um bom debate.
Como co-autor das propostas objecto de critica no post anterior, apenas contra-argumento sobre os argumentos avançados relativos à sentença abreviada.
Na proposta não está em causa, que fique bem claro, uma sentença sem fundamentação.
Não há nem pode haver sentenças sem serem fundamentadas.
A fundamentação assume-se como essência da decisão e razão de ser da própria legitimação da decisão (e, reflexamente da legitimação de quem a profere, os órgãos jurisdicionais)
Agora a forma da fundamentação pode assumir uma forma ( é disto que falamos) oral. Naturalmente registada em suporte digital.
E sempre passível de reapreciação por um segundo grau de jurisdição, logo que transcrita.
É essa a opção que sustenta a proposta.
Como co-autor das propostas objecto de critica no post anterior, apenas contra-argumento sobre os argumentos avançados relativos à sentença abreviada.
Na proposta não está em causa, que fique bem claro, uma sentença sem fundamentação.
Não há nem pode haver sentenças sem serem fundamentadas.
A fundamentação assume-se como essência da decisão e razão de ser da própria legitimação da decisão (e, reflexamente da legitimação de quem a profere, os órgãos jurisdicionais)
Agora a forma da fundamentação pode assumir uma forma ( é disto que falamos) oral. Naturalmente registada em suporte digital.
E sempre passível de reapreciação por um segundo grau de jurisdição, logo que transcrita.
É essa a opção que sustenta a proposta.
Uma proposta de reforma do processo penal
O último congresso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses aprovou genericamente uma proposta de reforma do processo penal, elaborada por um grupo de distintos juízes. Trata-se, diga-se, de uma proposta de invulgar qualidade e mérito, a merecer a atenção de quem de direito.
Aqui fica a minha despretensiosa leitura do documento, enviando um abraço àqueles que fazem integram ou já integraram este blogue.
Comentário às Linhas de Reforma do Processo Penal
Prazos de duração do inquérito
O direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32º, nº 2, da Constituição) é talvez aquele dos direitos da defesa que menos protecção recebe da lei ordinária, na medida em que a violação dos prazos do inquérito não envolve nenhuma outra consequência que não seja o fim do segredo interno (nº 6 do art. 89º do CPP) e a intervenção hierárquica prevista nos nºs 6 a 8do art. 276º do CPP, efeitos que não se têm mostrado suficientemente dissuasores da ultrapassagem frequente daqueles prazos.
Sendo certo que aqui se jogam, em contraposição, o interesse público e da vítima na perseguição da infracção, por um lado, e o interesse do arguido, por outro, importa, para salvaguarda daquele direito constitucional, encontrar mecanismos que obriguem efectivamente ao cumprimento dos prazos do inquérito, o que, possivelmente, só se conseguirá atribuindo à violação dos mesmos uma consequência processual.
Propõe-se que o incumprimento dos prazos determine a rejeição da acusação. Mas impõem-se diversos mecanismos prévios que visam acautelar os interesses da acusação, impondo, por um lado, a avocação do inquérito pelo superior hierárquico do MP, por outro lado, permitindo dilatar os prazos quando haja fundamento concreto para tal, quer com a tipificação de novas causas de suspensão, quer por decisão do juiz de instrução.
A proposta parece-me adequada. Sem efeito processual preclusivo do prosseguimento do processo, a violação do prazo do inquérito ficará sempre “impune” e defraudado o direito constitucional ao julgamento em prazo razoável. A consequência pode parecer demasiado “pesada” e desproporcional, mas os mecanismos de prevenção previstos afiguram-se adequados a dar protecção às situações em que os prazos se mostrem em concreto exíguos, salvaguardando assim os interesses da acusação, no necessário equilíbrio com os da defesa.
Só talvez a imposição da avocação do inquérito pelo superior hierárquico se mostre descabida, na medida em que a forma de intervenção hierárquica não deveria ser definida na lei processual, pois cabe ao próprio MP, como estrutura hierárquica, organizar-se internamente da forma que considerar mais adequada.
Simplificação/agilização dos inquéritos
Avança-se com a proposta de alargamento dos pressupostos de alguns processos especiais e institutos alternativos à acusação, concretamente, o alargamento do processo abreviado aos crimes puníveis com prisão até 8 anos, quer em flagrante delito, quer quando não houvesse necessidade de maior investigação; e ainda a possibilidade de arquivamento pelo MP, para além do caso de dispensa de pena (art. 280º do CPP), quanto a crimes puníveis com prisão até 5 anos, havendo reparação dos danos e o ofendido não se opuser.
Diga-se, preambularmente, que os processos especiais e os institutos alternativos à acusação vêm defraudando as expectativas, apesar das sucessivas ampliações dos seus pressupostos de aplicação. Basta ver as estatísticas constantes dos relatórios anuais da PGR, por exemplo de 2005 a 2009, último divulgado, para constatar a estabilização dos números referentes a esses meios alternativos. Note-se que concretamente a elevação do âmbito de aplicação do processo sumaríssimo para os crimes puníveis com prisão até 5 anos (anteriormente 3 anos), com a revisão de 2007, não produziu qualquer efeito positivo. Só a suspensão provisória do processo vem “progredindo”, embora muito lentamente. Em geral, todos os institutos alternativos têm uma expressão pouco mais do que residual no contexto geral dos inquéritos encerrados.
A questão não estará, creio bem, no plano legislativo, que é suficientemente amplo para acolher um número muito significativo de situações.
O bloqueio situar-se-á, a meu ver, no plano da “cultura judiciária”, concretamente da cultura do MP, que tende a burocratizar-se, a tratar todos os casos por igual, sem recorrer aos mecanismos alternativos que a lei faculta.
É muito possivelmente por isso que os “alargamentos” legislativos não têm tra-dução na prática judiciária, não sendo, pois, razoavelmente de esperar que um novo alargamento venha constituir a solução milagrosa do problema.
Mas existe ainda um obstáculo maior à ampliação dos pressupostos do processo abreviado, tal como em proposto. É que, em meu entender, os processos alternativos ao comum devem circunscrever-se à pequena e média criminalidade, não abarcando, pois, os crimes cuja moldura exceda 5 anos de prisão. Ainda que a investigação do caso se mostre simples e a prova evidente, ainda assim, a uma moldura pesada deve corresponder sempre um processo mais solene! A simplificação tem os limites impostos pelos direitos de defesa, pela dignidade da pessoa humana, afinal.
Já não me choca a outra proposta citada, que se situa no âmbito da pequena/média criminalidade, embora duvide da sua eficácia…
Pena consensual
Aqui a minha discordância é frontal e radical. Adianto: qualquer forma de nego-ciação da pena constitui a degradação do processo penal, a sua administrativização inevitável.
