29 novembro 2005

 

AINDA O DÉFICE DEMOCRÁTICO DOS MILITARES…..

No último escrito, a propósito dos Direitos e Liberdades Fundamentais dos militares, que conhecem restrições e até proibições (sem esquecer as proibições da liberdade sindical, do direito à greve e do direito à criação de Comissões de Trabalhadores), aludi ao princípio da proporcionalidade a que o Estado, seja legislador, seja administrador, deve obediência (cfr. Artºs 2º, 18º, nº 2, 19º, nº 4 e 272º, nº 2 da CRP).

Aquele princípio, como limite às restrições admissíveis, desdobra-se em 3 sub princípios: o da adequação, tendo em vista os fins prosseguidos pelo Estado; o da exigibilidade, no sentido da inexistência de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo resultado; e o da justa medida, com o significado de que não poderá o Estado adoptar medidas excessivas.

Com este enquadramento doutrinal é admissível questionar se as medidas legislativas, ou algumas delas, adoptadas na já citada Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas respeitam aquelas exigências, nomeadamente a da justa medida.

É que, mesmo que se reconheça ao legislador um considerável espaço de conformação, e mesmo relevando os importantes fins da ética militar e da coesão e disciplina das Forças Armadas, pode sempre afirmar-se que esta ou aquela medida legislativa ultrapassa a tal justa medida. É o que acontece, desde logo, com o direito de manifestação contemplado no artigo 31º-c da citada Lei, quando aparenta proibir aos militares a convocação de qualquer manifestação, mas permite o direito a nela participar (e no artº. 31º-b está consagrado o direito de reunião, no duplo aspecto de convocação e participação). Para além de se mostrar injustificada aquela proibição, quando se confrontam os 2 direitos fundamentais consagrados nos artºs 31º-b e 31º-c, certo é que ela é uma medida legal excessiva, não se mostrando adequada à protecção da falada coesão e disciplina das Forças Armadas. Não se vê como este interesse especificamente militar seja mais atingido do que uma manifestação convocada do que com uma reunião convocada para local aberto ao público (artºs 45º, nº 1, da CRP).

28 novembro 2005

 

JUSTIÇA: A leveza das palavras e o rigor necessário do discurso

1. As tensões que se têm manifestado no sector da justiça, com a máxima expressão nos recentes dias, impõem a urgência de uma reflexão que permita reverter à serenidade dos comportamentos, ao rigor das palavras soltas e à dimensão imposta pelo sentido de Estado que se espera dos mais relevantes protagonistas.
A reflexão necessária terá de assumir um primeiro momento de auto-crítica.
De todos. Porque todos assumiram responsabilidades e desbarataram o sentido dos deveres.
Nas representações sociais, a ideia e o sentimento de Justiça vivem e materializam-se nas instituições do Estado que integram o sistema de Administração da justiça, e na sua face mais visível e simbólica, os tribunais.
E as instituições vivem, manifestam-se, e exteriorizam-se pelo exercício da sua atribuições através dos seus servidores; as instituições fundamentais do Estado não são abstracções de organograma ou artigos de leis orgânicas, as instituições são muito as mulheres e homens que dedicadamente são os seus servidores, e que, servindo-as, servem a República, realizando com rigor, competência e espírito de serviço missões do Estado ao serviço dos cidadãos.
As instituições existem na arquitectura do Estado para servir os cidadãos e realizar a cidadania.
Não sendo pensáveis como abstracção desligada dos seus servidores, o comportamento e a actuação funcional destes e o modo como se desempenham, reflectem-se necessariamente nas instituições, nas refracções exteriores e, consequentemente, na confiança externa dos cidadãos.
Por isso, a impossibilidade de separação determina que tanto o desempenho, como a forma e o modo como são referidos e considerados os servidores se reflectem, directa, imediata e incindivelmente no plano da instituição. Este é um dado recorrente da análise e que, por tanto, não importa mais sublinhar.

2. Sendo, porém, assim, como a mais elementar análise ou a mínima paragem reflexiva permitem verificar, o discurso sobre a justiça deve merecer particular atenção dos responsáveis para que possa contribuir positivamente para a confiança institucional e não causar dano irreparável a valor tão essencial.
Nos tempos mais recentes não tem existido cuidado no rigor do discurso, e a leveza das palavras tem perturbado a confiança a limites já não toleráveis, principalmente porque não há motivos que justifiquem uma tão forte quebra do sentimento dos cidadãos.
E para esta leveza todos têm contribuído.
A começar – há que dizê-lo – pela intervenção das associações sindicais.
O registo do seu discurso não tem sido clarificador, e contribuiu para que passasse para a opinião uma mensagem inteiramente desajustada.
Ficou muito sublinhada uma leitura intensamente sindical, sem verdadeiro esclarecimento das questões relevantes – a denúncia, clara e compreensível para os cidadãos, da mistificação e do formato fortemente demagógico e populista com que as questões da justiça têm sido abordadas ao nível político.
Basta pensar na deliberada confusão em que, no nível do discurso político, foi transformado o assunto das “férias judiciais”, e como uma simples questão de gestão do sistema foi apresentada como “corajoso” abate de “privilégio injustificado”, quando, em rigor, constitui uma limitação; ou no discurso, mais próprio de “prec” pós-moderno, em que condições de estatuto criadas no parlamento por unanimidade das forças políticas são apresentadas também como “privilégios” das “corporações”.
A desmistificação de semelhante discurso teria sido essencial como condição elementar de clarificação e de criação de condições mínimas de restauração da confiança.
A persistência no erro, na demagogia e na exploração de sentimentos menos nobres da opinião terá ainda efeitos mais devastadores na confiança.
Mas, neste aspecto, só os responsáveis políticos podem elevar o nível e recolocar o discurso sobre matérias de justiça na dimensão que não deveria ter perdido, responsável, com cultura política fundamental e com sentido de Estado.
As questões de justiça, pelas implicações que assumem na dimensão institucional do Estado de Direito, não podem ser tema ou objecto de tratamento no modelo pouco elevado e demasiado leve e inconsequente de um comício partidário.

3. Diminuir, directa ou indirectamente, a consideração pelos servidores da justiça, magistrados e funcionários, não os afecta individualmente; na verdade não é de pessoas que se trata, mas de instituições.
Mas tem efeitos dramáticos na desconsideração institucional e na confiança necessária à função de pilar do Estado de Direito e no consequente encurtamento da cidadania.
As coisas não são separáveis.
Há que superar este momento e o desgaste inútil da perda de tempo e energias.
A urgência da mudança de paradigma impõe a todos o dever de intervir, de esclarecer, de ocupar também o espaço público, de tentar contribuir para que as questões sobre a justiça sejam tratadas, mesmo ao nível político, com a elevação, o rigor e a serenidade que a instituição exige e os cidadãos merecem.
Não podemos resignar-nos.

 

Os ataques ao sindicalismo

Ainda bem que o Maia Costa aborda este assunto.
Estava convencido que vinha trilhando um caminho solitário nas minhas crónicas no Jornal de Notícias.
Eis a minha crónica do passado dia 17 de Novembro, se mo permitem:


As neo-ideologias




Há tempos, li num semanário um artigo de um economista (Daniel Amaral) que alvitrava que os salários têm de baixar, se quisermos que a economia ganhe competividade, pois são eles os grandes responsáveis pelo encarecimento dos produtos, ou dito de outro modo, o factor que representa a parte de leão do seu valor. Isto que dizia este economista é o que dizem, afinal, quase todos os economistas, reciclados no neo-liberalismo, e entre os quais parece reinar o mais terrífico consenso, que não abre janelas para nenhum alternativa. A solução parece ser a de trilhar irremediavelmente o caminho da inversão dos valores e dos direitos sociais e económicos em nome dos quais se travaram tantas lutas e se foi moldando o sonho de uma sociedade mais justa. Os sindicatos, agora encarados sem pudor nenhum como «forças de bloqueio», velharias recambiadas para o museu da História, encarniçam-se nos protestos do costume, na agitação de rua que toda a gente já conhece, greves e coisas que tais? Isso é a ganga ideológica que subsiste, ou seja, coisa nenhuma. O que é a ideologia – parecem dizer -, senão uma relíquia do velho mundo, ópio para endrominar incautos ou crentes sem os pés na terra? De que lhes vale a crença e que utilidade tem ela? Os investidores, concluía o economista acima referido, «estão-se nas tintas para a ideologia». «As ideologias foram arquivadas», sentenciou de forma pitoresca um dos nossos mais emblemáticos empresários – Belmiro de Azevedo. Os direitos sociais, económicos e culturais, os «famosos direitos adquiridos», são, então, ideologia arquivada e arrumada nas prateleiras poeirentas da História? E o que é a ideologia?, pergunto. A opção pela «economia de mercado» é uma fatalidade e não uma escolha ideológica? O «arquivamento das ideologias» ou o «estar-se nas tintas para a ideologia» não são outras ideologias?

 

Programa Nacional de Acção para o Crescimento e o Emprego 2005-2008

(DR I-B de 28/11/2005)

Que a modernidade e as reformas a implementar passem do papel à prática!
É que somos pioneiros em ideias, em planos, em estratégias…
A nossa legislação vai acompanhando os ventos da mudança.
Sempre na crista da onda…
Mas a realidade é outra … como vemos e revivemos dia a dia.

 

Fogueira de descontentamento

A propósito de «manipulações», posted by Artur Costa, apetece-me dizer…

As questões são lançadas para o público e abordadas para agradar a determinados interesses: a ideia geral é criticar para destruir e não para construir. Transparece a desintegração.
Os 4º e 5º poderes, que estão na rua, alimentam a fogueira do descontentamento, muitas vezes incentivam este desassossego, embora sob a capa do exercício de determinadas liberdades...
Será que vamos continuar a ouvir falar dos diversos temas sem novas abordagens, sem profundidade, com aquela mistura habitual entre a falta de humildade, a ignorância, a hipocrisia e a falta de isenção?
Não será já tempo de pensar em alternativas? Teremos ainda de mergulhar mais fundo? Será a atracção pelo abismo? Onde está a coragem de repor a verdade?

