29 junho 2012

 

Qual é o mal de criminalizar o cliente da prostituta?

Espalha-se agora pela Europa um nova moda de política criminal(mente correcta): a incriminação do cliente da prostituta. Sob impulso dos estados nórdicos, expande-se para sul o modelo neo-proibicionista de desenho sueco. As notícias provenientes de França, o debate em Inglaterra e a retórica de académicos nacionais vêm dar força àquela ideia. Recentemente, num artigo de opinião publicado em 11.12.2011 no Correio da Manhã, uma ilustre professora de Direito penal veio dizer que essa incriminação seria necessária a uma espécie de protecção integral da dignidade da "vítima". Tudo devia, pois, decorrer como "já sucede" em países como a Suécia. O "já" tem o valor retórico de assinalar àquele desiderato um sentido progressista (para mais em tratando-se da Suécia...). Mas não é com mera retórica que se resolvem problemas deste calibre. O "já" também poderia ser usado para defender modelos laborais como o Holandês ou o Alemão - e a ninguém ocorrerá dizer que esses modelos são reaccionários e que na Holanda e na Alemanha não sabem o que é o liberalismo.

O nó górdio do problema é outro e mais concreto. Centra-se na estratégia de fazer do conceito de dignidade humana o "Cavalo de Tróia" através do qual, com relativa segurança, se pode invadir a restrita cidadela do Direito penal com sortidos paternalismos e moralismos. Na verdade, poder-se-ia acolher (mas dificilmente justificar) a incriminação do cliente daquela que se prostitui sem que a isso seja obrigada (claro que muitos dos que defendem essa incriminação negam a possibilidade de haver verdadeiro consentimento na prostituição - mas essa posição releva da fé e é desmentida por um módico de realismo; por outro lado, em tratando-se de prostituição forçada a legitimidade da intervenção penal é indiscutível, mas agora com base no harm to others principle) ora num paternalismo ora num moralismo jurídicos. Ali, tratar-se-ia, a mais de paternalismo indirecto (isto é, punido seria um terceiro e não o beneficiário da acção paternalista), de um paternalismo duro ou forte (é dizer: imposto a quem tem integros os mecanismos de cognição e vontade; é muito problemática a sua legitimidade em especial em matéria penal); aqui (moralismo), tratar-se-ia da pura e simples protecção penal de um "valor", desprendida da concreta violação de um qualquer bem palpável da vítima.

Sucede que trazer o debate sobre o paternalismo para o âmbito do Direito penal não implica, naturalmente, deitar borda fora as estruturas de pensamento e análise que já deram provas nesta área do Direito. Penso, antes de mais, nos crimes de perigo abstracto (aqueles em que o perigo é a motivação da incriminação, dela não sendo elemento explícito) que é através deles que em geral se tipificam condutas como a em análise (e também, p. ex., do lenocínio "simples"): punir-se-ia o cliente porque vaga e remotamente contribui para a formação de um "mercado" (o da prostituição) no âmbito do qual, algures, prostitutas podem ser lesadas na sua autonomia ou direitos. Ora, como se sabe, para que de perigo abstracto se possa falar com rigor, não basta invocar a mera contingência de certas violências em relação a certas actividades, uma mera associação de certos perigos ou danos a determinadas actividades. Fosse assim havia que criminalizar muitíssimas actividades e certamente algumas antes do que a prostituição. Imperioso é que se postule um nexo empiricamente verificável entre as mesmas (v .g., o exercício da prostituição) e determinados danos ou perigo relevante deles. Essa verificação empírica não sendo suficiente para legitimar a incriminação (que depende sempre, é óbvio, de considerações normativas) é porém necessária a um tal passo. Numa palavra, ela é imprescindível para conferir falsificabilidade à decisão do legislador. É esta verificação empírica categórica que falta no fenómeno (altamente diversificado) da prostituição, por muito que se grite em sentido contrário em "estudos" empíricos de proveniência feminista radical, amiúde afectados por graves enviesamentos metodológicos, para dizer o menos (há copiosa literatura sobre o valor desses "estudos"). A sua falta implica uma consequência: a desproporcionalidade da intervenção penal e com ela a respectiva inconstitucionalidade. Creio, por isso, que para afastar a legitimidade de uma tal intervenção aparentemente paternalista talvez nem seja necessário recorrer a uma argumentação deontológica centrada na preservação da autonomia de quem se prostitui (autonomia essa em geral olimpicamente desprezada por moralistas de proveniência sortida). Claro que as objecções que se poderiam suscitar nesta sede seriam talvez de tomo maior ainda do que aquela já referida. Mas, como disse, isso será talvez desnecessário.

