29 outubro 2009

 

A alma portuguesa

O miserável nível em que tem decorrido o "debate" sobre as declarações de Saramago (de que é exemplo máximo o comentário de VPV), que aliás é a regra do debate público em Portugal, leva-me a formular a seguinte "prece" que peço emprestada a Pessoa, que não sei bem se era crente ou não.

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

("Mensagem")


Precisamos realmente de um "sopro", de uma "aragem" que eleve a nossa alma, tão mesquinha, tão reles, tão pequena, tão portuguesa...

 

A fera amansada

Diálogo, diálogo e mais diálogo. A fera passou a cordeiro.
Mas isso traz muito descontentamento. Todos os que gostam de "reformas" estão indignados: o governo é manso, tem medo das ondas.
Sabemos o que significa "reformas" na terminologia política contemporânea: privatizar, no plano da economia e dos serviços do Estado; centralizar, pôr termo às autonomias, no que se refere à administração pública e à justiça.
O governo anterior foi muito louvado até 2007, pelo "ímpeto reformista" que revelou até então: a investida contra magistrados, professores, polícias, magistrados, funcionários públicos em geral, por um lado; as privatizações de empresas públicas e o desmantelamento do SNS, e as perspectivas de privatização da Segurança Social, por outro.
Mas, a partir de 2007, as "reformas" efectivamente perderam algum gás: na Saúde o privatizador-mór (lembro-me dele nas assembleias magnas de Coimbra dos anos 60, na altura não era tão reformista) foi apeado, a Segurança Social acabou por ter uma reforma mantendo a matriz pública, na administração pública passou a haver mais diálogo ou menos agressividade autoritária. A excepção foi a Educação e os resultados estão à vista: a reformadora saiu agora pela porta do cavalo.
Por isso, a direita e as elites bem pensantes do Grémio Literário e de outros "think tanks" estão pesarosas e revoltadas e mais uma vez apontam o dedo apocalíptico: vamos para o abismo, sem as reformas!
Mas talvez venham a ter melhores dias: as feras amansadas nunca são de fiar; em qualquer altura os maus instintos podem vir ao de cima: começam por rosnar, depois rugem, a seguir mordem, depois, depois... não vale a pena pensar...

28 outubro 2009

 

aromas de corrupção 2

Le monde. 27.10.2009.

Les jugements du procès de l'Angolagate, une affaire de vente d'armes à l'Angola dans les années 1990, ont été rendus, mardi 27 octobre, par le tribunal correctionnel de Paris. Le sénateur, ancien ministre de l'intérieur et ancien président du conseil général des Hauts-de-Seine, Charles Pasqua, âgé de 82 ans, écope de trois ans de prison dont deux avec sursis et 100 000 euros d'amende pour "trafic d'influence". Le jugement va au-delà des réquisitions, le procureur n'ayant requis que trois ans avec sursis.
Pierre Falcone et Arcadi Gaydamak ont chacun été condamnés à six ans de prison ferme, assortis d'un mandat de dépôt à l'audience pour M. Falcone. Les deux hommes ont indiqué qu'ils feraient appel. "Il a été amplement démontré à l'audience qu'entre 1993 et 1998, Pierre Falcone et Arcadi Gaydamak se sont livrés à une activité de commerce de matériel de guerre pour un montant de 793 millions de dollars. Cette activité revêt un caractère illicite. La destruction méthodique et habituelle de preuves suffit à caractériser l'élément intentionnel", a conclu le tribunal.
M. Falcone, 55 ans, a été déclaré coupable de trafic d'armes illicite, d'abus de biens sociaux et de trafic d'influence sur le financement du loyer de Charles Pasqua (1,5 million de francs) pour les locaux de son parti, le Mouvement pour la France. Il a cependant été relaxé de l'accusation d'abus de confiance.
Le romancier Paul-Loup Sulitzer a été condamné à quinze mois de prison avec sursis et 100 000 euros d'amende. Il était accusé d'avoir perçu 380 000 euros pour user de son influence dans le monde des médias afin de redorer l'image des deux associés. Dix-huit mois avec sursis avaient été requis à son encontre.
L'ancien préfet du Var Jean-Charles Marchiani a été condamné à trois ans de prison, dont 21 mois avec sursis, pour complicité de trafic d'influence et recel d'abus de biens sociaux. Il écope donc de 15 mois fermes, alors que 18 avaient été requis.
Le fils aîné de l'ancien président socialiste, Jean-Christophe Mitterrand, 62 ans, a été relaxé pour le chef d'accusation de complicité de trafic d'armes mais le tribunal l'a déclaré coupable pour recel d'abus de bien sociaux. Il a été condamné à deux ans de prison avec sursis et 375 000 euros d'amende. Le parquet avait requis un an ferme.