 

A nova estratégia para as drogas

Anunciada foi na 6ª-feira a nova estratégia em matéria de drogas. Aqui fica uma primeira análise crítica, com base apenas nas notícias dos jornais, retomando aliás as ideias que expus no mesmo congresso do IDT onde a nova estratégia viria a ser apresentada.
De realçar, desde logo, a fidelidade em relação à Estratégia de 1999 quanto à descriminalização do consumo e quanto às políticas de redução de danos. Registam-se as afirmações firmes de João Goulão sobre a necessidade das "salas de injecção assistida". Vamos ver se é desta que se vencem os preconceitos.
É também correcto rever-se a Lei nº 30/2000, a tal que descriminalizou o consumo, e cujo nº 2 do art. 2º conseguiu a notável proeza de permitir quatro (!!!) interpretações jurisprudenciais, não só para resolver esse problema, mas também para, com base na experiência destes anos, conferir maior eficácia às CDT's.
Mas o grande problena não está aí, nos consumidores, nos que são identificados como tal. A minha opinião é muito clara: os consumidores ocasionais não são propriamente um problema. Quanto a estes o que há a fazer é da ordem da prevenção/informação, e nunca da repressão.
E quanto aos toxicodependentes o que é preciso é seduzi-los para a sua integração no sistema de saúde, propor-lhes medidas credíveis e eficazes de redução de danos e apresentar-lhes propostas sérias de reinserção social. Será possível isso através das CDT's? Tenho as maiores dúvidas, porque estas são, quer se queira quer não, um aparelho formal repressivo, embora de natureza específica. E repressão e sedução não rimam (só foneticamente).
Os grandes problemas do regime legal das drogas, a meu ver, são: os consumidores que a lei leva a classificar como traficantes; e o estatuto legal do traficante-consumidor.
A cegueira da lei é tanta, com o seu conceito expansivo de traficante, que leva à inclusão nesse conceito das cedências altruístas, do consumo partilhado, da aquisição em conjunto para o próprio e para terceiros e até da administração de drogas para tirar a dor (lembram-se da enfermeira/abortadeira/traficante da Maia?). O conceito legal de tráfico leva à sistemática confusão entre situações de pequena ou ínfima gravidade com situações de elevada ilicitude. Por outro lado, os requisitos do crime de traficante-consumidor são tão exigentes que a maioria das situações reais são excluídas pelo legislador.
Torna-se, pois, necessário:
1. Reduzir o conceito de tráfico, introduzindo o requisito de intenção lucrativa, retomando assim o conceito do DL nº 420/70.
2. Reduzir, em qualquer caso, a moldura penal do tráfico, ou, pelo menos, o seu limite mínimo.
3. Clarificar os elementos típicos do tráfico de menor gravidade, para o tornar mais abrangente.
4. Reduzir/eliminar/clarificar muitas das qualificativas do tráfico agravado.
5. Ampliar o conceito de traficante-consumidor, de forma que abranja realmente os traficantes-consumidores, ou seja: acabar com o requisito da exclusividade da afectação do "lucro" ao consumo e acabar também com os limites quantitativos, uma vez que a situação de tráfico para consumo se caracteriza necessariamente por um tráfico de pequenas quantidades.
A ideia fundamental, para mim, é esta: reduzir a intervenção penal; ampliar a intervenção sanitária.
É preciso substrair ao sistema penal e penitenciário aquela massa imensa de toxicodependentes que precisam de tratamento (em sentido lato) e não de reclusão/rejeição/exclusão.
É preciso pôr termo ao açambarcamento do sistema policial/judicial/penitenciário pelas drogas. Os recursos, sendo escassos, como não cessam de nos repetir, têm de ser rateados. Há outras áreas a requerer atenção, como a corrupção, não é verdade?
Termino lembrando que muitas das medidas que aqui exponho já foram defendidas no Relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, presidida por Freitas do Amaral, e por Faria Costa na Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3930, pp. 275-280. Acresce que a necessidade de redefinição da figura do traficante-consumidor e a eventual revisão dos elementos do crime de tráfico já estavam na Estratégia de 1999!
A nova estratégia pode ignorar tudo isto?

27 novembro 2005

 

O sindicalismo em desgraça

Decididamente o sindicalismo perdeu os favores das elites pensantes, mesmo (e talvez sobretudo) da área da esquerda governamental.
Para os ditos pensantes os sindicatos são forças conservadoras e por vezes mesmo reaccionárias, ao contestarem as medidas do actual executivo. Os sindicatos lembram o sec. XIX, o suor operário, um reivindicativismo primário e cego que sobrepõe os interesses dos sindicalizados aos da Nação.
Os sindicatos deveriam ser "responsáveis", ou seja, solidarizar-se com o governo, com as suas sábias, inovadoras e corajosas medidas e até agradecer a Deus sermos conduzidos por governantes de tão elevado calibre. Um bom sindicato, hoje, é aquele que fecha os olhos e os ouvidos aos interesses e problemas dos seus associados e só pensa no "bem geral" (tal como é pensado por quem governa, que é quem sabe).
É este, acreditem, o confrangedor discurso de certos cronistas, que descem mesmo a um patético registo laudatório, exaltando, sem rodeios, a «coragem e determinação de José Sócrates», o grande timoneiro!
Três décadas depois da sua libertação do corporativismo fascista, os sindicatos sofrem agora outro tipo de investida, mais subtil, mas não menos insidiosa.

 

O governo e nós

Enquanto os magistrados não saírem do círculo vicioso das férias e do subsistema de saúde a que tinham direito, estão irremediavelmente prisioneiros da lógica e da estratégia do governo. Tanto mais incapazes se mostram de assumir um espírito de verdadeira independência, que passa também pela idoneidade para criar uma autonomia crítica. Logo a seguir às suas diatribes, o governo entra em cena e repete até à exaustão o seu brilharete perante uma opinião pública já irreversivelmente conquistada pelos argumentos (demagógicos, é certo, mas atingindo em cheio o alvo visado) do Executivo. Assim, os magistrados estão a dar pretextos ao governo para lhes dar mais umas arrochadas e à opinião pública para os considerar como detentores de privilégios injustificáveis.
As férias judiciais foram encurtadas? Só há que tirar daí as devidas consequências pessoais, familiares e profissionais. É preciso reformular o trabalho em novos moldes, criando uma outra cultura judiciária e uma nova mentalidade, em que a profissão (dantes dizia-se que era «um sacerdócio») seja encarada com toda a seriedade e dignidade, mas sem «vampirizar» tudo o resto. Há mais vida para além dos processos. A alienação, no sentido kafkiano, resulta precisamente de se ver tudo através dos processos: «Estava tudo tão claro e estudado, que era como se todas as pessoas em seu redor se metessem num assunto que só a ele dizia respeito», escreve o escritor checo no «Fragmento do «Delegado do Procurador da República».
Quanto ao subsistema de saúde, está bem que se lute por direitos e interesses nessa área, mas sem fazer disso o busílis das preocupações profissionais.
O que sinto como mais intolerável em tudo o que se tem passado é a maneira fácil, demagógica e leviana como o governo levou tudo para o campo dos «privilégios» e pôs o acento tónico dos fracassos do sistema numa culpa presumida ou explícita dos magistrados. Com isso contribuiu para um aprofundamento da degradação da imagem da justiça e dos seus profissionais, do mesmo passo que enfraqueceu um dos pilares do Estado de direito democrático. Aí sinto-me atingido como profissional e como cidadão. Foi isso que permitiu uma escalada de ataque às magistraturas, que, em muitos casos, se assemelha a um linchamento. Hoje, entra-se em certos tribunais e vêem-se, nos elevadores, coisas escritas como esta: «Os juízes são corruptos e manguelas». Isso só foi possível pela «deriva» (passe o palavrão) que o governo propiciou com a sua falta de jeito ou mesmo com a sua calculada actuação.
Aí, sim, há uma dignidade ultrajada e «quem não se sente, não é filho de boa gente», lá diz o ditado. Mas institucionalmente é preciso encontrar os caminhos adequados a uma resposta que não fique prisioneira da lógica do governo e que, ao mesmo tempo, ateste a nossa maturidade cívica e a excelência das funções que exercemos não em nosso nome, mas dos mesmos cidadãos que nos olham porventura negativamente e porventura sem razão esclarecida. Se outros não sabem respeitar essas funções, respeitemo-las nós.

 

Quem manipula o quê?

Quem manipula afinal o quê?




O meu amigo Manuel António Pina, que foi aqui evocado pelo João Paulo, escreveu há já uns dias uma crónica no Jornal de Notícias, em que abordava a questão recorrente das relações entre a comunicação social e a justiça e concluía que afinal não era só a justiça que estava em crise, mas também a comunicação social. Isto, a propósito do acórdão da Relação de Lisboa sobre o caso do arguido Paulo Pedroso e outros arguidos. Tendo lido o acórdão – porque o leu efectivamente – Manuel António Pina comparava a «manipulação grosseira» que o aresto imputaria ao Ministério Público ao célebre e burlesco arrastão de Cascais e dirigiu o seu apontamento crítico ao acórdão num outro sentido, formulado muito inteligentemente e sob forma interrogativa.
Ora, o que neste momento me interessa é a exploração sensacionalista e frequentemente deturpada que a comunicação social faz de certas decisões judiciais, seja porque está interessada num determinado ponto de vista (o tal jornalismo de causas, mas de más causas), seja porque pretende simplesmente criar impacto ou colher o cidadão de surpresa (o princípio do «soco no estômago», segundo um jornalista meu amigo, mas às vezes é muito mais do que um «soco no estômago), seja ainda porque a pressa é tanta, que não há tempo para parar um bocado e olhar, um momento, a paisagem. Já se viu um jornalista sobraçando cento e muitas páginas de acórdão a correr para a Lusa e a ter que ler essas cento e muita páginas? Não. Apanha em andamento umas linhas aqui e outras acolá e se calhar de topar algo que faça sangue ou que lhe pareça tal, tanto mais ele corre para a Lusa, a fim de chegar a tempo do telejornal da noite e pôr aquele sangue que entreviu a servir de aperitivo ao jantar dos telespectadores.
Assim é que se difundiu pela comunicação social que o célebre acórdão da Relação de Lisboa «arrasava o Ministério Público». Mas muito mais do que isso, já que o tema do arrasamento do Ministério Público tem servido de mote a diversos comentários da imprensa sobre decisões judiciais que apreciam a intervenção processual daquela magistratura: acusava o Ministério Público de «manipulação grosseira». Haveria, assim, «um salto qualitativo» na escalada do confronto entre as duas magistraturas: do arrasamento, que remete para um cenário bélico, em que, apesar de tudo, a demolição se passa ao nível da argumentação que se joga de um lado e do outro, passa-se para uma violação das regras do «jogo», uma verdadeira fraude praticada por um dos sujeitos processuais que tem a especial incumbência de fazer «jogo limpo», um aniquilamento da ética a todos os níveis – da ética deontológica e da ética do Estado de direito democrático, que tem na sua base o respeito supremo pelos direitos fundamentais do cidadão. Isto, a ser verdade, seria pura e simplesmente o fim. Talvez por isso mesmo é que houve logo uma série de profissionais da imprensa a adiantar as conclusões apocalípticas. Seria impossível ir mais longe na irresponsabilidade.
O mais grave é que desta forma se criam factos, ou seja, cria-se a própria realidade a partir da qual ninguém mais discute senão o facto criado pela comunicação social, sem se importar com o facto – esse, sim, real – que está pressupostamente na base da «informação». Quando o próprio Vital Moreira apadrinhou no seu blog a tese da «manipulação» (é certo que, logo que um juiz veio desmentir essa tese, apagou-a do ciberespaço e substituiu-a sorrateiramente por uma versão corrigida), que se há-de dizer do cidadão comum?
Mas, feitos os desmentidos pelos juízes desembargadores, algum jornalista ou órgão da comunicação social veio penitenciar-se?

