31 agosto 2010

 

A "rentrée" do CDS

Estamos em tempos de "rentrée(s)" e cada partido esforça-se por lançar uma ideia atraente que possa agradar ao pagode.
O CDS lembrou-se de uma proposta "fracturante" (uma fractura ao contrário): um referendo sobre política criminal.
As reacções à esquerda foram imediatas e a ideia não vai certamente avante. Mas não será inútil acentuar como é perigoso enveredar pela via do populismo penal.
Dar a palavra ao "povo" é muito perigoso nesta matéria, como o demonstram os casos da Suíça e da Califórnia, onde foi através desse mecanismo que se introduziram soluções de constitucionalidade muito duvidosa ou completamente desproporcionais.
A política criminal, pela sua conexão com os direitos e as liberdades fundamentais, não pode ficar à mercê da demagogia populista ou de reacções epidérmicas a situações conjunturais.

 

Obama e o ónus da prova

Obama vê o ónus da prova invertido. Não são os que o acusam de ser muçulmano e de não ser americano (!!!) que têm obrigação de provar as acusações.
Pelo contrário, é ele que se vê obrigado a dizer que é cristão e que nasceu na "América".
Enfim, uma infracção ao "fair trial"... mas que vai pegando.

 

Iraque: saída pela porta de trás

Grande é a confusão que reina na "América", no momento da retirada oficial do Iraque, sobre o resultado da guerra: vitória, derrota, empate?
Obama não clama vitória, o que é do mais elementar bom senso. Mas só esse facto já é uma derrota para o Império. Um envolvimento tão profundo e prolongado, tanto dinheiro gasto, mais de 4000 mortos (fora os feridos, os estropiados, os "apanhados", enfim todos os destroços das guerras), isto falando só do lado americano, para um resultado bem magro: uma saída ambígua, pela porta do cavalo, com muitas nuvens negras no horizonte.
A "América" profunda não está contente e vira-se contra Obama. Mas não foi ele que "negociou" a retirada, foi o próprio Bush, o invasor.
O que virá a seguir?
A situação não é igual à do Vietname em 1975, onde existia um forte sentimento de unidade em torno da resistência, que estava unificada. O Iraque, pelo contrário, está tribalizado, com profundas feridas internas.
Uma coisa é certa: será o povo iraquino a curá-las, por muitas "ajudas" que os americanos e outros "amigos" queiram dar.

25 agosto 2010

 

Os baleeiros dos Açores

"Baleia" - Os baleeiros dos Açores, do aventureiro e famoso pescador desportivo inglês Bernard Venables, recentemente falecido, com quase 100 anos, é um relato extraordinário da baleação açoriana e capta como poucos a cultura e o modo-de-ser da comunidade baleeira e a especial cepa dos baleeiros destas ilhas. Após cerca de 40 anos, foi finalmente (2010) traduzido e lê-se de um só fôlego. É uma edição cuidada do Peters Café Sport, cujo único defeito é o de, segundo julgo, não poder ser adquirido noutros locais, prevendo-se que esgote rapidamente.
Trata-se de uma obra que em nada fica a dever à A Campanha do Argus de Alan Villiers, cuja excelente edição, da Cavalo de Ferro, se acha esgotada. Enfim, uma leitura obrigatória para todos os amantes das coisas do mar.

24 agosto 2010

 

