29 janeiro 2007
Aborto: Sim, Não ou Talvez.
Já se estava à espera disto. De acordo com os «Médicos pela Escolha», «A lei deve proteger a mulher de pressões em relação à sua decisão e penalizar qualquer pessoa, inclusive o progenitor, que exerça coacção, interfira de uma forma impositiva ou com chantagem na sua decisão».
Os mesmos senhores que pretendem ver as mulheres que abortam arredadas dos bancos dos réus pretendem agora substitui-las pelos papás recalcitrantes. Os mesmos senhores que se acolhem a uma ideia de liberdade absoluta, interior, quando se trata de justificar um poder de escolha imotivada, clamam por limites à actuação de terceiro quando essa actuação contende com as suas escolhas. Inconscientemente, invocam Rousseau e Hegel quando se colocam no lugar da mulher e acolhem-se a Mill, Locke e Hume quando se colocam nos sapatos do homem. Tu que contribuíste apenas com um remoto e aleatório espermatozóide, nem um pio. Estou-me nas tintas para os teus dilemas e para essa choraminguisse de quereres ser pai. Não tens nada com isto. This is women business. E se insistes, se dizes que me deixas, vais-te sentar banco e para ti não quero dessas medidas hipócritas de suspensões provisórias do processo e outras quejandas. Essas não são para quem escolhe. São apenas para quem pode escolher.
Do lado oposto as coisas não são melhores. Segundo CDS-PP, «no caso de uma lei que consagrasse o aborto livre, deveria ser concedido ao pai o direito a proteger a vida do seu filho, daí se retirando também as correspondentes obrigações». E para o movimento «Diz que Não», «a partir do momento em que são retirados ao pai quaisquer direitos na decisão de terminar ou não com a vida daquele filho abrem-se precedentes no direito da família que poderão ter repercussões graves no plano do poder paternal».
Tal como na posição dos «Médicos pela Escolha», as ameaças são veladas. Não se diz quais são as «correspondentes obrigações» que se retiram ao pai e quais os «precedentes no direito de família» que se abrem em termos de terem «repercussões graves no plano do poder paternal». Mas supõe-se que, no limite, o progenitor ficaria desonerado de assumir a paternidade, de contribuir com alimentos, etc. Como se vê, coisa absurda: a criança nasce e tem direito a um pai. Ponto final.
Não obstante o radicalismo implícito nestas posições, elas dão conta de um problema concreto e permitem sublinhar um ponto em que a lei vigente, suportada num modelo de indicações, se mostra, em meu modesto entender, singularmente equilibrada. Ao não sancionar a interrupção da gravidez como um direito da mulher ela permite que a vontade do progenitor seja considerada, ao menos reflexamente, até onde se julgou possível. A mulher pode abortar na mesma, é certo. Mas tem consequências, reais ou potenciais. O “sim” no referendo, é claro, terá como consequência afastar de plano os interesses do progenitor. Outorga à mulher um direito. E, na realidade, para usar (ainda que em sentido figurado) de linguagem jurídico-civil, um direito potestativo que coloca o progenitor na reversa posição de sujeição. Um tanto ironicamente – e ressalvadas as distâncias devidas – transporta para a mulher de hoje um direito que cabia ao pater de há 2000 anos: um ius vitae ac necis relativamente à prole.
É óbvio que esta retórica só por si vale o que vale. Há muitos e bons argumentos a favor do “sim”, de entre os quais destaco um que releva de considerações de política criminal e que se reconduz à falta de consenso social bastante em redor da incriminação (coisa fundamental, neste particular) e ao perigo de, por esta via, a manutenção dela, descambar em mero simbolismo penal. Do que li sobre este assunto, o argumentário de Pedro Caeiro, no Mar Salgado, afigura-se-me o mais sólido. Por essas e por outras, julgo que não é fácil ser-se demasiado assertivo entre o “sim” e o “não”. E pelo que me toca, não sou. Mas que o problema referido deve pesar na ponderação das soluções, eis o que me parece mais ou menos óbvio.
25 janeiro 2007
Aborto e impostos
Um modo interessante de perspectivar a questão n`O Cachimbo de Magritte.
23 janeiro 2007
Intolerância
Pedro Mendes Lima enviou-me o texto que se segue, versando o "tema do dia" e que publico na íntegra.
«Este pobre Portugal, que não é assim tão diferente dos demais países à sua volta, é cada vez com maior frequência varrido por ondas de vibrante indignação. Calha sê-lo agora, uma vez mais, a propósito de uma miudita e dos acontecimentos judiciais conexos com o seu conturbado destino e o das pessoas que sucedeu envolverem-lhe a existência.
A questão merece, como poucas, algumas reflexões que relevam do concreto caso humano, evidentemente, mas que se extrapolam facilmente para ilustração da degenerescência ética e política de um povo e, muito em especial, das suas supostas elites culturais e sociais.
A crédito de uma exposição opinativa serena, creio ser de extrema utilidade estar alerta para os perigos da “indignação” fácil e pronta a usar – sob a máscara simpática dela ficam com frequência ocultas as fauces bestiais da intolerância. Para exemplo, como se fosse preciso, ocorre trazer à colação um recente facto da luta política do momento e que, da forma habitual, passou despercebido.
Um certo líder político partidário exprimiu a sua opinião sobre uma questão que vai ser submetida a referendo, em concreto e por miúdos dizendo que se uma determinada conduta, por ora criminalmente ilícita, representa (e na sua opinião representará) um mal objectivo, então não é por ser frequentemente levada a cabo em clandestinidade que deve ser descriminalizada, para que deixe de ser clandestina. Ilustrou o argumento com o tráfico de droga e outras malfeitorias. Uma outra dirigente partidária logo reagiu manifestando publicamente a sua... “indignação”, pois claro! Dispensou-se, está bom de ver, do rebatimento (obviamente possível) de tal argumentário, porventura contrapondo-lhe outras razões também decantadas pela lógica (como se faltassem). Talvez os mecanismos discursivos da intolerância e da opressão lhe não sejam alheios, mesmo no domínio do consciente e ao menos a julgar pelas manifestações históricas da ideologia que a dita senhora há longos anos assume; certa, no mínimo, é a vantagem que no tempo contado do espaço comunicacional dos media uma indignação fulminante de Vestal ultrajada proporciona, relativamente a um argumento racional que a multidão pela maior parte toma como obscuro... O que sobra, e a muita gente não importa, é a implícita relegação do adversário, que apenas usou um argumento, melhor ou pior mas racional e compreensível, para a categoria cada vez maior das pessoas que fazem ou dizem coisas vis e indignantes, podendo por isso ser desabrida e brevemente despenhadas pelas ravinas da ignomínia.
As ligações íntimas destas metodologias argumentativas, por assim chamar-lhes, com o totalitarismo, são coisa velha e relha, foram a matéria das indagações de muitos sábios e tema de grandes escritores, dos quais destaco apenas o grande Orwell, de quem tanto se fala mas que é tão mal conhecido. Fenómenos modernos como a political correcteness ou, para o que neste escrito interessa, a fúria indignada da multidão em relação a um assunto que manifestamente não domina nem está na sua natureza dominar, são manifestações epidérmicas mas reveladoras de uma corrente profunda de desagregação dos valores que tornaram a Polis apenas suficientemente refractária à barbárie da tirania. No que me respeita, trazem sempre à recordação, e respectivamente, a “novilíngua” e os colectivos “momentos de ódio a Goldstein” de «1984» - nunca deixa de surpreender, o valor heurístico e profético deste livro.
Quando refiro totalitarismo, mais do que mera ditadura ou até tirania, meço a palavra e procuro dar-lhe o seu real valor de uso, não o do seu constante abuso. O que está por baixo daqueles fenómenos e os motoriza não é um simples projecto social, organizado ou difuso, de imposição heterónoma de poder, é a vontade de conduzir a sociedade a uma uniformidade de pensamento, forçar o conjunto e cada um dos indivíduos a aderir activamente ao projecto social global e total, assumindo as linhas de força ideológicas que o caracterizem – fazer enfim o Homem Novo, alegre e acrítico papagueador das verdades produzidas pelos Grandes Irmãos do momento. A liberdade de consciência, a opinião livremente formada de cada um, a dissensão ideológica, tudo isso será no fim nada mais do que o fruto doentio de uma qualquer disfunção social, uma patologia a ser objecto de estudo dos sociólogos e dos psicólogos, reclamando assistência terapêutica quando não tratamento policial e judiciário.
Vindo então ao caso do momento, àquele que, referido na “novilíngua” agora em uso e conforme às últimas edições do “Dicionário”, tem apaixonado a opinião pública, comece por atentar-se no espectáculo com que a “tele-tele” do Estado brindou a Nação, certamente pela maior parte entusiástica. Em jeito de jacquerie moderna, desta feita não conduzida pelo sans cullote da gadanha e sem sangueiras, mas antes por uma mais pacífica apresentadora televisiva, fardada em competente tailleur e de microfone em riste, teve lugar um linchamento da Razão. Uns puderam ser percorridos por frémitos de “debate público”, volúpias de “democracia participativa” e, em geral, vibrantes delícias de fulgurante empenho no “bem comum”; outros, muito simplesmente, tiveram medo. Como fui destes últimos, e confessando os meus débitos à virtude da coragem, não tive frieza (e nem paciência, já agora) de sofrer a coisa até ao fim.
Incompletos embora, os meus tormentos, ainda assim pesados, em conjunção com o que do “caso” já fui percebendo (e não seguramente pela “informação”), permitem-me algumas conclusões – na quais deixo de fora a matéria da condenação de um sargento do Exército, pela simples razão que ignoro se o crime era aquele que lhe valeu a pena, ou outro e qual, ou se a dita pena foi muita ou pouca e nem essas candentes questões são as que aqui me importam.
Um cidadão (homem, e por isso predisposto à maldade), manteve um relacionamento aparentemente fugaz e porventura intermitente (talvez não exclusivo) com uma certa cidadã (mulher, e logo presuntivamente uma vítima da sociedade e/ou de circunstâncias adversas). Só por aqui, já podemos ver como o enredo está desde o seu tenro alvor a fazer-se propício à intervenção dos costumeiros campeões das “questões fracturantes”...