Assim, o que se pretende proteger com a incriminação é um valor em si e por si - sejam eles os valores da moral sexual cristã, a "imagem" da mulher ou whatever. É aqui que entra em cena o conceito (melhor: uma certa concepção) de dignidade, valor grandiloquente que quando invocado tende a atirar por terra a parte contra quem é esgrimido. É através de um certo entendimento dele que, aqui e ali e até de modo crescente, se denfendem soluções não apenas paternalistas (a sua invocação  permite ultrapassar o escolho do consentimento da "vítima") mas mesmo moralistas (permite identificar um latíssimo "dano") de intervenção penal. É, dizia, o que sucede com certo tipo de retórica que erige a dignidade humana a se como bem jurídico penalmente tutelável, uma dignidade objectivada, insusceptível de em certa medida ser modelada por acção do portador e que além disso (e talvez por isso) surge mais como fundamento de obrigações dele para consigo mesmo do que esteio, "ADN", dos direitos fundamentais (a decisão de um tribunal do trabalho espanhol que, à força da contrariedade aos "bons costumes" do negócio prostitucional, recusou pensões sociais aos filhos menores de uma prostituta que faleceu num acidente de viação entre o local de trabalho e a sua casa ilustra bem o que quero dizer). Trata-se de uma visão da dignidade despida de concretude, alheia aos problemas reais do respectivo portador e em geral imprestável para servir de suporte à reclamação de direitos, nomeadamente económicos e sociais. Serve antes para ser usada pelos gestores da moral colectiva ao sabor das inclinações ideológicas respectivas e sob o manto diáfano da sua aparente "laicidade" ou neutralidade liberal.

Por tudo, concordo com o o que aqui já se disse sobre essa nova moda. Em todo o caso, não se julgue que este tipo de moralismos são alvará exclusivo da Direita conservadora, nomeadamente clerical. Eles são promovidos - e até de modo prevalente - por uma certa Esquerda inclinada ao feminismo militante. Inspirações dessas são detectáveis na retórica argumentativa de certa jurisprudência de jurisdições constitucionais e bem assim nas fontes de que se alimenta. Nesta matéria, conservadorismo clerical e feminismo radical (perdoe-se-me a rima) fizeram tréguas de outras "guerras". E passeiam alegremente de braço dado.


27 junho 2012

 

No mundo da Velocidade



Segue-se texto do colaborador do Sine Die Luís Eloy que lhe atribuiu o título em epígrafe:



A leitura do recente livro Velocity the seven new laws for a world gone digital de Ajaz Ahmed e Stefan Holander, da editora Vermillion, representa uma fascinante incursão na cabeça de dois extraordinários criativos do mundo actual.
O primeiro é o fundador e chairman da célebre AKQA e o segundo vice-presidente da Digital Sport da Nike que, numa espécie de diálogo estruturado, reflectem sobre o seu/nosso mundo actual.
Quem vive o quotidiano cinzento escuro da magistratura tem muito a aprender com este livro descontraído e muito inteligente.
Tratando-se de um conjunto de muitas ideias para reflectir, oriundas de um universo bem determinado e diferente, poderemos, não obstante, citar algumas sumarizações bem interessantes.
Aplicável ao processo formativo: “People who have been trained the same way end up thinking the same way. You need to have a broad range of experiences and a broad range of ideas to make a meaningful contribution”.
Aplicável às organizações: “For organizations with structures that sand down all rough edges and desiccate anythig juicy, something terrible will happen: nothing”.
Sobre a liderança: “ You´re only a good leader because you have a team with wich you can have frank, open-minded discussions that will enable you to reach the best decision”.

Luís Eloy      

26 junho 2012

 

A resoeito da "abolição" da prostituição


A respeito da “abolição” da prostituição

Também quero manifestar a minha concordância com o Maia Costa a respeito do projecto de criminalização, em França, pelo governo socialista, dos “clientes” da prostituição. Já por várias vezes escrevi sobre este tema e sempre manifestei relutância por iniciativas desse género. Iniciativas pseudo-progressistas, de cariz puramente moralista. Trata-se de um radicalismo  que só na aparência está nos antípodas de posições assumidas por “ayatolas” de outros quadrantes ideológicos e religiosos.

Como escreveu D. H. Lawrence, a respeito destas coisas, em Pornografy and Obscenity (tradução portuguesa de & ETC, 1984), «a lei é uma coisa enfadonha e o seu julgamento nada tem a ver com a vida».

 

A questão do TC




Fui recentemente envolvido na questão do Tribunal Constitucional, tendo sido o segundo juiz recusado por um dos partidos, como noticiaram os jornais. A estes voltarei um dia destes. Sobre a recusa não direi uma palavra.