Europa e Ásia... Capadócia e Istambul

Muçulmanos…
Europa e Ásia
Viagem à Capadócia e Istambul

Este ano fui visitar um bocadinho da Turquia, país que não conhecia.
Fiquei admirada com a sua organização, planeamento, construção (fiz o percurso entre Capadócia e Istambul em autocarro, sempre em auto-estrada de boa qualidade, parando em Ankara para ir ao museu de arqueologia e também para almoçar).
Pelo caminho fui vendo vilas, aldeias, com uma construção em geral harmoniosa, cada uma com a sua mesquita, mas tudo integrado na paisagem.
A Capadócia, com as ditas “Chaminés das Fadas”, com as cidades subterrâneas, o museu ao ar livre de Göreme, são fascinantes. Só visto mesmo.
Istambul (que este ano de 2010 é capital europeia da cultura) é uma cidade de sonho, que encanta… a não perder!
Claro que terei de voltar a Istambul.
Politicamente a “vida” não está fácil…
Muitos recordam Atatürk, “o pai dos turcos”, e o seu programa de reformas sociais e políticas.
Mas, continuam a ver-se (quer na Capadócia, quer em Istambul) as mulheres com os seus lenços na cabeça ou completamente tapadas (embora com as sapatilhas à vista…), submissas, cumpridoras dos costumes religiosos e não só…

Aqui vão algumas fotos só para abrir o apetite…

 

Istambul

Ramadão (sábado 14/8: nos jardins, em Sultanahmet, famílias aguardam o escurecer e a iluminação da mesquita para poderem comer...)




 

Istambul

A religião






















 

Istambul





 

Istambul

Parte do dia a dia...























 

Istambul

Rua Istiklâl (reservada a peões, na "baixa" moderna da cidade), Torre Galata e vistas gerais













 

Istambul

alguns pormenores...










 

a caminho e chegada a Istambul




Ponte que liga o continente asiático ao europeu (à chegada a Istambul) e uma mesquita no caminho entre Ankara e Istambul

 

Capadócia




quem quer um café?...

 

capadócia

museu ao ar livre Göreme

 

Capadócia






as flores, a electricidade, a parabólica...

 

capadócia

A "invasão" do turismo espanhol é grande (deve ser das maiores), merecendo, como, aliás, noutros países, tradução particular

 

Capadócia



 

Capadócia (chaminés das fadas)

Resultado de erupções vulcânicas e da acção da erosão... milhares de anos

20 agosto 2010

 

Obama, muçulmano secreto

18% dos americanos acreditam que Obama é (secretamente) muçulmano...
(Muitos mais acreditam que o Homem foi criado tal como vem na Bíblia...)
Que deus os abençoe e os ajude a tratarem-se.

 

Deportações dentro da Europa dos 27

O que há de extraordinário na expulsão dos ciganos de França para a Roménia não será tanto o carácter étnico e massivo da expulsão, mas o facto de se tratar de cidadãos (sim, de cidadãos, apesar de ciganos...) comunitários.

 

política criminal televisiva

A maior disponibilidade para passar os olhos pelos telejornais em período de férias, suscita a perplexidade sobre a imbecilidade do que é transmitido e das suas repercussões na dimensão política.
A questão tem ainda mais relevância na dimensão da política penal. Daí que as palavras de Ferrajoli assumam um especial atenção: «Em Itália, como de resto em quase todos os países ocidentais, cresce a percepção de insegurança, enfatizada e solicitada por aquela fábrica de medo que decorre da televisão. Trata-se de um medo em grande parte construído pela política e pelos media. Contrastando com a diminuição objectiva da criminalidade, as estatísticas dizem-nos que de facto o medo cresce progressivamente, tanto quanto cresce o tempo dedicado pelos telejornais às crónicas dos delitos» («Democrazia e Paura» in Democrazia in nove Lezioni, Editorial Laterza, Bari, 2010).

