30 junho 2014
Insensatez ou cegueira?
Parece que há a
intenção por parte do governo de regressar aos cortes do tempo de Sócrates.
Isto significa, a meu ver, que os responsáveis políticos que presidem aos
destinos do país continuam a não perceber nada da jurisprudência que o Tribunal
Constitucional tem vindo a elaborar nesta matéria. Claro que os limites a
partir dos quais os cortes têm efeitos, assim como a taxa de incidência, significando
maior ou menor abrangência de cidadãos atingidos e afectação tolerável ou
intolerável do princípio da igualdade têm sido equacionados nas decisões do TC,
com destaque para a última. Porém, não é aí que reside o verdadeiro cerne do
problema, mas num outro dado em que o TC tem insistentemente posto o foco da
sua análise: na excepcionalidade e no carácter transitório desses cortes, para
atalhar a uma situação excepcional.
Essa situação tem
passado por uma fluidez de limites temporais, segundo declarações flutuantes de
vários dos responsáveis do governo, até parecer ter-se estabilizado com uma
célebre declaração de Vítor Gaspar, então ministro-todo-poderoso das Finanças:
a situação duraria enquanto vigorasse o chamado PAEF (Programa de Ajustamento
Económico e Financeiro). Mas eis que, no jogo de oscilação politica em que se
tem vivido, rapidamente se abandonou o próprio carácter transitório das
medidas, para se tentar a implementação definitiva dos cortes, umas vezes de
forma descarada, outras, de forma camuflada
e usando várias tácticas, ora dizendo-se que seriam transitórios no orçamento
de cada ano, mas sem fim à vista, ora colando-os com cuspe a uma pretensa
reforma estrutural do Estado, mas aplicando-se as medidas restritivas de forma
retroactiva.
Enfim, uma “bagunçada”
que não poderia nunca ter a cobertura do Tribunal Constitucional, a não ser que
os juízes fingissem ser tão míopes, como se pretendia que eles fossem.
Essas tácticas não
deram resultado, mas a verdade é que se continua a persistir nas mesmas, ou então
trata-se de verdadeira miopia. Pelo menos, assim parece. Vejamos o que vai
seguir-se para então termos uma ideia mais nítida.
24 junho 2014
Imunidade absoluta do ex-rei?
A imunidade penal do chefe do estado é uma regra geralmente consagrada, e tem a ver com a dignidade do exercício do cargo. Quando o chefe de estado é rei, compreende-se que ela se mantenha enquanto o rei for rei. Se deixar de ser, a razão de ser da imunidade cessa. Mas imunidade civil é outra coisa. E essa, seja presidente, seja rei, é inadmissível num estado de direito. Pior ainda quando o rei já não o é, e ainda quer manter-se ao abrigo do anterior privilégio.
Tudo isto está a acontecer em Espanha. Juan Carlos, enquanto rei, não pôde ser demandado em duas ações de investigação de paternidade. É inacreditável que tivesse gozado de tal imunidade. Mas agora, o governo espanhol quer fazer pior: manter-lhe a imunidade vitaliciamente... Simplesmente inacreditável.
Portugal enforcado
Foi com a maior estupefação que li ontem a notícia da submissão a julgamento, acusado do crime de "Ultraje de símbolos nacionais e regionais", do autor de uma obra plástica intitulada "Portugal enforcado", cuja fotografia acompanhava a notícia, e que consistia numa bandeira nacional dependurada de uma forca. No julgamento, o MP pediu a absolvição do arguido, e agora aguarda-se a sentença. Mas como foi possível deduzir uma acusação? É que o crime em causa é doloso, o agente tem de ter intenção direta de ultrajar a bandeira ou pelo menos consciência da possibilidade de que tal aconteça e conformar-se com esse resultado. Ora, o autor da obra reivindica-a como "obra de arte", e ela até foi premiada como tal... E mesmo que fosse uma mera obra de protesto, sem caráter artístico, nunca se verificaria o dito crime. A obra patenteia uma evidente intenção crítica, alusiva à situação atual. Crítica, nunca injuriosa. É uma ilustração gráfica da situação de dependência dos nossos credores em que o nosso país se encontra. Não foi o vice-PM P. Portas que disse que vivíamos em situação de protetorado?