O que aqui me traz é tão somente o desejo de manifestar concordância com a opinião de Maia Costa.  Também sou contra a ideia de extinguir o TC e transformá-lo numa secção do Supremo Tribunal de Justiça, embora eu deva dizer que nunca a expressão livre das minhas ideias constituiu impedimento para eu exercer as minhas funções, de uma forma que creio ser reconhecida como independente e isenta, no STJ. Mas o certo é que sou a favor do pluralismo judiciário e que o TC é um tribunal com características especiais que não seriam devidamente satisfeitas se ele fosse transformado numa secção daquele Tribunal.

Também dou razão ao Maia Costa no que diz respeito à nomeação dos juízes pelo presidente da República. Pelo menos, de todos os juízes. Nem pensar.

 

Abolir a prostituição...

A nova ministra francesa (socialista) dos "Direitos das Mulheres" anunciou um projeto legislativo ambicioso: abolir a prostituição, mediante a criminalização dos "clientes"!
O equívoco é logo evidente: abolem-se leis, instituições, regimes jurídicos. Não se abolem práticas sociais! A prostituição não vai acabar por decreto...
Pretendendo-se emancipador e progressista, este projeto é, na verdade, tributário de uma visão ideologicamente conservadora, puritana e maniqueista do fenomómeno da sexualidade. É uma estranha simbiose de feminismo/puritanismo de cariz acentuadamente conservador.
E sobretudo não protege as prostitutas, antes as estigmatiza mais e as entrega mais facilmente à exploração, à doença, à violência.
Acresce que o fenómeno da prostituição não corresponde já aos estereótipos clássicos: "modernizou-se", diversificou-se, complexificou-se. Receitas simplistas e demagógicas como esta passam ao lado da realidade.
A proposta da, certamente bem intencionada, ministra francesa é irracional, irrealista, ineficaz. E contraproducente. (E pouco socialista, na verdade.)

24 junho 2012

 

TC: já há juízes

Já há "candidatos" às vagas do TC. Agora falta votar, ou seja, ratificar a escolha já feita... Disse aqui, e mantenho, que o processo de recrutamento dos juízes do TC não é isento de dúvidas ou mesmo de críticas, por excessiva exposição aos pactos partidários. O processo que agora chega ao fim confirma eloquentemente esse vício maior. Mas algumas "sugestões" alternativas que vieram a lume não são melhores... Um TC relegado para secção do STJ seria a menorização do estatuto do tribunal. A escolha dos juízes por via presidencial seria ainda bem pior, conhecido o sectarismo com que foram escolhidos os membros do Conselho de Estado... No fundo, a escolha parlamentar, pela exposição pública que tem, é objeto de algum controlo pela opinião pública. (Bem, isso é mais no plano teórico...) Agora os juízes têm pela frente uma prova de fogo: o processo dos "cortes". Estou sinceramente convencido de que não houve compromissos prévios... Isso seria indigno de juízes, não é verdade?

22 junho 2012

 

O desassombro de Soares






Mário Soares, por vezes, entra a fazer declarações desalinhadas e a verdade é que consegue partir a loiça. Com o desassombro que caracteriza algumas das suas tomadas  de posição e a soberana indiferença de quem se está borrifando para o que possam pensar do que diz, mas não abdicando do efeito que as suas atitudes possam causar, ele arremete de frente contra o touro e com um certo prazer na arremetida. Não é que valham pelo ineditismo, mas algumas das suas palavras, ditas por ele, com a autoridade dele, arreliam muita gente e têm o condão de mostrar, com maior realce, que o “rei vai nu”.

É o caso das suas declarações vindas agora a lume na imprensa, a respeito da troika e da senhora Merkel. Reproduzo do “Público”:

A troika o que faz é ganhar o seu dinheirinho – e os seus membros ganham razoavelmente bem – e garantir que os mercados continuem a mandar nos Estados e que os Estados se transformem em protectorados.” Soares apelou mesmo à insubordinação contra a troika e mostrou estranheza por os portugueses permitirem que «uns tecnocratas que ganham rios de dinheiro decidam o seu futuro.»

Quanto à senhora Merkel, Soares disse que «está na hora de a senhora Merkel regressar à Alemanha de Leste e de se fazer esquecer».

De caminho, afirmou que teria muito prazer em apoiar uma candidatura
à presidência da República do ex-secretário-geral da CGTP, Carvalho da Silva, em 2016. Soares revela-se, na verdade, um político imperecível. É por essas e por outras que, às vezes, apetece dizer: “Soares é fixe”.

 

Como se constrói uma "notícia"

No passado dia 17.6.2012, o "Correio da Manhã", publicava uma notícia intitulada "Vice do Supremo contesta mapa", notícia acompanhada de uma fotografia de um palácio de justiça e outra do Vice-Presidente do STJ Henriques Gaspar. Em subtítulo dizia-se: "Henriques Gaspar, vice-presidente do STJ, criticou o fecho do Tribunal da Pampilhosa da Serra".
No desenvolvimento da notícia, já se dizia, porém, que a "critíca" era "implícita"...
Ora, não há nada como ir à fonte (quando é límpida)...
Aqui vai de seguida o que efetivamente disse Henriques Gaspar: compare e descubra as diferenças...