 

aromas de corrupção

Editorial El pais, 28.10.2009.
El chaparrón de la corrupción se extiende como una mancha de aceite por toda la geografía española. Al caso Gürtel que afecta a la Comunidad Valenciana, Madrid, Galicia y Castilla y León, se han sumado Baleares -con el asunto Munar- y Cataluña, con el saqueo del Palau de la Música y ayer todavía otro nuevo episodio: la detención en Barcelona de ocho personas en relación con un supuesto caso de tráfico de influencias, blanqueo de capital y cohecho en Santa Coloma de Gramenet, al parecer por unos 20 millones de euros. El actual alcalde socialista de la localidad del cinturón barcelonés -Bartomeu Muñoz- y dos ex altos cargos de la Generalitat pujolista -Macià Alavedra y Lluís Prenafeta- están a la espera de prestar declaración ante el juez Baltasar Garzón en la Audiencia Nacional.Los nombres de Alavedra -ex consejero de Gobernación, Industria y Economía y Finanzas de la Generalitat- o el de Prenafeta -secretario de Presidencia y mano derecha durante años de Pujol- no son unos desconocidos en los tribunales. Prenafeta, que ha llegado a estar imputado en varios, siempre ha salido indemne, aunque en alguno de los casos hubiera, según el juez, "aromas de corrupción". Alavedra simplemente ha sido citado a declarar en un caso como el de la extorsión a empresarios catalanes que practicaba el juez Luis Pascual Estevill, vocal del Consejo General del Poder Judicial nombrado a propuesta de CiU. La detención de ambos -ahora ya convertidos en hombres de negocios sin aparente vinculación directa con el actual núcleo dirigente de Convergència- no ha sorprendido. Caso distinto es el del alcalde de Santa Coloma, un socialista sui géneris, que reside en el corazón de la Barcelona burguesa y ejerce su cargo político en una ciudad de la periferia obrera
La reacción del Partit dels Socialistes de Catalunya ha sido fulminante en tiempos en que otros partidos -el PP con Gürtel y CDC con la financiación de la Fundación Trias Fargas con dinero del Orfeó Català- se toman el tiempo que necesitan y más antes de adoptar medidas. El PSC ha anunciado, al poco de conocerse las detenciones, la suspensión temporal de militancia y la creación de una gestora en Santa Coloma hasta que el juez decida el grado de inculpación de tres de los detenidos que están afiliados al partido. Convergència, siguiendo su línea habitual, ha pedido respeto a la presunción de inocencia y sostiene que no tomará medidas contra simples afiliados.
Nada es edificante en este nuevo caso de corrupción, que ha surgido tirando del hilo de las cuentas que, al parecer, Alavedra y Prenafeta tenían en el BBVA Privanza de las islas Jersey. Con la crisis económica que azota al extrarradio barcelonés -Santa Coloma tiene un paro de más de un 15% con una población de casi 120.000 habitantes-, el incremento de la desafección política y de la desconfianza hacia partidos e instituciones es la consecuencia predecible de esta mancha de corrupción que va extendiéndose a ojos vista.

25 outubro 2009

 

Deus visto pelo Menino Jesus de Alberto Caeiro

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à Terra.
(...)
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito
Pregasse a bondade a a justiça!
(...)
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a agente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
(...)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósifos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

"O Guardador de Rebanhos", VIII

22 outubro 2009

 