21 junho 2014
Ainda o "escrutínio" dos juízes do TC
O PM continua a proclamar o direito de "escrutínio" das decisões do TC. Já percebemos o que ele entende por "escrutínio": da incontinência verbal à ameaça de estabelecimento de "sanções jurídicas" (!!!) contra os juízes prevaricadores (presume-se que só contra esses, a vice-presidente do TC merece até uma condecoração...)
Mas ele devia atentar nas palavras sábias do ministro da Finanças alemão, seu orientador ideológico. Perguntado há dias nas jornadas do PPE em Albufeira sobre o que pensava das decisões do TC português, Schaueble respondeu prudentemente: "Na Alemanha aprendi a nunca comentar decisões do TC, também na Alemanha há um TC". Pois é, há lá e há cá, e lá os ministros não comentam sequer; cá querem "escrutinar" os juízes...
19 junho 2014
Os "esclarecimentos" do TC
O TC, cheio de boa vontade, decidiu admitir o inusitado (é o mínimo que se pode dizer) requerimento da AR para "aclarar" o acórdão nº 413/2014, baseando-se nuns desconhecidos e enigmáticos "princípios gerais do processo aplicáveis a decisões insuscetíveis de recurso" (enfim coisa que só o TC conhece...).
O requerimento, embora admitido, foi indeferido, como não podia deixar de ser, por inexistência óbvia de ambiguidades ou obscuridades. Mas o TC aproveitou a ocasião para prestar à AR (e por essa via ao Governo) um esclarecimento importante (embora não solicitado): que não existe nenhum "princípio da cooperação institucional" (entre o TC e a AR-Governo) em sede de fiscalização da constitucionalidade. E explica: "E a pretexto do princípio da cooperação institucional não é possível ao Tribunal instruir o órgão legislativo ou executivo sobre os termos em que deverá ser dado cumprimento, no plano infraconstitucional, à decisão de inconstitucionalidade, quando essa é matéria da sua exclusiva competência." Ou seja, a AR legisla, o TC fiscaliza, não lhe competindo dizer à AR como deve legislar. Será que a AR vai entender definitivamente? Em qualquer caso, o esclarecimento fica exarado e é fácil de entender. Afinal, terá valido a pena o insólito requerimento de aclaração...
Uma monarquia particularmente ilegítima
Para mim, toda e qualquer monarquia é uma aberração, porque a democracia é incompatível com o acesso a lugares de poder (nomeadamente à chefia do Estado) por herança. Só a eleição pode legitimar esse acesso, ainda que o cargo político seja mais simbólico que executivo.
Sendo assim em geral, tem contudo de distinguir-se o caso das monarquias do norte da Europa, que assentam numa continuidade secular e ainda gozam de "popularidade" (ou passividade popular) reconhecida, da monarquia espanhola, que é um legado franquista.
Em 1936, Espanha era uma República. Essa república foi derrubada por um golpe militar qe deu origem a uma feroz ditadura, cujo "caudillo por la gracia de Dios" deixou em testamento a chefia do Estado a Juan Carlos. Este foi o herdeiro de Franco, aliás por ele educado, e a quem Juan Carlos tinha muita "afeição", como reconheceu.
Por razões conjunturais, na transição democrática, os principais partidos (esquerda incluída) convergiram num entendimento fundamental que se condensou juridicamente na Constituição de 1978 (que resultou de um pacto e não de uma assembleia constituinte) que, para lograr consenso generalizado, contemplou soluções à esquerda (estado social) e outras do agrado da direita, como a monarquia. Um consenso para evitar confrontos incontroláveis no final da ditadura. A solução terá sido engenhosa para o seu tempo...
Mas esse tempo acabou. Para mais, a família real afundou-se em atos e atividades duvidosas (para dizer o mínimo...). Felipe de Borbón pode até ser simpático, e adotar um estilo sóbrio, minimalista... Mas não vai escapar ao pecado original: ele é também herdeiro de Franco!
A única legitimação possível é o referendo do regime. Fugir a isso é só ir adiando o problema da legitimidade da monarquia espanhola.
17 junho 2014
Às voltas e aos ziguezagues
A série de dislates, de
afrontas e de achincalhamento que a decisão do Tribunal Constitucional tem
suscitado nas hostes do governo e da maioria parlamentar tem sido acompanhada
de atitudes contraditórias, ora afirmando hoje uma coisa e amanhã outra, ora anunciando
medidas num sentido e logo a seguir outras diferentes, já evidenciando
arrogância e ameaça retaliativa, já forjando pretextos para vitimização.