[3º Encontro da Associação de Juristas de Pampilhosa da Serra – 16 e 17 de Junho de 2012 – Intervenção na Abertura do Presidente da Mesa da Assembleia-Geral, António Henriques Gaspar]
         Senhoras e Senhores,
Meus Amigos,
         Saúdo afectuosamente todos vós, convidados e participantes, que quiseram honrar-nos com a vossa presença no 3º Encontro da Associação de Juristas de Pampilhosa da Serra.
         Saúdo o Senhor Presidente da Câmara Municipal, e em si todos os autarcas do concelho, deixando sublinhado o imenso respeito pela missão de serviço que os autarcas do nosso concelho dedicadamente asseguram no contexto particularmente difícil das circunstâncias destas terras.
         A democracia de proximidade é refracção essencial dos valores democráticos; é a primeira frente do combate pela coesão e pela cidadania.
         Modelando esta democracia de proximidade nas comunidades isoladas do interior desfavorecido, os autarcas multiplicam capacidades de dedicação: têm de ser inventores e estrategas de políticas públicas activas em espaços físicos e humanos com imensa complexidade; são gestores rigorosos de orçamentos escassos em situação de exigência social; são provedores nas questões de cidadania e dos direitos dos mais desfavorecidos; são árbitros em momentos conflituais; fazedores de consensos; são por vezes o conforto amigo que sabe ouvir e compreender para retemperação dos mais desfavorecidos em horas de desesperança.
         Por aqui, a democracia exerce-se e vive-se assim, em dedicação de todos os dias.
[…]
         Meus Amigos,
A AJPS é uma associação de pessoas ligadas à Pampilhosa da Serra em primeira ou segunda geração, que decidiram por em comum a disponibilidade pessoal e a experiência nas áreas diversas do direito, com a finalidade de pensar formas de acção em benefício e utilidade desta terra, em comprometimento cívico com ideais, e com o desprendimento de quem não espera qualquer agradecimento nem nenhuma recompensa.
A Pampilhosa e as suas terras são o berço ou a referência de muitos e notáveis juristas que, em diversas épocas, serviram devotadamente Portugal.
A Pampilhosa sempre foi terra de lei.
A autonomia e a liberdade pela justiça fazem parte da nossa história municipal, ainda hoje bem marcada na data do feriado municipal - 10 de Abril - que comemora a recuperação da autonomia em 10 de Abril de 1385, também pela força e pela luta do povo, contra a retirada do privilégio de jurisdição.
Recordemos, hoje, 600 e tal anos depois, o episódio da História.
Esta terra foi também sociologicamente espaço de valores seguros de relação.
A rectidão constituía o valor superior que permitia construir relações justas nas comunidades isoladas do interior; na rectidão vai implicada a noção de justo e de justiça relacional, o viver honestamente como compromisso forte pela palavra dada e equidade na acção.
Historicamente foi terra sem domínio senhorial ou de imposição, construindo, na sobriedade avara das condições da natureza, uma sociedade essencialmente de iguais.
A liberdade foi modelada nas estruturas sociais específicas da serra, constituindo um valor essencial à compreensão do valor da justiça. O homem da serra é intransigente na sua liberdade: com a sabedoria da prudência, é insubmisso contra o arbítrio, contra as injustiças, e sóbrio no modo como enfrentou os infortúnios.
Como sistema de referências e «bússola interior» que nos orienta, estes valores assumem-se como a constituição genética da nossa Associação.