As “virtudes” do sistema foram aliás completamente postas a nu no famoso “caso Dominique”. A “plea bargaining” é boa para os “ricos”, os únicos que conseguem discutir em plano de igualdade com o MP…
A “plea bargaining” é um outro modelo de processo penal, que faz do julgamento a excepção, um “luxo” do sistema.
Em tal sistema, o processo penal não é propriamente judicial, é um capítulo menor do sistema de segurança interna, administrado por um MP policial…
Claro que a proposta não propõe a reprodução integral do sistema americano, elimina alguns dos seus piores vícios.
Em todo o caso, quais os fins de política criminal que visaria a “negociação” do MP? Qual seria o mandato, qual o mandante (a AR? o Governo? O PGR?)? Qual a legitimidade da acção do MP? Tem-se presente a experiência, completamente frustrada das “leis de política criminal” até agora editadas? E o estatuto constitucional do MP? Manteria a autonomia? E outros problemas haverá…
Soluções de desjudiciarização e de diversão já a nossa legislação tem! Com fracos resultados, sublinhe-se. Para quê este “salto em frente” (e no escuro)?
Penso que o que há a fazer não é no plano legislativo, mas sim no da cultura judiciária, sobretudo na do MP, abandonando procedimentos burocráticos, utilizando os procedimentos alternativos que a lei lhe confere, assumindo a necessidade de tratar de forma diferente o que é diferente! Problemas de formação judiciária e de organização hierárquica…
Instrução
A proposta avançada – redução da instrução ao debate instrutório - parece-me incontestável.
Como é por de mais sabido, a instrução vem sendo abusivamente utilizada como forma de retardar a marcha do processo.
O legislador tem assumido posições contraditórias, por um lado, conferindo maiores poderes ao juiz de instrução para “pôr ordem” na instrução, eliminando a realização de quaisquer diligências inúteis ou dilatórias, mas, por outro lado, assimilando o debate instrutório à audiência de julgamento.
A redução da instrução ao essencial - debate instrutório – tendo como finalidade exclusiva a apreciação da prova recolhida no inquérito e as nulidades e questões prévias ou incidentais constitui condição essencial para reconduzir a instrução à sua natureza de fase de comprovação da decisão de acusar ou arquivar o inquérito. Essencial também rever o regime da publicidade e da alteração substancial dos factos.
Julgamento
Completamente em desacordo com a dita “sentença abreviada”, que seria uma sentença sem fundamentação, ou seja, uma não-sentença.
Não vale a pena enfatizar o valor da fundamentação, que é aliás uma imposição constitucional (art. 205º, nº 1, da Constituição).
Toda a “simplificação” da sentença que vá nesse sentido redundará na sua fragi-lização/deslegitimação.
O mesmo se dirá de propostas já por vezes anunciadas para abrir a possibilidade de sentenças/formulário (preenchido com cruzinhas, tipo totoloto).
Esperemos que nunca a administração da justiça chegue a estes extremos funcionalistas. Se aí chegar, não serão necessários juízes, o escrivão fará a sentença…
Já a proposta de valoração em audiência das declarações prestadas pelo arguido perante o juiz de instrução se mostra essencial para a boa administração da justiça, sendo a solução actual manifestamente excessiva de “garantismo”, conducente a soluções manifestamente injustas e incompreensíveis para a população em geral.
É evidente que a relevância das declarações impõe garantias de defesa do arguido, sendo as propostas no texto adequadas e proporcionais.
Trata-se de uma reforma necessária e urgente.
Recursos
Parecem-me inteiramente justas, razoáveis e até necessárias as propostas no domínio dos recursos.
O recurso (suspensivo) para o Tribunal Constitucional tem sido abusivamente utilizado como meio dilatório do trânsito das decisões condenatórias, provocando por vezes situações de pouca transparência quanto à exequibilidade da decisão recorrida, como recentemente aconteceu num caso muito conhecido. Por isso, mostra-se inteiramente justo que, sendo a decisão recorrida confirmativa da condenação anterior, o recurso deva ter efeito meramente devolutivo.
São igualmente justas as outras duas propostas: a possibilidade/obrigatoriedade de conhecimento de nulidades da decisão final por parte do tribunal recorrido; e o conhecimento pelo tribunal de recurso de todas as questões suscitadas, quando haja anulação da sentença, sempre que, evidentemente, do processo constem todos os elementos que o permitam.
Trata-se de soluções económicas do ponto de vista processual e que não brigam com a boa administração da justiça.
Defesa oficiosa
A defesa oficiosa constitui possivelmente o maior problema que a justiça enfrenta, embora habitualmente assim não se entenda, ou não se afirme. Na verdade, é através da desigualdade na assistência judiciária que se produz a “justiça desigual”, de que tanto se fala (e não pela acção do tribunal, ao contrário do que o “sentimento popular”, mal informado, parece pensar).
A defesa oficiosa sempre foi em Portugal um meio insuficiente para conferir aos cidadãos carenciados economicamente os instrumentos de defesa adequados para os colocar em plano de igualdade com os “ricos”.
A defesa oficiosa actual serve, possivelmente a maior parte das vezes, apenas para preencher um formalismo vazio de efectiva protecção dos patrocinados, apesar de o Estado despender elevados recursos com esse “formalismo”.
A proposta avançada – defesa assegurada por advogados independentes, não funcionários, recrutados por concurso, sendo o sistema gerido por uma comissão públi-ca independente, e não pela Ordem dos Advogados (instituição que não tem – não deve ter – vocação para funcionar como entidade “empregadora”) – mostra-se uma solução engenhosa e apta a prosseguir finalmente uma defesa oficiosa eficaz.
Aqui fica a minha despretensiosa leitura do documento, enviando um abraço àqueles que fazem integram ou já integraram este blogue.
Comentário às Linhas de Reforma do Processo Penal
Prazos de duração do inquérito
O direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32º, nº 2, da Constituição) é talvez aquele dos direitos da defesa que menos protecção recebe da lei ordinária, na medida em que a violação dos prazos do inquérito não envolve nenhuma outra consequência que não seja o fim do segredo interno (nº 6 do art. 89º do CPP) e a intervenção hierárquica prevista nos nºs 6 a 8do art. 276º do CPP, efeitos que não se têm mostrado suficientemente dissuasores da ultrapassagem frequente daqueles prazos.
Sendo certo que aqui se jogam, em contraposição, o interesse público e da vítima na perseguição da infracção, por um lado, e o interesse do arguido, por outro, importa, para salvaguarda daquele direito constitucional, encontrar mecanismos que obriguem efectivamente ao cumprimento dos prazos do inquérito, o que, possivelmente, só se conseguirá atribuindo à violação dos mesmos uma consequência processual.