Tudo isto dá a
impressão de profunda desorientação, ou de incapacidade, ou simplesmente de
artifício. Inclino-me mais para esta última, porque não é crível tanta
desorientação e incapacidade ocasionadas por uma decisão que um mínimo de
previdência, fundada numa leitura cuidada (e já não digo muito profunda ou
particularmente sagaz) da jurisprudência anterior do Tribunal, deveria fazer
esperar como muito provável.
O artifício faz parte
do jogo político, mas há limites gerais a respeitar, que nunca, mas mesmo
nunca, devem ser transgredidos, como é o caso do respeito mútuo entre órgãos de
soberania e da não manipulação do eleitorado, sob pena de degradação da própria
democracia. E, para além daqueles, há limites específicos, como a alteração da
correlação de forças, que pode fazer com que a maioria que sustenta um governo
já não corresponda à maioria sociológica do país, devendo, por isso, haver mais
cautela e humildade nas soluções políticas a adoptar.
Ora, o que parece
verificar-se é pouca vontade no acatamento das normas e princípios do texto
constitucional e das soluções emanadas do Tribunal Constitucional, reincidência
nas mesmas ou em posições idênticas, embora com “truques” para travestir a
mesmidade das medidas, e a determinação em cair em cima dos funcionários
públicos e dos pensionistas. Andam às voltas ou
aos ziguezagues para chegarem aos mesmos objectivos por outros caminhos.
11 junho 2014
O confronto com o Tribunal Constitucional
O governo e a maioria
entraram em guerra aberta com o Tribunal Constitucional (TC), rompendo o
equilíbrio institucional que deve nortear as relações entre os diversos órgãos
de soberania. Trata-se de um confronto sem precedentes, representando um salto
qualitativo na estratégia de assédio que vinha sendo seguida, materializado em
pressões já de si inadmissíveis num Estado de direito democrático, como se à
radicalidade de muitas soluções adoptadas no plano político-jurídico, devesse
corresponder uma radicalidade confrontativa no plano institucional, agravada
pelo facto de esse confronto não poder ter resposta adequada do outro lado,
pois o TC não pode, pela sua intrínseca natureza, designadamente por força da
reserva imposta aos juízes e dos limites de decoro e dignidade institucional
que devem respeitar, entrar nesse confronto.
Essa estratégia de
confronto começou com o pedido de aclaração, que, na realidade, parece visar
outros objectivos, que não os de simples esclarecimento, esquecendo-se (ou
ignorando) os autores do requerimento que a lei processual civil, que é de
aplicação subsidiária, foi alterada por opção legislativa, também ela radical, do
próprio governo e da maioria que o suporta. Mas, desde o anúncio do pedido de
aclaração até ao momento, a campanha de “linchamento” do TC tem vindo a subir
de tom e de intensidade.
No entanto, se havia
algo de previsível, era o “chumbo” do TC a várias normas do Orçamento. Os
pedidos de fiscalização de constitucionalidade inserem-se nessa lógica de
previsibilidade; não foram elaborados a esmo ou “ao calhas”, mas esquadrinhando
criteriosamente a jurisprudência anterior do Tribunal. E este desenvolve toda a sua argumentação em apego estreito (ia
dizer milimétrico) com as decisões anteriores, confrontando sistematicamente as
situações criadas no Orçamento para 2014 com as dos orçamentos precedentes e
com as posições jurisprudenciais anteriormente assumidas pelo Tribunal.
Pode mesmo dizer-se que
o TC tem sido muito contido e moderado (já o escrevi a propósito de acórdãos
anteriores), deixando passar muitas soluções que mereceriam ser declaradas
inconstitucionais e ficando-se mesmo pelos mínimos, dando ainda a mão ao
governo aqui e acolá e disseminando orientações
no texto das decisões. Mas o que tem sucedido é que os orçamentos não
captam essas orientações, nem as linhas que a jurisprudência tem seguido com
constância, fazendo simples operações de “maquilhagem” ou mudando os nomes às
coisas, como Marcelo Caetano fez com a Pide, passando a chamar-lhe DGS, ou,
pior do que isso, agravando mesmo as soluções anteriores, reincidindo nos
mesmos erros e passando a chamar reforma estrutural ao que era efeito de conjuntura e de carácter
transitório. Às vezes, até parece um jogo do do gato e do rato.