A AJPS nasceu como ideia em Setembro de 2008, contemporânea da crise que tem afectado todos os equilíbrios, fragiliza aqueles que são mais frágeis, agrava a insegurança da existência; a incerteza do amanhã tornou-se um princípio de vida.
Temos vivido, por isso, tempos de horizonte saturado, envolvido por uma tensão fragmentária pós-moderna, com riscos de pulverização ao serviço da ditadura da «razão instrumental» da finança.
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não pode ser naturalizada como tragédia insondável no «crepúsculo dos deuses»; não foi um acidente da natureza como o furação Katrina ou um tremor de terra; resultou sobretudo da falência de teorias económicas que induziram e capturaram políticas suicidárias de desregulação financeira.
         Os efeitos da crise tornam-se mais intensos sobre os mais frágeis e humildes; esta periferia no coração de Portugal, onde hoje nos reunimos, sofre de modo agravado as consequências de uma abstracção, que lhe dizem inevitável, mas que não pode compreender.
Numa época sem tempo de reflexão, inundada pelo frenesim do momento e dominada pela tirania da urgência, o nosso comprometimento interdita-nos a leveza da superficialidade.
Devemos – e queremos – dar o melhor, contribuindo em conjugação com outros saberes para servir a Pampilhosa e as suas gentes, colaborando com liberdade e independência com os poderes democraticamente legitimados.
Com a liberdade e a independência próprias do homem da serra, sabendo bem da dificuldade de percepção do valor da independência numa sociedade, como a portuguesa, culturalmente marcada por dependências, em que a independência é compreendida, não poucas vezes, como gestão de dependências.
Como entidade emanada da sociedade civil, queremos exercer o dever de influência, não na Pampilhosa, mas para a Pampilhosa, sempre e onde pudermos fazer passar a mensagem em favor do conhecimento e da coesão.
Nas sociedades complexas do tempo que vivemos, subjugadas pela impossível tarefa de gestão dos medos – da incerteza, do infortúnio, do desemprego, da pobreza – com a angústia da liberdade (de que falava Vaclav Havel), o dever de participar interpela-nos, acreditando que o tempo dos relativismos estará a chegar ao fim.
Este «Encontro» constitui um modo de participação, de reflexão e de partilha.
Estou certo que irá contribuir também para o conhecimento – e reconhecimento – das circunstâncias desta terra e das suas gentes, e para a discussão, serena e livre, dos limites da desertificação institucional que sejam suportáveis - ou insuportáveis – pelo imperativo de cidadania.
Ajudando na invenção de soluções, ainda domináveis em tempos de penúria, que possam dar algum sentido ao compromisso entre a razão instrumental e a coesão na cidadania.
Neste espaço, que faz parte da nossa aventura comum há mais de 700 anos, há pessoas que querem ter a liberdade de viver aqui.
E que têm o direito de exigir dos poderes centrais a solidariedade - na coesão material, mas também nos sinais simbólicos que dão o sentimento de pertença a uma comunidade de cidadãos.
Pensando em conjunto, gostaríamos de poder contribuir para encontrar esse caminho.









 

20 junho 2012

 

O Manso Leão Europeu

Jean Monnet está certamente desassossegado e incrédulo na sua campa a sentir o desmoronar do edifício europeu. A Europa como um todo está a cair, a ser esventrada pelos seus políticos com a ajuda das hienas que aqui vêm comer os restos mortais dos povos.

Da inexorável senhora Merkel ao seu fiel porta-voz, do insuspeito governo tecnocrata italiano ao impávido governador do BCE, dos defuntos Berlusconi e Sarkozy à onda conservadora greco-ibérica, dos despesistas aos exterminadores de défices; todos jogam avidamente com o que não lhes pertence, seguem enfileirados num conjunto de ideias vagas e injustificadas, distorcem os princípios básicos da formação da União Europeia, transformam batalhas perdidas em guerras ganhas, e não protegem aqueles que os lá colocaram. Conseguiram em dois ou três anos destruir uma obra de 50, conseguiram levar 500 milhões de europeus até um precipício tão fundo, que quem lá cair não morrerá da queda, mas sim de fome, de fúria, e de desespero, antes de se esborrachar lá em baixo. Estão dispostos a sacrificar os seus povos à luz de uma desarticulada teoria económica que dificilmente algum dia constituirá doutrina. É como se, de um momento para o outro, a história de Saramago se tivesse tornado realidade, e todos tivessem ficado cegos. Precisam de uma nova aparição, mas desta feita não a de Nossa Senhora. Talvez do fantasma de Keynes, cuja aparição em Bruxelas, como a da Nossa Senhora em Fátima, pudesse trazer novamente esperança e fé.

A falta de unidade política na Europa atrai os rapinantes abutres e as cobardes hienas, sempre à coca das sobras. É assim que as hienas Moody's, S&P, e Fitch actuam. Pela calada da noite preparam emails, que depois disseminam viricamente pela rede durante o dia, sem nunca se aproximarem demasiado da presa. Apenas uma vez se arriscaram um pouco mais, mas ouve baixas no grupo. O chefe da S&P foi eliminado pelo governo dos EUA após a mordidela na sua estelar nota de crédito AAA.

A Europa é uma presa mais fácil. Os leões são mansos, não retaliam os ataques. Estão dispostos a comer com as hienas do mesmo prato, e até deixar que elas usurpem toda a comida, enquanto os seus filhos são abandonados sem qualquer protecção e compelidos a buscar a fortuna a outras paragens.

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Filipe R. Costa


 

Sem papas nalíngua


Na Grécia ganhou, finalmente, o bom senso. Não foram em vão os apelos, as pressões e mesmo as chantagens que de toda a parte, sobretudo de gente importante da (Des)União Europeia, se fizeram sentir. Entretanto a Sr.ª Merkel & Companhia não perderam tempo a lembrar que era preciso cumprir os compromissos. Ora aí está!