Talvez uma medalha para Saramago

Com a devida autorização, contribuo com mais uma acha para a «fogueira» da discussão à volta das declarações de Saramago com a publicação do texto que Manuel António Pina (MAP) publicou hoje no «Jornal de Notícias». Divergindo do que escrevi sobre o não se dever levar à letra o que disse o nosso prémio Nobel, MAP parte do pressuposto da leitura «literal» da Bíblia por parte de Saramago para o criticar e lhe dar um safanão cultural. O que, em boa verdade, significa que Saramago pôs toda a gente a falar sobre a Bíblia e Deus. Já não é pequeno mérito, mesmo do ponto de vista da Igreja e dos crentes. Saramago pode, afinal, continuar a ser português de lei e, se calhar, merecer até uma medalha pelos serviços prestados nesta área.
Mas vamos ao texto de MAP:




Saramago é crente
Saramago dizendo "Deus não é de fiar: é vingativo, é má pessoa" lembra-me as animadas conversas das empregadas domésticas nos autocarros a caminho do trabalho, revoltadas com a Ivone do "Caminho das Índias" e prontas para, dando com a actriz Letícia Sabatella na rua, tirarem desforço dela.
Saramago, afinal, é crente, e fundamentalista, levando a novela bíblica a peito e as "más práticas" de Deus (espécie de Ivone da Bíblia) à conta de literalidade. Não me admirava que, podendo, também o invectivasse ("Aquilo faz-se, meu malandro, mandar Abrãao matar Isaac?") e o espancasse se ele lhe aparecesse, como à Alexandra Solnado, no metro. Alguém que diga a Saramago que a Bíblia é um livro, uma narrativa (na verdade muitas e belíssimas narrativas, misturando verdade histórica e fábula), "escrita" há milénios por autor colectivo e anónimo a quem os cristãos, na parte que lhes toca, chamam Espírito Santo (como chamamos Homero a todos os gregos autores da "Odisseia"). Não é uma obra de História ou de Geografia, de Biologia ou de Astronomia. Era de supor que um romancista percebesse isso melhor que ninguém.

 

Carnaval à portuguesa

O carnaval verdadeiramente português está há muito em decadência. Desde que apareceram por aí os "corsos" brasileiros, com as baianas com pouca roupa e muitas plumas (arreganhadas de frio, porque essa indumentária é para o carnaval "di lá"), tem vindo a morrer o velho entrudo português, em que se "pregavam partidas", se denunciavam publicamente adultérios, negócios escuros, e poucas vergonhas de toda a espécie, para gáudio geral e com impunidade total, porque o carnaval, o entrudo, era precisamente um intervalo consentido de excesso, de desregramento, de evasão, no calendário rotineiro das estações.
Foi assim que no carnaval de 2004, em Santa Comba Dão, um indivíduo que quis satirizar o presidente da edilidade local, exibindo um fantoche com o nome daquele agarrado a um saco azul (não é preciso explicar o que insinuava...), se viu condenado por difamação agravada, decisão confirmada pela Relação.
Quem lhe valeu, quem valeu ao entrudo português, foi um tribunal estrangeiro, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que condenou o Estado Português por violação do art. 10º da Convenção Europeia, que protege a liberdade de expressão.
Disse o Tribunal: "As expressões postas em cena por Alves da Silva (o condenado) constituíam uma sátira, forma de expressão artística e de comentário social que, pelo exagero e deformação da realidade que a caracterizam, visa naturalmente provocar e agitar. Dificilmente essas expressões podiam ser tomadas à letra - visto que produzidas no contexto do carnaval - e mesmo se fosse esse o caso, o presidente devia, como político, fazer prova de uma maior tolerância perante a crítica. o Tribunal considera que sancionar penalmente comportamentos como este pode ter um efeito dissuasor relaivamente a intervenções satíricas sobre temas da sociedade, que podem desempenhar um papel muito importante no livre debate das questões de interesse geral, sem o qual não existe sociedade democrática."
Pois é: a importância da sátira para a defesa da democracia. Uma lição de jurisprudência.