18 agosto 2010

 

Uma fatalidade

A primeira vez que escrevi sobre a praga dos incêndios foi pelo menos há duas dezenas de anos. Era um artigo publicado na última página do “Jornal de Notícias” e tendo um título que roubei a Júlio Cortázar: Todos os fogos o fogo. Depois disso, quando comecei a escrever regularmente nesse jornal, aí pelos fins de 1992, durante mais de uma dezena de anos escrevi numerosas crónicas sobre a cruel devastação do país pelos fogos de verão. Fui sempre movido pela indignação que uma tal destruição sistemática me causava e pelo sentimento agónico de ver o país reduzido a cinzas – este país que eu sempre gostei de percorrer de lés-a-lés, esquadrinhando-lhe o património artístico, cultural e paisagístico, levando como companhia autores que me ensinavam a desvendar-lhe os encantos: Almeida Garrett, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Teixeira Gomes, Manuel Mendes, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoais, Miguel Torga, José Saramago, entre tantos outros, para além de guias de todas as espécies, a começar pelo Guia de Portugal, nunca igualado, os actuais guias da “Presença” e até os guias do “Expresso”. Não havia nada que me desolasse tanto como ver o nosso património florestal consumido de ano para ano, reduzido a um cenário lunar. Quantas vezes passava pela chamadas áreas protegidas da Serra do Gerês e da Serra da Estrela e perguntava a mim mesmo até quando o fogo as pouparia. Pois aí estão consumidas impiedosamente pelas chamas. E já não é a primeira vez que os incêndios as têm assediado.
Agora já não passeio para nem me chatear. Também deixei de me indignar com os fogos. Quero lá saber! É que, de tão repetidos ao longo dos anos (há pelo menos um quarto de século que o país arde desalmadamente), eles tornaram-se uma fatalidade. Ora, não se luta contra a fatalidade. Acabamos por nos resignar a ela. Este país é uma fatalidade incendiária. Este país é, simplesmente, uma fatalidade. Um quarto de século é muito tempo. Já se podiam ter arranjado soluções. Já se criou um serviço cívico que foi extinto sem nunca ter passado de letra morta. Há imensas pessoas desempregadas que recebem subsídios e que podiam ser úteis nessa área, nos vários níveis problemáticos que ela apresenta. Mas nada. De ano para ano apresentam-se sugestões, elaboram-se sistemas mais ou menos complexos, multiplicam-se os meios, e fica-se sempre com a esperança de que, finalmente o país vai deixar de arder, pelo menos, da forma desaforada que tem ardido. Qual quê? O país arde, arde. Pois que arda! É uma fatalidade.


PS – Afinal, este escrito é ainda a prova da minha indignação. De contrário, não escrevia nem sequer uma linha. É isso que vou deixar de fazer.

 

Fotografias reais, e também simbólicas

A "inocência" com que uma antiga soldado do exército israelita divulgou as fotografias de prisioneiros palestinianos algemados e vendados, e a correlativa "surpresa" pela reacção oficial do exército israelita (inevitável, pelo "escândalo", não pela prática em si) revela uma prática generalizada e instituída de violência e humilhação por parte dos israelitas ocupantes.
A pose arrogante da soldado, olhando o seu troféu de caça, vendado e algemado, inteiramente à sua mercê, é o retrato real da relação entre israelitas e palestinianos, mas, de certo modo, é o retrato simbólico da arrogância desmedida de todo o poder imperial para com os submetidos.

 

Iluminações jurídicas sobre «qualquer pessoa»

O CPP, mesmo na sua letra, não permite a qualquer um ser assistente, não é? Se formos ler o artigo 68º do CPP e seguintes, verificamos sem dificuldade que a letra da lei permite que se constitua assistente quem tem uma qualquer relação com o crime.

A letra da lei pode ser errónea (eu não acho, mas dou de barato por uma questão de raciocínio), e é certo que grande parte das leis que nos regulam perdem o espírito na letra. Não tenho a menor dúvida, ninguém de bom-senso a terá, que não era pretensão do legislador, ao consagrar a figura do assistente, permitir que um jornalista, nessa qualidade, se constituísse como tal.