Artur Costa

25 novembro 2005

 

O Senhor Kraus e os números exactos

A propósito dos que na televisão nos esmagam com os números deixo aqui uma citação do último livro (O Senhor Kraus) desse notável escritor que é Gonçalo M. Tavares (é um livro a não perder):

Sobre a insistência em avançar com números por parte dos políticos (ou: sobre a importância dos cordões dos sapatos) o senhor Kraus disse o seguinnte:
Todo o número exacto atirado aos olhos da população insegura e distraída produz cegueira.
Quando nos atiram um número directamente à cara, devemos fingir-nos distraídos, imitar certos actores cómicos do cinema mudo, e aproveitar esse exacto instante para apertar os cordões dos sapatos.
Quando, por fim, voltarmos a endireitar o tronco e a levantar a cabeça, o número já passou, a grande velocidade, e por isso já não nos afectará a visão - continuou o senhor Kraus.
Se esperarmos um pouco, ainda ouviremos o número a partir-se contra uma parede em vários fragmentos disformes.
Com a visão intacta poderemos então assistir ao lamentável espectácuolo das ruínas incoerentes, daquilo que parecia, ainda há instantes, ser um número exacto, convincente e decisivo.

 

A iniciativa privada nas prisões

Eduardo Catroga pertence àquele núcleo (mais) duro dos economistas iluminados, aqueles que desde há 30 anos ou perto disso circulam entre o Banco de Portugal, a CGD, o governo, os bancos privados ou seguradoras, num giro incessante e rotativo em que alternam posições para retomarem depois as anteriores, umas vezes governando o País, outras vezes apenas o aconselhando, mas sempre iluminando-o com o brilho das suas ideias e propostas para salvação da Pátria (infelizmente cada vez pior: será por ouvi-los de menos ou de mais?).
Ontem lá recitou ele toda a cartilha dominante: redução do Estado (na economia, claro está!), contenção da despesa pública, estímulo à iniciativa privada, competitividade, produtividade, redução de impostos...
Dentre o rol sobressaiu a ideia de "outsourcing" (como adoram eles estas palavras mágicas em inglês que conferem um carácter irrefutável às suas propostas!): o Estado deveria recorrer ao tal "outsourcing" em diversos serviços públicos, como por exemplo... as prisões.
A gula da iniciativa privada em relação ao sistema prisional é evidente. A experiência dos EUA mostra que é um "ramo" altamente lucrativo. E em Portugal, com a elevadíssima taxa de reclusão que temos, as expectativas não seriam más...
Nem poderiam, uma vez implantado o sistema, ser defraudadas! As prisões deveriam ser colocadas ao serviço da economia: acabar de vez com a demagogia da ressocialização, com as penas alternativas e outras ideias requentadas dos anos 60, completamente desajustadas à sociedade de risco de hoje! Enchendo as prisões, construindo novos edifícios para esse fim, tudo sob a sábia gestão da iniciativa privada, estimular-se-ia a economia, aumentar-se-ia o emprego, o Estado cobraria mais impostos!
É claro que o Estado teria de pagar o dito "outsourcing". E ainda de pagar os custos financeiros (sustentar o funcionamento do aparelho repressivo e do aparelho judicial) e sobretudo os custos sociais (exclusão social dos reclusos e famílias durante e sobretudo depois do cumprimento das penas). E a sociedade pagaria elevados custos em termos de direitos, liberdades e garantias.
Mas só os maldosos, os derrotistas, os que não sabem fazer contas é que se lembram disso...

 

Lapso manifesto

Ocorreu um lapso manifesto de que sou responsável: o texto da Nota de Abertura que "inaugurou" este blogue não passa de um esboço do texto que a final foi aprovado e subscrito pelos seus membros. Detectado o "erro material", procedo nesta data e sem mais formalidades à eliminação do texto publicado no dia 9 deste mês e à sua substituição pela "texto autêntico".
E ainda uma explicação: o grupo "fundador" do Sine Die integra apenas magistrados; mas, como se diz na dita Nota, não é um grupo fechado. Pretendemos alargá-lo a outros sectores profissionais, como advogados, professores e outros juristas (e, com o tempo, não só juristas), para que um diálogo mais intenso e mais alargado seja possível.
O tempo (esse "escultor") dirá se o conseguiremos.

24 novembro 2005

 

Antigo Regime e Revolução - avocações


Não sei porquê, hoje achei que talvez não fosse despropositado partilhar um exemplo apresentado por Alexis Tocqueville a propósito da necessidade sentida de responder a problemas gerados pela inamovibilidade de certos agentes do Estado, e do facto de o executivo depressa se ter socorrido do mecanismo de avocação para comissários especiais dos processos em que algum interesse público era posto em causa, «avocações que não aconteciam apenas de longe em longe mas todos os dias»:
«numa outra circunstância, o próprio intendente envia ao inspector-geral, a propósito de um empreiteiro do Estado que havia tirado do campo do vizinho os materiais de que se servira: ‘não posso demonstrar-vos de forma suficientemente clara quão prejudicial seria aos interesses da administração abandonar estes empreiteiros ao julgamento dos tribunais ordinários, cujos princípios não podem jamais conciliar-se com os seus’» (Alexis Tocqueville: 1856).
É reconfortante constatar como certas coisas mud(ar)am...

 

Visto na imprensa

1 - Gostaria de iniciar a minha intervenção neste meio, ainda que muito peculiar, de “comunicação social”, chamando a atenção dos eventuais interessados para as crónicas que têm vindo a ser publicadas, a propósito da Justiça, por um senhor que escreve no Jornal de Notícias, de seu nome Manuel António Pina.
E chamo a atenção para estas crónicas porque o autor as escreve dum ponto de vista que me parece ser muito raro no nosso jornalismo – o dum simples cidadão, preocupado com a actuação da Justiça e com os reflexos que a forma como é exercida esta nobre função do Estado poderá ter na vida de todos nós, quer a nível individual, quer no modo como a sociedade se organizará e perspectivará a si própria.
Tal perspectiva de reflexão, de base empírica – que não recua perante a análise e eventual crítica de peças judiciais, independentemente da autoridade de que se revestirão as decisões nelas contidas, mas que não se lança directamente em considerações genéricas de índole axiológica, ou sequer política (ao contrário do que é habitual entre nós) – parece-me ser realmente aquela que é mais adequada à saúde da democracia. Será ela que melhor poderá contribuir para a efectiva compreensão, a um nível individual, do modo como realmente funciona o sistema social e político – condição essencial para um efectivo exercício da cidadania por parte daqueles que, segundo a Constituição, são afinal os verdadeiros titulares da soberania e do poder político.
É, sobretudo, refrescante e gratificante ver o modo como esta forma de reflectir sobre a Justiça contrasta com as usuais intervenções nesta matéria, no âmbito da comunicação social. Temos, por um lado, os próprios agentes do sistema, cujo ponto de vista raramente consegue libertar-se, na medida que seria desejável, dos preconceitos derivados da sua formação e actividade jurídicas (quando não duma “agenda” pessoal ou corporativa, que condiciona a relevância e a pertinência daquilo que dizem, ou daquilo que podem dizer). Vêm, depois, jornalistas e comentadores dos mais variados quadrantes, que geralmente praticam a omnisciência como se esta fosse requisito essencial de intervenção no espaço público – mas que acabam, muitas vezes, por confundir a árvore com a floresta ou os sintomas com a doença, mesmo quando calha detectarem problemas e razões de escândalo reais na Justiça.

2 – Daí que me pareça importante falar deste tema, nomeadamente da crónica que Manuel António Pina escreveu no JN, em 22-11-2005.
Tal como noutra anteriormente publicada, o autor manifesta as perplexidades que lhe terão sido suscitadas pelo sentido e teor do acórdão que manteve a não pronúncia de Paulo Pedroso, no chamado Processo Casa Pia. Já melhor documentado, vem nesta ocasião Manuel António Pina manifestar, para além do mais, o seu espanto perante as considerações de índole mais ou menos criminológica que os Srs. Desembargadores terão proferido – revelando assim um “pragmatismo moral” que lhes terá servido para, uma vez “desvalorizados os indícios recolhidos contra Pedroso, concluírem pela sua não pronúncia”. Conclui o cronista que ficará afinal sem se saber quem determinará os “limites “aceitáveis” do crime” (conceito que os Srs. Desembargadores terão tido em consideração na sua decisão); e, mais ainda, uma vez que “a culpa acaba sempre nas costas da sociedade” e que os subscritores do acórdão “culpam a sociedade “intolerância perante certas condutas””, pergunta-se “em nome de quem julgaram então os desembargadores da 3ª Secção?”.

3 – Longe de mim, naturalmente, tomar partido em controvérsias acerca da relevância de considerações tecidas num acórdão que não conheço, ou pronunciar-me sequer sobre a efectiva pertinência da análise do cronista, neste caso concreto.
Apenas julgo importante relembrar, na sequência do que deixo dito, que a autoridade das decisões judiciais, numa verdadeira democracia, já não poderá fiar-se apenas na beca, que noutros tempos emprestava, só por si, nobreza e superioridade àqueles que a usavam com um mínimo de dignidade; e que, para quem veja a actividade judicial “de fora”, pode ser dificilmente perceptível a distinção entre a defesa de elevados ideais de justiça e de verdade material, no caso concreto, e a pura arbitrariedade de decisões baseadas nos preconceitos e vivências pessoais dos julgadores.
Daí que, sem ignorar como a “livre” apreciação da prova convocará graus de incerteza dificilmente superáveis (mas sempre limitáveis, se verdadeiramente estivermos interessados nisso), se justifique talvez interrogarmo-nos sobre o modo como estaremos a conseguir prestar contas, aos verdadeiros titulares da soberania, do modo como exercemos as nossas funções de magistrados.
No caso deste acórdão, tratou-se certamente de explicar, estando em causa a não pronúncia, porque seriam objectivamente insuficientes os indícios reunidos, nomeadamente quando comparados com aqueles que poderiam ser suficientes, em termos das “regras da experiência” (comum, que não a pessoal dos juizes ou de outros intervenientes processuais). Ter-se-á também discutido, talvez, uma possível dimensão jurídica da noção de suficiência de indícios, ligada à da obtenção da certeza necessária para uma condenação (mas diversa desta, ao que parece); bem como os termos em que o caso concreto se poderia integrar, ou não, nesse paradigma jurídico (em moldes necessariamente extensíveis a outros casos similares).
Não sabemos em que termos o acórdão terá versado estes temas, nem caberia aqui apreciar o mérito jurídico (ou “judiciário”) da fundamentação avançada.
Sabemos, porém, aquilo que um observador externo, manifestamente atento, retirou do texto do acórdão. E penso, sinceramente, que deveríamos aproveitar e agradecer intervenções públicas como esta, que nos podem ajudar a servir melhor o povo, em nome do qual os Tribunais administram a jutiça.