A culpa não está, pois,
no TC, mas certos membros do governo e da maioria, na escalada do ataque movido
àquele, chegaram ao ponto de porem em causa a escolha dos juízes e questionando
mesmo a sua competência profissional, quando, se fôssemos a comparar as
habilitações de uns e outros, as qualificações académicas e o saber acumulado ao longo das
respectivas carreiras, quem ficaria a perder não seriam os juízes do TC.
Mas a escolha a que
esses tantos se querem referir não é tanto a das habilitações profissionais e
académicas, que vêm ao caso só por achincalhe, mas a que tem a ver com o
alinhamento político. E aí não lhes basta a selecção política por meio de uma
maioria qualificada do Parlamento. Será preciso fazer recair a eleição em
comissários políticos, mantendo no entanto, por uma questão de aparência, um
Tribunal dito Constitucional.
10 junho 2014
Aberrações jurídicas, arrogância antidemocrática
A entrevista dada hoje ao "Público" pela deputada Teresa Leal Coelho contém algumas das mais aberrantes afirmações jurídicas ouvidas nos últimos anos, a par de uma arrogância de fazer tremer os fundamentos do Estado de Direito. Eu explico.
Toda a entrevista é uma catilinária de nível rudimentar contra o TC, num tom de desprezo e rancor que ultrapassa tudo o que até hoje se viu e ouviu (e já foi muito!). Ela não compreende que o TC é mesmo um tribunal e fica estarrecida com o "desplante" (a palavra é minha, a ideia é dela) de o TC decidir segundo a nossa Constituição e não atender à legislação europeia (quer dizer, ao "memorando de entendimento"). Ela acha que o TC está sujeito a escrutínio jurídico e político!!! E que o TC tem o dever de esclarecer as suas decisões, por que a aclaração é "um princípio fundacional da ordem jurídica"!!! (Onde é que ela tirou o curso de direito?) Mostra-se "desiludida" com os juízes propostos pelo PSD (e CDS, presumo): é que eles criaram nos dirigentes do PSD a "ilusão de que tinham uma visão filosófico-política que seria compatível com aquilo que é o projeto reformista que temos para Portugal no âmbito da integração na UE. Nós tivemos a ilusão de que esta era a perspetiva dos nomes que candidatámos a juízes do TC. Parece que não passou de uma ilusão." Portanto, os juízes disseram que seriam fiéis ao "projeto reformista" e depois roeram a corda... Nunca vi uma declaração assim. Mostra bem o que pensa a maioria sobre a independência do poder judicial...
Mas, atenção, não pensem os juízes do TC que vão brincar mais com este Governo e esta maioria. Futuramente, os juízes vão estar submetidos a uma "avaliação pública sobre o seu oensamento filosófico-político." Pensava eu que essa avaliação já se realizava com a audição dos candidatos na comissão parlamentar. Se a entrevistada insiste agora neste ponto da "avaliação" é porque está a pensar em algo mais do que isso, embora não diga concretamente o quê... E, por fim, o ponto mais alto de toda esta profusão aberrativa: "E, se calhar, temos de ponderar sanções jurídicas para os casos em que os poderes que são distribuídos, incluindo ao TC, são extravasados." Sanções pelo exercício da função jurisdicional? Não é isto o fim do princípio da irresponsabilidade dos juízes? Não é esse princípio estruturante do próprio Estado de Direito? (Onde é que a senhora tirou o curso de direito?, insisto!)
Pensará ela e o Governo (ela é "próxima" do PM...) que estas ameaças, entre veladas e explícitas, mas ameaças efetivas, vão meter medo aos juízes do TC?
Picos anti-sem abrigo
Ontem vinha no "Público" uma fotografia de um pequeno recanto de Londres onde foram colocados picos de metal no chão para evitar que ali pernoitasse um sem-abrigo. O expediente tem antecedentes bem conhecidos (e eficazes) na luta contra animais, concretamente os pombos abusadores do espaço público: põem-se uns picos de metal nos beirados, ou nos muros ou noutros espaços de estacionamento habitual de pombos e eles desparecem imediatamente. Com os animais humanos a solução mostra-se igualmente eficaz: quem vai deitar-se em cima de picos de metal afiados? (Só talvez algum faquir em trânsito...) A questão está evidentemente em saber se esta solução de afugentar humanos sem-abrigo é a melhor solução, ou até se é propriamente uma solução, para já não questionar a "humanidade" da medida... Não vou teorizar, apenas constatar que soluções pensadas para combater espécies animais consideradas perniciosas podem igualmente servir para perseguir espécies humanas julgadas inúteis...