Resumindo, «qualquer pessoa» não é «qualquer um» sem «uma qualquer relação com o crime», e um jornalista não integra o conceito de «qualquer pessoa». Ao ler tão clarividentes linhas caio num lamento solipsista pelo facto de há uns tempos ao empreender um estudo sobre o direito de «qualquer pessoa» se constituir assistente em processo penal por determinados tipos de crimes (como a sobrevalorizada corrupção), e a respectiva genealogia, não ter na pesquisa realizada logrado encontrar opiniões tão iluminadas e luminosas. E hoje, afectado pela subjectiva frustração de ter ficado preso nas areias movediças da ignorância (pois já não posso reparar a falha registada em papeis em curso de impressão), permito-me uma pequena censura aos iluminados que humildemente informam o povo: A modéstia que conforma o respectivo ensino não devia prejudicar a tempestiva e ampla publicidade da sua fineza de raciocínio aos pobres juristas carecidos de orientação e que por vezes não têm acesso tempestivo a tão brilhantes e incisivas lições(*).


(*) Que ultrapassam em riqueza, e força, o universo jurídico - v.g.
Não sei se explicar ao Duarte que dizer o que o CPP permite e não permite a partir da sua "letra" é de fugir é um escrito com paixão ou um escrito histérico ou talvez, com esperança, o Duarte perceba que é normal que as pessoas expliquem com força o que sentem com força, e que já cansa essa conversa do homem que é incisivo e da mulher que é histérica ou dada a estados de alma dizendo ambos a mesma coisa.

Etiquetas: , ,


14 agosto 2010

 

Uma nota marginal e sem porto



Não quero escrever (pelo menos por ora) sobre o despacho e o inquérito de que toda a gente fala(*), embora me pareça imperativa a participação mais ampla (incluindo de meros juristas como o postador) nas questões «gerais» que têm sido suscitadas e levantadas a propósito do caso (até para contrariar monopolismos de múltiplos «interessados» casuísticos), sobre o direito que é e o direito que supostamente deve ser.
Neste último segmento, ao ler esta posta, escrita por um actual deputado, constato o levantamento de uma nova asserção / questão de debate que amplia os termos da discusssão relativa ao mais recente interesse público sobre a metódica dos despachos de arquivamento e o aspecto particular da legitimidade / proibição de referência a perguntas / diligências por fazer (sobre a qual não me pretendo aqui pronunciar).
Com efeito, aí diz-se: «eu parto do pressuposto de que não pode haver impunidade para responsáveis por um processo de investigação que produzem um documento que condena alguém a ser eternamente suspeito», afirmação autónoma e que está está muito para além daquela questão sobre a referência no despacho de encerramento do inquérito ao que não se fez (indagou ou inquiriu) nessa fase processual.
Na posta em causa formula-se uma asserção geral ao preconizar-se a responsabilização, por exemplo, de todos os despachos (e já agora sentenças) que concluam pela ausência de indícios suficientes por via de «dúvida razoável» sobre a responsabilidade de A ou B. Via que põe em causa, na minha leitura, normas vigentes como as que constam do arts. 262.º, n.º 1, 277.º, n.º 2 e 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que o dever de fundamentação dos despachos (e ainda mais das sentenças) pode obrigar à formulação de juízos positivos sobre suspeita contrabalançados pela insuficiência de provas.

(*) Por várias razões pessoais, entre as quais se conta o facto de múltiplos desenvolvimentos / afirmações só terem sido conhecidos decorrido algum tempo da sua ocorrência (por força de higiénica ausência, sem notícias portuguesas...).

Etiquetas: , , , , ,


10 agosto 2010

 

O sonho da razão produz monstros

Goya


07 agosto 2010

 

Post scriptum


O “artigo” que hoje “postei” no blog estava escrito desde ontem, mas não o queria publicar sem o rever. Acontece que tive que sair e regressei a casa muito tarde. Levantei-me a desoras, almocei, revi o escrito e publiquei-o. Ainda não tinha comprado os jornais e, por isso, não sabia que Cândida Almeida teve efectivo conhecimento do despacho final no processo, dando uma explicação que agora não quero comentar. Parecia-me estranho que o tal despacho passasse despercebido à hierarquia.
Por outro lado, dei-me conta que Pedro Soares Albergaria problematizou a questão do “sindicalismo” ou “associativismo” judiciário. É uma questão interessante que ficará para outra ocasião.