 

Governo: evolução na continuidade

Oito saem, oito entram, mantém-se o "núcleo duro". O que há de mais notável é o reforço do contingente feminino (embora sem atingir o nível de Espanha, que é de 50%). Uma pianista na Cultura é sempre bom: se não houver dinheiro, toca piano à borla. Uma sindicalista no Trabalho aparentemente é ainda melhor, mas não será isso uma pedra no sapato da ministra? Uma ave (Pássaro) no Ambiente parece-me natural, ou seja, a bem da natureza. A (semi) autora da colecção "Aventura" na Educação terá possivelmente muita populaidade entre os alunos, mas veremos como será com os professores.
E a Justiça? É óbvio que o Alberto Martins não irá desencadear guerras inúteis, como fez Alberto Costa com as férias judiciais, com que pretendia (ele e Sócrates, mais este que ele) "punir" os magistrados, e acabou castigando seriamente os advogados, como estes acabariam (tarde) por compreender...
Há certamente muito para fazer e ele tem a capacidade de diálogo e a inteligência para deitar mãos à obra.
Mas a minha maior preocupação neste momento vai para os ex-ministros. Como deve ser difícil deixar de ser ministro! Não é só voltar à placidez do anonimato, alguns até gostarão disso (outros não!). Mas é sobretudo os últimos dias, a angústia da incerteza da permanência (fico ou não fico?), do futuro (que ficará do que fiz? vão deitar tudo abaixo?), da imagem que fica (que vai dizer a comunicação social, saio com seta para cima ou para baixo?) e aquelas coisas mais comezinhas, como fazer as malas, arrumar papéis, queimar alguns, fotocopiar outros... `
É sempre triste fechar a luz e a porta pela última vez. É melhor chamar o contínuo, se ele aparecer...

 

Umberto Eco recomenda a Bíblia

Dolenti declinare
(relatórios de leitura para um editor)

Anónimos. A Bíblia.
Devo dizer que quando comecei a ler o manuscrito, e ao longo das primeiras centenas de páginas, fiquei entusiasmado. Tudo é acção, e acção é tudo o que o leitor de hoje pede a um livro de evasão: sexo (em profusão), com adultérios, sodomia, homicídios, incestos, guerras, massacres, e assim por diante.
O episódio de Sodoma e Gomorra, com os travestis que os dois anjos querem fazer-se, é rabelaisiano; as histórias de Noé são Salgari puro, a fuga do Egipto é uma história que aparecerá mais cedo ou mais tarde nos écrans... Em resumo, um verdadeiro romance-rio, bem construído, que não economiza os golpes de teatro, cheio de imaginação, com a dose de messianismo suficiente para agradar, mas sem cair no trágico.
Depois, seguindo para diante, dei-me conta de que estava, afinal, perante uma antologia de vários autores, com numerosos, excessivos, trechos de poesia, alguns francamente lamentáveis e aborrecidos, perfeitas jeremíadas sem pés nem cabeça.
O resultado é um conjunto monstruoso, arriscando-se a não agradar a ninguém, por tanto ter de tudo. E, depois, será um problema tratar de todos os direitos dos diversos autores, a menos que o organizador trate disso, ele próprio. Mas do organizador nunca consegui descobrir o nome, nem sequer no índice, como se fosse proibido nomeá-lo.
Eu diria que se fizessem contactos a ver se será possível publicar separadamente os primeiros cinco livros. Seria andarmos mais pelo seguro. Com um título como "Os Desesperados do Mar Vermelho".

Umberto Eco, "Diário Mínimo"

 

Evangelho, bons costumes e licenciosidade


Achei particularmente interessante e pertinente o paralelo traçado por Artur Costa, no post anterior, entre as mais recentes declarações de José Saramago na apresentação do seu livro Caim e a posição assumida por ele aquando da discussão pública sobre as caricaturas dinamarquesas.
Parece-me, de qualquer modo, que existe uma linha de continuidade e coerência. A propósito das caricaturas chegou então a ser colocado o problema da sua licenciosidade, agora Saramago procede a uma das culturalmente mais significativas avaliações sobre a Bíblia apodando-a de livro de «maus costumes», e, naturalmente, em face das suas preocupações pedagógicas adverte que «se deve manter escondida das crianças».
Para quem tem uma visão um pouco diferente sobre os livros e a vida não tem sentido criticar o Nobel Saramago pelas suas considerações sobre a Bíblia em conferência de imprensa. No meu caso devo agradecer até o seu carácter instrutivo, por um lado, em termos de auto-reflexão, ou talvez seja mais ajustado falar de autocrítica à luz de cânones saramaguianos, permitindo-me confirmar os receios de ser licencioso segundo certos defensores dos bons costumes, e ajuda-me a perceber (decerto uma autojustificação) porque muito antes das incursões evangélicas de Saramago, iniciadas há mais de 10 anos, nunca consegui apreciar as suas obras, mesmo quando escreve sobre «maus costumes», matéria com elevado potencial literário, parece ter sempre subjacente uma cartilha ou manual de «bons costumes».