Desse relacionamento é gerada uma criança, única inocente segura desta estória, já que há indícios de o pai (além de ser homem, como sublinhei) não ser ou não ter sido ao tempo pessoa de hábitos sociais os mais recomendáveis e que a mãe (apesar de mulher) mais provavelmente ainda se fazia objecto dessa censura – nem falando (por agora) do que depois fez.
Fosse como fosse, o dito cidadão, um qualquer Baltazar deste nosso Portugal, sem as dignidades régias e mágicas que o nome possa sugerir, enveredou pela incompreensível atitude de duvidar da sua paternidade e, ofendendo a pudibunda sensibilidade da mãe e de quase todo o seu sexo, porventura admitiu que no chamado “período legal da concepção” o relacionamento da senhora consigo não tivesse sido marcado pela exclusividade. Animado por essa misógina e ofensiva ideia, dispôs-se apenas, o vilão, a reconhecer a criança como filha e assumir as correspondentes obrigações em se provando que era efectivamente sua filha.
Outros, por certo melhores e mais valiosos cidadãos do que este insignificante e maléfico Baltazar, em especial se estrelas da música pop ou do desporto forem, viriam nos sapatos dele a ser confrontados com a obrigatoriedade de cuidarem da criança, mesmo que a enjeitassem em definitivo, e não em forma condicionada; não foi essa a desdita do nosso Baltazar, que nem por isso ficou melhor. Adiante.
A mãe é que não esteve para delongas. Em poucas palavras e nenhumas trapaças, foi ao notário, reconheceu assinatura em título de doação de filho, e vai daí ofertou a insciente infanta, sem dúvida do seu sangue e da sua carne, a um casal de pessoas em tudo melhores que o dito Baltazar (apesar de uma delas ser homem). Estas receberam-na, acompanhada da documentação, e talvez convencidas de que o registo é mera condição de eficácia perante terceiros, não beliscando a validade da aquisição, começaram a cuidar carinhosamente da nova filha – não duvido por um segundo de que genuinamente amorosas e empenhadas no bem estar dela.
Porém, o destino, tecedor de mil ardis e inexorável, não calhou em esquecer o Baltazar. Com a lentidão própria destas coisas, o processo de averiguação de paternidade lá seguiu (do registo, feito pela mãe, só esta constava...) e na sua sequência os competentes exames lá comprovaram aquilo em que o nosso cidadão punha dúvida: a sua paternidade. Ora este, se bem o dissera melhor o fez – cuidou logo de perfilhar a criança (não foi necessária acção de investigação) e, mais ainda, de requerer regulação do poder paternal que dela lhe atribuísse a guarda. A mãe, não se imagina porquê e apesar da sua condição de mulher, não se terá apresentado como alternativa válida ao tribunal e, desse modo, o Baltazar lá teve, ao cabo de muitas voltas, aquilo que agora queria.
O tal casal é que não foi pelos ajustes. Indignado, ofendido na sua expectativa de prescrição aquisitiva de filha, foi recusando a entrega da pequena ao seu pai. Fundado na evidente prevalência da sua alta “paternidade” de afecto sobre a mera e baixa paternidade simplesmente biológica, argumentou, pouco mais ou menos, que o superior interesse da infanta era continuar consigo e, ao cabo de período deveras longo, lembrou-se de ir ter com os serviços de segurança social para desencadear mecanismos de adopção.
Por essa época, todavia, já do registo constava a incómoda paternidade biológica e já o Baltazar, de colmilhos afiados, reclamara a atribuição do poder paternal que mais tarde lhe veio a ser deferida. O que não impediu os serviços de segurança social de exprimirem o parecer de que a criança deveria ser confiada ao falado casal, com vista a adopção e porque com ele estabelecera significativa relação afectiva, sendo por outro lado alvo do desinteresse dos pais biológicos. A mãe, pobre vítima, coitada, mulher, porque decerto não podia cuidar da filha, e ao oferecê-la com alvará notarial até praticou um acto de amor, tão boas era as pessoas a quem a doou; o pai, esse homem, malandro, porque nem procurou os serviços. Minudências tais como o facto de esse procedimento não ser público nem publicitado, referidas no acórdão que condenou o garboso sargento, nada atenuam da torpeza do Baltazar: ele nem sequer procurou os serviços, logo votou à criança o seu desinteresse, habitual nos homens, e anda a perfilhar e a requerer regulações de poder paternal só para exprimir a sua insondável maldade.
O tribunal é que não quis saber de coisas. A filha é do Baltazar e o casal tem de entregar-lha. Destroçados, sempre preocupados em exclusivo com o superior interesse da criança, de boa fé ignorantes das formalidades devidas em trocas de filhos e nem por um momento tendo pensado em furar a fila dos candidatos a adopção deste país (tais baixezas não o movem), o sargento e a esposa não admitem a possibilidade de “devolver” a filha doada a non domino e não querem saber de transições e mecanismos de minimização dos traumas da transferência; a criança continuar consigo é o Bem, entregá-la ao mero pai biológico é o Mal, e nessa dicotomia não se hesita. Não entregam. Mudam de residência. Fecham as portas. Fogem. Em cima da criança é que o Baltazar, e já agora o tribunal ou a polícia, não hão-de pôr os olhos. E não põem, que a pequena está desaparecida, com a esposa do sargento.
Em tudo isto vão dois anos e meio e a criança ainda com sucesso está subtraída às garras do hediondo Baltazar, duvidante de paternidades. A “opinião pública” comove-se e indigna-se quando este honrado sargento vem a ser condenado pela insensível e inepta justiça em pena de prisão. E mais se indigna e comove quando se dá conta de que em causa está o amor de uns “pais adoptivos”, qualidade subitamente reconhecida ao sargento e à esposa, confrontado com a descartável paternidade “apenas” biológica do Baltazar, que a princípio até duvidou de ser pai. Razão principal proclamada: a criança está há tanto tempo com o casal (dois anos e meio furtada ao pai contra direito dito) que entregá-la finalmente seria já traumático para ela...
Sendo estas as causas eficientes da recente comoção pública, a culminar na aludida jaquerie televisiva, não sei o que nesta mais me perturbou. Por um lado, a multidão a espaços vociferante e a quem a Maria da Fonte de escala, com a habitual autoridade em fazer perguntas e exigir respostas capazes, arrancou sucessivos aplausos com punch lines mordazes, do estilo “então e a justiça em vez de aplicar as leis não devia ser mais humana nestes casos?” ou, mais subtis ainda, “mas enquanto os exames se faziam a criança precisava de comer, essa é que é essa!”. Por outro, cidadãos supostamente responsáveis e alegadamente sapientíssimos em matéria de infância a avançar em termos gerais propostas como a da prevalência da paternidade dos afectos sobre a biológica, meramente acidental. Por outro ainda, e o pior de tudo, o temor estampado no rosto e denunciado nas palavras de uns poucos que, como quem é oferecido em sacríficio, ousaram ainda assim dissentir das evidências ditadas.
Como disse, o que vi chegou-me. Já não tenho ilusões e nem remo contra marés, mas posso fazer duas observações, à reflexão de quem ainda saiba usar o cérebro:
Uma: a filiação adoptiva, que é um bem, não é (para já...) uma alternativa à filiação biológica, que é a natural – é subsidiária, isto é, um recurso de que se lança mão quando a biológica não corresponde ao padrão mínimo exigível;
Duas: se quem faz a constituição e as leis assim o quiser, pode ser alternativa, e pode até já imaginar-se que quem quer ser pai vai ao hospital e traz de lá um filho, seu ou de outro tanto monta, e mesmo que não tenha feito nenhum. Ao fim e ao resto a ligação biológica não é relevante e os “piores” pais (os mais feios, porcos e maus – e porque não dizê-lo, pobres) é que ficam sem crianças.
Há muitos anos, Aldous Huxley congeminou uma coisa parecida no memorável «Brave New World». Tenho dúvidas de que muitos ou a maior parte dos que agora se “indignam” quisessem realmente viver num país assim. Eu não quero.»
A questão merece, como poucas, algumas reflexões que relevam do concreto caso humano, evidentemente, mas que se extrapolam facilmente para ilustração da degenerescência ética e política de um povo e, muito em especial, das suas supostas elites culturais e sociais.
A crédito de uma exposição opinativa serena, creio ser de extrema utilidade estar alerta para os perigos da “indignação” fácil e pronta a usar – sob a máscara simpática dela ficam com frequência ocultas as fauces bestiais da intolerância. Para exemplo, como se fosse preciso, ocorre trazer à colação um recente facto da luta política do momento e que, da forma habitual, passou despercebido.
Um certo líder político partidário exprimiu a sua opinião sobre uma questão que vai ser submetida a referendo, em concreto e por miúdos dizendo que se uma determinada conduta, por ora criminalmente ilícita, representa (e na sua opinião representará) um mal objectivo, então não é por ser frequentemente levada a cabo em clandestinidade que deve ser descriminalizada, para que deixe de ser clandestina. Ilustrou o argumento com o tráfico de droga e outras malfeitorias. Uma outra dirigente partidária logo reagiu manifestando publicamente a sua... “indignação”, pois claro! Dispensou-se, está bom de ver, do rebatimento (obviamente possível) de tal argumentário, porventura contrapondo-lhe outras razões também decantadas pela lógica (como se faltassem). Talvez os mecanismos discursivos da intolerância e da opressão lhe não sejam alheios, mesmo no domínio do consciente e ao menos a julgar pelas manifestações históricas da ideologia que a dita senhora há longos anos assume; certa, no mínimo, é a vantagem que no tempo contado do espaço comunicacional dos media uma indignação fulminante de Vestal ultrajada proporciona, relativamente a um argumento racional que a multidão pela maior parte toma como obscuro... O que sobra, e a muita gente não importa, é a implícita relegação do adversário, que apenas usou um argumento, melhor ou pior mas racional e compreensível, para a categoria cada vez maior das pessoas que fazem ou dizem coisas vis e indignantes, podendo por isso ser desabrida e brevemente despenhadas pelas ravinas da ignomínia.