 

Excessos a todos os níveis

A meu ver, tem havido excessos a todos os níveis nesta questão do Ministério Público.
Em primeiro lugar, o despacho final no processo “Freeport” aparentemente ultrapassa os limites de um despacho daquela natureza. Pelo menos, é insólito e deixa muitas dúvidas no ar quanto à condução do processo e da investigação. Essas dúvidas quererão insinuar que os procuradores que têm o processo a seu cargo encontraram “barreiras” que não conseguiram superar para o cabal esclarecimento dos factos. Aliás, segundo o que tem vindo a lume, afirma-se directamente no despacho que foi hierarquicamente imposto um limite temporal que impediu a continuação da investigação. E nele são enunciadas as perguntas que os procuradores tencionavam colocar a duas entidades que alegadamente não puderam ser ouvidas, o que, na realidade, não deixa de ser estranho. Mas pergunta-se: esse despacho colheu de surpresa a hierarquia? A hierarquia demitiu-se, no caso, de exercer as suas competências, estando em causa um processo com tão forte impacto na opinião pública e na imagem da justiça? É outro facto estranho e até contraditório.
Em segundo lugar, é estranho que o procurador-geral tenha vindo a público, depois de tudo isto, insurgir-se tão indignadamente contra o sindicato, a falta de poderes dele próprio e da hierarquia em geral, o conceito de autonomia de certos magistrados e do sindicato em particular, como se fosse esse conceito de autonomia (o de cada magistrado proceder como lhe aprouvesse) que vigorasse no estatuto. E, por fim, é inédito, na história do Ministério Público, o apelo patético que acabou por fazer aos políticos para lhe concederem mais poderes.
Em terceiro lugar, excessivo foi o contra-ataque do sindicato, usando uma linguagem “feroz” contra a hierarquia do Ministério Público e dando, assim, razão aos que, do lado da mesma hierarquia, o acusam de defender interesses próprios e entravar a acção desta magistratura.
Em quarto lugar, também me parece pouco “curial” que magistrados com assento privilegiado na comunicação social venham intervir na contenda, duplicando a voz do procurador-geral e falar como se ocupassem um lugar especial de autoridade, denunciando o que denominam de “falta de mérito”, colocando-se, assim, eles mesmos, numa posição de mérito indiscutível.
Por último, as palavras de Francisco Assiz, líder da bancada do PS, apodando o despacho dos procuradores que intervieram no caso “Freeport” de “canalhice”, excedem os limites da crítica legítima, para caírem no domínio do ataque insultuoso.

05 agosto 2010

 

Uma desordem

Tenho, como sempre tive, fundas reservas (tantas quanto concordo com o associativismo judiciário, porventura até com certas especificidades) sobre o sindicalismo judiciário, já para não falar de um “direito à greve” (?) por banda dos juízes. Mas atrevo-me a dizer (o que a alguns parecerá um paradoxo) que o sindicalismo do MP tem contra si uma objecção até mais forte do que as que se podem erguer ao sindicalismo da judicatura. É que a estrutura do MP é uma estrutura hierarquizada e esta é, de par com a autonomia (do MP, não de cada um dos seus representantes…), a sua mais importante característica, aquela que permite a contenção de derivas discricionárias reais que são uma tendência (como se tem visto) inevitável mesmo num sistema, como o nosso, de legalidade formal.