21 outubro 2009

 

Saramago e a Bíblia

É curioso que José Saramago tenha dito o que disse sobre a Bíblia, quando, a propósito das célebres caricaturas de Maomé, as tenha apodado de «irresponsáveis» e afirmado «a existência de limites para a liberdade de expressão», porque esta não é absoluta. É claro que, em relação às caricaturas, ele deve ter tido em conta a conjuntura internacional, ao passo que, no tocante à Bíblia e no contexto geo-cultural em que proferiu as suas declarações, não se verificava o mesmo perigo de fazer eclodir uma situação explosiva de contornos imprevisíveis. Assim, o caso é remetido para o âmbito da liberdade de expressão, no contexto de uma cultura europeia que se habituou aos ataques mais desaforados contra a religião e o sagrado, incluindo a blasfémia.
A meu ver, porém, as suas declarações não podem ser lidas à letra. As afirmações de que «a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades e do pior que há na natureza humana» são uma pura provocação. Ele quis escandalizar e provocar, tirando daí um prazer pessoal, não devendo ser alheio ao facto o contencioso que mantém há anos (desde o incidente com O Evangelho Segundo Jesus Cristo) com o sector mais conservador do catolicismo. Isto, muito embora ele possa ter razão, no que tange ao Antigo Testamento, quando se refere ao que designa de «catálogo de crueldades», porque, de facto, o Antigo Testamento está recheado de cenas cruéis, que, todavia, têm de ser lidas num determinado contexto, exibindo frequentemente nas sua páginas, aquilo que o filósofo Gianno Vatimo apelida de «sagrado violento». Já no que toca ao «manual de maus costumes», trata-se, como disse, de uma pura provocação.
Para o comprovarmos, basta ler a entrevista que deu ao suplemento «Babelia» do El País, no sábado passado. Aí, encontramos um Saramago muito mais prudente no que afirma e muito mais subtil nas respostas que dá. Assim, por exemplo, ele distingue o Antigo do Novo Testamento, considerando este «um texto simpático com parábolas bonitas.» E, no que se refere a Jesus, afirma que «Jesus humaniza a figura de Deus. Jesus suavizou e matizou o Deus do Antigo Testamento.»
De resto, Saramago é um leitor atento da Bíblia, sendo completamente destituídas de sentido as afirmações de que ele é um ignorante nesse aspecto.
Agora, a faceta mais lúdica disto tudo reside nas reacções provocadas pelas afirmações de Saramago, algumas das quais são mesmo «de caixão à cova». Desfrutá-las é um prazer. Desconfio que o próprio Deus, que há-de ter um infinito sentido de humor, porque tem todas as nossas qualidades boas em infinito, se há-de rir de muita parvoiçada.

20 outubro 2009

 