Propõe-se que o incumprimento dos prazos determine a rejeição da acusação. Mas impõem-se diversos mecanismos prévios que visam acautelar os interesses da acusação, impondo, por um lado, a avocação do inquérito pelo superior hierárquico do MP, por outro lado, permitindo dilatar os prazos quando haja fundamento concreto para tal, quer com a tipificação de novas causas de suspensão, quer por decisão do juiz de instrução.
A proposta parece-me adequada. Sem efeito processual preclusivo do prosseguimento do processo, a violação do prazo do inquérito ficará sempre “impune” e defraudado o direito constitucional ao julgamento em prazo razoável. A consequência pode parecer demasiado “pesada” e desproporcional, mas os mecanismos de prevenção previstos afiguram-se adequados a dar protecção às situações em que os prazos se mostrem em concreto exíguos, salvaguardando assim os interesses da acusação, no necessário equilíbrio com os da defesa.
Só talvez a imposição da avocação do inquérito pelo superior hierárquico se mostre descabida, na medida em que a forma de intervenção hierárquica não deveria ser definida na lei processual, pois cabe ao próprio MP, como estrutura hierárquica, organizar-se internamente da forma que considerar mais adequada.
Simplificação/agilização dos inquéritos
Avança-se com a proposta de alargamento dos pressupostos de alguns processos especiais e institutos alternativos à acusação, concretamente, o alargamento do processo abreviado aos crimes puníveis com prisão até 8 anos, quer em flagrante delito, quer quando não houvesse necessidade de maior investigação; e ainda a possibilidade de arquivamento pelo MP, para além do caso de dispensa de pena (art. 280º do CPP), quanto a crimes puníveis com prisão até 5 anos, havendo reparação dos danos e o ofendido não se opuser.
Diga-se, preambularmente, que os processos especiais e os institutos alternativos à acusação vêm defraudando as expectativas, apesar das sucessivas ampliações dos seus pressupostos de aplicação. Basta ver as estatísticas constantes dos relatórios anuais da PGR, por exemplo de 2005 a 2009, último divulgado, para constatar a estabilização dos números referentes a esses meios alternativos. Note-se que concretamente a elevação do âmbito de aplicação do processo sumaríssimo para os crimes puníveis com prisão até 5 anos (anteriormente 3 anos), com a revisão de 2007, não produziu qualquer efeito positivo. Só a suspensão provisória do processo vem “progredindo”, embora muito lentamente. Em geral, todos os institutos alternativos têm uma expressão pouco mais do que residual no contexto geral dos inquéritos encerrados.
A questão não estará, creio bem, no plano legislativo, que é suficientemente amplo para acolher um número muito significativo de situações.
O bloqueio situar-se-á, a meu ver, no plano da “cultura judiciária”, concretamente da cultura do MP, que tende a burocratizar-se, a tratar todos os casos por igual, sem recorrer aos mecanismos alternativos que a lei faculta.
É muito possivelmente por isso que os “alargamentos” legislativos não têm tra-dução na prática judiciária, não sendo, pois, razoavelmente de esperar que um novo alargamento venha constituir a solução milagrosa do problema.
Mas existe ainda um obstáculo maior à ampliação dos pressupostos do processo abreviado, tal como em proposto. É que, em meu entender, os processos alternativos ao comum devem circunscrever-se à pequena e média criminalidade, não abarcando, pois, os crimes cuja moldura exceda 5 anos de prisão. Ainda que a investigação do caso se mostre simples e a prova evidente, ainda assim, a uma moldura pesada deve corresponder sempre um processo mais solene! A simplificação tem os limites impostos pelos direitos de defesa, pela dignidade da pessoa humana, afinal.
Já não me choca a outra proposta citada, que se situa no âmbito da pequena/média criminalidade, embora duvide da sua eficácia…
Pena consensual
Aqui a minha discordância é frontal e radical. Adianto: qualquer forma de nego-ciação da pena constitui a degradação do processo penal, a sua administrativização inevitável.
As “virtudes” do sistema foram aliás completamente postas a nu no famoso “caso Dominique”. A “plea bargaining” é boa para os “ricos”, os únicos que conseguem discutir em plano de igualdade com o MP…
A “plea bargaining” é um outro modelo de processo penal, que faz do julgamento a excepção, um “luxo” do sistema.
Em tal sistema, o processo penal não é propriamente judicial, é um capítulo menor do sistema de segurança interna, administrado por um MP policial…
Claro que a proposta não propõe a reprodução integral do sistema americano, elimina alguns dos seus piores vícios.
Em todo o caso, quais os fins de política criminal que visaria a “negociação” do MP? Qual seria o mandato, qual o mandante (a AR? o Governo? O PGR?)? Qual a legitimidade da acção do MP? Tem-se presente a experiência, completamente frustrada das “leis de política criminal” até agora editadas? E o estatuto constitucional do MP? Manteria a autonomia? E outros problemas haverá…
Soluções de desjudiciarização e de diversão já a nossa legislação tem! Com fracos resultados, sublinhe-se. Para quê este “salto em frente” (e no escuro)?
Penso que o que há a fazer não é no plano legislativo, mas sim no da cultura judiciária, sobretudo na do MP, abandonando procedimentos burocráticos, utilizando os procedimentos alternativos que a lei lhe confere, assumindo a necessidade de tratar de forma diferente o que é diferente! Problemas de formação judiciária e de organização hierárquica…
Instrução
A proposta avançada – redução da instrução ao debate instrutório - parece-me incontestável.
Como é por de mais sabido, a instrução vem sendo abusivamente utilizada como forma de retardar a marcha do processo.
O legislador tem assumido posições contraditórias, por um lado, conferindo maiores poderes ao juiz de instrução para “pôr ordem” na instrução, eliminando a realização de quaisquer diligências inúteis ou dilatórias, mas, por outro lado, assimilando o debate instrutório à audiência de julgamento.
A redução da instrução ao essencial - debate instrutório – tendo como finalidade exclusiva a apreciação da prova recolhida no inquérito e as nulidades e questões prévias ou incidentais constitui condição essencial para reconduzir a instrução à sua natureza de fase de comprovação da decisão de acusar ou arquivar o inquérito. Essencial também rever o regime da publicidade e da alteração substancial dos factos.
Julgamento
Completamente em desacordo com a dita “sentença abreviada”, que seria uma sentença sem fundamentação, ou seja, uma não-sentença.
Não vale a pena enfatizar o valor da fundamentação, que é aliás uma imposição constitucional (art. 205º, nº 1, da Constituição).
Toda a “simplificação” da sentença que vá nesse sentido redundará na sua fragi-lização/deslegitimação.
O mesmo se dirá de propostas já por vezes anunciadas para abrir a possibilidade de sentenças/formulário (preenchido com cruzinhas, tipo totoloto).