Ora, está-se a ver – é um facto que, com intensidade crescente, se observa diariamente na comunicação social – como um sindicato pode degradar e colocar em cheque aquele traço fundamental da estrutura do MP: a hierarquia e a ordem que lhe é inerente (e, em decorrência, a funcionalidade que a ordem visa assegurar). Vê-se claramente como ao invés de reivindicações profissionais (as mais delas porventura legítimas), essa estrutura se ocupa, não raro, de comprometer a autoridade (sim, autoridade, não há que ter medo da palavra) do PGR e da “hierarquia”, que disso só já tem o nome. Com as devidas cautelas, pode dizer-se que “aquilo”, por dentro, devia ser uma “ordem” e não uma “democracia”. Agora não parece nem uma democracia e nem é uma ordem: é uma desordem instilada de fora.

Claro, há razões objectivas para todos recearmos a evolução da coisa, que pode bem ser uma involução, já que o risco de confundir o problema da hierarquia (ou da falta dela) com o da autonomia já se desenha no horizonte. Ninguém deverá ficar surpreendido se a pretexto de desvarios hierárquicos, funcionais e deontológicos, mais ou menos localizados, os políticos “cortem”, no fim de contas, na “autonomia”, aspecto mais abstracto e menos ligado às características dos concretos protagonistas da estrutura do MP (do MP, não do sindicato). As coisas estão ligadas e o risco de confusão (dolosa ou negligente) é óbvio. Mas se se continuam a por a jeito…

04 agosto 2010

 

Os "ses" e os "mas"

A decisão final do juiz, em processo penal, pode ser uma de duas: condenação ou absolvição; a decisão final do MP, em inquérito, pode ser uma de duas: acusação ou arquivamento. De modo especial, nas duas últimas hipóteses, respectivamente (absolvição e arquivamento), as referidas decisões, expostos os respectivos fundamentos, são para serem proferidas de modo “seco” e claro (p. ex., “absolvo o arguido”, “determino o arquivamento”, etc.). Esta secura desenxabida não é um mero capricho do legislador, porventura obcecado com questões de “economia processual”. Aliás, este estilo enxuto não é um mero estilo: de modo bem mais substancial visa-se garantir a observância de um princípio constitucional que é, ele mesmo, uma garantia fundamental do processo penal. Trata-se, é óbvio, do princípio da presunção da inocência. Por isso, em questões de mérito, não há absolvições ou arquivamentos com “ses” ou com “mas”. Fazê-lo é não apenas espezinhar aquele princípio – que se aplica a todos, mesmo aos poderosos, mesmo àqueles por quem não nutrimos simpatia – mas entrar por uma discursividade (ou ao menos o caso pode ser assim percepcionado), por um patamar – o do combate político –, de que as magistraturas devem se afastar a todo o custo. Como o diabo da cruz.

 

O Ministério Público, hoje.