Vêm aí mais reformas

Já se anunciam alterações aos Códigos Penal e de Processo Penal, depois de uma vigência de dois anos das últimas, extensas, que foram introduzidas. Então, essas alterações foram postas em vigor num curto espaço de tempo após a sua publicação (cerca de 15 dias), no final das férias de Verão, na freima característica da reabertura dos tribunais, com a agravante de não se ter proporcionado qualquer arrimo (estudos preparatórios, debates entre os interessados, uma simples introdução aos diplomas legais modificados) que servisse de orientação aos aplicadores das novas leis. Dá a impressão que tudo se quis fazer, não de modo célere, mas de rajada, quase de surpresa, precisamente para evitar a discussão entre os profissionais do Direito, nomeadamente os magistrados, que eram o alvo preferencial da “luta anticorporativista” do governo. Estes não tinham nada que se pronunciar sobre as alterações legislativas, pois isso seria o mesmo que «meter a foice em seara alheia», competindo essa tarefa ao poder político, mais concretamente ao poder legislativo, e aos magistrados, simplesmente, aplicar o produto fabricado por aqueles. Assim mandava a separação de poderes. Claro que o tom com que certos responsáveis lembravam essa divisão de funções vinha carregado de acinte e tinha muito a ver com uma espécie de «ajuste de contas», que tinha a sua origem no processo da Casa Pia, como o reconhecem muitos juristas. Mesmo o Prof. Costa Andrade, um penalista da Escola de Coimbra cujo prestígio é incontestável, escreveu em vários números seguidos da Revista de Legislação e Jurisprudência um ensaio, significativamente intitulado «Bruscamente no Verão Passado», justamente a criticar o aparecimento-relâmpago das reformas, com quebra, em variados pontos, da unidade, sistematicidade e filosofia dos códigos, e atribuindo muitas das soluções ao famosíssimo processo.
Ora, uma coisa seria evitar o escolho corporativo, que, porventura pudesse ter reflexo nas reformas a introduzir, e outra, bem diferente, auscultar a opinião não despicienda de profissionais do Direito (advogados, magistrados, juristas de outras proveniências), que, por força da sua praxis, teriam certamente muitas observações úteis e enriquecedoras a fazer sobre alterações tão significativas como as que foram produzidas. O enquistamento na exclusão desse diálogo (inédito na história das reformas legislativas sobre diplomas fundamentais) só poderia ter o sentido de uma deliberada ostracização, com foros de arrogância punitiva.
Estão-se a ver agora os resultados a que uma tal política conduziu. A discussão ampla que se devia ter processado antes foi transferida para o momento da aplicação da lei, com problemas de toda a espécie a surgirem no dia-a-dia dos tribunais a propósito da interpretação dos aparentemente mais comezinhos problemas. O número de recursos extraordinários para fixação de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça, a pretexto das questões mais banais, é um exemplo flagrante disso mesmo. De forma que o que se pretendeu célere redundou em complicação e perda de tempo. E, pior do que isso: trouxe acrescidos problemas à realização da justiça, com aumento do desprestígio desta.
O Observatório da Justiça veio agora reconhecer isso mesmo, embora sem o dizer expressamente, mas dizendo-o de forma implícita, com a preconização de novas alterações às leis penais, em pontos cruciais, cujo fracasso rotundo não podia mais ser escondido, ultrapassada que foi a fase crítica das eleições.

13 outubro 2009

 

Imediação e segurança epistémica

A propósito do princípio da imediação e da segurança epistémica eis um bom exemplo encontrado na rede e que diz algo sobre o mundo e a percepção de um iniciado (particularmente interessante para um leigo).

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12 outubro 2009

 

Sobre o fenómeno Berlusconi

Do colaborador do Sine Die Luís Eloy recebi o texto com o título em epígrafe que passo a publicar:

O notável escritor italiano Andrea Camilleri, autor dos conhecidos romances policiais protagonizados pelo comissário Montalbano, do alto dos seus 84 anos, deu uma entrevista ao jornal El País, no passado 18 de Setembro de 2009, onde dá a sua explicação para o sucesso de Silvio Berlusconi.
Diz ele que a Itália “ama o bufón delirante porque reflecte o pior de cada um e suscita essa inveja que todo italiano sente perante as motocicletas que não cumprem nem uma regra do código”.
E depois de considerar existir uma “enfermidade mental, política e económica” formula o desejo que os italianos “bebam do cálice até que vomitem”.
É o talento de, com poucas palavras, dizer tudo.



Luís Eloy Azevedo

 

Apologia dos oeirenses (sobretudo dos licenciados e doutorados)

Licenciados e doutorados do concelho de Oeiras: vós sois a nata da massa cinzenta do país; vós sois a nossa reserva moral!
Não deixaremos que a vil calúnia se abata sobre vós!

10 outubro 2009

 