Por seu turno, Christine Lagarde já prescreveu a receita para Espanha: aumentar o IVA e cortar nos salários. Ora assim é que é falar sem papas na língua.

 

As leis laborais

A nova legislação laboral, que vibra uma machadada de morte no que ainda sobejava da destruição sistemática dos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem merecia um esforço do presidente da República para a remeter ao Tribunal Constitucional para apreciação preventiva da sua constitucionalidade. Porém, o presidente entendeu que não valia a pena, porque, entre outras coisas, foi pouco contestada. Não sei qual foi o instrumento de medição usado para a avaliação dessa contestação e também desconhecia que um dos parâmetros a ter em conta na aferição da constitucionalidade dos diplomas legislativos é a vozearia que se faz à volta deles. Mas o certo é que essa legislação foi mesmo objecto de repúdio por parte de largos sectores da população e da opinião pública. Qual é, então, o sector relevante para o efeito?

 

A linguagem-máscara


A luta que se prossegue nos terrenos político, económico e social também não prescinde do aggiornamento da linguagem, para usar um termo bonito e brando. A linguagem é mesmo um dos veículos privilegiados da visão que se pretende imprimir das coisas, no confronto ideológico latente na sociedade. Ela é, a esse título, parte desse confronto, que, apesar de tudo, se tenta apagar através dela. Há dias, falei de um termo em voga dessa linguagem-máscara: flexibilização. No sábado passado, no Público, Pacheco Pereira falou de outro: ajustamento. Diz ele: «Nenhuma palavra traduz melhor os tempos que atravessamos do que “ajustamento”. Em vez de se dizer que se cortam salários, diz-se que se “ajustam” salários. Em vez de se dizer que se despede, diz-se que se “ajusta” a mão-de-obra. Em vez de se dizer que se aumentam os impostos e se cortam despesas, diz-se que se “ajusta” o orçamento», etc.

11 junho 2012

 

Nada a esconder na Books de Junho

Segue-se texto do colaborador do Sine Die Luís Eloy que lhe atribuiu o título em epígrafe:


Nem de propósito o dossier da revista Books de Junho é dedicado à sociedade de vigilância e ao pretenso (ou pretendido) desaparecimento da intimidade da vida privada.
Três textos se destacam: de David Cole, de Daniel J. Solove e de Peter Singer. Os dois primeiros são juristas e professores norte-americanos e o terceiro é um bem conhecido filósofo, com obra traduzida entre nós.
Afloram-se questões jurídicas bem actuais como a eventual necessidade de mandado para a utilização de um GPS colocado para seguimento de uma viatura por um período longo (IV Emenda da Constituição Americana e a decisão do Caso Jones) ou se a revista de um suspeito permite o acesso aos seus SMS.
Mas também as consequências para a intimidade do admirável mundo novo do Facebook, Google, Twitter e do acesso do Estado a dados privados dos cidadãos.
Um bem interessante dossier, cujo único defeito é ser pequeno, e do qual retiraria uma simples frase, infelizmente cada vez mais programática, do sociólogo Edward Shils, de 1956, no apogeu do maccarthysmo, que dizia que uma democracia liberal passa pelo respeito da vida privada dos cidadãos e pela transparência do governo.

Luís Eloy


07 junho 2012

 