Esperemos que nunca a administração da justiça chegue a estes extremos funcionalistas. Se aí chegar, não serão necessários juízes, o escrivão fará a sentença…
Já a proposta de valoração em audiência das declarações prestadas pelo arguido perante o juiz de instrução se mostra essencial para a boa administração da justiça, sendo a solução actual manifestamente excessiva de “garantismo”, conducente a soluções manifestamente injustas e incompreensíveis para a população em geral.
É evidente que a relevância das declarações impõe garantias de defesa do arguido, sendo as propostas no texto adequadas e proporcionais.
Trata-se de uma reforma necessária e urgente.
Recursos
Parecem-me inteiramente justas, razoáveis e até necessárias as propostas no domínio dos recursos.
O recurso (suspensivo) para o Tribunal Constitucional tem sido abusivamente utilizado como meio dilatório do trânsito das decisões condenatórias, provocando por vezes situações de pouca transparência quanto à exequibilidade da decisão recorrida, como recentemente aconteceu num caso muito conhecido. Por isso, mostra-se inteiramente justo que, sendo a decisão recorrida confirmativa da condenação anterior, o recurso deva ter efeito meramente devolutivo.
São igualmente justas as outras duas propostas: a possibilidade/obrigatoriedade de conhecimento de nulidades da decisão final por parte do tribunal recorrido; e o conhecimento pelo tribunal de recurso de todas as questões suscitadas, quando haja anulação da sentença, sempre que, evidentemente, do processo constem todos os elementos que o permitam.
Trata-se de soluções económicas do ponto de vista processual e que não brigam com a boa administração da justiça.
Defesa oficiosa
A defesa oficiosa constitui possivelmente o maior problema que a justiça enfrenta, embora habitualmente assim não se entenda, ou não se afirme. Na verdade, é através da desigualdade na assistência judiciária que se produz a “justiça desigual”, de que tanto se fala (e não pela acção do tribunal, ao contrário do que o “sentimento popular”, mal informado, parece pensar).
A defesa oficiosa sempre foi em Portugal um meio insuficiente para conferir aos cidadãos carenciados economicamente os instrumentos de defesa adequados para os colocar em plano de igualdade com os “ricos”.
A defesa oficiosa actual serve, possivelmente a maior parte das vezes, apenas para preencher um formalismo vazio de efectiva protecção dos patrocinados, apesar de o Estado despender elevados recursos com esse “formalismo”.
A proposta avançada – defesa assegurada por advogados independentes, não funcionários, recrutados por concurso, sendo o sistema gerido por uma comissão públi-ca independente, e não pela Ordem dos Advogados (instituição que não tem – não deve ter – vocação para funcionar como entidade “empregadora”) – mostra-se uma solução engenhosa e apta a prosseguir finalmente uma defesa oficiosa eficaz.
21 novembro 2011
Sobre o direito do trabalho em época de crise
Segue o texto da intervenção do nosso colega de blogue António Henriques Gaspar no encerramento do XV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, que pela sua importância merece divulgação (e leitura):
"1. A crise financeira e económica que nos invade desde há três anos apresenta-se com a marca do caos e da dissolução das referências. A aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa e os montantes astronómicos confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo.
A crise económica que veio colada à crise financeira tem consequências brutais nos mercados de trabalho, produzindo inquietudes e perplexidades no direito do trabalho.
O respeito pelo valor e função social trabalho, as liberdades colectivas, a solidariedade, a democracia social e a dignidade da pessoa humana constituem princípios afirmados e sedimentados, sobre os quais o direito do trabalho construiu a sua autonomia dogmática na densificação de valores essenciais de justiça social.
São os princípios fundadores da Declaração de Filadélfia de 1944, que estão afirmados por forma explicitamente dogmática como verdadeiro acto de fé, mas que foi também, nas circunstâncias da época, um acto de razão.
Especialmente o imperativo categórico da dignidade da pessoa humana.
A crise afecta todos os equilíbrios, fragiliza aqueles que são mais frágeis, agrava a insegurança da existência; a incerteza do amanhã tornou-se um princípio de vida.
O direito do trabalho ficou no centro deste furacão.
Afectado pela crença em teorias económicas que se auto-consideram imanentes e que, por isso, é suposto a política ter por missão executar e não questionar, o direito do trabalho foi envolvido por uma tensão desconstrutora pós-moderna, com o risco de pulverização ao serviço da ditadura da «razão económica».
Mas as teorias económicas podem ser tudo menos certezas.
A economia não é senão uma disciplina de explicação e de possível e tentativa interpretação ex post.
Ocupa-se a tentar explicar e a ensinar-nos com números e gráficos o que aconteceu, mas não prevê nem constitui auxílio relativamente ao que vai acontecer.
Desde logo, porque não domina, nem interpreta, nem fixa numa qualquer percentagem, a variável essencial – a «instituição invisível», a verdadeira moeda deste «presente líquido» que é a confiança.
Diz-se que as teorias económicas necessitam da prova dos factos.
Só que a prova dos factos pode vir tarde, quando são devastadoras as consequências.
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não é um acidente da natureza como um tremor de terra; foi sobretudo a falência de teorias económicas que induziram, capturando-as, políticas suicidárias de desregulação financeira.
2. Nestes tempos de horizonte saturado, o trabalho – ou o emprego – é cada vez mais um bem escasso.
A escassez reduziu o trabalho à dimensão de «mercadoria».
Nas representações, para a comunicação e a linguagem redutoras da economia, o desemprego é um número – são 12,5%.
Mas na linguagem das humanidades, a representação é mais complexa; são 700 mil mulheres e homens afectados na sua dignidade, diminuídos na cidadania, em estado de insegurança aguda que mata a esperança e fragiliza os comportamentos individuais.
Na desindustrialização crescente do primeiro mundo, o trabalho perdeu a centralidade.
Perdida a centralidade do trabalho, a pessoa perde o valor de afirmação de si, de inclusão, da auto-estima, e das condições de livre realização da personalidade.
A ideologia salvadora do auto-emprego não é solução; o trabalho informal e as actividades paralelas, embora transitoriamente possam servir de almofada ou amortecedor social, têm riscos de conduzir à exclusão.
A redução do trabalho a mercadoria e a mero factor de produção pressiona a desconstrução dogmática do direito do trabalho, podendo levar à dissolução progressiva do princípio da legalidade material.
A instrumentalização do direito do trabalho pode afastar a rule of law, para ficar a ser rule by law em conjunto volátil de regulações ao serviço das imposições totalitárias da economia e da finança.
As regulações do trabalho – não já o direito do trabalho na sua dignidade científica e dogmática – seriam então degradadas em instrumentos de «darwinismo normativo» no «mercado de normas» da competição global.
3. O comprometimento teórico do direito do trabalho na autonomia e na função tem de se assumir como uma afirmação de resistência.
Resistência que não poderá ser apenas ou sobretudo reacção passiva e rápida ás flutuações e às contingências da evolução da economia.