22 novembro 2005

 

A REFORMA DO SISTEMA DE RECURSOS - O processo penal – III

Dizia-se no ponto 16 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 157/VII, proposta esta que esteve na origem da revisão de 1998 do Código de Processo Penal, que, «entre as soluções mantidas, avultam as da oralidade e da autonomia entre motivação e alegações».
Esclarecia-se mais à frente que «a oralidade continuará a aplicar-se, salvo quando a ela houver renúncia» e que, «do mesmo modo, é de manter a autonomia entre motivação e alegações. Enquanto a primeira, obrigatoriamente formatada, visa definir e fundamentar o objecto do recurso, tendo em vista uma decisão sobre recebivilidade, a segunda destina-se a possibilitar a justificação e a discussão do mérito do recurso».
Porém, quem assistir ou intervier nas audiências realizadas na fase de recurso nos nossos tribunais superiores facilmente verificará que se trata de cerimónias, as mais das vezes, degradantes, inúteis e dispendiosas cuja realização não acarreta nenhum dos benefícios que a oralidade poderia propiciar e só contribuem para atrasar a decisão do processo em, pelo menos, dois meses. Os advogados dos recorrentes e recorridos faltam frequentemente à audiência ou fazem-se substituir por colaboradores com menor experiência, limitando-se uns e outros, na maior parte das vezes, quando comparecem, a remeter para o que já escreveram na motivação ou na resposta oportunamente apresentada, quando não lêem as conclusões dessa peça processual. Quando não comparecem são nomeados, na hora, defensores oficiosos que, para além de em muitos casos terem uma deficiente preparação, não tiveram tempo para estudar minimamente o processo, razão pela qual se limitam a apresentar os cumprimentos e a pedir justiça ou a fazer deles aquilo que outros já escreveram no processo. Não são também raras as vezes em que os juízes, findas as alegações orais, cumprindo “à letra” o que consta do artigo 425º do Código de Processo Penal, lêem de imediato o acórdão já previamente elaborado, como se a audiência se não tivesse realizado e os sujeitos processuais não tivessem feito as suas alegações.
Uns e outros têm, por certo, motivos justificativos para os comportamentos que adoptam. Dirão os advogados que não vale a pena perder tempo quando já disseram tudo o que tinham a dizer na motivação ou na resposta, ainda por cima quando os juízes já têm o acórdão elaborado e pouca atenção prestam ao que dizem oralmente. Dirão os juízes que o projecto de acórdão foi previamente preparado porque as alegações, em regra, nada acrescentam ao que já consta do processo e que se o contrário vier a acontecer terão oportunidade de o alterar, adiando a sua leitura.
Em face deste panorama, seria fácil cair-se na tentação de propor, pura e simplesmente, a eliminação da audiência.
Porém, ela apresenta vantagens que não podem ser desprezadas. Evita a burocratização e o isolamento do tribunal (os juízes dos tribunais superiores, de outra forma, só contactariam com os processos e os seus colegas) e propicia uma verdadeira discussão oral das questões objecto do recurso (que, embora aflorada no n.º 5 do artigo 652º do Código de Processo Civil, nunca, que eu saiba, foi generalizadamente realizada). Isto mesmo sem atender aos casos em que haveria toda a conveniência em proceder à renovação da prova, a qual teria, necessariamente, de ter lugar em audiência.
A solução passa, no meu modo de ver, por manter a audiência mas limitar a sua realização aos casos em que ela seja verdadeiramente sentida como útil pelos sujeitos processuais que nela intervêm e possa contribuir para uma mais correcta decisão do caso. Mas quando se realizar tem de propiciar todas as suas virtualidades, em especial, tem de consistir numa discussão franca e aberta das questões colocadas, com uma intervenção activa do tribunal que deve interromper as alegações para que quem está a usar da palavra explique as suas afirmações, responda a objecções, enfrente problemas que as soluções que propõe suscitam. Tem que consistir num acto sério e profícuo que dignifique a justiça e não contribua, como agora, para agravar ainda mais o seu desprestígio.
A reforma de 1998 caminhou no sentido de limitar os casos em que se realizava a audiência ao conferir ao recorrente o direito de requerer que as alegações, caso tivessem lugar, fossem produzidas por escrito, permitindo que o recorrido se opusesse a essa pretensão. Porém, essa solução não foi generalizadamente acolhida, sendo reduzido o número de casos em que o requerimento para que as alegações se produzam por escrito surge.
Uma explicação para isso poderá estar no facto de, depois de terem elaborado a motivação, com o conteúdo definido pelo artigo 412º do Código de Processo Penal, os sujeitos processuais sentirem que já disseram efectivamente tudo o que tinham para dizer, nada mais tendo a acrescentar. Daí que a elaboração de uma nova peça escrita lhes pareça uma sobrecarga inútil.
Existe, pelo menos, alguma razão para este sentimento.
De facto, ao contrário do que se dizia na exposição de motivos que se transcreveu, uma motivação que cumpra as exigências o artigo 412º do Código de Processo Penal não se distingue materialmente de uma alegação. Se nela se indicaram as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido aplicada e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ser aplicada, o que é que fica para discutir nas alegações quanto ao aspecto jurídico da causa? E se indicar os pontos de facto incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificando-as por referência aos suportes técnicos em que se contém, o que é que sobra para as alegações em matéria de facto?
Estas exigências não visam apenas, ao contrário do que se dizia na referida exposição de motivos, «definir e fundamentar o objecto do recurso, tendo em vista uma decisão sobre recebivilidade». Elas destinam-se claramente a «possibilitar a justificação e a discussão do mérito do recurso».
Daí que, a manter-se, pelo menos no essencial, o perfil da motivação, a apresentação ulterior de alegações escritas não tenha sentido. Elas só se justificam se forem orais e realizadas na audiência.
E no que respeita à audiência parece-me que ela só se deve realizar quando tenha sido requerida pelo recorrente ou pelo recorrido ou, independentemente desse requerimento, quando haja lugar à renovação da prova.
Uma vez que o magistrado do Ministério Público no tribunal superior não teve anteriormente qualquer intervenção no processo, o visto do artigo 416º do Código de Processo Penal poderia então manter-se mas apenas para que aquele magistrado contactasse com o processo e requeresse, caso entendesse, a realização da audiência, onde teria a oportunidade de expressar o seu ponto de vista sobre a matéria controvertida.
Tendo havido requerimento do recorrente para a realização da audiência, a presença nela do seu mandatário seria então obrigatória, sob pena de se considerar sem efeito o requerimento apresentado caso a falta na data designada para o efeito não fosse justificada até ao momento da sua realização.
Resumindo os tópicos sobre este tema, direi que:
- a audiência, fora dos casos de recurso quanto às medidas de coacção, sobre o qual anteriormente me pronunciei, só devia ter lugar a requerimento do recorrente ou do recorrido;
- as alegações só nessa situação teriam lugar, sendo sempre produzidas oralmente na audiência;
- a audiência devia então ser um espaço de debate vivo sobre o objecto do processo;
- a falta injustificada do advogado do requerente à audiência implicava que a mesma não se realizasse, sendo o processo decidido em conferência.

 

Os Direitos e as Liberdades Fundamentais dos Militares e o Défice Democrático

Numa sociedade que se diz livre e democrática, renascida após o 25 de Abril de 1974, todos os cidadãos devem ser senhores e gozar de todos os direitos e liberdades constitucionalmente consagrados.
À luz dos arts 12º e 13º da CRP, e sendo o nosso Estado um Estado de direito democrático, baseado no "pluralismo de expressão" e na "garantia de efectivação dos Direitos e Liberdades Fundamentais" (artº 2º), mal se compreende que o status profissional possa implicar com restrições de Direitos e Liberdades Fundamentais.
Mas é o que se passa com a classe dos militares, que conhecem múltiplas restrições constitucionalmente consentidas: a proibição de associações armadas ou de tipo militar (artº 46º, nº 4), a proibição de intervenção política e o rigoroso apartidarismo (art. 275º, nº 4), a proibição do sindicalismo ou proibição da liberdade sindical (artº 275º).
E mesmo quando a CRP reconhece expressamente Direitos e Liberdades Fundamentais aos militares, como sejam, os direitos de expressão, reunião, manifestação, associação, petição colectiva, a par da capacidade eleitoral passiva, não o faz de modo pleno e efectivo - isso só acontece com a garantia de recurso da prisão disciplinar (artº 27º, nº 3, d)) - e admite restrições, conquanto no respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Tal significa que Direitos e Liberdades Fundamentais nucleares ou mesmo absolutas, como são os direitos acima enunciados (arts. 45º, 48º e 51º), conhecem restrições ou até proibições que a lei ordinária consagra e disciplina (são nomeadamente os arts. 31º, 31º-A a 31º-F e 33º da tão falada Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas - Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, actualizada em 2003). E sem esquecer o direito de queixa ao Provedor de Justiça, condicionado naquele art. 33º.
Quando estão tão vulgarizadas as revisões constitucionais, pense-se numa próxima para rever também os arts. 270º e 275º segunda ou terceira.

21 novembro 2005

 

MINUDÊNCIAS (2)


A REFORMA PENAL EM CURSO ( abreviadamente, RPEC) E A PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS (art. 69º do C.Penal). (2ª parte)

Continuando…

Fiquei, sinceramente, descansado aguardando a nova lei … mas não sem antes ter aludido a uma pequena incongruência do nº 5 (correspondente ao actual nº7) do art. 69º: continuar a referir-se ao art. 102º, como se este regulasse ainda a interdição de licença de conduzir, que a Lei 65/98 integrara no art. 101º do C. Penal. Nada que comprometesse a interpretação do preceito, tão óbvia era a incongruência, ou que esta fosse de natureza tal que fizesse cair na lama os parentes de todos nós; mas já agora, que mexiam na norma, não custava nada e não se afectava a confiança que devemos ter na forma de se expressar do legislador …. Enfim, razões que repetia para mim, procurando absolver-me de estar a tomar o tempo do legislador (ou, mais exactamente, da sua 230ª fracção ali presente) com minudências deste jaez, coisa quase mesquinha, etc. e pronto, ficou assim.
Pronto não, porque em boa verdade estive tentado a aproveitar a ocasião (afinal, a ocasião faz o ladrão), para lhe lembrar que também o art. 103º do C. Penal, suscitava dúvidas desde a tal alteração de 1998, por via de idêntica alusão ao art. 102º, mas contive-me. Não incomodei mais e fui mesmo à minha vida.
Como bem sabem os que acompanham estas coisas, a Lei nº 77/2001 de 13.07 adoptou integralmente a redacção da proposta de lei nº 69/VIII, de 2001, que se mantém em vigor, entendendo-se que aos crimes referidos (v.g. homicídio negligente e ofensa à integridade física negligente, quando cometido com violação das regras estradais) não é aplicável a pena criminal acessória de proibição de conduzir, punindo-se apenas a contra-ordenação causal grave ou muito grave, eventualmente praticada, com a sanção administrativa de inibição de conduzir.
Independentemente da importância das pequenas incongruências aqui assinaladas e dos méritos ou deméritos da inaplicabilidade do art. 69º a estes crimes (a que penso voltar, de forma sumária), o insignificante episódio que relatei confirmou-me a actualidade de três requisitórios da jurisprudência e da doutrina jurídica já com alguns anos - com que concluo este bloguetexto - que me pareceu oportuno lembrar aqui (enquanto é tempo) precisamente a propósito da Reforma Penal Em Curso:
- é importante a organização e publicação dos trabalhos preparatórios das reformas legislativas;
- os preâmbulos ou exposições de motivos dos actos normativos do governo devem, efectivamente, indicar de forma simples e concisa, as linhas orientadoras do diploma e a sua motivação;
- é necessário maior rigor na feitura das leis.