A representação do Estado nas ações de indemnização
Sempre defendi que o MP não deveria representar o Estado quando este é uma parte privada nos litígios. Parecia-me que a competência do MP deveria cirunscrever-se à ação penal e a todas as matérias em que existe um interesse de ordem pública ou de pessoas a quem o Estado deve uma especial proteção. Nessa perspetiva, o patrocínio do Estado deveria ser entregue a um outro "serviço" do Estado, a uma "advocacia pública", mais vocacionada, a meu ver, para defender os interesses privados do Estado. A minha perspetiva era mais "teórica" ("pureza dos princípios") do que de racionalidade prática. Na verdade, fui constatando ao longo do tempo que o MP defendia com eficácia os interesses privados do Estado e simultaneamente agia fiel ao direito e aos princípios de objetividade e legalidade que regem a magistratura do MP. Por isso, parecia-me que a força dos "princípios" vinha perdendo fulgor, face à razão da prática... Vejo agora com surpresa que, a propósito da revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, se invocam "argumentos teóricos" para retirar ao MP o patrocínio do Estado nas ações de indemnização contra o Estado que corram na jurisdição administrativa... Quer dizer, vai fazer-se uma reforma desnecessária por razões de princípio, bem dispensáveis num momento como o atual. O MP defende bem (e barato!) o Estado. Para quê mudar? Por outro lado, o patrocínio será entregue a quem? Advogados, evidentemente! Mas que advogados? Não existindo um serviço de advocacia pública, já se está a ver onde o Estado irá recrutar os seus mandatários... Que vão fazer-se pagar bem, não duvidemos, e com uma eficácia certamente não superior à do MP!
05 junho 2014
Ainda os "esclarecimentos" pretendidos do TC
Pensará de facto o Governo e os seus juristas de serviço que pode fazer um "pedido de esclarecimento" sobre o acórdão do TC, mesmo não havendo mecanismo processual previsto na lei para o fazer?
Pensará de facto o Governo que pode pedir ao TC que lhe dê "conselhos" sobre como atuar no futuro para evitar inconstitucionalidades?
Pensará o Governo que pode pedir esclarecimentos ao TC de ordem política, por exemplo, sobre como cumprir os compromissos com a troika?
Será o nível jurídico-técnico-constitucional dos juristas do Governo tão rudimentar?
Embora os indícios recolhidos até agora não apontem para que esse nível seja elevado, seria excessivo admitir tanta ignorância...
Do que se trata é pura e simplesmente de um ataque frontal ao TC, o mais violento até agora, com a ajuda ativa da Comissão Europeia, e perante a passividade dos órgãos de soberania que devem garantir o regular funcionamento das instituições...
Tentar amedrontar o TC, fazer recair sobre ele todas as responsabilidades de todas as tormentas que o Governo se prepara para fazer abater mais uma vez sobre os cidadãos, preparar o "clima" para uma contestação generalizada ao TC e eventualmente para uma futura revisão constitucional que o extinga ou, no mínimo, reduza drasticamente as suas competências (por exemplo, acabando com a fiscalização preventiva ou reduzindo as hipóteses de fiscalização sucessiva das leis, ou eliminando a possibilidade de fiscalização das leis orçamentais...)
O PM já fala da falta escrutínio do TC e dos seus juízes (cuja ampla maioria é nomeada pela AR!)...
O TC é um pilar fundamental do Estado de Direito, como os tempos recentes têm amplamente confirmado. Sem essse pilar o Estado de Direito "cai"... Não podemos de forma alguma desvalorizar estes ataques.
Para já, se algum "pedido de esclarecimento" seguir da AR para o TC, é evidente que terá de ser liminarmente indeferido, por carência de suporte legal... Depois, não venham acusar o TC de fugir a responsabilidades... O processo, qualquer processo, tem regras, não é arbitrário, os tribunais regem-se por regras legais estritas e só dessa forma é assegurada a legitimidade de atuação do poder judicial...
Tudo isto os juristas do Governo sabem ou deviam saber...
03 junho 2014
Aclarar? Como? O quê?
Segundo notícias de última hora, o Governo pediu à AR que requeira junto do TC a "aclaração" do último acórdão...
Saberá o Governo que o novo CPC acabou com o velho (e abusivo) expediente da "aclaração de sentença"?