É necessário recentrar a capacidade de intervenção e acção, construindo e reconstruindo modelos teóricos e práticos que permitam na crise dar sentido e consistência ao direito do trabalho.
O direito do trabalho constitui, porventura mais do que outros ramos, um meio de comunicação política.
Tem, por isso, a função de construir e comunicar normativamente soluções que são o resultado de escolhas políticas.
Mas a função de comunicar normativamente escolhas políticas não pode ser desgraduada em funcionalização a-dogmática.
Nem poderá conviver com a dissolução de categorias jurídicas axiais.
O direito do trabalho não poderá ser transformado em agregado regulamentar dos elementos de uma mercadoria, em fundamentalismo funcional e nihilismo jurídico.
O rumo das relações para o direito civil, o mito da igualdade e da liberdade contratual em mercados fortemente segmentados, a condição de soft law em tempo de escassez, degradarão certamente o estatuto do trabalhador, enfraquecendo a limites inaceitáveis a função de reequilíbrio e de protecção relacional.
Também aqui, com o abade de Lacordaire, poderá dizer-se que “c’est la liberté qui opprime et la loi qui affranchit”.
4. A dissolução de categorias, a cedência das construções dogmáticas aos comandos imperativos da «razão económica», a fragilização dos conjuntos normativos teoricamente organizados em disciplina autónoma, vão certamente afectar a natureza e a função de arbitramento judicial nas questões de trabalho.
A desjudicialização das noções e categorias limitam a intervenção prudencial do juiz.
Nestas circunstâncias, a reinterpretação dos limites da intervenção judicial vai colocar os tribunais na exigência de revisitar e densificar os princípios e as formulações constitucionais, retomando-os na dimensão operativa de aplicabilidade directa; em momentos decisivos o direito do trabalho é também direito constitucional em acção.
Mas há igualmente princípios e compromissos constitutivos das democracias sociais que, para além de serem formas normativas, constituem verdadeiros modos de comunicação política de injunções vinculativas.
Não podem ser desconsideradas as garantias inscritas na Carta Social Europeia e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Por vezes, afirma-se que os princípios precisam do apoio do poder para enfrentar o teste da realidade.
Mas devemos dizer antes que o poder precisa dos princípios para afirmar a substância democrática da legitimidade da acção.
O direito ao trabalho, o direito a condições de trabalho equitativas, o direito à segurança, o direito à negociação colectiva, os direitos sindicais, a formação profissional, bem como a protecção contra os despedimentos sem justa causa, constituem outras tantas imposições que integram o núcleo não renunciável das obrigações constitutivas e constitucionais do direito do trabalho.
5. O direito do trabalho e os seus campos de acção foram invadidos pela insegurança e pela incerteza.
Neste tempo sombrio, mais do que «aprender a rezar na era da técnica», há que transformar a fé em razão e reverter, na expressão de Alain Supiot, ao espírito de Filadélfia.
O Congresso que agora termina os trabalhos constitui um modo relevante de intervenção na crise, e compromisso intelectual para transformar a fé em razão.
Os temas abordados revelam que enfrentou problemas; agiu, não ficando na passividade da reacção; discutiu e recentrou a função operativa de princípios constituintes, como a dignidade da pessoa humana; elaborou sobre as circunstâncias do momento, preservando categorias nucleares do direito do trabalho; e fez salientar a função fundadora e correctora da igualdade."
António Henriques Gaspar
"1. A crise financeira e económica que nos invade desde há três anos apresenta-se com a marca do caos e da dissolução das referências. A aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa e os montantes astronómicos confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo.
A crise económica que veio colada à crise financeira tem consequências brutais nos mercados de trabalho, produzindo inquietudes e perplexidades no direito do trabalho.
O respeito pelo valor e função social trabalho, as liberdades colectivas, a solidariedade, a democracia social e a dignidade da pessoa humana constituem princípios afirmados e sedimentados, sobre os quais o direito do trabalho construiu a sua autonomia dogmática na densificação de valores essenciais de justiça social.
São os princípios fundadores da Declaração de Filadélfia de 1944, que estão afirmados por forma explicitamente dogmática como verdadeiro acto de fé, mas que foi também, nas circunstâncias da época, um acto de razão.
Especialmente o imperativo categórico da dignidade da pessoa humana.
A crise afecta todos os equilíbrios, fragiliza aqueles que são mais frágeis, agrava a insegurança da existência; a incerteza do amanhã tornou-se um princípio de vida.
O direito do trabalho ficou no centro deste furacão.
Afectado pela crença em teorias económicas que se auto-consideram imanentes e que, por isso, é suposto a política ter por missão executar e não questionar, o direito do trabalho foi envolvido por uma tensão desconstrutora pós-moderna, com o risco de pulverização ao serviço da ditadura da «razão económica».
Mas as teorias económicas podem ser tudo menos certezas.
A economia não é senão uma disciplina de explicação e de possível e tentativa interpretação ex post.
Ocupa-se a tentar explicar e a ensinar-nos com números e gráficos o que aconteceu, mas não prevê nem constitui auxílio relativamente ao que vai acontecer.
Desde logo, porque não domina, nem interpreta, nem fixa numa qualquer percentagem, a variável essencial – a «instituição invisível», a verdadeira moeda deste «presente líquido» que é a confiança.
Diz-se que as teorias económicas necessitam da prova dos factos.
Só que a prova dos factos pode vir tarde, quando são devastadoras as consequências.
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não é um acidente da natureza como um tremor de terra; foi sobretudo a falência de teorias económicas que induziram, capturando-as, políticas suicidárias de desregulação financeira.
2. Nestes tempos de horizonte saturado, o trabalho – ou o emprego – é cada vez mais um bem escasso.
A escassez reduziu o trabalho à dimensão de «mercadoria».
Nas representações, para a comunicação e a linguagem redutoras da economia, o desemprego é um número – são 12,5%.
Mas na linguagem das humanidades, a representação é mais complexa; são 700 mil mulheres e homens afectados na sua dignidade, diminuídos na cidadania, em estado de insegurança aguda que mata a esperança e fragiliza os comportamentos individuais.
Na desindustrialização crescente do primeiro mundo, o trabalho perdeu a centralidade.
Perdida a centralidade do trabalho, a pessoa perde o valor de afirmação de si, de inclusão, da auto-estima, e das condições de livre realização da personalidade.
A ideologia salvadora do auto-emprego não é solução; o trabalho informal e as actividades paralelas, embora transitoriamente possam servir de almofada ou amortecedor social, têm riscos de conduzir à exclusão.
A redução do trabalho a mercadoria e a mero factor de produção pressiona a desconstrução dogmática do direito do trabalho, podendo levar à dissolução progressiva do princípio da legalidade material.