As ligações íntimas destas metodologias argumentativas, por assim chamar-lhes, com o totalitarismo, são coisa velha e relha, foram a matéria das indagações de muitos sábios e tema de grandes escritores, dos quais destaco apenas o grande Orwell, de quem tanto se fala mas que é tão mal conhecido. Fenómenos modernos como a political correcteness ou, para o que neste escrito interessa, a fúria indignada da multidão em relação a um assunto que manifestamente não domina nem está na sua natureza dominar, são manifestações epidérmicas mas reveladoras de uma corrente profunda de desagregação dos valores que tornaram a Polis apenas suficientemente refractária à barbárie da tirania. No que me respeita, trazem sempre à recordação, e respectivamente, a “novilíngua” e os colectivos “momentos de ódio a Goldstein” de «1984» - nunca deixa de surpreender, o valor heurístico e profético deste livro.
Quando refiro totalitarismo, mais do que mera ditadura ou até tirania, meço a palavra e procuro dar-lhe o seu real valor de uso, não o do seu constante abuso. O que está por baixo daqueles fenómenos e os motoriza não é um simples projecto social, organizado ou difuso, de imposição heterónoma de poder, é a vontade de conduzir a sociedade a uma uniformidade de pensamento, forçar o conjunto e cada um dos indivíduos a aderir activamente ao projecto social global e total, assumindo as linhas de força ideológicas que o caracterizem – fazer enfim o Homem Novo, alegre e acrítico papagueador das verdades produzidas pelos Grandes Irmãos do momento. A liberdade de consciência, a opinião livremente formada de cada um, a dissensão ideológica, tudo isso será no fim nada mais do que o fruto doentio de uma qualquer disfunção social, uma patologia a ser objecto de estudo dos sociólogos e dos psicólogos, reclamando assistência terapêutica quando não tratamento policial e judiciário.
Vindo então ao caso do momento, àquele que, referido na “novilíngua” agora em uso e conforme às últimas edições do “Dicionário”, tem apaixonado a opinião pública, comece por atentar-se no espectáculo com que a “tele-tele” do Estado brindou a Nação, certamente pela maior parte entusiástica. Em jeito de jacquerie moderna, desta feita não conduzida pelo sans cullote da gadanha e sem sangueiras, mas antes por uma mais pacífica apresentadora televisiva, fardada em competente tailleur e de microfone em riste, teve lugar um linchamento da Razão. Uns puderam ser percorridos por frémitos de “debate público”, volúpias de “democracia participativa” e, em geral, vibrantes delícias de fulgurante empenho no “bem comum”; outros, muito simplesmente, tiveram medo. Como fui destes últimos, e confessando os meus débitos à virtude da coragem, não tive frieza (e nem paciência, já agora) de sofrer a coisa até ao fim.
Incompletos embora, os meus tormentos, ainda assim pesados, em conjunção com o que do “caso” já fui percebendo (e não seguramente pela “informação”), permitem-me algumas conclusões – na quais deixo de fora a matéria da condenação de um sargento do Exército, pela simples razão que ignoro se o crime era aquele que lhe valeu a pena, ou outro e qual, ou se a dita pena foi muita ou pouca e nem essas candentes questões são as que aqui me importam.
Um cidadão (homem, e por isso predisposto à maldade), manteve um relacionamento aparentemente fugaz e porventura intermitente (talvez não exclusivo) com uma certa cidadã (mulher, e logo presuntivamente uma vítima da sociedade e/ou de circunstâncias adversas). Só por aqui, já podemos ver como o enredo está desde o seu tenro alvor a fazer-se propício à intervenção dos costumeiros campeões das “questões fracturantes”...
Desse relacionamento é gerada uma criança, única inocente segura desta estória, já que há indícios de o pai (além de ser homem, como sublinhei) não ser ou não ter sido ao tempo pessoa de hábitos sociais os mais recomendáveis e que a mãe (apesar de mulher) mais provavelmente ainda se fazia objecto dessa censura – nem falando (por agora) do que depois fez.
Fosse como fosse, o dito cidadão, um qualquer Baltazar deste nosso Portugal, sem as dignidades régias e mágicas que o nome possa sugerir, enveredou pela incompreensível atitude de duvidar da sua paternidade e, ofendendo a pudibunda sensibilidade da mãe e de quase todo o seu sexo, porventura admitiu que no chamado “período legal da concepção” o relacionamento da senhora consigo não tivesse sido marcado pela exclusividade. Animado por essa misógina e ofensiva ideia, dispôs-se apenas, o vilão, a reconhecer a criança como filha e assumir as correspondentes obrigações em se provando que era efectivamente sua filha.
Outros, por certo melhores e mais valiosos cidadãos do que este insignificante e maléfico Baltazar, em especial se estrelas da música pop ou do desporto forem, viriam nos sapatos dele a ser confrontados com a obrigatoriedade de cuidarem da criança, mesmo que a enjeitassem em definitivo, e não em forma condicionada; não foi essa a desdita do nosso Baltazar, que nem por isso ficou melhor. Adiante.
A mãe é que não esteve para delongas. Em poucas palavras e nenhumas trapaças, foi ao notário, reconheceu assinatura em título de doação de filho, e vai daí ofertou a insciente infanta, sem dúvida do seu sangue e da sua carne, a um casal de pessoas em tudo melhores que o dito Baltazar (apesar de uma delas ser homem). Estas receberam-na, acompanhada da documentação, e talvez convencidas de que o registo é mera condição de eficácia perante terceiros, não beliscando a validade da aquisição, começaram a cuidar carinhosamente da nova filha – não duvido por um segundo de que genuinamente amorosas e empenhadas no bem estar dela.
Porém, o destino, tecedor de mil ardis e inexorável, não calhou em esquecer o Baltazar. Com a lentidão própria destas coisas, o processo de averiguação de paternidade lá seguiu (do registo, feito pela mãe, só esta constava...) e na sua sequência os competentes exames lá comprovaram aquilo em que o nosso cidadão punha dúvida: a sua paternidade. Ora este, se bem o dissera melhor o fez – cuidou logo de perfilhar a criança (não foi necessária acção de investigação) e, mais ainda, de requerer regulação do poder paternal que dela lhe atribuísse a guarda. A mãe, não se imagina porquê e apesar da sua condição de mulher, não se terá apresentado como alternativa válida ao tribunal e, desse modo, o Baltazar lá teve, ao cabo de muitas voltas, aquilo que agora queria.
O tal casal é que não foi pelos ajustes. Indignado, ofendido na sua expectativa de prescrição aquisitiva de filha, foi recusando a entrega da pequena ao seu pai. Fundado na evidente prevalência da sua alta “paternidade” de afecto sobre a mera e baixa paternidade simplesmente biológica, argumentou, pouco mais ou menos, que o superior interesse da infanta era continuar consigo e, ao cabo de período deveras longo, lembrou-se de ir ter com os serviços de segurança social para desencadear mecanismos de adopção.
Por essa época, todavia, já do registo constava a incómoda paternidade biológica e já o Baltazar, de colmilhos afiados, reclamara a atribuição do poder paternal que mais tarde lhe veio a ser deferida. O que não impediu os serviços de segurança social de exprimirem o parecer de que a criança deveria ser confiada ao falado casal, com vista a adopção e porque com ele estabelecera significativa relação afectiva, sendo por outro lado alvo do desinteresse dos pais biológicos. A mãe, pobre vítima, coitada, mulher, porque decerto não podia cuidar da filha, e ao oferecê-la com alvará notarial até praticou um acto de amor, tão boas era as pessoas a quem a doou; o pai, esse homem, malandro, porque nem procurou os serviços. Minudências tais como o facto de esse procedimento não ser público nem publicitado, referidas no acórdão que condenou o garboso sargento, nada atenuam da torpeza do Baltazar: ele nem sequer procurou os serviços, logo votou à criança o seu desinteresse, habitual nos homens, e anda a perfilhar e a requerer regulações de poder paternal só para exprimir a sua insondável maldade.
O tribunal é que não quis saber de coisas. A filha é do Baltazar e o casal tem de entregar-lha. Destroçados, sempre preocupados em exclusivo com o superior interesse da criança, de boa fé ignorantes das formalidades devidas em trocas de filhos e nem por um momento tendo pensado em furar a fila dos candidatos a adopção deste país (tais baixezas não o movem), o sargento e a esposa não admitem a possibilidade de “devolver” a filha doada a non domino e não querem saber de transições e mecanismos de minimização dos traumas da transferência; a criança continuar consigo é o Bem, entregá-la ao mero pai biológico é o Mal, e nessa dicotomia não se hesita. Não entregam. Mudam de residência. Fecham as portas. Fogem. Em cima da criança é que o Baltazar, e já agora o tribunal ou a polícia, não hão-de pôr os olhos. E não põem, que a pequena está desaparecida, com a esposa do sargento.
Em tudo isto vão dois anos e meio e a criança ainda com sucesso está subtraída às garras do hediondo Baltazar, duvidante de paternidades. A “opinião pública” comove-se e indigna-se quando este honrado sargento vem a ser condenado pela insensível e inepta justiça em pena de prisão. E mais se indigna e comove quando se dá conta de que em causa está o amor de uns “pais adoptivos”, qualidade subitamente reconhecida ao sargento e à esposa, confrontado com a descartável paternidade “apenas” biológica do Baltazar, que a princípio até duvidou de ser pai. Razão principal proclamada: a criança está há tanto tempo com o casal (dois anos e meio furtada ao pai contra direito dito) que entregá-la finalmente seria já traumático para ela...
Sendo estas as causas eficientes da recente comoção pública, a culminar na aludida jaquerie televisiva, não sei o que nesta mais me perturbou. Por um lado, a multidão a espaços vociferante e a quem a Maria da Fonte de escala, com a habitual autoridade em fazer perguntas e exigir respostas capazes, arrancou sucessivos aplausos com punch lines mordazes, do estilo “então e a justiça em vez de aplicar as leis não devia ser mais humana nestes casos?” ou, mais subtis ainda, “mas enquanto os exames se faziam a criança precisava de comer, essa é que é essa!”. Por outro, cidadãos supostamente responsáveis e alegadamente sapientíssimos em matéria de infância a avançar em termos gerais propostas como a da prevalência da paternidade dos afectos sobre a biológica, meramente acidental. Por outro ainda, e o pior de tudo, o temor estampado no rosto e denunciado nas palavras de uns poucos que, como quem é oferecido em sacríficio, ousaram ainda assim dissentir das evidências ditadas.