 

Saudação

Saúdo vivamente a adesão (mesmo não tendo sido convidado) de Swift ao nosso blogue. É uma mais-valia incontestável. Tanto mais que Swift regressa ao seu melhor nível, tanto no vigor estilístico, como na originalidade e no rigor das suas propostas (que ele muito modestamente apelida de "modestas"), que ficam à atenção do País e dos nossos governantes, que oxalá tenham tempo (e suficiente modéstia) para as analisar.
Desejo, e creio que todos desejamos, uma longa vida e muita saúde ao novo membro do Sine Die.

 

Agradecimento

Um especial agradecimento à notícia do surgimento deste espaço e aos votos formulados, em particular pelos seguintes companheiros da blogosfera: Justiça Restaurativa; Grande Loja do Queijo Limiano; Cum Grano Salis; Incursões; Informática do Direito; O Meu Monte; Patologia Social; Vexata Quaestio; disLEXias.

PS- Se outros houve que aqui não foram referidos tal deve-se, exclusivamente, a falha do postador na sua referenciação (e para o reparo de tal omissão toda ajuda será bem vinda).

(Actualizado)

 

Para um tsunami de propostas para a reforma penal…

Considerando que o legislador nos habituou a cultivar uma visão humanista do direito penal, cremos que deve ser ampliado o catálogo das penas acessórias previstas no Código Penal.
É que, algumas dessas penas acessórias, estando dispersas pelo Código (como sucede, nomeadamente, com os artigos 152 nº 6 e 179), revelam uma certa visão redutora, quase discriminatória em relação a outros tipos legais.
Conhecidas as finalidades das penas acessórias, bem como critérios que as podem justificar, não seria de “amplificar” a possibilidade da sua aplicação (pela sua acrescida função preventiva e pela censura especial ao agente), nomeadamente aos crimes contra as pessoas?
Porque não acrescentar, ao elenco das actuais penas acessórias, as seguintes:
Artigo 70 (proibição de contactos)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente ou particular relação que o ligue à vítima, ser proibido de a contactar, por um período de 2 a 5 anos.
2- A proibição de contactar a vítima inclui o afastamento da sua residência ou do seu local de trabalho.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Artigo 71 (afastamento de locais públicos e inibição do exercício de direitos)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas ou crime contra a propriedade, em casos em que sejam vítimas crianças, pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente ou particular relação que o ligue à vítima, ser obrigado a afastar-se de lugares públicos que sejam frequentados por crianças, por período entre 2 e 10 anos.
2- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente, ser inibido do poder paternal, da tutela e curatela por período entre 2 e 5 anos.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Artigo 72 (proibição do exercício de actividade)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente, ser proibido de exercer uma actividade (profissional ou não), que lhe permita entrar em contacto com vítimas particularmente indefesas, por período entre 2 e 5 anos.
2- Considera-se vítima particularmente indefesa quem se encontrar em situação de especial vulnerabilidade, nomeadamente, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Estas medidas, aliás, nem são inovadoras: basta consultar alguma legislação europeia sobre esta matéria!

20 novembro 2005

 

Organização judiciária: as razões da ordem e a ordem das razões

1. De entre as opções de curto prazo para o sistema da justiça, tem sido referida como intenção política a adopção de medidas de racionalização dos recursos físicos, humanos e funcionais da justiça.
Aponta-se como uma das medidas necessárias de racionalização de meios a redefinição do mapa judiciário, associando-lhe a urgência de extinção de algumas circunscrições judiciais de reduzido movimento - «tribunais que têm poucos processos».
E identificam-se mesmo, por simples transposições estatísticas, alguns tribunais a extinguir: tribunais de comarca que, pelo número reduzido de processos, não se justificaria manter.
Se o reordenamento da mapa judiciário parece questão central, e actual e urgente onde se revelem dificuldades de resposta do sistema - várias intervenções legislativas desde 1977 têm reformulado a organização judiciária – a perspectiva exclusivamente centrada no critério da racionalidade estatisticamente derivada e pseudo tecnocrática é excessivamente redutora e não tem eficácia relevante no plano em que pretende intervir.
A extinção de tribunais de reduzido movimento não é aceitável quando sejam devidamente considerados relevantíssimos elementos de ponderação que se situam no plano mais elevado da dimensão política, para além da visão fria e asséptica da pura razão técnica.

2. Não por acaso, mas porque é simultaneamente causa e consequência, os tribunais cuja extinção seria exigida por alegados modelos de racionalidade de gestão do sistema, são quase todos sedeados em vilas do interior profundo do País e que servem circunscrições geográfica e socialmente desfavorecidas.
Nessas regiões do interior, por vezes com sérios problemas de desertificação humana, social e económica, e com extensões de território geograficamente consideráveis, a coesão social e o sentimento comunitário de pertença e inclusão na entidade nacional são tributários da proximidade institucional e da solidariedade do Estado, que deve proporcionar a presença de instituições fundamentais de que os tribunais constituem uma referência primeira.
A proximidade institucional significa que as instituições fundamentais de referência da cidadania devem estar próximas – e fisicamente próximas dos cidadãos.
Em algumas circunscrições do interior – precisamente as que têm sido enunciadas como exemplos para extinção de tribunais – com especificidades sociais, de tradição, e, em alguns casos, mesmo fortes razões da História, a presença das instituições é sentida como parte integrante da identidade dos povos, da coesão do Estado, e questão de dimensão real e simbólica de cidadania, especificamente no caso das instituições municipais e da instituição judiciária com a presença do tribunal de comarca.
A extinção de tribunais de comarca, com forte tradição histórica de presença, em zonas desfavorecidas do interior do País, com o corte físico que produz na referência institucional, enfraquece o sentimento de cidadania das populações locais e a sua autoestima na pertença ao todo nacional.
E estes são valores fundamentais não mensuráveis em números, mas que devem ser ponderados na correspondente dimensão política e no respeito para com as comunidades nas zonas desfavorecidas do interior do País.
E cujo respeito não exige esforços desmedidos quando considerada a globalidade do sistema.
Os espaços físicos existem, por vezes em edifícios próprios de grande significado e dignidade.
A gestão de recursos humanos pode ser adequadamente efectuada e revestir várias modalidades, com agregação funcional, sem extinção.
A base funcional permanente sempre exigida será pouco significativa em termos gerais, e a deslocação de funcionários para outros locais, por si e pelo número reduzido, não contribuiria em nada para resolver dificuldades gerais.
Eventuais poupanças orçamentais induzidas pela extinção não serão relevantes.

3. Por tudo isto, a extinção de tribunais do interior do País constituiria uma medida sem qualquer vantagem visível na chamada racionalização do sistema, e teria danos colaterais intensos para zonas desfavorecidas e para os sentimentos de inclusão e cidadania das populações locais.
É que, aqui, a chamada coragem política não se revela na dimensão menor da extinção de supostos privilégios locais, mas na capacidade de superar a facilidade que parece resultar da ditadura da (pequena) razão técnica.

 

MINUDÊNCIAS


I
A Reforma Penal Em Curso ( abreviadamente, RPEC) e a proibição de conduzir veículos motorizados (art. 69º do C.Penal). (1ª parte)


Vem este texto a propósito da RPEC e de um pequeno episódio em que intervim, de forma absolutamente insignificante, há poucos anos atrás, quando se preparava a alteração que a Lei 77/2001 de 13 de Julho viria a introduzir no art. 69º do C.Penal.
A exposição de motivos da respectiva proposta de lei, divulgada no site do Ministério da Justiça, referia-se à redução dos índices de sinistralidade como uma das prioridades do XIV Governo Constitucional e apresentava algumas alterações que, com esse objectivo, o governo pretendia introduzir no C. Penal . Entre as normas visadas contava-se o art. 69º, a respeito do qual se dizia apenas que se procedia à agravação dos limites mínimo e máximo da pena acessória ali prevista, por estarem tais limites desfasados dos previstos para a inibição de conduzir no art. 139º do C. Estrada. Da simples leitura da nova redacção proposta, logo se constatava, porém, que se introduziam alterações significativas na previsão e estrutura do novo art. 69º, sem que se dissesse antes uma única palavra sobre as mesmas.
Por essa altura participei num evento que contou com a presença de um deputado da bancada parlamentar do partido a que pertencia o governo e pensei que iria poder esclarecer algumas dúvidas que resultavam da leitura da dita proposta. Quando tive ocasião de intervir, lá fui dizendo que a nova redacção parecia ir muito além das intenções explanadas na exposição de motivos e que, independentemente de outras questões, podia mesmo resultar do texto que deixava de aplicar-se a pena acessória de proibição de conduzir aos crimes cometidos por meio de contra-ordenações causais, nomeadamente aos homicídios negligentes. Por isso talvez se justificasse que o texto da futura lei deixasse claro o que realmente pretendiam, para evitar fundadas mas escusadas dúvidas no domínio da aplicação concreta.
O senhor deputado tomou boa nota destas palavras, concordou até que também lhe parecia que a ser como eu dizia não era nada coisa irrelevante deixar de aplicar-se a dita pena de proibição de conduzir aos referidos crimes, e que não deixaria de encaminhar devidamente a questão.
Senti-me bem com o insignificante contributo para a coisa pública, ainda que achasse que certamente a questão já estaria esclarecida naquele momento – o que quase me levara a nem sequer a colocar – e fiquei, sinceramente, descansado aguardando a nova lei.

(há-de continuar)


II
Escutas telefónicas e Estado de direito.
O art. 34º nº4 da CRP apenas admite a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Reserva de lei, reserva de matéria, para além da reserva jurisdicional que, pelo menos, a lei ordinária consagra claramente.
Penso haver consenso quanto ao carácter polimórfico e altamente lesivo das escutas telefónicas e não tenho notícia de discussões, dúvidas e hesitações quanto à inadmissibilidade da sua utilização para fins políticos ou para satisfação do direito dos cidadãos à informação, ainda que tendo por objecto os desígnios, o carácter ou simples tendências de gosto dos seus governantes e outras figuras públicas.
Que leva, então, jornais de referência e as respectivas fontes, a terem por legítimo (ou compensador ?) o que tantas vezes parece ser violação grosseira do direito fundamental dos cidadãos ao sigilo dos meios de comunicação privada, para além de mais alguns direitos e outras tantas minudências, como a violação do segredo de justiça, utilizando abundantemente informação que apenas devia servir as necessidades imperiosas da investigação de alguns crimes ?
Ou será que a consagração daqueles e outros direitos constitucionais não coresponde à afirmação de verdadeiros valores socialmente relevantes (mesmo quando se convoca a tutela penal para os proteger), sendo assim tomados como uma espécie de normas axiologicamente neutras, cuja violação pode acarretar um pequeno incómodo, mas nunca um verdadeiro problema de consciência ou a censura sentida dos nossos concidadãos ?