A instrumentalização do direito do trabalho pode afastar a rule of law, para ficar a ser rule by law em conjunto volátil de regulações ao serviço das imposições totalitárias da economia e da finança.
As regulações do trabalho – não já o direito do trabalho na sua dignidade científica e dogmática – seriam então degradadas em instrumentos de «darwinismo normativo» no «mercado de normas» da competição global.
3. O comprometimento teórico do direito do trabalho na autonomia e na função tem de se assumir como uma afirmação de resistência.
Resistência que não poderá ser apenas ou sobretudo reacção passiva e rápida ás flutuações e às contingências da evolução da economia.
É necessário recentrar a capacidade de intervenção e acção, construindo e reconstruindo modelos teóricos e práticos que permitam na crise dar sentido e consistência ao direito do trabalho.
O direito do trabalho constitui, porventura mais do que outros ramos, um meio de comunicação política.
Tem, por isso, a função de construir e comunicar normativamente soluções que são o resultado de escolhas políticas.
Mas a função de comunicar normativamente escolhas políticas não pode ser desgraduada em funcionalização a-dogmática.
Nem poderá conviver com a dissolução de categorias jurídicas axiais.
O direito do trabalho não poderá ser transformado em agregado regulamentar dos elementos de uma mercadoria, em fundamentalismo funcional e nihilismo jurídico.
O rumo das relações para o direito civil, o mito da igualdade e da liberdade contratual em mercados fortemente segmentados, a condição de soft law em tempo de escassez, degradarão certamente o estatuto do trabalhador, enfraquecendo a limites inaceitáveis a função de reequilíbrio e de protecção relacional.
Também aqui, com o abade de Lacordaire, poderá dizer-se que “c’est la liberté qui opprime et la loi qui affranchit”.
4. A dissolução de categorias, a cedência das construções dogmáticas aos comandos imperativos da «razão económica», a fragilização dos conjuntos normativos teoricamente organizados em disciplina autónoma, vão certamente afectar a natureza e a função de arbitramento judicial nas questões de trabalho.
A desjudicialização das noções e categorias limitam a intervenção prudencial do juiz.
Nestas circunstâncias, a reinterpretação dos limites da intervenção judicial vai colocar os tribunais na exigência de revisitar e densificar os princípios e as formulações constitucionais, retomando-os na dimensão operativa de aplicabilidade directa; em momentos decisivos o direito do trabalho é também direito constitucional em acção.
Mas há igualmente princípios e compromissos constitutivos das democracias sociais que, para além de serem formas normativas, constituem verdadeiros modos de comunicação política de injunções vinculativas.
Não podem ser desconsideradas as garantias inscritas na Carta Social Europeia e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Por vezes, afirma-se que os princípios precisam do apoio do poder para enfrentar o teste da realidade.
Mas devemos dizer antes que o poder precisa dos princípios para afirmar a substância democrática da legitimidade da acção.
O direito ao trabalho, o direito a condições de trabalho equitativas, o direito à segurança, o direito à negociação colectiva, os direitos sindicais, a formação profissional, bem como a protecção contra os despedimentos sem justa causa, constituem outras tantas imposições que integram o núcleo não renunciável das obrigações constitutivas e constitucionais do direito do trabalho.
5. O direito do trabalho e os seus campos de acção foram invadidos pela insegurança e pela incerteza.
Neste tempo sombrio, mais do que «aprender a rezar na era da técnica», há que transformar a fé em razão e reverter, na expressão de Alain Supiot, ao espírito de Filadélfia.
O Congresso que agora termina os trabalhos constitui um modo relevante de intervenção na crise, e compromisso intelectual para transformar a fé em razão.
Os temas abordados revelam que enfrentou problemas; agiu, não ficando na passividade da reacção; discutiu e recentrou a função operativa de princípios constituintes, como a dignidade da pessoa humana; elaborou sobre as circunstâncias do momento, preservando categorias nucleares do direito do trabalho; e fez salientar a função fundadora e correctora da igualdade."
António Henriques Gaspar
José Luís Jorge dos Santos
A extradição deste cidadão português, outrora americano, foi recusada pela Relação de Lisboa. A embaixada dos EUA em Lisboa está "disappointed". É o segundo "disappointment" na Europa (o outro foi Polanski).
Não será só a pena de morte a separar o direito penal dos EUA do da Europa; também a prescrição dos crimes e das penas, marca distintiva de um direito penal humanista.
Não será só a pena de morte a separar o direito penal dos EUA do da Europa; também a prescrição dos crimes e das penas, marca distintiva de um direito penal humanista.
16 novembro 2011
A ministra da Justiça
Gostei da entrevista que a ministra da Justiça deu ao «Expresso» no sábado passado. Pareceu-me equilibrada e com respostas certeiras e concisas, desarmando algumas ciladas postas nas perguntas.
O que ela disse é correcto, às vezes mesmo corajoso, e reflecte a sua experiência como política, como advogada e como membro que foi de órgãos de gestão das magistraturas, nomeadamente do Conselho Superior da Magistratura. Raramente se acumula num ministro da área uma tão variada experiência. Isso permite-lhe ter uma visão de conjunto que poucos ministros da Justiça têm demonstrado.
As respostas que deu sobre os vários problemas colocados foram sensatas, comedidas, atacando as áreas sensíveis e revelando não ter medo de atacar os problemas, como é o caso da situação do apoio judiciário, que, na realidade, não está bem e presta-se a manipulações. Toda a gente o sabe. Já o problema dos grandes escritórios de advogados contratados pelo Estado (no fundo, todos querem assoberbar uma parte deste, de uma forma ou de outra) é diferente, porque não diz respeito especificamente ao ministério da Justiça, mas ao governo no seu conjunto.
11 novembro 2011
As duas justiças II
Coisa diferente de haver um disfuncionamento no sistema de justiça que favorece os poderosos e desprotege os fracos, encontrando a sua última razão de ser nas desigualdades que estruturam a sociedade portuguesa, é o diferente tratamento de que podem ser alvo, nos tribunais, uns e outros.
Os poderosos socorrem-se de prestigiados e caros advogados, que planeiam a defesa até à mais ínfima minúcia, mobilizando toda a panóplia de meios ao dispor, exercendo sobre o processo uma vigilância constante, espiolhando o mais pequeno detalhe, levantando toda a sorte de questões, esquadrinhando irregularidades e nulidades, suscitando incidentes, juntando pareceres de professores universitários bem pagos, para reforçarem os seus pontos de vista.
Ao mesmo tempo, os meios de comunicação social dão, quase sempre, ampla cobertura a estes casos e, frequentemente, funcionam como câmara de eco das pretensões dos seus protagonistas.