Como disse, o que vi chegou-me. Já não tenho ilusões e nem remo contra marés, mas posso fazer duas observações, à reflexão de quem ainda saiba usar o cérebro:
Uma: a filiação adoptiva, que é um bem, não é (para já...) uma alternativa à filiação biológica, que é a natural – é subsidiária, isto é, um recurso de que se lança mão quando a biológica não corresponde ao padrão mínimo exigível;
Duas: se quem faz a constituição e as leis assim o quiser, pode ser alternativa, e pode até já imaginar-se que quem quer ser pai vai ao hospital e traz de lá um filho, seu ou de outro tanto monta, e mesmo que não tenha feito nenhum. Ao fim e ao resto a ligação biológica não é relevante e os “piores” pais (os mais feios, porcos e maus – e porque não dizê-lo, pobres) é que ficam sem crianças.
Há muitos anos, Aldous Huxley congeminou uma coisa parecida no memorável «Brave New World». Tenho dúvidas de que muitos ou a maior parte dos que agora se “indignam” quisessem realmente viver num país assim. Eu não quero.»
21 janeiro 2007
Fiama Hasse Pais Brandão
Toda a literatura está não lida.
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.
Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.
Outra matéria nova e, por momentos,
não vã há-de captar as vozes
dos poetas bardos, de ouvidos
mais atentos aos sons sonoros.
Assim os meus versos são o meu pó
na poeira dos livros já delidos.
Cenas Vivas (2000)
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.
Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.
Outra matéria nova e, por momentos,
não vã há-de captar as vozes
dos poetas bardos, de ouvidos
mais atentos aos sons sonoros.
Assim os meus versos são o meu pó
na poeira dos livros já delidos.
Cenas Vivas (2000)
O direito à indignação e o modo de o exercer
O direito à indignação, sob pena da sua ineficácia ou descrédito, tem de ser exercido através dos canais adequados e válidos.
O amplíssimo movimento nacional de apoio ao habeas corpus no caso do sargento condenado pelo tribunal de Torres Novas (que constitui o último "escândalo da justiça") reflectiu sobre a viabilidade/pertinência do meio escolhido para exprimir a sua indignação?
O amplíssimo movimento nacional de apoio ao habeas corpus no caso do sargento condenado pelo tribunal de Torres Novas (que constitui o último "escândalo da justiça") reflectiu sobre a viabilidade/pertinência do meio escolhido para exprimir a sua indignação?
O aborto e o sagrado
Acho que sobre a questão do aborto já escrevi e disse tudo o que tinha para escrever e dizer. Não me apetece nada voltar a repisar argumentos que já expendi com alguma cópia em ocasiões anteriores. Todavia, há coisas a que é difícil resistir. Estão neste caso certos discursos tenebrosos. Por exemplo, esse da denominada “Acção Família”, em cujos folhetos aparece uma imagem de Nossa Senhora, lacrimosa como é de lei, e nos quais se afirma que “Nossa Senhora chora (…) por milhares de inocentes que podem perder a vida antes mesmo de dar o primeiro gemido” e que “o referendo, por si só, já é um acto de ofensa a Deus”, que deve ser desagravado com a reza do terço.
Esta linguagem, que eu ia dizer “nauseante”, estava muito metida lá para o fundo da minha infância e começos da adolescência e traz à tona um catolicismo que pensei que já tivesse acabado e que, se bem me lembro, andou de mãos dadas com um certo regime que foi abolido com o “25 de Abril”.
É uma coisa pasmosa (e que já nesses tempos da minha infância e adolescência me dava que pensar) este tu cá tu lá de certas almas privilegiadas com a Nossa Senhora, permitindo-lhes ver o sofrimento da Virgem e o seu eterno derramar de lágrimas copiosas pelas malfeitorias humanas. Além disso, nunca percebi como se possa estar na posição e no lugar onde a Virgem está e ter tanto sofrimento. Acho que foi por aí que o meu catolicismo, tão fortemente enraizado na tradição familiar, começou a esboroar-se.
A um outro nível, o pároco de Castelo de Vide, cónego e munido da autoridade que lhe dá um doutoramento em Direito Canónico pela Universidade de Salamanca afiança que os cristãos que votarem “sim” são alvo de “excomunhão automática”. Basta essa intervenção favorável ao aborto, que não apenas a intervenção própria dos médicos e enfermeiros que praticam um acto abortivo, para atrair a mais radical censura eclesiástica e colocar um crente fora da comunhão dos fiéis, sem direito a funeral religioso. Mas não só: a simples omissão de votar contra o aborto no referendo é também um pecado mortal gravíssimo. Por isso, adverte: “no referendo, até as irmãs vão sair dos conventos, porque se não incorrem no pecado de omissão.”
Ele ⌠o cónego⌡diz que não está a inventar nada. Que está tudo no cânone 1331.
Vejo o seu dedo fulminador a apontar o fatídico cânone e acho que o filósofo Gianni Vatimo incluiria todas estas atitudes no que ele designa de “sagrado violento”. Ainda é a forma mais comum de sagrado, mesmo a Ocidente.
Esta linguagem, que eu ia dizer “nauseante”, estava muito metida lá para o fundo da minha infância e começos da adolescência e traz à tona um catolicismo que pensei que já tivesse acabado e que, se bem me lembro, andou de mãos dadas com um certo regime que foi abolido com o “25 de Abril”.
É uma coisa pasmosa (e que já nesses tempos da minha infância e adolescência me dava que pensar) este tu cá tu lá de certas almas privilegiadas com a Nossa Senhora, permitindo-lhes ver o sofrimento da Virgem e o seu eterno derramar de lágrimas copiosas pelas malfeitorias humanas. Além disso, nunca percebi como se possa estar na posição e no lugar onde a Virgem está e ter tanto sofrimento. Acho que foi por aí que o meu catolicismo, tão fortemente enraizado na tradição familiar, começou a esboroar-se.
A um outro nível, o pároco de Castelo de Vide, cónego e munido da autoridade que lhe dá um doutoramento em Direito Canónico pela Universidade de Salamanca afiança que os cristãos que votarem “sim” são alvo de “excomunhão automática”. Basta essa intervenção favorável ao aborto, que não apenas a intervenção própria dos médicos e enfermeiros que praticam um acto abortivo, para atrair a mais radical censura eclesiástica e colocar um crente fora da comunhão dos fiéis, sem direito a funeral religioso. Mas não só: a simples omissão de votar contra o aborto no referendo é também um pecado mortal gravíssimo. Por isso, adverte: “no referendo, até as irmãs vão sair dos conventos, porque se não incorrem no pecado de omissão.”
Ele ⌠o cónego⌡diz que não está a inventar nada. Que está tudo no cânone 1331.
Vejo o seu dedo fulminador a apontar o fatídico cânone e acho que o filósofo Gianni Vatimo incluiria todas estas atitudes no que ele designa de “sagrado violento”. Ainda é a forma mais comum de sagrado, mesmo a Ocidente.
19 janeiro 2007
Causalidade inadequada
O “estado da arte” em matéria de argumentos a favor da liberalização do aborto até às 10 semanas é o seguinte: o aborto clandestino gera corrupção. Nem mais: Co-rru-pção. Talvez tenha mesmo relações com os negócios obscuros do futebol e dos empreiteiros e com a actividade off shore. E é bem provável que na estratégia de prevenção da corrupção que se delineia a liberalização total do aborto (mesmo após as 10 semanas) surja como uma das medidas e com proeminência. Este argumento tipo “uma borboleta bate as asas em Portugal e dá-se um terramoto na Austrália” é mais um daqueles (como o “argumento” aborto = terrorismo ou o “argumento” de acordo com o qual os impostos dos do “Não” não podem pagar os abortos dos do “Sim”) que demonstra bem que, nesta questão, ninguém monopoliza o discurso radical. De qualquer forma, se fosse demonstrável uma relação relevante entre aborto e corrupção, talvez fosse o momento de liberalizar a venda de armas. Entraves a esse negócio, proporcionando a venda clandestina, só podem dar em corrupção…
18 janeiro 2007
Imediação e Videoconferência
Um novo sistema de videoconferência ligará em breve todos os estabelecimentos prisionais aos tribunais a fim de evitar a deslocação de reclusos. A ideia, está claro, é poupar; coisa que é, em si mesma, legítima. O que não se percebeu ainda é se a medida será aplicada indistintamente a reclusos arguidos e a reclusos testemunhas. Se for esse o caso, então ela suscita reservas uma vez que representa mais uma machadada no princípio da imediação do tribunal com o arguido que sai sempre algo beliscado mesmo no caso de audição por videoconferência. O argumento de que o tribunal sempre pode exigir a presença do arguido vale pouco. O que é previsível é que, nesses casos, a excepção (ausência física) se torne regra, e regra precisamente para aqueles que, por estarem privados da liberdade, têm de facto, presumivelmente, menos competência de acção.
Um testemunho sobre uma decisão polémica
Este blogue, sendo fundamentalmente de magistrados, também dá guarida a críticas sobre a administração da justiça. Neste sentido, aqui se publicam sem comentários as duas crónicas seguintes:
O Crime de amar de mais
É a justiça que temos e os juízes (alguns juízes) que temos. Um homem foi ontem condenado em Torres Novas a seis anos de prisão por se recusar a entregar a um desconhecido, o pai biológico, uma menina de cinco anos de quem, abandonada pela mãe, esquecida pelo pai, ele e sua mulher cuidam desde os três meses de idade. O pai biológico nunca quis saber da gravidez da mulher com quem tinha tido o que, entre risinhos, chama de “caso casual”. Só viu a bebé duas vezes, de passagem, uma quando foi chamado a fazer testes de ADN, outra, dois anos depois. Agora, em vésperas de a criança fazer cinco anos, decidiu reclamá-la. E o tribunal pura e simplesmente, mandou que ela lhe fosse entregue, apesar de os psicólogos dizerem que arrancá-la àqueles que ela considera seus pais e entregá-la a um desconhecido, será “dilacerante”.