19 novembro 2005

 

Novo quadro para a política criminal (2) - O contexto constitucional


A circunstância de sob a anunciada Lei Quadro da Política Criminal se perspectivarem apenas alterações na lei ordinária e na criação de novos instrumentos normativos infra-legais, obriga a que seja importante recordar o quadro constitucional como o contexto sobre o qual tem de operar a discussão.
Desde logo o invocado art. 219.º, nº 1, da Constituição na redacção introduzida há 8 anos e que agora se «pretende desenvolver», ou seja a previsão de que (também) compete ao Ministério Público participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o que constitui uma solução de compromisso com dois vectores:
- Por um lado, a afirmação inequívoca de um postulado dirigido ao judiciário: A actuação da justiça, exercida por burocracias profissionais, não pode ganhar prevalência na articulação com os poderes democráticos e a circunstância de nalguns casos os órgãos judiciários realizarem as intenções político-criminais do sistema legal, por exemplo em sede de soluções de diversão e de sanções penais, não ilide antes reforça o postulado da sua subordinação ao programa político definido pelos órgãos de soberania politicamente conformadores e democraticamente legitimados, em particular a Assembleia da República através das suas leis;
- Por outro, uma restrição ao perigo de politização da justiça penal, com a expressa salvaguarda do princípio da reserva judiciária no foro penal, pelo que a participação do Ministério Público na execução da política criminal tem de se operar nos termos da lei e está vinculada, de forma expressa, ao respeito de dois princípios constitucionais, (a) a autonomia do Ministério Público e (b) o exercício da acção penal orientado pela legalidade.

A opção programática da Constituição em matéria de justiça penal tem uma implicação política ao estabelecer um complexo contexto operativo com diferentes órgãos constitucionais competentes e interdependentes o que gera exigências de escrutínio que, manifestamente, não têm sido satisfeitas. Défice de accountability, que, sublinhe-se, abrange não só o desempenho dos Tribunais, do Ministério Público e dos Conselhos Superiores (estes enquanto órgãos administrativos autónomos responsáveis pela gestão das magistraturas), mas também das instâncias de definição de política criminal, cuja legislação nunca tem sido sujeita a avaliação (nem autónoma, nem própria), e em particular do Governo (que além de participar na definição da política criminal, a executa através da política de segurança, órgão executivo responsável pela dotação de meios do judiciário e de quem dependem orgânica e disciplinarmente os órgãos de polícia criminal).
A efectivação de um sistema de prestação de contas de todas estas entidades que obste à diluição de responsabilidades e permita a fundada afinação do sistema é o que mais se impõe discutir. No fundo, superação de um estado de global e generalizada irresponsabilidade...

No plano jurídico, o aspecto mais controverso sobre os potenciais corolários jurídico-práticos da previsão expressa de que o MP participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania centra-se na reserva de lei. Há quem entenda que a referência aos termos da lei implique que os comandos normativos para o Ministério Público terão sempre de se operar na forma de lei. Em contraponto, pode preconizar-se que a Constituição a partir de 97 admite que a lei possa também constituir uma fonte mediata de outras orientações genéricas (guidelines) dirigidas ao Ministério Público por órgãos politicamente conformadores, em particular a Assembleia da República (que goza de reserva de competência nas áreas centrais de definição da política criminal).

A Lei Quadro parte desta segunda perspectiva, mas mesmo para quem considere que esse é um espaço de intervenção constitucionalmente autorizado (como é o caso deste postador), não pode deixar de reconhecer que a lei de enquadramento envolve um terreno complexo nos planos político e jurídico, pois mesmo nos casos de «reenvio dinâmico» (da Constituição para a lei ordinária) a vinculação do legislador tem de se aferir à luz de uma interpretação em conformidade constitucional (em particular no que respeita à política criminal de respeito do quadro de repartição funcional e de interdependência de órgãos do Estado).

18 novembro 2005

 

Modesta proposta

Modesta proposta

ou de como obter a máxima produtividade penal, evitar o agravamento do Orçamento e melhorar, de uma forma geral, a imagem da justiça neste reino.



Se a eficácia do sistema repressivo penal se mede, à partida, pelo número de participações que dão origem a acusação e depois pelo número de acusações que dão origem a condenações, a minha modesta proposta para a solução radical do problema, se mo permitem Vossas Excelências, é muito simplesmente a seguinte: acuse-se e condene-se a eito para alimentar as estatísticas e dar a medida óptima da eficácia do sistema.
Os magistrados do Ministério Público e os magistrados judiciais poderão, finalmente, dar –se as mãos, na solidariedade por uma grande causa comum. Uns produzirão acusações e outros, condenações, na óptica da máxima rentabilidade repressiva e segundo o princípio da máxima produtividade penal.
Com isso obter-se-á um outro objectivo nada despiciendo: concertando as suas posições na mira desse desígnio nacional e patriótico, as duas magistraturas transmitirão a ideia de uma unidade sólida do sistema judiciário português e evitarão desfasamentos entre a Acusação e o julgamento, que tantas especulações provocam e tantos prejuízos acarretam para a imagem da própria justiça. E mais: cortar-se-á pela raiz uma perversa tendência que vai grassando: a de se colocar no banco dos réus a entidade que persegue criminalmente os crimes e procede à acusação, bem como testemunhas e outros figurantes processuais, com fundamento em as acusações se não provarem em julgamento e assim, segundo alegam, se pôr a nu o maquiavelismo da investigação e da acusação.
Os benefícios para o Estado, em hora tão crítica, também são evidentes, na medida em que se evitarão sobrecargas do Orçamento, derivadas de, uma vez fracassadas as acusações, os arguidos (sobretudo aqueles que têm - como direi? – maior sensibilidade social e pessoal) se sentirem alentados a propor acções de indemnização pelos danos alegadamente causados à sua honra e à sua carreira profissional com o processo-crime que alegadamente lhes foi movido com perversa intenção.
Creiam Vossas Excelências no recto propósito que me move, o qual vem a ser apenas, como disse, o de muito modestamente contribuir para a boa solução dos ingentes problemas que muito afligem o nosso Reino.

(Jonatham Swift 1665 – 1745)

17 novembro 2005

 

Novo quadro para a política criminal (1) - Entre o que se pretende alterar e o que se impõe discutir


A conclusão do anteprojecto da proposta de Lei Quadro da Política Criminal foi a semana passada anunciada na generalidade dos órgãos de comunicação social, embora o respectivo conteúdo não conste ainda no sítio do Ministério da Justiça (apesar de divulgado sem qualquer solicitação de sigilo a um cada vez mais alargado universo de privilegiados). Este constitui manifestamente um tema cuja análise não pode ser reservada aos corredores de instâncias burocráticas (velhas ou novas) ou às páginas de circunspectas e reservadas revistas jurídicas, em especial quando a experiência recente em sede de política criminal tem sido o de rápida aprovação de novos quadros legais (cuja eficácia, além do mais, não tem sido a posteriori avaliada para efeito das decantadas responsabilidades políticas: de definição e de execução da lei).
O objectivo da proposta de lei em avançado estado de concepção, é revelado no programa de governo sob a epígrafe «Tornar mais eficaz o combate ao crime e a justiça penal, respeitando as garantias de defesa» pois aí anuncia-se que: «No plano da política criminal, a Assembleia da República, sob iniciativa do Governo, passará a prever periodicamente, de forma geral e abstracta, as prioridades da política de investigação criminal, bem como as responsabilidades de execução dessa política, nomeadamente no que respeita ao Ministério Público, com base num novo quadro legislativo específico de desenvolvimento do artigo 219.º da Constituição».
À primeira vista parece que a opção programática do Governo em sede de «política criminal» passa pela definição de um novo quadro procedimental de alargamento: a) do espectro da acção governamental (e não do Parlamento que, por força da Constituição, tem a competência decisória mas que novo modelo passaria a estar dependente da iniciativa governamental), enquanto entidade com exclusividade para a iniciativa de definição infra-legal e legal da política criminal, e b) de responsabilidade do Ministério Público pelo cumprimento do que lhe é definido (embora essa centralidade de responsabilidade na execução da política criminal não pareça compreender um alargamento de competências).
De qualquer modo, no actual momento e acima de tudo, sejam quais forem os desígnios imediatos e o efectivo desenvolvimento do processo em curso, este anúncio constitui uma interpelação incontornável para se discutir a política criminal, em particular os actores estaduais e a repartição de funções e responsabilidades (quer na definição legal e infra-legal quer na execução).
Discussão que deve ser independente dos horizontes colocados na mesa pela iniciativa governamental, abrangendo de uma forma global o quadro de definição e execução de política criminal e os respectivos responsáveis, que no nosso contexto constitucional são a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais e o Ministério Público. A clarificação das suas funções e meios constitui ainda uma oportunidade para se tentar efectivar o respectivo escrutínio, algo que tem sido dificultado pela muita poeira que frequentemente se levanta, nomeadamente na leitura do modelo constitucional.

16 novembro 2005

 

Ainda a despenalização da IVG

Confesso que ainda não me conformei com o adiamento "sine die", ou "ad eternum" da despenalização da IVG. Aqui fica o meu protesto, sob a forma do artigo que enviei para o Público em 27 de Outubro último e que ficou por publicar.