Ou pretenderá a "reforma da sentença", prevista agora no art. 616º do CPC? Só que a reforma é um mecanismo que não visa esclarecer "dúvidas" (ambiguidades ou obscuridades), mas sim corrigir erros evidentes da sentença: erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; ou existência no processo de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, impliquem decisão diferente. Não é seguramente nenhuma destas hipóteses que se verifica...
O que o Governo parece que quer é que o TC lhe "explique" que medidas pode tomar!!! Ora bem: o TC não tem competência para dar receitas de constitucionalidade ao Governo, para lhe dizer o que deve fazer, mas apenas para lhe dizer o que não pode fazer! Não é o TC que faz o Orçamento do Estado! O Governo não percebe isto? Quem aconselha juridicamente o Governo? Não é capaz de lhe explicar uma coisa tão simples? E já agora: que aclaração é necessária, uma vez que este último acórdão mantém a orientação anterior, e era portanto perfeitamente previsível, tão previsível que não se compreende por que razão o PR não mandou logo o orçamento para o TC...
Bem, vamos lá ver se a AR aceita o pedido do Governo. Francamente, acho difícil que tal suceda, mas aguardemos...
02 junho 2014
Saída Limpa
Carta escrita a uma
cidadão estrangeiro sobre os graves problemas que temos vivido no nosso país, a
revolução que tivemos que empreender e os perigos que ainda corremos.
Não há nada mais límpido do que a divisa
“saída limpa”, embora muitos compatriotas nossos, adeptos do antigo estado de
coisas, prefiram não ver essa claríssima realidade.
Mas vamos à explicação que
V. M. tão honrosamente me solicita.
Tínhamos uma situação
má, como V.M. sabe, uma situação muito crítica, herdada dos tempos da
“Revolução dos Cravas” e dos tempos conturbados que se lhe seguiram,
caracterizados por uma desenfreada distribuição de direitos e privilégios à
grande massa da população e que levaram o Estado a “engordar” e a tomar
aspectos disformes, com grandes gastos de dinheiros públicos.
A situação foi andando
de mal a pior, sem que ninguém tivesse a coragem de lhe pôr cobro definitivamente,
apesar de algumas recuperações que foram tendo lugar, mas sem irem ao cerne das
cousas, até que surgiu esta crise internacional que ia pondo em colapso várias
nações e, entre elas, a mais poderosa, uma crise que muita gente mal
intencionada atribuiu ao que designou de “abutres da finança”, mas que, como V.
M. sabe, foi ocasionada por uma catástrofe natural – um enorme tufão que
varreu, selectivamente, grandes bancos e companhias de seguros.
A crise originada pelo
tufão comunicou-se a muitos países que estavam mais dependentes daqueles,
principalmente aos mais fracos, porque, como diz sabiamente o nosso povo, “os
mais fracos apanham sempre por tabela”. É do destino e não há volta a dar-lhe.
Foi assim que chegou à nossa fidelíssima nação. A “bolha”, como se diz em tão
apropriada metáfora, porquanto alusiva a uma fatal dificuldade de fluidez
sanguínea, que é como quem diz, “fluidez do dinheiro”, que é o verdadeiro sangue
das nações, atingiu-nos e causou o dessoramento de alguns bancos, entre os
quais o célebre Banco Patriótico Nacional, que houve necessidade de salvar,
para não contaminar a doença a outros.
Este infausto
acontecimento veio acrescentar-se à principal causa do nosso descalabro – a
tumefacção do aparelho estadual, originada por enormes gastos com a
proliferação de direitos e privilégios de que falei acima e por um verdadeiro
exército de servidores do Estado, criado para dar vazão aos serviços implicados
por aqueles. Por isso, não houve outro remédio senão pedir dinheiro aos países
nossos aliados. A esses tempos de dissipação que foram os de políticos que
embriagaram o nosso povo com benesses, subsídios e prestações de toda a ordem,
engordando o Estado com serviços e despesas inconcebíveis, é que devemos o
termos de estender a mão aos povos estrangeiros, embora nossos aliados. Daí
que, muito apropriadamente, designemos esses tempos ominosos como a “Revolução
dos Cravas”.
Os países nossos
aliados e o Fundo Mundial de Interesses emprestaram-nos o dinheiro, mas
exigiram-nos contrapartidas pesadas, porque, imbuídos de uma recta moral, nos
quiseram dar ensino por “vivermos acima das nossas possibilidades” e, ao mesmo
tempo, como é lógico, tirarem o máximo proveito da sua generosidade, assim
juntando o útil ao agradável.