Para evitar à filha adoptiva (o processo de adopção estava em curso) a dilacerante separação, Luís recusa-se a revelar o seu paradeiro. Porque os juízes (alguns deles) já não fazem justiça, são meros burocratas da lei. E a lei de tais juízes tanto dá para condenar a uma multa de 720 euros um polícia que matou um homem a tiro como para mandar seis anos para a cadeia quem, como Luís, comete o crime de amar de mais.
Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 17 de Janeiro de 2007
Lei e justiça
O facto de certas decisões judiciais confrontarem sentimentos elementares de justiça da sociedade é uma das causas de perda da autoridade da lei e do descrédito dos juízes. A condenação a seis anos de prisão, por um tribunal de Torres Novas, de um homem cujo “crime” à luz da consciência moral comum, foi amar uma criança abandonada pela mãe e esquecida pelo pai, que ele criou como filha desde os três meses de idade, a ponto de preferir a cadeia a entregá-la a um desconhecido (o pai biológico, que só apareceu a reclamá-la anos após ela ter sido entregue para adopção), põe em crise não só o consenso entre o cidadão e a lei como a sua confiança na própria “Justiça”.
Deve o cidadão – pergunta Thoreau – desistir da sua consciência, mesmo só por um instante e em última instância, e dobrar-se ao legislador? Por que é então o homem dotado de consciência?” Quando a lei é injusta, o lugar dos justos é na prisão, mas, mais do que com a lei (que, aliás, previa meios para que tivesse sido feita justiça), Luís, o pai adoptivo, está, como Sócrates, em desavença com os juízes, e também ele se ofereceu à cicuta. Decerto nunca terá lido Thoreau (nem Rawls), mas o seu gesto de desobediência civil situa-se no eixo central do próprio fundamento moral da democracia.
Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 18 de Janeiro de 2007
O Crime de amar de mais
É a justiça que temos e os juízes (alguns juízes) que temos. Um homem foi ontem condenado em Torres Novas a seis anos de prisão por se recusar a entregar a um desconhecido, o pai biológico, uma menina de cinco anos de quem, abandonada pela mãe, esquecida pelo pai, ele e sua mulher cuidam desde os três meses de idade. O pai biológico nunca quis saber da gravidez da mulher com quem tinha tido o que, entre risinhos, chama de “caso casual”. Só viu a bebé duas vezes, de passagem, uma quando foi chamado a fazer testes de ADN, outra, dois anos depois. Agora, em vésperas de a criança fazer cinco anos, decidiu reclamá-la. E o tribunal pura e simplesmente, mandou que ela lhe fosse entregue, apesar de os psicólogos dizerem que arrancá-la àqueles que ela considera seus pais e entregá-la a um desconhecido, será “dilacerante”.
Para evitar à filha adoptiva (o processo de adopção estava em curso) a dilacerante separação, Luís recusa-se a revelar o seu paradeiro. Porque os juízes (alguns deles) já não fazem justiça, são meros burocratas da lei. E a lei de tais juízes tanto dá para condenar a uma multa de 720 euros um polícia que matou um homem a tiro como para mandar seis anos para a cadeia quem, como Luís, comete o crime de amar de mais.
Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 17 de Janeiro de 2007
Lei e justiça
O facto de certas decisões judiciais confrontarem sentimentos elementares de justiça da sociedade é uma das causas de perda da autoridade da lei e do descrédito dos juízes. A condenação a seis anos de prisão, por um tribunal de Torres Novas, de um homem cujo “crime” à luz da consciência moral comum, foi amar uma criança abandonada pela mãe e esquecida pelo pai, que ele criou como filha desde os três meses de idade, a ponto de preferir a cadeia a entregá-la a um desconhecido (o pai biológico, que só apareceu a reclamá-la anos após ela ter sido entregue para adopção), põe em crise não só o consenso entre o cidadão e a lei como a sua confiança na própria “Justiça”.
Deve o cidadão – pergunta Thoreau – desistir da sua consciência, mesmo só por um instante e em última instância, e dobrar-se ao legislador? Por que é então o homem dotado de consciência?” Quando a lei é injusta, o lugar dos justos é na prisão, mas, mais do que com a lei (que, aliás, previa meios para que tivesse sido feita justiça), Luís, o pai adoptivo, está, como Sócrates, em desavença com os juízes, e também ele se ofereceu à cicuta. Decerto nunca terá lido Thoreau (nem Rawls), mas o seu gesto de desobediência civil situa-se no eixo central do próprio fundamento moral da democracia.
Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 18 de Janeiro de 2007
17 janeiro 2007
Gardasil
É o nome da vacina contra o cancro do colo do útero que chegou a Portugal. Parece que aquela doença mata mais de 300 mulheres por ano (cerca de uma por dia). Parece, também, que Portugal é o país da EU que apresenta a incidência mais alta daquela doença. Parece, ainda, que as 3 doses necessárias vão custar quase 500€, mais do que auferem muitas mulheres deste país. Por fim, tudo indica que ela não venha, ao menos num futuro próximo, a ser comparticipada.
O aborto (ou, para os mais assépticos, a IVG) vai ser sustentado pelo Estado e, segundo se diz, já se diligencia, antes do resultado do referendo, junto de clínicas estrangeiras, no sentido de se dedicarem à actividade abortiva em Portugal, com protocolos com (e comparticipação do) Estado.
Pergunto: não há nada de estranho em tudo isto?
PS: Devo dizer que não reconheço pertinência ao argumento dos impostos usado por alguns dos partidários do “Não” à liberalização do aborto até às 10 semanas. As reservas que tenho a essa liberalização vão buscar-se a outros tópicos.
O aborto (ou, para os mais assépticos, a IVG) vai ser sustentado pelo Estado e, segundo se diz, já se diligencia, antes do resultado do referendo, junto de clínicas estrangeiras, no sentido de se dedicarem à actividade abortiva em Portugal, com protocolos com (e comparticipação do) Estado.
Pergunto: não há nada de estranho em tudo isto?
PS: Devo dizer que não reconheço pertinência ao argumento dos impostos usado por alguns dos partidários do “Não” à liberalização do aborto até às 10 semanas. As reservas que tenho a essa liberalização vão buscar-se a outros tópicos.
16 janeiro 2007
CSI à portuguesa
As séries de polícias e ladrões e sobre a barra dos tribunais têm relativo sucesso junto do grande público. Quem não se recorda do Capitão Furillo da Balada de Hill Street e da sua companheira Joyce Davenport, do Detective Columbo, das Teias da Lei e, só para não me alongar, da minha preferida Ally Mcbeal (pelo insólito e ridículo das situações e pela banda sonora que, de tão pimba que é, é impossível não gostar).
De todas (e penso que não estarei longe da verdade) a que mais sucesso atingiu foi a CSI - nas suas versões Las Vegas, Miami e New York. Ao ponto de se falar num CSI Effect que se traduzirá numa maior exigência de prova científica pelo Júri norte-americano ou até numa maior preparação técnica por parte dos agentes de crimes. Em simplesmente uma hora somos confrontados com a facilidade com que aqueles cientistas/polícias resolvem, pelo menos, um crime: recolhendo provas, analisando-as, processando-as e tirando conclusões que inelutavelmente levam ao perpetrador do crime. De entre a panóplia de ferramentas que têm ao seu dispor há uma que é rainha: o CODIS (Combined DNA Index System).
O ADN também tem sido utilizado entre nós como forma de atingir a identidade daquele que praticou um crime, sem que, a não ser mais recentemente, tivesse sido levantada grande celeuma sobre a sua utilização. Novidade, novidade é a criação de uma Base de Dados de Perfis de ADN, projecto este que teve o seu início no início do ano de 2006 e cuja Comissão criada para esse efeito apresentou no passado mês de Dezembro o seu Projecto.
Com esta Proposta visa-se a criação de uma Base de Dados de Perfis de ADN que tem dois objectivos primordiais: permitir a identificação civil e auxiliar a investigação criminal.
Da leitura em diagonal que fiz desse documento retiro que no que toca ao âmbito da investigação criminal esta Base de Dados vai ser constituída por amostras de ADN dos condenados pela prática de crime em pena de prisão igual ou superior a 3 anos e na sequência de despacho judicial para a recolha de tais amostras.
No decurso do Inquérito a recolha das amostras genéticas está prevista a requerimento do arguido ou por despacho do Juiz (art. 8º, nº 1) a partir da constituição de arguido, sem qualquer outro requisito adicional. Só se poderá então proceder à recolha das ditas amostras de arguidos (e das pessoas que, directa ou indirectamente, possam estar associadas ao local do crime), as quais só passarão a integrar um ficheiro de perfis de ADN se o arguido for condenado em pena de prisão igual ou superior a 3 anos (arts. 8º e 22º).
Por forma a não se atingir os direitos fundamentaias da intimidade e da identidade genética é utilizado unicamente o ADN não codificante.
Desta análise de simples curiosidade resultaram algumas dúvidas:
1) Porquê o enquadramento das recolhas de amostras de ADN nos exames e não na perícia? Face ao que se lê no art 151º do CPP parece que não só a análise de ADN deve ser tratada no âmbito das perícias, como também a da recolha das amostras, porque a mesma exige também especiais conhecimentos.
2) Outra questão é a da permissibilidade/proibição da recolha coactiva das amostras genéticas.
Um afloramento desta questão está no art. 10º o qual diz que "a recolha de amostras em pessoas é realizada através de método não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro equivalente" e no art. 8º, nº 1 da Proposta que remete expressamente para o o art. 172º do CPP, que dispõe que "Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente"
É esta uma porta aberta para a execução coerciva? Imaginemos que à ordem "Abra a boca!" o arguido responde "Não abro!" e o Juiz (se é que é esta a autoridade judicária que o deve determinar em sede de Inquérito) volta a dizer "Abra lá!" e o arguido riposta "Não abro, não abro e não abro!".
Como se sai deste impasse?