Os mais fracos, na maior parte dos casos, têm que socorrer-se de advogados mais modestos ou oficiosos. Não quer dizer que não sejam honestos, estudiosos, competentes e que se não esforcem por obter uma boa justiça. Porém, não têm a mesma disponibilidade, nem tempo, nem porventura estímulo para burilarem até um grau extremo (para não dizer «sofisticado») o aprofundamento de questões que muitas vezes são rebuscadas na sua apresentação formal ou na sua exploração conceptual; nem meios económicos (que são os dos clientes) para se socorrerem de pareceres de especialistas, na sustentação de elaboradas estratégias de defesa. Muito menos terão a apetência para esquadrinharem o processo milimetricamente à procura de qualquer pretexto para controvérsia, ou para percorrerem toda a escala de recursos, mesmo que as hipóteses de ganharem sejam poucas ou mesmo nulas, ou (o que é pior) para complicarem o processado com toda a espécie de incidentes.
Por outro lado, estes arguidos não dispõem de tempo de antena na comunicação social, que os descrimina soberanamente numa grande parte dos casos, porque eles não são «notícia», mas apenas, quando muito, «faits divers».
Assim, o andamento destes processos é menos problemático, menos recheado de incidentes, a justiça mais fácil de fazer e os próprios tribunais terão a tendência natural para não lhes darem um tratamento tão exaustivo (porque não têm o foco da comunicação social, a impertinência da controvérsia permanente, o elaborado de complicadas questões, o prestígio de advogados e juristas de nomeada, mobilizados para a nobre campanha da defesa).
Todavia, deveria ser precisamente em situações destas, de visível falta de meios, que os tribunais deveriam dar uma atenção redobrada aos casos que têm entre mãos, pensando duas vezes antes de se decidirem por uma solução de forma, aprofundando, dentro dos seus poderes de cognição, o conhecimento das circunstâncias em que se desenrolaram os factos, exigindo relatórios sociais exaustivos e até exercendo, em certas condições, um papel supletivo em falhas que relevam de notória debilidade da defesa.
Os poderosos socorrem-se de prestigiados e caros advogados, que planeiam a defesa até à mais ínfima minúcia, mobilizando toda a panóplia de meios ao dispor, exercendo sobre o processo uma vigilância constante, espiolhando o mais pequeno detalhe, levantando toda a sorte de questões, esquadrinhando irregularidades e nulidades, suscitando incidentes, juntando pareceres de professores universitários bem pagos, para reforçarem os seus pontos de vista.
Ao mesmo tempo, os meios de comunicação social dão, quase sempre, ampla cobertura a estes casos e, frequentemente, funcionam como câmara de eco das pretensões dos seus protagonistas.
Os mais fracos, na maior parte dos casos, têm que socorrer-se de advogados mais modestos ou oficiosos. Não quer dizer que não sejam honestos, estudiosos, competentes e que se não esforcem por obter uma boa justiça. Porém, não têm a mesma disponibilidade, nem tempo, nem porventura estímulo para burilarem até um grau extremo (para não dizer «sofisticado») o aprofundamento de questões que muitas vezes são rebuscadas na sua apresentação formal ou na sua exploração conceptual; nem meios económicos (que são os dos clientes) para se socorrerem de pareceres de especialistas, na sustentação de elaboradas estratégias de defesa. Muito menos terão a apetência para esquadrinharem o processo milimetricamente à procura de qualquer pretexto para controvérsia, ou para percorrerem toda a escala de recursos, mesmo que as hipóteses de ganharem sejam poucas ou mesmo nulas, ou (o que é pior) para complicarem o processado com toda a espécie de incidentes.
Por outro lado, estes arguidos não dispõem de tempo de antena na comunicação social, que os descrimina soberanamente numa grande parte dos casos, porque eles não são «notícia», mas apenas, quando muito, «faits divers».
Assim, o andamento destes processos é menos problemático, menos recheado de incidentes, a justiça mais fácil de fazer e os próprios tribunais terão a tendência natural para não lhes darem um tratamento tão exaustivo (porque não têm o foco da comunicação social, a impertinência da controvérsia permanente, o elaborado de complicadas questões, o prestígio de advogados e juristas de nomeada, mobilizados para a nobre campanha da defesa).
Todavia, deveria ser precisamente em situações destas, de visível falta de meios, que os tribunais deveriam dar uma atenção redobrada aos casos que têm entre mãos, pensando duas vezes antes de se decidirem por uma solução de forma, aprofundando, dentro dos seus poderes de cognição, o conhecimento das circunstâncias em que se desenrolaram os factos, exigindo relatórios sociais exaustivos e até exercendo, em certas condições, um papel supletivo em falhas que relevam de notória debilidade da defesa.
05 novembro 2011
As duas justiças
Há uma justiça penal para poderosos e outra para desprotegidos. A primeira emperra e a segunda, melhor ou pior, vai funcionando. Actualmente, fala-se disto à boca cheia e a comunicação social não se cansa de denunciar o escândalo, como se, finalmente, se tivesse descoberto a pólvora. Mas já há muito que certas entidades, instituições e simples particulares vêm alertando para a situação, sem que esse alertamento tivesse provocado grande impacto nos meios de comunicação social. Pelo menos a partir da década de 90, Cunha Rodrigues, então procurador-geral da República, focou várias vezes esse problema em várias comunicações públicas que fez. E Jorge Sampaio, enquanto presidente da República, abordou várias vezes o tema do “excesso de garantismo” (antes de inflectir o discurso quase cento e oitenta graus depois do processo Casa Pia) como uma das causas do protelamento indefinido de certos processos. Isto, para só mencionar duas entidades, entre várias que falaram do assunto, assim como representantes de instituições, de associações sindicais de magistrados, de várias pessoas que escreveram em publicações periódicas e não periódicas, entre as quais, se me permitem a imodéstia, o escriba destas linhas, durante os anos que escreveu no Jornal de Notícias, tendo mesmo intitulado uma das crónicas, de 10/12/98, de «As duas faces».
Hoje, há muitas pessoas que se mostram profundamente escandalizadas com a desigualdade na justiça, atribuindo ignorantemente as causas dessa disfunção aos tribunais e, preferentemente, aos magistrados. Como se pudesse haver uma justiça igual para todos numa sociedade profundamente marcada pela desigualdade. Não há justiça digna desse nome (refiro-me à justiça dos tribunais), quando inexiste a base que a suporta: a justiça social.
As sucessivas reformas que tem havido não têm resolvido o problema e, às vezes, têm-no agravado. A última grande reforma no processo penal, veiculada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, realizada em pleno desenvolvimento da inversão do discurso do “excesso de garantismo”, após o processo “Casa Pia”, sob muitos aspectos veio trazer mais complicação, sobretudo com as alterações introduzidas à última hora pela Assembleia da República, originando mesmo contradições sistémicas, denunciadas vigorosamente por profissionais da justiça e por penalistas de reconhecida competência, como os professores Figueiredo Dias e Costa Andrade, o que não quer dizer que, em alguns aspectos, se não tenham melhorado as soluções. Em suma, as reformas amontoam-se, introduzindo perspectivas filosóficas díspares e quebrando a unidade do sistema, para além da confusão gerada pela convocação de vários regimes legais para a solução do mesmo caso. E a isto acrescem os estrangulamentos financeiros e a redução de recursos materiais e humanos justificados sucessivamente com a “crise”.