Tive, por opção, uma vida longa no Ministério Público, só interrompida por um curto período na judicatura, até que concorri ao Supremo Tribunal de Justiça.
Conheci vários procuradores-gerais da República: Pinheiro Farinha, Arala Chaves, Cunha Rodrigues, Souto Moura, este agora meu colega no STJ. Pinheiro Farinha foi o magistrado escolhido para fazer a transição da ditadura para a democracia. Arala Chaves foi o que estabeleceu a transição do velho para o novo Ministério Público, em que este foi dotado de um estatuto que lhe conferiu as características de uma carreira própria, independente da magistratura judicial e servida por quadros próprios.
Cunha Rodrigues foi não só o continuador da obra começada por Arala Chaves, como aquele procurador-geral sob cujo “consulado” foi conferida ao Ministério Público a sua estrutura actual, dotando-se esta magistratura de verdadeira autonomia em face do poder político, a qual só veio a ter consagração constitucional na revisão de 1989. Claro que nisso jogaram papel importante várias forças (políticas: PS, PSD, PCP e outras; jurídicas, onde campearam juristas e constitucionalistas de vários quadrantes; sindicais, sobretudo o sindicato do Ministério Público).
Souto Moura deu continuidade à estrutura herdada do antecedente procurador-geral da República.
Nenhum destes procuradores-gerais se sentiu mal com os poderes que tinha; nenhum deles se sentiu impedido ou peado para os exercer, através dos canais próprios da hierarquia, que nunca foi tolhida no exercício das suas competências. Mais: todos eles conviveram com o Sindicato do Ministério Público, muito embora fossem equidistantes dele e não se impedissem de o criticar (a este título, foi paradigmática a atitude de Cunha Rodrigues). Isto mesmo em épocas mais conturbadas politicamente e de mais forte pendor ideológico do Sindicato.
Se há uma crise actual no Ministério Público, estou certo que ela não se deve apenas à actuação em “roda livre” dos seus magistrados (acusação antiquíssima de muitos detractores do Ministério Público), ou, pior, à sua “indisciplina” e “insubordinação”; deve-se também à falta de exercício das competências da hierarquia. O apelo ao acréscimo de poder de autoridade não passa, talvez, de uma máscara para essa insuficiência. Quando passei pelo Ministério Público, um qualquer caso relevante, como o “Freeport” (ainda para mais tão mediático) não se desenrolava à margem da hierarquia. Os magistrados encarregados do caso eram “fatalmente” orientados, supervisionados e estreitamente acompanhados pelos superiores hierárquicos. Nenhum passo era dado sem que eles o soubessem ou do qual não fossem informados. E o procurador-geral não era alheio a esse controle. Um despacho final num quejando processo não podia colher de surpresa a hierarquia. A menos que um grave desfasamento afectasse o relacionamento de um tal ou qual magistrado com a estrutura hierárquica. A autonomia do Ministério Público não era idónea para justificar situações dessas.
Acho, por isso, estranho que os magistrados encarregados do “Freeport” tenham actuado, ao elaborarem um despacho de tanta responsabilidade como é o despacho final num caso tão investido pela opinião pública (e por uma opinião repleta de vozes díspares) completamente à revelia da hierarquia. Se assim foi, esse é o sintoma de uma crise mais profunda para a qual se tentam arranjar “bodes expiatórios” e, porventura, forjar o ensejo para alterações espúrias no estatuto do Ministério Público, como seja o regresso a um autoritarismo que foi apanágio desta magistratura noutros tempos, e até fazer incursões redutoras naquilo que o Ministério Público tem de mais capital - a sua autonomia. Já há vozes que o proclamam, sem terem a mínima noção do que seja essa autonomia, confundindo-a com “indisciplina”, funcionamento “em roda livre” ou ineficácia hierárquica. Mas é assim, por vias muito sinuosas, por força de uma opinião deturpada, que às vezes se faz a História.
Um último apontamento: o sindicalismo judiciário é, provavelmente, um dos “bodes expiatórios” que se tentará abater como factor de indisciplina, de perversão do sistema e de perturbação institucional. À equidistância e ao distanciamento crítico, mas também convivente e frutuoso, que caracterizou outras épocas, a tendência é para uma excessiva e culpabilizante imputação de intenções e para uma crispação de parte a parte, que auguram o pior.

03 agosto 2010

 

A «crise» do MP

Noutros momentos, porventura bem mais complexos e mais próximos da sedimentação dos princípios que sustentam a actual estrutura do MP no quadro constitucional, outras personagens resistiram à tentação do controlo e manipulação de uma magistratura fundamental à independência dos Tribunais.
Daí que seja legítimo questionar se a «crise» do MP não é, afinal, uma crise de protagonistas.

01 agosto 2010

 

Voltando ao Freeport


Ao ouvir a charla de Marcelo Rebelo de Sousa, reactualizei uma questão que estava no meu subconsciente, quando escrevi o texto precedente. A questão é esta: qual a razão por que, no despacho do Ministério Público, foram exaradas as questões que os investigadores projectavam colocar ao ministro do Ambiente (actual primeiro ministro) e ao secretário de Estado, caso fossem ouvidos no processo?, questões que foram logo tornadas públicas em todos os meios de comunicação social? Não encontro explicação para um tal procedimento.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)