Por método equivalente poder-se-á dizer. Como, por ex., arrancar um cabelo (e cuidado que tem que ser pela raiz), cortar uma unha. Mas aí a mesma questão poderá voltar a colocar-se.
3) O que faz com que me questione se a recusa do arguido implica que não se possa recorrer a outras formas para atingir o mesmo fim - como por ex. efectuar uma busca à sua residência para obter objectos de uso pessoal ou recolher amostras de ADN de familiares seus. Se se entender que o direito fundamental protegido neste âmbito é a integridade física (como parece decorrer do art. 10º) não me parece que haja algum óbice a que se recorra estes métodos. Se for o direito à sua informação genética (o que não me parece tendo em conta que só se recorre a ADN não codificante) então a resposta só poderia ser negativa.
4) E pode a sua recusa ser punida como crime de desobediência à semelhança do que sucede para os exames de pesquisa de álcool?
15 janeiro 2007
Transferência de prisioneiros...
Desiludam-se os que nutriram expectativas com o título, mas este postal vai continuar chato como os anteriores deste postador, sem quaisquer novidades de fontes com informação restrita mas, simplesmente, permitir a ligação, por eventuais interessados, a um artigo de Margaret L. Satterthwaite, que além de compilar informação sobre alegadas extradições especiais ou extra-judiciais («extraordinary renditions»), procede à crítica da fundamentação jurídica da actual administração norte-americana (empreendendo uma síntese das posições sobre o tema nos EUA) – o texto pode ser encontrado aqui.
Sobre o caso europeu (incluindo Portugal) recorde-se que está disponibilizado na rede o projecto de relatório da Comissão Temporária, do Parlamento Europeu, sobre a Alegada Utilização pela CIA de Países Europeus para o Transporte e a Detenção Ilegal de Prisioneiros, que deve merecer atenção neste rectângulo, nomeadamente, o trecho em que, relativamente a «escalas de aeronaves operadas pela CIA em aeroportos portugueses», se «encoraja vivamente os Procuradores portugueses a investigar mais profundamente estes voos» (§ 98) - projecto complementado pelo documento de trabalho nº 8.
14 janeiro 2007
O best seller
Nos seus balanços de fim de ano, alguns intelectuais colocaram o livro Eu, Carolina entre os cinco que mereceram a sua distinção. É claro que, excluindo a provocação, que também a há nessa indicação, o que se pretende valorizar não é, obviamente, a qualidade do livro, mas o seu impacto a diversos níveis, todos eles extraliterários.
Comprei o livro (9.ª edição) numa reputada tabacaria do Porto. Estava uma resma deles em cima do balcão, quando me preparava para pagar a habitual carga de jornais com que sobrecarrego o fim de semana. Vai daí, resolvi comprá-lo (já o tencionava fazer, mas estava sempre esgotado). O curioso é que uma senhora já entradota na idade, bem apessoada, que estava ao meu lado, fez uma cara de quem engole uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Olhei para ela, pois foi por causa da minha manifestada disposição de comprar o livro que ela fez aquela carranca tão feia. Sentiu-se na necessidade de declarar amavelmente: “Comprar isso é comprar lixo”. Ripostei: “Pois será. E quem disse à senhora que o lixo não tem utilidade? Não há por aí tanta gente a esgaravatar no lixo, à procura de alguma coisa de préstimo?” O dono da tabacaria interveio em meu auxílio: “Eu acho que o senhor Dr. faz bem em ler o livro.” E deixou no ar umas reticências que significavam algo de muito ponderoso e, porventura, subreptício.
Vim com o livro e fui-o lendo naqueles intervalos em que um fabiano pode sentir apelo para fazer palavras cruzadas ou simplesmente olhar para o ar, ou enquanto o semáforo muda de vermelho para verde. Ao fim de 10 semáforos, já temos alguns capítulos lidos.
O meu fito eram as tão propaladas denúncias que ela (Carolina Salgado) fazia. Tencionava mesmo passar por cima do resto. Mas o livro é praticamente ocupado, quase todo, com a história do “grande amor” entre ela e Jorge Nuno, como persiste sempre em chamar-lhe, do princípio ao fim. Vive mesmo da obcecação de contar essa história, uma verdadeira história cor-de-rosa, cujo fim deixa na narradora (e chamo-lhe assim, porque ela não escreveu o livro, embora seja o sujeito da narração) uma visível nostalgia e sinais de drama. O livro é o toque a finados desse amor ou telenovela real.
Quanto ao que eu mais procurava – as tais denúncias de um universo de corrupção, que simbolizaria muito do Portugal actual – existe mais como promessa do que como realidade posta em letra de forma. Há um cheirinho disso, misturado com outros maus odores de mau gosto, como aquela história do cheiro nauseabundo que, a dada altura, Carolina, rodeada de Jorge Nuno e dos seus animais (cães e gatos) começou a sentir dentro do carro, insinuando particularidades fisiológicas do companheiro.
O que vem à tona são pequeninas facadas de retaliação, de mistura com intimidades domésticas e com alguns vislumbres, como uma paisagem de fundo, de um mundozinho onde se pressentem coisas realmente mal cheirosas. Sério, sério, a par de algumas revelações de pantomineira arrogância em relação ao cumprimento da lei, parece ser o caso da agressão a Ricardo Bexiga. Vamos a ver o que dará na prática.
Fora isso, sempre tem interesse ver a forma como vivem certas pessoas, os seus ideais e frustrações, os seus valores e os seus interesses, os seus afectos e as suas paixões, os circuitos por onde se movem e as facilidades, as benesses, as bênçãos e os favores do destino ou o que quer que seja com que se orientam na vida.
Comprei o livro (9.ª edição) numa reputada tabacaria do Porto. Estava uma resma deles em cima do balcão, quando me preparava para pagar a habitual carga de jornais com que sobrecarrego o fim de semana. Vai daí, resolvi comprá-lo (já o tencionava fazer, mas estava sempre esgotado). O curioso é que uma senhora já entradota na idade, bem apessoada, que estava ao meu lado, fez uma cara de quem engole uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Olhei para ela, pois foi por causa da minha manifestada disposição de comprar o livro que ela fez aquela carranca tão feia. Sentiu-se na necessidade de declarar amavelmente: “Comprar isso é comprar lixo”. Ripostei: “Pois será. E quem disse à senhora que o lixo não tem utilidade? Não há por aí tanta gente a esgaravatar no lixo, à procura de alguma coisa de préstimo?” O dono da tabacaria interveio em meu auxílio: “Eu acho que o senhor Dr. faz bem em ler o livro.” E deixou no ar umas reticências que significavam algo de muito ponderoso e, porventura, subreptício.
Vim com o livro e fui-o lendo naqueles intervalos em que um fabiano pode sentir apelo para fazer palavras cruzadas ou simplesmente olhar para o ar, ou enquanto o semáforo muda de vermelho para verde. Ao fim de 10 semáforos, já temos alguns capítulos lidos.
O meu fito eram as tão propaladas denúncias que ela (Carolina Salgado) fazia. Tencionava mesmo passar por cima do resto. Mas o livro é praticamente ocupado, quase todo, com a história do “grande amor” entre ela e Jorge Nuno, como persiste sempre em chamar-lhe, do princípio ao fim. Vive mesmo da obcecação de contar essa história, uma verdadeira história cor-de-rosa, cujo fim deixa na narradora (e chamo-lhe assim, porque ela não escreveu o livro, embora seja o sujeito da narração) uma visível nostalgia e sinais de drama. O livro é o toque a finados desse amor ou telenovela real.
Quanto ao que eu mais procurava – as tais denúncias de um universo de corrupção, que simbolizaria muito do Portugal actual – existe mais como promessa do que como realidade posta em letra de forma. Há um cheirinho disso, misturado com outros maus odores de mau gosto, como aquela história do cheiro nauseabundo que, a dada altura, Carolina, rodeada de Jorge Nuno e dos seus animais (cães e gatos) começou a sentir dentro do carro, insinuando particularidades fisiológicas do companheiro.
O que vem à tona são pequeninas facadas de retaliação, de mistura com intimidades domésticas e com alguns vislumbres, como uma paisagem de fundo, de um mundozinho onde se pressentem coisas realmente mal cheirosas. Sério, sério, a par de algumas revelações de pantomineira arrogância em relação ao cumprimento da lei, parece ser o caso da agressão a Ricardo Bexiga. Vamos a ver o que dará na prática.
Fora isso, sempre tem interesse ver a forma como vivem certas pessoas, os seus ideais e frustrações, os seus valores e os seus interesses, os seus afectos e as suas paixões, os circuitos por onde se movem e as facilidades, as benesses, as bênçãos e os favores do destino ou o que quer que seja com que se orientam na vida.
13 janeiro 2007
A reinvolução
Hoje, ao ler um artigo de jornal (não sei se a propósito dele ou não, mas penso que sim), acudiu-me este pensamento: “Quem diria que, em dias da minha vida, as coisas haviam de dar uma tal volta, que o que causa escândalo não é a exploração (perdão pelo termo a cheirar a bafio comunista) dos trabalhadores, que é como quem diz, o aumento da produtividade com menores salários, mais tempo de trabalho, maior rigidez nos horários e maior flexibilidade no desemprego, maior intensificação do ritmo laboral e mais submissão a exigências por vezes despóticas da entidade patronal, mas, antes, a reivindicação (que digo eu?), a simples exigência da manutenção de direitos tidos como fundamentais dos trabalhadores e que, ao que me parece, ainda constam do catálogo dos direitos basilares consagrados na Constituição, até que o vento da mudança os varra em definitivo?”
Que fantástica evolução foi esta que inverteu por completo o papel e o estatuto das classes sociais? Os que eram ontem explorados são hoje privilegiados nos direitos que adquiriram, e os que ontem eram privilegiados, hoje são vítimas da tirania dos direitos adquiridos?
Que fantástica evolução foi esta que inverteu por completo o papel e o estatuto das classes sociais? Os que eram ontem explorados são hoje privilegiados nos direitos que adquiriram, e os que ontem eram privilegiados, hoje são vítimas da tirania dos direitos adquiridos?
12 janeiro 2007
Fim do disparate?