Opiniões sobre o Nobel

É interessante ver as reacções ao prémio atribuído a Barack Obama vindas hoje a lume no “Público”. Uma nota dominante é a da surpresa. Depois, as opiniões dividem-se entre os que aplaudem e os que criticam. Entre os primeiros, há uma outra nota dominante: a dos que acham que o prémio é um incentivo, um estímulo, uma aposta no futuro (tudo formas de dizer a mesma coisa), sobretudo pela esperança que foi aberta com a eleição de Obama numa mutação mais ou menos profunda na política externa dos Estados Unidos da América e nas relações internacionais, passando pela valorização do multilateralismo, do desanuviamento dos climas conturbados de guerra, do desarmamento nuclear e do primado dos direitos humanos. Uma variante desta posição é a que se traduz no entendimento de que a atribuição do prémio também compromete Obama, no sentido de este se sentir obrigado a seguir em frente com as suas promessas, contra os escolhos internos e externos que se lhe opõem.
Posição algo diferenciada é a de Jorge Almeida Fernandes, um analista bem documentado, que, à semelhança de Maia Costa, se interroga sobre se o prémio não será, afinal, um “presente envenenado” (este comentário até parece inspirado pelo de Maia Costa, tendo este escrito o seu antes de o de Almeida Fernandes ter sido estampado no jornal).
Entre os que criticam o prémio, destaca-se Pacheco Pereira, que, como sempre, faz um grande esforço para ser original, mas, desta vez, pelas piores razões: por entender que, com Obama, a paz internacional ficou enfraquecida. É que ele defende (ou assim parece) uns Estados Unidos da América com uma política externa mais próxima de Bush, do que da de Obama. A tolerância deste é sinónimo de tibieza, aproveitada pelos países do “Eixo do Mal” para fazerem «um upgrade da sua capacidade militar nuclear”
No pólo extremo desta posição, está Mário Soares, que, situando-se entre os que aplaudem o prémio, diz que foi a «melhor escolha possível».

 

O prémio Nobel

A gente já sabe como é a atribuição dos prémios Nobel. Não é só o mérito e, às vezes, não é principalmente o mérito que os dita. Há política por detrás, há interesses, há lobbies. Sobretudo quando se trata de certas áreas, como, neste caso, o prémio Nobel da Paz. E há também o objectivo de, através deles, moldar os próprios acontecimentos.
Barack Obama, para além de ser um homem tolerante, uma figura carismática, um orador brilhante e um orador que parece falar com autenticidade e convicção – o que é raro em política – e sobretudo um político que está, sob todos os aspectos, a milhas de distância do trauliteiro e provinciano Bush, representa, ainda, apesar de algumas desilusões que já despontaram, um enorme potencial de esperança para o desbloqueamento de muitas situações intrincadas no mundo, em relação às quais os Estados Unidos da América têm um papel crucial a desempenhar. E isto, quer queiramos, quer não. O prémio Nobel, inesperado, colhendo o próprio de surpresa, acho eu que se integra nesse espírito e, mais do que um prémio, é um incentivo.

09 outubro 2009

 

Berlusconi em maus lençóis

O Tribunal Constitucional italiano julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a célebre "Lei Alfano", que estabelecia a imunidade penal, durante o exercício do cargo, para as cinco mais importantes figuras do Estado, mesmo relativamente aos processos penais anteriores ao início das funções (!!!).
Claro que a lei fora feita para Berlusconi, o único com problemas judiciais. Ninguém aliás duvidava disso, tudo foi feito às claras, sinal evidente da degradação do Estado de direito em Itália.
Esta decisão do TC vem constituir o primeiro grande travão ao destempero autoritário do Cavaliere, que reagiu à decisão não como cavalheiro, mas mais como carroceiro (sem ofensa para os profissionais do sector...). Ele agora vai ser levado a julgamento, vai ter que perder algum tempo nos tribunais, porque os procssos são vários e não são fáceis para ele.
Mas qualquer que seja o resultado desses processos, a primeira e grande batalha está ganha: ninguém está acima da lei (nem mesmo os que fazem as leis).

 

Obama pacifista

Julgo que nem ele pensava numa coisa destas! O Nobel da Paz ainda antes do fim do primeiro ano de mandato! Não será um pouco prematuro?
Mas, atenção, isto é capaz de levar água no bico, não pensem que os suecos da Academia são alguns anjinhos...
Obama está agora um pouco condicionado: ele passou a ser "pacifista"! É como tal que terá de se relacionar com o Irão e com a Coreia do Norte... E quanto ao Afeganistão: vai intensificar a guerra? Vai borrar a escrita de pacifista?
Enfim, pensando bem, um prémio envenenado...