Os tribunais, segundo Conceição Gomes

Já aqui fiz o elogio do Dicionário das crises e das alternativas. É, reafirmo, uma obra de leitura fundamental, pela alternativa (democrática) que constitui ao pensamento dominante. Mas no melhor pano cai a nódoa. Lendo, quase no fim, a entrada “Tribunais”, deparo-me com este texto, subscrito por Conceição Gomes, ilustre coordenadora do Observatório Permanente de Justiça, e que aliás assina dois excelentes textos no mesmo Dicionário sobre “Criminalidade “ e “Direito”, que transcrevo na íntegra, para melhor compreensão do que direi em seguida: “A Constituição declara os tribunais como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-os de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Porém, para os cidadãos, os tribunais são cada vez menos um lugar de defesa e de afirmação dos seus direitos. Len-tos, burocráticos e distantes, tratando de forma desigual ricos e pobres, estão a tornar-se cada vez menos relevantes em face de um direito negado ou ameaçado. São, na verdade, estas as perceções que a maioria dos cidadãos portugueses tem dos tribunais e que os estudos e indicadores estatísticos confirmam. Avassalados por uma massa de processos de dívida e de crimes rodoviários, os tribunais não encontram espaço para responderem, em tempo e com qualidade, aos cidadãos que os demandam contra quem ofendeu o seu corpo, o seu nome, a sua propriedade, os seus direitos de trabalhador, o seu direito a receber uma indemnização em consequência de um acidente ou uma pensão de alimen-tos, etc. Esta condição de fraqueza dos tribunais portugueses tende a agravar-se no atual quadro dominado pela crise financeira, sobretudo ao serem privilegiadas reformas que visam aumentar a celeridade dos tribunais, reconduzida à produtividade, aquela que melhor serve os litígios de dívida. A maioria das reformas políticas pouca atenção dá à necessidade de dotar o sistema de justiça de condições que lhe permitam uma tutela efetiva dos direitos dos cidadãos. A alteração desta tendência depende muito da posição que o poder judicial vier a adotar. Num tempo de mais precariedade laboral e de mais desigualdades sociais, de múltiplas ameaças aos direitos, de novos riscos públicos, de aumento da corrupção, os cidadãos esperam dos tribunais uma via segura para, em tem-po, fazerem valer direitos, individuais ou coletivos. Poderão contar os cidadãos portu-gueses com os seus tribunais? Se for possível no futuro responder afirmativamente a esta questão, então os tribunais portugueses terão sabido encontrar o seu lugar na nossa democracia.” Neste juízo condenatório a que Conceição Gomes procede dos tribunais portugueses, mostra-se ela também prisioneira, o que não seria de esperar de uma socióloga especializada na matéria, dos estereótipos dominantes. Vejamos. Começa por afirmar que os tribunais tratam de forma desigual os cidadãos. Com isso sugere, ou sustenta mesmo, que os cidadãos entram iguais nos tribunais e lá são tratados desigualmente, discriminados em função do seu grau de riqueza! Ora, como Conceição Gomes não ignora, nem poderia ignorar, os cidadãos não entram nos tribunais em condições de igualdade! Os ricos têm um maior poder de intervenção processual do que os pobres! Têm melhores advogados, têm mais dinheiro para gastar/arriscar em recursos, reclamações, etc. Os tribunais não discriminam. Aliás, se discriminação fazem é positiva, ou seja, procuram geralmente corrigir as desigualdades entre as partes. Isso é particularmente notório nas jurisdições laboral e de menores, e também, até certo ponto na penal. Mas é claro que não cabe aos tribunais ir além disso e corrigir todas as desigualdades. É no âmbito do acesso ao direito que as desigualdades no processo podem e devem ser combatidas! Aliás, nada disto Conceição Gomes pode ignorar e, por isso, se estranha aquela afirmação. Outra afirmação surpreendente é a de que os tribunais dão preferência aos pro-cessos de indemnizações por dívidas e por crimes rodoviários sobre os processos por ressarcimento por ofensas corporais, ofensas ao nome, à propriedade, aos direitos como trabalhador, a indemnização por acidente de trabalho, ou pensão de alimentos… Sendo geralmente estes processos tramitados em tribunais diferentes, devido à especialização, não se compreende bem a referência à “falta de espaço” dos tribunais para estas últimas ações. Será que nos tribunais de competência genérica é assim? É uma tendência gene-ralizável a todo o país? Será uma opção ideológica dos magistrados? Ou serão os condi-cionamentos legislativos/processuais que a isso conduzem? De quem é a culpa, se culpa existe de alguém? Bem, parece que o legislador tem algumas culpas no cartório, porque se reco-nhece que as reformas políticas dão pouca atenção à tutela efetiva dos direitos dos cida-dãos, e mais à cobrança de dívidas… Se é assim, convém não misturar alhos com bugalhos, falando genericamente, e confusamente, da “fraqueza” dos tribunais… Por último, diz Conceição Gomes que os cidadãos esperam, nesta época de crise, etc., uma via segura para fazerem valer os seus direitos. E pergunta enfaticamente: “Poderão contar os cidadãos portugueses com os seus tribunais?” Pergunto eu: “Poderão os cidadãos portugueses contar com um patrocínio adequando das suas pretensões? Têm à sua disposição uma estrutura adequada de acesso ao direito e aos tribunais? Podem contar com uma advocacia disponível, ativa e competen-te na defesa dos seus direitos? Podem esperar uma reforma das custas judiciais que favoreça o pleiteamento de causas justas?” E pergunto mais: “Estão os cidadãos portugueses dispostos a constituírem associações de defesa eficaz dos direitos coletivos e universais? Estão disponíveis para intervirem em ações populares? Perder tempo e energias nessa litigância, em prejuízo dos também justificados tempos de lazer?” E termino perguntando: “Poderão os tribunais portugueses contar com os cidadãos?” Enfim, tantas perguntas… Para quando as respostas?... Uma coisa parece certa: as coisas são mais complexas do que parece pensar Conceição Gomes (que não pensa certamente, mas às vezes cai-se no facilitismo e na demagogia...).