É sempre bom constatar que um voto, formulado sem reserva mental, terá sido satisfeito (quanto à autoridade para qualificar como «disparate» confirmar aqui).
PS- Um desejo, se não for pedir muito, para evitar futuros «disparates», talvez fosse bom atentar na selecção de relatores de reformas, em curso e futuras, que compreendam vectores essenciais no Estado Direito. É certo que há quem queira mostrar serviço mas podem sempre ser afectos a outras tarefas...
Dormente
Hoje conduzia em direcção a casa e era um daqueles dias em que não tinha o leitor de CD's a funcionar e o rádio estava sintonizado numa estação de rádio de notícias . Hoje era também um daqueles dias em que o rádio não se limitava a ser barulho de fundo, mas em que até estava mesmo a prestar atenção ao que se dizia.
A dada altura não suportei e pressionei o botão de busca automática tendo de imediato ouvido as seguintes palavras:
Houve um atentado hoje? Foi só mais um. Houve pessoas mortas no Iraque? São mais umas para juntar à lista. Na Somália o conflito continua? No Darfur o genocídio também?! Ora, nem na Europa é. E mais ano, menos ano, a verdade é que já lá vão 3. Os pescadores do "Luz do Sameiro" morreram e vão ser criadas novas medidas de salvamento no mar.
Estas são notícias como outras com que diariamente somos confrontados e às quais já nem reagimos. Já não nos arrepiamos. Os jornalistas transmitem-nas como se estivessem a dizer a coisa mais banal. E a verdade é que já se tornaram corriqueiras.
E hoje revi-me nas palavras daquela música. Foi coincidência eu sei... Mas não deixou de me alertar.
09 janeiro 2007
Proposta de lei de mediação penal
Já se encontra acessível a proposta de lei de mediação penal que pode ser consultada aqui.
Tinha uma vez anunciado, a pretensão de tecer alguns comentários no Sine Die ao projecto então em discussão pública. Não o cheguei a fazer, por variadas razões, uma das quais foi a expectativa de que os múltiplos erros político-criminais e técnico-jurídicos determinassem a interrupção voluntária do processo e o receio de que a a absoluta discordância com o texto objecto de discussão pudesse ser confundida com qualquer oposição de princípio à mediação penal. No fundo como referi num texto publicado noutro espaço:
«O movimento da Restorative Justice tem apresentado propostas incontornáveis de desformalização do processo e de criação de espaços de comunicação entre vítima e arguido, na área da pequena e média criminalidade. Na contraposição justiça negociada / justiça ritualizada e formalizada, os novos ventos parecem favoráveis ao primeiro dos modelos, até por ponderações pragmáticas, e dentro de certos parâmentros adequadas, de custo-benefício, no que também se revela uma salutar sensibilidade à necessidade de reparação da função simbólica do direito penal. O perigo que aqui espreita centra-se na circunstância de certos cantos de sereia poderem extravasar para uma estrita pretensão eficientista da justiça penal, já que se o Estado privatizar o conflito, não assumindo um juízo sobre a ocorrência do crime (bastando-se com o pedido ou a denúncia), nem, em contraponto, auscultando o lesado sobre a sua disponibilidade para a comunicação com o denunciado, desinteressando-se e deixando a situação operar de acordo com a estrita competência de acção dos envolvidos, então impõe-se que se assuma tal opção descriminalizando em vez de privatizar a justiça penal».
A proposta de lei, felizmente, nada tem a ver com o anteprojecto objecto de discussão pública (cuja autoria, já que estamos no nosso paroquial país, desconheço em absoluto pelo que o meu tom eventualmente excessivo não visa ninguém mas tão só um «produto» aberto à discussão) e compreendendo soluções naturalmente discutíveis situa-se num patamar que convida à discussão serena, já que se revela baseado em opções político criminais a que o Estado português se vinculou (aliás já vai um pouco atrasado, dado que por força do art. 10.º da Decisão-Quadro 2001/220 JAI deveria ter entrado em vigor «alguma» legislação até 22-3-2006) propondo soluções técnico-jurídicas fundamentadas e enquadradas no sistema jurídico-penal codificado.
Por ora, avançaria apenas quatro comentários críticos fruto de uma leitura apressada no quadro de uma concordância global com o sentido e o objectivo da proposta:
1) Quanto ao âmbito parece-me demasiado tímido já que, estando, e bem, eliminados os automatismos procedimentais do projecto, à partida não vejo obstáculo para uma previsão mais abrangente, compreendendo, pelo menos todos os crimes dependentes de queixa (no fundo em que o procedimento está dependente da vontade do titular do direito de queixa) e mesmo todos os crimes que podem ser objecto de suspensão provisória (no caso dos públicos teriam de se introduzir algumas variantes), pelo que, pelo menos, parece-me que seria dispensável o nº 3 do art. 2.º.
2) Parece-me indesejável a excepção à irretractabilidade da desistência de queixa (continuo a pensar que uma acusação criminal não deve ser reconhecida como uma «espada Dâmocles» formalmente legitimada para a coerção com vista ao cumprimento de acordos entre privados).
3) Apesar das más soluções então apontadas no anteprojecto, a ideia de uma possível articulação entre mediação penal e soluções de diversão, em particular a suspensão provisória do processo, parece-me que merecia ser explorada, o que não sucede nesta proposta (nem na proposta de revisão do Código de Processo Penal).
4) Não vejo motivo para o mediador ser convertido numa quarta instância de decisão (além do Ministério Público, arguido e ofendido), pelo que me parece não deve ter o poder de obstar à hipótese de mediação (em consequência defendo a eliminação da segunda parte do nº 3 do art. 3.º).
A impostura
Já aí está o argumento da impostura. “Então os nossos impostos vão ser para pagar clínicas privadas para fazer abortos?”
Oh, meu Deus!, quantos abortos são pagos com os nossos impostos! Além disso, muito gostava de saber que impostos pagam estes que bradam constantemente com o esbanjamento dos “nossos impostos”.
Oh, meu Deus!, quantos abortos são pagos com os nossos impostos! Além disso, muito gostava de saber que impostos pagam estes que bradam constantemente com o esbanjamento dos “nossos impostos”.
08 janeiro 2007
O leão não perdoa
Empresas dos EUA e da Inglaterra vão ficar com a parte de leão da riqueza petrolífera do Iraque, diz um jornal inglês.
Como o mundo afinal é imprevisível!
Como o mundo afinal é imprevisível!
Um director-geral muito especial
Há aí um director-geral que ganha mais, muito mais, do que o PR. Há quem diga que ele merece (isso e muito mais) porque ele é muito eficiente, cobra muitos impostos, faz entrar muito dinheiro nos cofres do Estado. Foi aliás para isso que o foram buscar à "privada", porque os seus antecessores funcionários se tinham mostrado incapazes.
Esta eficácia de alguém de fora para cobrar impostos faz-me lembrar que já os nossos reis medievais, constatando a ineficiência dos seus funcionários fiscais na cobrança de impostos, recorriam com frequência à concessão da sua cobrança em hasta pública, sendo normalmente os judeus que arrematavam a concessão, e assim ganharam algumas inimizades junto da população pagante, porventura sem razão. A ideia é a mesma: tem de vir alguém de fora do funcionalismo.
É certo que tem que se pagar o trabalho a peso de ouro, porque estes cavalheiros não brincam em serviço. Mas lá está: compensam o que custam com o produto que apresentam. Não são por isso privilegiados; pelo contrário, é um privilégio para o Estado tê-los ao seu serviço.
Mas a questão é esta: o mercenarismo será mesmo a única forma de assegurar a eficácia dos serviços públicos? E a ética do serviço público, é só retórica para certas ocasiões?
Esta eficácia de alguém de fora para cobrar impostos faz-me lembrar que já os nossos reis medievais, constatando a ineficiência dos seus funcionários fiscais na cobrança de impostos, recorriam com frequência à concessão da sua cobrança em hasta pública, sendo normalmente os judeus que arrematavam a concessão, e assim ganharam algumas inimizades junto da população pagante, porventura sem razão. A ideia é a mesma: tem de vir alguém de fora do funcionalismo.
É certo que tem que se pagar o trabalho a peso de ouro, porque estes cavalheiros não brincam em serviço. Mas lá está: compensam o que custam com o produto que apresentam. Não são por isso privilegiados; pelo contrário, é um privilégio para o Estado tê-los ao seu serviço.
Mas a questão é esta: o mercenarismo será mesmo a única forma de assegurar a eficácia dos serviços públicos? E a ética do serviço público, é só retórica para certas ocasiões?
06 janeiro 2007
A execução de Saddam
Ao menos, Pacheco Pereira teve a coragem de dizer que Saddam Hussein morreu com dignidade. Eu também achei que sim, pelo que vi e pelo que li, em andanças pelo país vizinho. Estava num restaurante, quando vi pela primeira vez essa imagem depois infinitamente repetida de Saddam a aproximar-se dos carrascos, estes passarem-lhe a corda pelo pescoço, ajustarem a corda com uma meticulosidade esquisita, as feições de Saddam mal distintas, quase só reduzidas a um sombreado de barba, a imagem entrar numa oscilação, como se fôssemos assistir ao momento supremo da execução, mas finalmente não vermos execução nenhuma e, em vez dela, reaparecer a imagem do locutor a tecer mais comentários sobre o acontecimento.
Não tinha, nunca tive admiração nenhuma por Saddam (antes, sempre o detestei), mas isso não impede que essa imagem da sua iminente execução tenha ficado agarrada a mim como um mal estar indefinido que não se sabe localizar e cuja origem se não descortina muito bem. Acho que a palavra exacta para definir esse mal estar seria a sartriana palavra “náusea.”
O facto de detestar Saddam também não me impede de reconhecer que ele morreu com dignidade. Segundo ouvi a alguns comentadores ou repórteres, ele não mostrou qualquer arrependimento e aproximou-se do cadafalso com passos decididos. É isso a dignidade do condenado à morte. Seria uma fraqueza inominável que o condenado se mostrasse piegas ou trémulo diante do baraço. Não há outra forma de enfrentar a terrível humilhação da morte senão desprezando-a ou simulando desprezá-la, mais aos seus terríveis executores. Quem disse que a condenação à morte estimula o arrependimento?