O que é certo é que o fosso entre uma justiça para poderosos e outra para desprotegidos não se atenuou, parecendo até ter-se agravado. Os recentes casos que têm vindo a público são altamente elucidativos de como, havendo meios materiais, se usa e abusa de mecanismos processuais até ao ponto de a justiça se converter numa paródia e numa descarada frustração dos seus objectivos. É deprimente e, ao mesmo tempo, revoltante, mesmo e sobretudo para quem exerce funções jurisdicionais e se vê constrangido a ter de aceitar (se não a sofrer) estas jogadas indecentes.
02 novembro 2011
O medo da democracia
Com a devida vénia, publico o artigo de hoje de Manuel António Pina no Jornal de Notícias, sendo certo que estou inteiramente de acordo com ele:
O medo da democracia
Bastou o primeiro-ministro grego anunciar que consultará o povo, através de referendo, sobre as novas e gravosas medidas de austeridade e perda total da soberania orçamental impostas ao país pelos "mercados" e seus comissários políticos em Bruxelas e nos governos de Berlim e Paris para cair a máscara democrática desta gente.
Na pátria da Democracia, o Governo decide-se por um processo democrático básico e Sarkozy fica "consternado" e considera a decisão "irracional" enquanto alemães e FMI se mostram "irritados" e "furiosos" com ela. E Merkel e Sarkozy assinam um comunicado conjunto dizendo-se "determinados" a fazer com que a Grécia cumpra as suas imposições e lhes ceda o que ainda lhe resta de soberania; só lhes faltou acrescentar "queiram os gregos ou não queiram" e mobilizar a Wehrmacht e a "Force de Frappe"...
Até Paulo Portas, ministro de uma coligação eleita com base em compromissos eleitorais imediatamente rasgados mal tomou posse, está "apreensivo".
O medo que esta gente, que tanto fala em Democracia, tem da Democracia é assustador. Aparentemente, o projecto de suspensão da Democracia por 6 meses (ou por 48 anos) estará já em curso. Pinochet aplicou no Chile as receitas de Milton Friedman suspendendo sangrentamente a Democracia. Como é que "boys" de Chicago como Gaspar ou Santos Pereira, que chegaram a ministros sem nunca antes terem governado sequer uma mercearia, o fariam em Democracia?
O medo da democracia
Bastou o primeiro-ministro grego anunciar que consultará o povo, através de referendo, sobre as novas e gravosas medidas de austeridade e perda total da soberania orçamental impostas ao país pelos "mercados" e seus comissários políticos em Bruxelas e nos governos de Berlim e Paris para cair a máscara democrática desta gente.
Na pátria da Democracia, o Governo decide-se por um processo democrático básico e Sarkozy fica "consternado" e considera a decisão "irracional" enquanto alemães e FMI se mostram "irritados" e "furiosos" com ela. E Merkel e Sarkozy assinam um comunicado conjunto dizendo-se "determinados" a fazer com que a Grécia cumpra as suas imposições e lhes ceda o que ainda lhe resta de soberania; só lhes faltou acrescentar "queiram os gregos ou não queiram" e mobilizar a Wehrmacht e a "Force de Frappe"...
Até Paulo Portas, ministro de uma coligação eleita com base em compromissos eleitorais imediatamente rasgados mal tomou posse, está "apreensivo".
O medo que esta gente, que tanto fala em Democracia, tem da Democracia é assustador. Aparentemente, o projecto de suspensão da Democracia por 6 meses (ou por 48 anos) estará já em curso. Pinochet aplicou no Chile as receitas de Milton Friedman suspendendo sangrentamente a Democracia. Como é que "boys" de Chicago como Gaspar ou Santos Pereira, que chegaram a ministros sem nunca antes terem governado sequer uma mercearia, o fariam em Democracia?
Futebol
O futebol é o ópio do povo.
(Karl Marx, Obras Póstumas)
(Karl Marx, Obras Póstumas)
01 novembro 2011
Retratos duvidosos
Segundo um inquérito a nível europeu ontem divulgado (ESS), 76,7% dos portugueses pensam que as decisões dos tribunais são influenciadas por pressões políticas. 83% acham que os tribunais protegem mais os ricos e os poderosos. Sobre a confiança nas instituições, numa escala de 0 a 10, 84% dos portugueses não vão além de 5. (Ah, mas Portugal ficou bem classificado, em segundo lugar, só ultrapassado pela Dinamarca, em "grau de felicidade": 15,5% dos portugueses declararam sentir-se satisfeitos nos últimos 12 meses!!!)
Que dizer destes números? Apeas que são a opinião de 2150 portugueses... Melhor: que são as respostas de 2150 portugueses a um inquérito.
As coisas serão como eles dizem? Isso não interessa... A sociologia de hoje não se interessa pela realidade, antes pela "percepção" da realidade, é uma sociologia do sentimento, uma ciência subjectiva... E como recolhe esses sentimentos? Através de inquéritos formatados, estereotipados, de 0 a 10, de muito bom a muito mau, etc., é só pôr uma cruzinha, tipo totoloto.
As respostas, como as perguntas, estão formatadas, condicionadas, manipuladas à partida. É um jogo viciado este dos "inquéritos à população"... Dão sempre o resultado esperado (expectado).
E depois têm a lata de chamar a estes inquéritos "retrato" de um país, como se aquela amálgama de dados caóticos pudesse traduzir alguma representação da realidade...
Retrato, sim, da degradação de uma sociologia que se basta com estes métodos de investigação...
Que dizer destes números? Apeas que são a opinião de 2150 portugueses... Melhor: que são as respostas de 2150 portugueses a um inquérito.
As coisas serão como eles dizem? Isso não interessa... A sociologia de hoje não se interessa pela realidade, antes pela "percepção" da realidade, é uma sociologia do sentimento, uma ciência subjectiva... E como recolhe esses sentimentos? Através de inquéritos formatados, estereotipados, de 0 a 10, de muito bom a muito mau, etc., é só pôr uma cruzinha, tipo totoloto.
As respostas, como as perguntas, estão formatadas, condicionadas, manipuladas à partida. É um jogo viciado este dos "inquéritos à população"... Dão sempre o resultado esperado (expectado).
E depois têm a lata de chamar a estes inquéritos "retrato" de um país, como se aquela amálgama de dados caóticos pudesse traduzir alguma representação da realidade...
Retrato, sim, da degradação de uma sociologia que se basta com estes métodos de investigação...