 

O défice de flexibilização


A troika, em mais uma inspecção, veio dar-nos mais um certificado de bom comportamento. Tudo vai bem, felizmente. Com um senão. É preciso “flexibilizar” ainda mais o mercado de trabalho para tornar ainda mais competitiva a nossa produção. “Flexibizar”! Aí está a expressão terrorista, disfarçada num verbo ondulante, maleável e embusteiro. Do que se trata, na crua realidade das coisas, é de desmembrar ainda mais a já espatifada legislação laboral, dando cabo do que ainda resta de protecção aos trabalhadores. Não satisfeita com os progressos conseguidos na destruição dos direitos laborais (implicando a completa desfiguração da Constituição nessa área), a troika quer mais “flexibilização”, isto é, reduzir a cinzas o que ainda continua a fazer resistência a uma completa submissão do trabalho assalariado às exigências do capital (perdão: do mercado). É essa “coisinha”, esse “grãozinho de areia” que importa remover para a máquina funcionar em pleno  (isto é, para completar a obra de transferência forçada de capitais  das classes assalariados e das classes médias de trabalho dependente, do  sector empresarial do Estado e, em geral do sector público que tem potencialidades para dar lucro) para as mãos invisíveis, mas sôfregas, de quem detém (seja a nível global, seja a nível regional ou nacional) as alavancas do poder económico.

Para dar um empurrão sério à questão, o nosso celebrado economista António Borges, ex-vice- presidente do Conselho de Administração do Banco Goldeman Sachs International (tão falado a propósito da “bolha imobiliária”, pressupostamente causadora da crise actual), director do Departamento Europeu do Fundo Monetário Internacional e actualmente, também, conselheiro para as privatizações das empresas do nosso sector público, veio dizer que era urgente, que era imperioso, baixar os salários dos trabalhadores, em nome da tal “flexibilização”. Bravo!

Há uma coisa, no entanto, que, sendo da troika, não deixa de ser comovente: ela pede que o Estado lute sem tréguas contra os interesses instalados no sector da electricidade. Assim reflecte um espírito equânime: ela não é só contra os interesses instalados na área laboral, mas também contra os interesses instalados dos senhores que governam a nossa energia eléctrica. 

03 junho 2012

 

Uma rainha inexistente

Decorria o ano de 1952, era eu miúdo, e passou lá na minha terra um filme chamado "A coroação de Isabel II". Foi um êxito a todos os títulos: sala cheia, emoção geral. Nesse dia declarei-me monárquico. Depois o meu monarquismo arrefeceu e gelou mesmo. Hoje pasmo com a emoção que percorre um país culto e desenvolvido em torno do "jubileu" daquela rainha. Como é possível uma manifestação tão infantil de entusiasmo pela "soberana"? Quem é afinal o "soberano" em democracia? Como compreender todo o ritual bacoco e medieval que enforma as "comemorações"? Quem é afinal aquela mulher? Exprimiu alguma vez uma ideia própria? Teve alguma iniciativa, louvável ou não? O seu valor é, afinal, a pura ausência, a total inexistência? É apenas uma máscara, um boneco de cera? É esse o seu valor? Como explicar a adesão de 80º dos súbditos (não cidadãos) à sua soberana? Mistérios insondáveis de uma monarquia sólida.

 

O folhetim do TC

O processo de seleção (chamemos-lhe assim à falta de melhor) dos próximos três juízes do TC está a decorrer de uma forma tão atribulada que parece que os principais partidos parlamentares estão apostados em demonstrar que as regras do recrutamento têm de mudar (embora não seja isso certamente que eles querem...). Primeiro, o PS insiste num nome que não oferecia as garantias mínimas de independência... Agora, o PSD veta o nome indicado pelo PS, o de Artur Costa, membro deste blogue, magistrado com provas dadas quanto a independência, competência e capacidade crítica, o que parece não ser suficiente (nem adequado...) para ser juiz daquele tribunal... Terá manifestado posições que não agradam àquele partido, sobretudo quanto aos "cortes"... Quem for contra não pode ser juiz do TC? Quer dizer: os juízes a eleger têm de jurar (previamente e em segredo) que votam a favor destes e de futuros cortes? Por muito dramática que seja a situação financeira (e com esta governação é natural que o seja cada vez mais...), é bom que os governantes e os parlamentares em geral entendam que o TC é um tribunal... Também na Alemanha é assim... Esta tremenda falta de respeito da AR (leia-se partidos maioritários) pelo TC imporia, se as coisas funcionassem como deveriam, a alteração do processo de recrutamento dos juízes do TC. Neste momento nem sei qual seria a melhor solução. Mas o atual procedimento já mostrou suficientemente as suas falhas. E vamos lá ver como acaba o folhetim. Não auguro nada de bom...

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