Não tinha, nunca tive admiração nenhuma por Saddam (antes, sempre o detestei), mas isso não impede que essa imagem da sua iminente execução tenha ficado agarrada a mim como um mal estar indefinido que não se sabe localizar e cuja origem se não descortina muito bem. Acho que a palavra exacta para definir esse mal estar seria a sartriana palavra “náusea.”
O facto de detestar Saddam também não me impede de reconhecer que ele morreu com dignidade. Segundo ouvi a alguns comentadores ou repórteres, ele não mostrou qualquer arrependimento e aproximou-se do cadafalso com passos decididos. É isso a dignidade do condenado à morte. Seria uma fraqueza inominável que o condenado se mostrasse piegas ou trémulo diante do baraço. Não há outra forma de enfrentar a terrível humilhação da morte senão desprezando-a ou simulando desprezá-la, mais aos seus terríveis executores. Quem disse que a condenação à morte estimula o arrependimento?
04 janeiro 2007
Afinal foi tudo uma questão de ingenuidade
No Público de hoje Pacheco Pereira adianta as razões da execução de Saddam Hussein: foi tudo uma questão de ingenuidade por parte dos EUA (afinal sempre foram os EUA os responsáveis pela condenação?). E explica: as intenções (boas, mas ingénuas) dos EUA foram usar o julgamento como catarse nacional para o Iraque, permitir um "módico de justiça" (?!) e "oferecer" (!?) aos iraquianos um "ponto zero" (ou abaixo de zero?) para a democracia. Mas foram ingénuos! Afinal tudo ficou pior, apesar das (boas) intenções.
Mesmo acreditando na pia explicação de PP, perguntar-se-á: não é perigoso que gente tão ingénua (apesar de bem intencionada) ocupe a Casa Branca, com as inerentes responsabilidades a nível interno e mundial?
E já agora: julga PP que todos nós somos indigentes mentais?
Mesmo acreditando na pia explicação de PP, perguntar-se-á: não é perigoso que gente tão ingénua (apesar de bem intencionada) ocupe a Casa Branca, com as inerentes responsabilidades a nível interno e mundial?
E já agora: julga PP que todos nós somos indigentes mentais?
11/2: ordem para procriar
Procriar é preciso. A nossa demografia está em crise, em regressão. Temos todos que fazer um esforço, dar uma contribuição. Procriemos com abundância. Que nenhum embrião seja desviado do seu destino. Que nenhum espermatozóide sequer se perca. Seremos então muitos e a quantidade é o que interessa. Deixaremos de precisar de pretos e ucranianos.
(Quem explica à deputada Matilde Sousa Franco que uma coisa é estimular a natalidade, outra impor a maternidade?)
(Quem explica à deputada Matilde Sousa Franco que uma coisa é estimular a natalidade, outra impor a maternidade?)
03 janeiro 2007
SMN (Portugal-Espanha) 2007
Em Portugal, hoje (3/1) no DR foi publicado o DL nº 2/2007 que fixou em € 403 o SMN mensal para este ano de 2007. Os prognósticos (que constam do preâmbulo) são atingir o valor de € 450 em 2009 e € 500 em 2011.
Em Espanha, no passado dia 30/12, no BOE foi publicado o Real Decreto 1632/2006 que fixou em € 19,02/dia ou € 570,60/mês o SMN básico. O mesmo diploma estabelece complementos salariais e afins, distinguindo diversas situações particulares.
Conclusão: por este andar nunca mais recuperamos o atraso em relação aos “nuestros hermanos”!
Em Espanha, no passado dia 30/12, no BOE foi publicado o Real Decreto 1632/2006 que fixou em € 19,02/dia ou € 570,60/mês o SMN básico. O mesmo diploma estabelece complementos salariais e afins, distinguindo diversas situações particulares.
Conclusão: por este andar nunca mais recuperamos o atraso em relação aos “nuestros hermanos”!
O especial, agora rebaptizado de «mandatário», e o prestígio da Assembleia da República
Ainda não cessou o especial empenho na possibilidade de exercício da acção penal em representação da Assembleia da República (veja-se esta notícia no Público de hoje).
Não pretendo retomar a referência aos problemas de constitucionalidade que, embora mitigados por comparação com a aberração jurídica da primeira proposta, me parece persistirem nesta nova versão - para o efeito, bastaria recordar a jurisprudência da Comissão Constitucional sobre o assistente e o monopólio da acção penal no aparelho estadual ou do Tribunal Constitucional sobre as Comissões de Inquérito Parlamentar e a legitimidade dos fins de investigação de factos com relevância jurídico-penal, em particular o acórdão 195/94 relativo a uma das comissões de inquérito parlamentar ao caso Camarate.
O que na nova versão se me apresenta como mais perturbador é a leviandade com que alguns parecem encarar os efeitos que a transformação da Assembleia da República em assistente no processo penal pode ter no prestígio do Parlamento. Penso que qualquer um genuinamente ancorado nos valores do sistema democrático, entende como uma disfunção que o julgamento de acções do parlamento, em toda a sua intencionalidade, seja assumido em última instância por tribunais ordinários integrados pela magistratura judicial. Acresce que nos esquemas já previstos na lei positiva, atento o art. 68.º, nº 1, al. e) do Código de Processo Penal, se poderiam encontrar soluções com menos problemas constitucionais e políticos, nomeadamente através do alargamento do leque de crimes em que «qualquer pessoa» se pode constituir assistente, via em que eventuais empenhos políticos na acção penal seriam assumidos através da pessoa jurídica dos partidos, ou dos seus mais empenhados membros, que o pretendessem. Não se me apresentaria como uma solução juridica ou politicamente desejável, mas, ao menos, salvaguardaria um valor que se apresenta como essencial numa democracia: o prestígio do Parlamento.
Será que não existe ninguém com autoridade que possa aconselhar, de forma a ser ouvido, empenhados protagonistas parlamentares, aparentemente, despreocupados com o papel jurídico-constitucional da Assembleia da República?
Não pretendo retomar a referência aos problemas de constitucionalidade que, embora mitigados por comparação com a aberração jurídica da primeira proposta, me parece persistirem nesta nova versão - para o efeito, bastaria recordar a jurisprudência da Comissão Constitucional sobre o assistente e o monopólio da acção penal no aparelho estadual ou do Tribunal Constitucional sobre as Comissões de Inquérito Parlamentar e a legitimidade dos fins de investigação de factos com relevância jurídico-penal, em particular o acórdão 195/94 relativo a uma das comissões de inquérito parlamentar ao caso Camarate.
O que na nova versão se me apresenta como mais perturbador é a leviandade com que alguns parecem encarar os efeitos que a transformação da Assembleia da República em assistente no processo penal pode ter no prestígio do Parlamento. Penso que qualquer um genuinamente ancorado nos valores do sistema democrático, entende como uma disfunção que o julgamento de acções do parlamento, em toda a sua intencionalidade, seja assumido em última instância por tribunais ordinários integrados pela magistratura judicial. Acresce que nos esquemas já previstos na lei positiva, atento o art. 68.º, nº 1, al. e) do Código de Processo Penal, se poderiam encontrar soluções com menos problemas constitucionais e políticos, nomeadamente através do alargamento do leque de crimes em que «qualquer pessoa» se pode constituir assistente, via em que eventuais empenhos políticos na acção penal seriam assumidos através da pessoa jurídica dos partidos, ou dos seus mais empenhados membros, que o pretendessem. Não se me apresentaria como uma solução juridica ou politicamente desejável, mas, ao menos, salvaguardaria um valor que se apresenta como essencial numa democracia: o prestígio do Parlamento.
Será que não existe ninguém com autoridade que possa aconselhar, de forma a ser ouvido, empenhados protagonistas parlamentares, aparentemente, despreocupados com o papel jurídico-constitucional da Assembleia da República?
02 janeiro 2007
Terrorismo verbal
O Papa comparou o aborto ao terrorismo. Mais comedido, o Cardeal Policarpo disse que o aborto é uma violência para o embrião. Mas acrescentou que "quem é violento para com aqueles que lhe são próximos é capaz de ser violento para toda a comunidade humana". (Será então que uma mulher que interrompa a gravidez é virtualmente uma agressora de toda a comunidade humana?)
O PR, na comunicação que acompanhou o anúncio da convocação do referendo, pediu serenidade na campanha. A mais alta hierarquia da Igreja Católica, ao recorrer a este tipo de linguagem, está a dar o "tom" para uma campanha agressiva e tudo menos serena.
O PR, na comunicação que acompanhou o anúncio da convocação do referendo, pediu serenidade na campanha. A mais alta hierarquia da Igreja Católica, ao recorrer a este tipo de linguagem, está a dar o "tom" para uma campanha agressiva e tudo menos serena.
Sob o signo do sangue
O ano velho terminou com esse ignóbil espectáculo da execução de Saddam Hussein, apadrinhada pelos EUA e decretada, como internacionalmente foi reconhecido, por um tribunal parcial e após um processo injusto.
Bush quis oferecer este troféu aos seus compatriotas, à falta de melhor prenda de Natal. Não creio que eles tenham razão para lhe ficar agradecidos. Este acto vil não facilitará a vida aos ocupantes e aprofundará a divisão entre os iraquianos.
Ainda faltam dois anos para tão sinistra personagem como Bush filho desaparecer da cena internacional. Quanto sangue irá ainda correr por sua culpa estrita e directa? É que o sangue clama sempre por mais sangue, como o conflito israelo-palestiniano gritantemente exemplifica.
Bush quis oferecer este troféu aos seus compatriotas, à falta de melhor prenda de Natal. Não creio que eles tenham razão para lhe ficar agradecidos. Este acto vil não facilitará a vida aos ocupantes e aprofundará a divisão entre os iraquianos.
Ainda faltam dois anos para tão sinistra personagem como Bush filho desaparecer da cena internacional. Quanto sangue irá ainda correr por sua culpa estrita e directa? É que o sangue clama sempre por mais sangue, como o conflito israelo-palestiniano gritantemente exemplifica.