O aborto e as promessas eleitorais



Perante a decisão do Tribunal Constitucional que inviabiliza o referendo à modificação da lei sobre interrupção voluntária de gravidez, muitas vozes se fazem ouvir lembrando a necessidade de o PS “cumprir a promessa eleitoral”, aproveitando-se aliás do que o Primeiro-Ministro insistentemente repetira aquando do “chumbo” do referendo pelo Presidente da República sobre o “contrato” celebrado com o eleitorado quanto à realização do referendo.
Ora, há que esclarecer o seguinte: o PS não podia pura e simplesmente fazer qualquer contrato desse tipo, porque não estava nem está nas suas mãos (isto é, nas mãos do Governo ou da Assembleia da República) a convocação do referendo, matéria que é da competência exclusiva do Presidente da República, não falando da necessária intervenção do Tribunal Constitucional para “validar” a pergunta e o processo referendário.
Portanto, ao fazer a promessa eleitoral de que “convocaria” um referendo para alterar a legislação da interrupção voluntária de gravidez, o PS prometeu mais do que podia, devendo entender-se que o PS estava apenas obrigado a fazer, enquanto Governo e maioria parlamentar, o que lhe era possível: aprovar uma proposta de referendo e apresentá-la ao Presidente da República.
E foi isso que o PS fez. E até fez um pouco mais: face à recusa inicial do Presidente da República, renovou a iniciativa referendária, depois de aprovar as alterações legislativas necessárias para que fosse possível o referendo até ao final deste ano.
Mas o “chumbo” (aliás juridicamente fundamentado) do referendo pelo Tribunal Constitucional inviabiliza a realização do referendo até ao fim da presente sessão legislativa, ou seja, até Setembro de 2006. Desobrigado se deve sentir portanto o PS da sua “promessa”. Melhor: deve considerar cumprida tal promessa!
Resta portanto o fundo da questão: a da necessidade de, independentemente do procedimento, se resolver o problema do aborto clandestino, necessidade reconhecida pelo PS também no seu programa eleitoral, que pela primeira vez assumiu uma posição oficial inequívoca nesta matéria.
Assim, para ser fiel a esse programa e às suas promessas, o que o PS tem a fazer é, perante a inviabilização (pelo menos por um ano, e quem sabe por quantos mais!) da via referendária, escolher a via parlamentar para concluir o processo legislativo sobre as alterações à interrupção voluntária de gravidez.
Toda a legitimidade constitucional tem a Assembleia da República para o fazer. E também legitimidade política reforçada, uma vez que o eleitorado em Fevereiro deste ano votou com larga maioria nos partidos que inscreveram expressamente essa proposta legislativa nos seus programas eleitorais.
Assumam, pois, as suas responsabilidades perante o eleitorado.

 

O regresso do feudalismo

Na orquestrada e bem afinada campanha contra os “privilegiados” do regime (ou seja, os funcionários públicos em geral e os “corpos especiais” em especial, ou não fossem eles especiais) que nos últimos meses tem campeado pela comunicação social, avulta o conceito de “feudalismo de Estado” desenvolvido por Vital Moreira para caracterizar a existência dos tais corpos especiais, magistrados, militares e professores, por exemplo.
Considera ele “pré-moderna” uma organização do Estrado onde certos corpos detêm estatutos profissionais específicos. O desaparecimento dos estatutos específicos e o “nivelamento” de tratamento jurídico de todos os funcionários seria assim uma “obra de equidade social”, de que o actual Governo já é credor.
Tão confrangedoramente frágil é esta argumentação que se estranha sinceramente que seja produzida pelo seu autor e só se compreenderá em tempos de “fervor socrático”, que pode não durar e oxalá não dure, porque perturba o discernimento.
Certamente que Vital Moreira não proporá o igualitarismo absoluto, o que seria a mais absoluta das demagogias (mas estamos em tempo delas…). O que ele quer é acabar com os “privilégios”. Mas o que são “privilégios”?
Privilégio haverá sempre que é atribuído um direito ou uma contrapartida que não é devida, que é excessiva relativamente aos deveres e às funções, riscos e responsabilidades do contemplado.
Ora, é precisamente essa ponderação que é preciso fazer.
Os casos dos militares e dos magistrados são paradigmáticos. Os desvios dos seus estatutos, no que toca a deveres, responsabilidades e restrições de direitos, são intensos, como se sabe e se julga que não é preciso enumerar, de modo que as contrapartidas têm de ser compensadoras (até para garantir um recrutamento por cima). Será isto difícil de compreender?
Aliás, desde os alvores do liberalismo, houve a consciência nítida de que um estatuto remuneratório justo dos juízes era condição indispensável e integrante da independência dos tribunais.
A diferenciação de estatutos não é feudalismo. À complexidade das situações responde-se com pluralidade de soluções e de respostas. Isso não é um feudalismo pré-moderno, mas sim uma lógica estritamente moderna ou aliás pós-moderna (para quem preferir).

 

A autoridade democrática do Estado

Desde há meses vimos assistindo diariamente à acção do rolo compressor do “pensamento único” centrado no défice das contas públicas. Vivemos uma época de ditadura do economicismo (ou do financismo), que se traduz na prioridade absoluta às contas, aos números, aos conceitos económico-financeiros. O direito, os direitos, mesmo os fundamentais, virão depois (quando, e se, houver dinheiro).
Em toda a comunicação social, de directores a comentadores, fixos e móveis, todos num coro monumental advertem/avisam/ameaçam apocalipticamente os leitores/ouvintes/espectadores de que chegou a altura dos sacrifícios, de que é tempo de comer e calar, de nos submetermos aos “superiores interesses da Nação”, tal como eles os entendem. Os novos sacerdotes do regime, os economistas, ungidos de títulos académicos impressionantes, acumulados deste lado e do outro lado do Atlântico, esmagam-nos com sabedoria e ameaças de pragas infindáveis se não obedecermos às suas profecias.
Percorre as elites em geral (da direita pura à esquerda governamental) um fervor autoritário, com salpicos nacionalistas (salvar Portugal enquanto é tempo) e messiânicos (é preciso alguém que encarne e assuma esse projecto de “ressurgimento”).
Defende-se abertamente uma modificação da matriz do regime no sentido presidencialista. É um novo sidonismo, um gaullismo à portuguesa. E o candidato até está à vista de toda a gente. Ele até já se prontificou para desenvolver uma “cooperação estratégica” com a AR e o Governo. Todos os poderes marchando unidos! E sem forças de bloqueio!
Também para a esquerda governamental a redução do défice se tornou um desígnio nacional. E desta forma se legitima, com o apoio, claro está, da maioria absoluta, uma política de redução drástica das despesas públicas (incluindo as despesas sociais). Agora o défice, mais tarde, quando (e se) for possível, as políticas sociais, o emprego, etc.
O sindicalismo tornou-se também suspeito, se não mesmo vituperado. Sindicalismo e corporativismo são aliás coincidentes, pois os sindicatos defendem interesses egoístas, e não o “interesse nacional”! É abertamente contestado o direito ao sindicalismo de certos extractos profissionais: os militares devem meter-se nos quartéis e obedecer aos chefes, os seus únicos representantes (à boa maneira prussiana!). Os magistrados também são abertamente visados: querem-se magistrados politicamente neutros, calados, acríticos, muito tementes aos poderes instituídos. Os funcionários públicos em geral estão sob fogo cerrado: em vez de estarem humildemente agradecidos por terem emprego vitalício, ainda protestam e querem manter “direitos especiais” (isto é, privilégios)!
“Acabar com os privilégios” é a palavra de ordem da “base social-mediática de apoio ao governo”. Fácil de vender, aliás, pois o populismo barato sempre vendeu (durante um certo tempo, depois esgota-se, mas às vezes demora a esgotar-se, e entretanto rende). Tira-se aos ricos para dar aos pobres! Só os privilegiados se podem queixar! Todos os que aparecerem a protestar, a manifestar-se, a fazer greves, são privilegiados e resistentes à mudança. Por que não dizê-lo? São os novos inimigos sociais!
E cuidado: não se esqueçam da autoridade (democrática, pois claro!) do Estado, que aí está para o que for preciso. O Governo não pode, não deve, ceder, conceder ou tergiversar. E não abusem de manifestações, se não… repensa-se o respectivo regime legal!

 

O Tribunal Constitucional e o Contencioso Eleitoral Autárquico 2005 (Um caso de Insucesso)


Num "molho" recente de 40 acórdãos do TC em matéria de contencioso eleitoral autárquico, entre muitos outros, verifiquei que só 14 deles conheceram do mérito do recurso, tendo os demais ficado pelo não conhecimento do recurso (intempestividade ou prematuridade). E desses 14 acórdãos apenas 3 culminaram no provimento do recurso, aliás, sem grande relevo ou interesse jurídico (impressão de boletins de voto, admissão de uma candidatura, contagem do número de votos de uma lista).
Esta estatística parcial no universo daqueles 40 acórdãos, revela um insucesso para os recorrentes em todo o processo eleitoral autárquico de 2005 (insucesso em toda a linha quanto ao apuramento dos resultados eleitorais).
Pode, assim, questionar-se se vale a pena manter um contencioso eleitoral de que os recorrentes acabam por não tirar proveito.
Sem entrar na análise desses acórdãos, deveria indagar-se se as exigências legais, especialmente de natureza processual, devem manter-se ou antes seria avisado rever das exigências.
Algo vai mal no "reino da Dinamarca" e, portanto, interessava ponderar alterações legislativas que viessem a facilitar os prejudicados em futuras eleições autárquicas, quer a nível da apresentação de candidaturas, quer a nível do contencioso da votação para apurar a verdade dos resultados eleitorais

15 novembro 2005

 

A REFORMA DO SISTEMA DE RECURSOS - O processo penal - II

O que sugeri na primeira parte deste artigo poderia obter materialização num articulado como o que se segue, o qual, precisando, naturalmente, de ser posteriormente aperfeiçoado, poderá contribuir para uma melhor explicitação do que escrevi.

PARTE I
LIVRO IV
DAS MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL

TÍTULO II
DAS MEDIDAS DE COACÇÃO

CAPÍTULO IV
DOS MODOS DE IMPUGNAÇÃO

Artigo 219°
Recurso

1 – Sem prejuízo do disposto nos artigos 220° e seguintes, da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título há recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos.
2 – A decisão que não aplicar, revogar, substituir ou declarar extintas essas medidas é irrecorrível.

Artigo 219°-A
Interposição e efeitos do recurso

1 – O prazo para a interposição do recurso é de 7 dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, no caso de decisão oral reproduzida em auto, a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver presente.
2 – O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso, podendo o recorrente apresentar no mesmo prazo prova documental dos factos relevantes para a decisão e requerer a elaboração de relatório ou informação dos serviços de reinserção social.
3 – Para interpor o recurso, o defensor pode, nos termos previstos nos dois últimos períodos do n.° 2 do artigo 89°, ter acesso às peças processuais indicadas no despacho que aplicou a medida de coacção e a todas aquelas em que se contenham elementos de prova a que o juiz tenha atendido para fundamentar a decisão.
4 – É correspondentemente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 414°, n.° 1, 411°, n.° 5, e 413°, n.°s 1 e 2, sendo de 7 dias o prazo da resposta do Ministério Público.
5 – Aos prazos previstos nesta disposição não é aplicável o disposto no n.° 5 do artigo 107°. Quando o procedimento se revelar de excepcional complexidade o juiz pode, a requerimento do arguido, prorrogar o prazo previsto nos n.°s 1 e 4 até ao limite máximo de 20 dias.
6 – O recurso sobe imediatamente, em separado, sem efeito suspensivo.
7 – É correspondentemente aplicável o disposto nos n.°s 4 e 6 do artigo 414°.
8 – Havendo vários recursos interpostos da mesma decisão são todos julgados conjuntamente.