06 outubro 2009

 

As autárquicas

A campanha para as eleições autárquicas tem uma particularidade: os políticos (muitos políticos), atreitos a novas formas de caciquismo, não se limitam a fazer promessas; fazem ofertas, estas mais concretas e imediatas.
Ficaram célebres os frigoríficos de Valentim Loureiro, actualmente substituídos por uma oferta de bilhetes para um espectáculo de Toni Carreira. Mas parece que este ânimo dadivoso não é exclusivo de certos candidatos mais conotados com a direita. Também, ao que consta, António Costa ofereceu bicicletas a munícipes que estavam dispostos a pedalar e Elisa Ferreira, ao que consta, tenciona oferecer tripas à moda do Porto. Esperemos que quentinhas e não como aquela dobrada à moda do Porto, que extraiu a Fernando Pessoa versos melancólicos e deprimidos: «Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram/ Dobrada à moda do Porto fria?/ Não é prato que se possa comer frio,/Mas trouxeram-mo frio.»

 

A política e os políticos

Não tenho nada contra a política. Antes pelo contrário: acho que a política (o interesse pela política) é uma dimensão da cidadania. Há, porém, duas coisas que me afastam dos políticos: uma questão de discurso e uma questão de “representação”, no sentido teatral do termo.
Quanto ao primeiro, afasto-me dele, por ser um discurso estereotipado e previsível, que nunca ou quase nunca nos surpreende pela novidade; quanto à segunda, repugna-me pelas máscaras que é necessário afivelar para interpretar papéis que frequentemente atingem o nível do grotesco.
Poderia reduzir esses dois óbices a um só: uma questão de forma, sendo que a “forma”, como não se cansaram de dizer os profissionais da comunicação social e alguns analistas, a propósito dos debates nas últimas eleições legislativas, é, em política, conteúdo. Sobretudo nesta era de domínio do “mediático”.

05 outubro 2009

 

Irlanda arrependida

Há um ano a Irlanda votou contra o Tratado de Lisboa por uma maioria significativa.
Agora votou a favor do Tratado de Lisboa por uma maioria ainda mais significativa.
Tornaram-se os irlandeses mais europeístas?
Há um ano os irlandeses pensavam que eram ricos, que eram um caso de sucesso económico a nível mundial, um caso paradigmático de comprovação da superioridade da globalização neoliberal.
Hoje, a Irlanda está pelas ruas da amargura, o desemprego explodiu, as indústrias de ponta também explodiram.
E os irlandeses agora acham que só a Europa lhes pode valer...
E deram o dito por não dito. Pediram perdão e mostraram um arrependimento sincero.
A Europa foi magnânima e acolheu os novos europeístas de braços abertos.
Acabou tudo em bem. Mas este recente e ardente amor dos irlandeses pela Europa parece artificial, não parece?

02 outubro 2009

 

A CIA acusada em Itália

O MP italiano acusou 25 elementos da CIA do rapto de um muçulmano em Milão em 2003, levado para o Egipto, onde foi interrogado e torturado, sob encomenda daquela benemérita instituição.
Claro que os EUA não vão extraditar os seus cidadãos, eles limitaram-se a cumprir uma "tarefa", aliás patriótica, de perseguir os "suspeitos de terrotismo".
Aos poucos se vão conhecendo os contornos da sujeira que foi a "guerra ao terrorismo" de Bush, que recebeu o apoio de tantos "democratas" por essa Europa fora.
(Um deles foi há pouco reeleito presidente da Comissão Europeia.)

 

Boas notícias do "Público"

Boas notícias vêm do "Público": o director vai deixar de o ser.
Para compor o ramalhete, agora dizem que ele já no princípio de Julho pedira para sair...
Pode ser, mas eu duvido. Certo é, em qualquer caso, que a situação dele era insustentável, depois da demissão do Lima em Belém, a "fonte" da notícia de 18 de Agosto. As crónicas contundentes do provedor do "Público" estavam também a deixar mossa.
Não deixa saudades este admirador acérrimo de Bush e da extrema-direita israelita, propagandista metódico e persistente do neoliberalismo. Lembram-se daquela crónica em que ele ridicularizava o artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 que estabelece, entre outros, o direito de "todas as pessoas" a férias pagas (art. 24º)?
Anuncia-se que ele vai continuar "ao serviço" do jornal. Em qualquer caso, não parece haver dúvidas que ele sai da direcção pela porta pequena...

01 outubro 2009

 

Justice: What's the right thing to do?

"Justice: What´s the right thing to do?" é uma cadeira leccionada por Michael Sandel em Harvard e que foi colocada online.
Vale a pena assistir e aguardar pelos próximo episódios.

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