Em boa verdade, nós
também queríamos os mesmos objectivos que eles, ou eles pretendiam os mesmos
objectivos que nós, em nome de uma verdadeira União: pôr termo, de vez, à orgia
daqueles tempos em que tudo eram gastos com direitos e privilégios para todas
as classes de pessoas. V. M. há-de convir que o Estado não pode ser uma espécie
de cobertor para albergar tutti quanti.
Não. Essa utopia pertence ao passado; está completamente ultrapassada no mundo
inteiro. Quem quiser ter um nível de vida razoável tem de fazer por isso; tem
de o ganhar com esforço próprio, não é esticando o cobertor do Estado para dar
agasalho a todo o maltrapilho que se resolve o problema. Daí é que vem o mal de
que nos acusam os nossos aliados: termos vivido acima das nossas possibilidades.
Já basta o Estado ter de acorrer a situações de emergência, como a do tufão
inclemente que arruinou bancos e seguradoras.
Por isso, como dizia,
acolhemos de braços abertos as propostas dos nossos abnegados credores, ou,
para melhor dizer, dos nossos fiéis aliados, que nos quiseram dar a mão numa
causa comum, com vista à construção da grande Casa Comum que todos almejamos.
Assim é que, com a
valiosa ajuda deles, empreendemos uma verdadeira revolução contra a “Revolução
dos Cravas”, desmembrando sem piedade o Estado-cobertor-para-toda-a-gente, cortando
na educação para todos, na saúde para todos, na cultura para todos, na
protecção na doença, no desemprego, na invalidez e na velhice, pois tudo isso é
despesa do Estado, gordura do Estado,
como nós costumamos dizer na nossa linguagem inovadora, porque, creia V. M.,
nós somos a geração mais criativa, mais original e mais destemida que apareceu
no nosso país, desde a grande era das Descobertas. Despedimos novamente a
juventude pelos quatro cantos do mundo, fernandos
mendes pintos à deriva, camões
errantes com seu estro épico, a levarem a grandeza da Pátria para longínquas
paragens - índias, chinas, bornéus, sumatras, américas, as nossas áfricas,
terras arábicas – naturalistas, matemáticos, phísicos, jovens de muitas engenharias, das artes e das letras,
todos cantando e espalhando por toda a parte
o peito ilustre da nossa grei.
Mas as nossas proezas
não se ficam por aqui, sendo de salientar, entre o mais, os nossos
empreendimentos no que diz respeito ao afeiçoamento da mão-de-obra à competição
dos grandes mercados internacionais, o que nós denominamos de flexibilidade, obra maior desta
revolução, que fica a dever-se a uma maior atractividade do custo da referida
mão-de-obra, pela provocação da sua queda acentuada, e a um espicaçamento
salutar da mão-de-obra que vamos lançando no desemprego, obrigando os
desempregados a empregarem-se de novo onde quer que seja e por qualquer preço.
Saiba V. M. que é tudo
isto e o muito mais que fica por dizer, que nós – e os nossos aliados credores
– chamamos de saída limpa, isto é, saída do Olimpo de todos aqueles –
classes obreiras, classes medianas, gente retirada do activo, indivíduos sem
emprego e os denominados “desprotegidos da sorte” - que a “Revolução dos
Cravas” tinha entronizado no etéreo das benesses e dos privilégios.
Chegamos a proclamar o
dia da saída limpa, aquele em que os
nossos aliados credores deram por desnecessária mais ajuda, exortando-nos a
seguir o rumo tomado, como o dia de todo o povo, o verdadeiro dia da Revolução.
Mas, infelizmente, há o
perigo de voltarmos atrás, pois ainda subsiste um nicho rebelde por olimpar: o tribunal da Magna Carta, que
resiste no seu bastião e teima em regressar ao passado dos “Cravas” com as suas
decisões anacrónicas sobre antigos direitos, garantias e privilégios,
fazendo-nos correr o risco de termos que pedir mais ajuda.
Creio ter explanado com
clareza, embora muito sucintamente, os passos principais da nossa fantástica
luta em direcção a uma saída limpa,
habilitando V. M., que vive do outro lado do Atlântico, a escrever limpamente
sobre as cousas graves do nosso país e das quais, com auxílio dos nossos
aliados, havermos de sair com deveras muita limpeza.
Creia-me seu fiel e
infatigável
Servidor
Jonathan Swift
(1665-1745)