Artigo 219°-B
Julgamento do recurso
1 – Depois de ter sido distribuído o recurso, é o processo concluso ao relator para exame preliminar.
2 – Sempre que a natureza do processo e a disponibilidade de meios técnicos o permitirem, são retiradas cópias para que os vistos sejam efectuados simultaneamente com o exame do relator.
3 – Concluído o exame preliminar e efectuados os vistos, é aberta conclusão ao presidente da secção, caso o recurso não deva ser julgado em conferência, o qual designa a audiência para um dos 10 dias seguintes, sendo para ela convocados o Ministério Público e o defensor.
4 – É correspondentemente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 423° a 425°.
5 – Qualquer dos juízes pode solicitar ao Ministério Público e ao defensor que esclareçam as afirmações feitas, podendo a audiência ser interrompida se se vier a revelar necessária a junção de qualquer elemento que não tenha acompanhado o recurso.
6 –A audiência decorre com exclusão de publicidade se ainda não tiver sido deduzida acusação.
7 – O acórdão pode limitar-se a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.

14 novembro 2005

 

A REFORMA DO SISTEMA DE RECURSOS - O processo penal - I

O Ministério da Justiça divulgou, em Maio passado, um relatório em que «resume um exercício de avaliação legislativa … centrado no funcionamento do actual sistema de recursos em processo civil e processo penal» que pretende ser «um ponto de partida para a discussão pública», discussão essa que, segundo os autores o estudo, se prolongará até ao final do ano.
No que se refere ao processo penal, o relatório termina formulando algumas conclusões (n.ºs 36 a 45) que têm como objecto:
A delimitação das funções do Supremo Tribunal de Justiça;
A disciplina da documentação da audiência;
A transcrição da prova gravada;
A fundamentação do despacho de aplicação de medidas de coacção;
O regime relativo à manutenção da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido condenado.
Esta simples enunciação revela, desde logo, que o referido relatório, no que respeita ao processo penal, ficou muito longe de alcançar um dos objectivos que se propunha, o de determinar quais eram os problemas reais do sistema. De facto, se olharmos com alguma atenção, vemos que só a primeira daquelas cinco questões tem directamente a ver com o sistema dos recursos. As outras, se bem que importantes, só mediatamente lhes respeitam.
Infelizmente, existem muitos aspectos do regime dos recursos em processo penal que precisam de ser discutidos e, eventualmente, alterados. Bastariam uns meses de prática judiciária para os detectar.
Entre estes aspectos conta-se, desde logo, segundo me parece, o regime dos recursos das decisões que aplicam ou mantém medidas de coacção que, nos termos do artigo 219º do Código de Processo Penal, devem ser julgados no prazo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos no Tribunal a quem competir a sua apreciação.
Tal prazo, sobretudo quando somado ao período que mediou entre a data em que a decisão foi proferida e aquela em que o recurso foi recebido no tribunal superior, normalmente superior a 30 dias, sendo excessivamente longo, é, contudo, muitas vezes, impossível de cumprir.
Basta que o Ministério Público não se tenha limitado a apor o seu visto quando o processo lhe foi apresentado logo após a distribuição.
Se o Ministério Público não se tiver limitado a apor o visto e se se tiver pronunciado sobre o mérito do recurso há que notificar o recorrente do parecer emitido o que, bem vistas as coisas, normalmente esgota os 30 dias fixados para a apreciação do recurso. Isto antes de o processo ter sido apresentado ao relator para o estudar e elaborar o projecto de acórdão. E depôs da elaboração desse projecto ainda o processo tem de ir aos vistos dos juízes-adjuntos e à conferência para aí ser discutido e assinado.
Tudo isto, se nenhum percalço ocorrer (e podem ocorrer muitos, começando pelo facto, muito comum, de o apenso em que o recurso subiu não se encontrar devidamente instruído com os elementos necessários para a apreciação do recurso), demora, numa situação vulgar, mais de dois meses e meio, o que não se pode deixar de considerar excessivo.
Haveria, pois, desde logo, que simplificar os termos deste tipo de recursos, nomeadamente através da supressão do visto do Ministério Público, e encurtar, em princípio, os prazos estabelecidos para a sua interposição e para a apresentação da resposta permitindo, no entanto, que, nos casos de excepcional complexidade, esses prazos fossem prorrogados.
Ainda em sede de recursos relativos a medidas de coacção parece-me que o legislador deveria deixar claro um outro aspecto: considera ou não admissível o recurso da decisão que não aplicou ou não manteve uma medida de coacção? Se o admite, como generalizadamente tem entendido a jurisprudência, porque é que não inclui expressamente este tipo de recurso no rol daqueles que, de acordo com o artigo 407º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobem imediatamente?
Não será, por certo, porque queira que ele só suba a final, o que lhe retiraria qualquer oportunidade, ou porque se trate de um recurso pouco frequente que, por isso mesmo, pode ser abarcado na previsão da norma residual contida no n.º 2 desse artigo 407º.
Talvez seja porque não previu a sua admissibilidade. E, na verdade, se os perigos que alegadamente justificavam a medida de coacção eram de facto reais não é, em geral, uma decisão proferida em sede de recurso três meses depois que vai impedir a sua concretização.

 

Que futuro para os hospitais psiquiátricos?


Há dias, quando fazia a ronda pelos canais da tv, parei alguns minutos num mini debate onde se discutia a política de saúde mental e a vontade governativa de acabar com os hospitais psiquiátricos. E fiquei a pensar…
Como se conseguirá implementar uma política de desinstitucionalização, recorrendo ao chavão politicamente correcto da «necessidade de integrar os doentes mentais na comunidade»?
Podemos concordar que o tratamento e a compensação de doentes mentais, ainda que dependente de um internamento temporário, poderão ser levados a cabo nas restantes instituições hospitalares.
Mas, terão os nossos hospitais condições (resposta rápida) para receber tais doentes, sem irem para as famosas listas de espera?
E, nos casos dos internamentos temporários, como integrá-los com os restantes doentes?
Como gerir a falta de camas vagas e a pressa de «mandar os doentes para casa»?
Na Comunidade que alternativas viáveis e efectivas existem ou vão ser criadas? Qual a nova estratégia global a seguir?
Os seus custos e a necessária mobilização e sensibilização (sem o habitual amadorismo), serão mais vantajosos e mais profícuos do que os suportados com os hospitais psiquiátricos?
Não podemos esquecer que muitos desses doentes, não têm quaisquer condições, nem apoios no exterior, precisando de acompanhamento permanente para se manterem compensados.
Claro que é preciso investir e promover uma boa saúde mental, nomeadamente no domínio de uma política prioritária de saúde pública, elevando o bem-estar físico e mental.
Mas isso implica intervir coordenadamente em todas as áreas, designadamente (acompanhando as políticas comunitárias) na melhoria da qualidade de vida, na inclusão social e na participação activa na vida social e económica.
Mas, afinal, qual é a opção? Reestruturar os hospitais psiquiátricos ou acabar com eles?
O que se vê nas ruas (não vou falar agora nos bairros sociais, nem nos indigentes, nem na falta de postos de trabalho etc.), é que as fileiras dos sem abrigo têm aumentado e os arrumadores continuam no terreno…serão estilos de vida a preservar e a incrementar?

09 novembro 2005

 

Nota de Abertura


A decisão de criar este blogue parte da constatação de que o espaço público português está cada vez mais reduzido, mais condicionado, logo, mais pobre e menos democrático.
É um fenómeno mais ou menos universal, devido fundamentalmente à intervenção asfixiante do poder económico na comunicação social, condicionando de forma significativa o pluralismo de opiniões e a independência dos jornalistas.
A par disso, a agenda político-mediática reduziu-se, os intervenientes na discussão pública são um corpo reduzido de vozes (por vezes mesmo um coro), dialogando uns com os outros, umas vezes amenamente, outras acidamente, mas sempre como velhos amigos/inimigos que sabem que partilham o mesmo espaço privilegiado, negado à maioria, ao vulgo.
É uma autêntica asfixia da opinião pública o que se vem produzindo e agravando nos últimos meses em Portugal. As possibilidades de furar o bloqueio na comunicação social são cada vez mais limitadas.
Tudo isto é a negação do papel fiscalizador da imprensa e de toda a comunicação social, enquanto pilar da democracia.
É precisamente neste ponto que o aparecimento da “blogosfera” abriu uma possibilidade inédita de intervenção cidadã, sem condicionalismos económico-financeiros, o que permite contrariar a lógica prevalecente na comunicação social tradicional e vislumbrar uma democratização profunda da discussão pública e consequentemente uma intensificação do controlo democrático do poder político.
É esse o sentido e o propósito da criação deste blogue. A iniciativa parte de um grupo de juristas, magistrados judiciais e do ministério público. Mas as nossas afinidades não são corporativas, no sentido que ultimamente este palavrão adquiriu. O que nos aproxima são convergências de valores e princípios: o apreço pela defesa dos direitos humanos, pelo ideal da justiça social, pelo primado do direito, no plano interno, como no âmbito internacional.
Afinidades não significa obviamente unanimidade. Dentro desse quadro geral, a pluralidade de sensibilidades e de preocupações é inevitável e salutar. Os textos só responsabilizam o seu autor, não o grupo.
As pessoas que tomam a iniciativa de criar o blogue não têm favores a pagar nem os querem pedir. Sentem-se, pois, absolutamente livres, como cidadãos, de criticar ou aplaudir conforme entendam. O que as move é o imperativo que sentem de exercer o mais elementar dos direitos de cidadania - o de intervir na praça pública sobre os assuntos da polis.
Assumimos um compromisso de cidadania: falar com frontalidade, mas também com responsabilidade. Não haverá anonimato de opiniões, não haverá “má língua”, insinuações ou outras torpezas (o que não significa abdicar de recursos estilísticos eficazes como a ironia e mesmo o sarcasmo). Defenderemos e combateremos ideias, projectos e actos. Os seus autores serão apenas visados enquanto tais, não nas suas pessoas. Seremos implacáveis com todas as formas de demagogia e populismo, de mistificação e de mentira, que estão a tornar-se, sobretudo no plano internacional, mas também internamente, o modo normal e corrente de fazer política. Não procuraremos a polémica, mas não a evitaremos, quando útil para o debate franco de ideias. O nosso «livro de estilo» é o fundamento ético das nossas posições.
Esperamos assim encontrar um espaço próprio, constituir uma voz distinta, pelo rigor e credibilidade das nossas posições, no espaço da blogosfera.
Não queremos que o nosso blogue seja um espaço fechado, mas também não estamos disponíveis para intromissões que deturpem os nossos propósitos. Assim, aceitaremos e solicitaremos ocasionalmente colaboração. E acompanharemos a correspondência recebida e a ela responderemos com a prontidão possível.
O decurso do tempo e a experiência que se for adquirindo ditarão as correcções necessárias do percurso. Mas os nossos objectivos e intenções ficam enunciados.

Alberto Esteves Remédio
António Henriques Gaspar
António João Latas
Artur Rodrigues da Costa
Carlos Rodrigues de Almeida
Cristina Ribeiro
Eduardo Maia Costa
Guilherme da Fonseca
João Paulo Rodrigues
José Gonçalves da Costa
Mª do Carmo S. Dias
Paulo Dá Mesquita

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