30 março 2006
Ainda a paridade
A proposta de lei sobre a paridade entre sexos no acesso aos cargos políticos (electivos) suscitou algumas dúvidas de constitucionalidade sobre as quais eu queria fazer algumas observações rápidas.
Em primeiro lugar, não colhe a arguição de inconstitucionalidade com base no art. 109º da Constituição, porque aí o que se pretende banir é a discriminação negativa entre os sexos, não a positiva. (Esse é aliás o sentido geral das leis anti-discriminatórias.) Que é assim resulta confirmado do próprio texto desse artigo quando impõe a promoção da igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos.
Em segundo lugar, aceito que a lei é necessariamente transitória, sob pena de inconstitucionalidade. Contudo, como marcar, desde já, um prazo? Não é mais natural, dada a incerteza quanto ao tempo necessário para se conseguirem os resultados pretendidos, que a futura revogação da lei dependa de uma reanálise da situação por parte da AR?
Por último, a maior dificuldade constitucional residirá na questão de determinar se estamos ou não perante uma "lei eleitoral", hipótese em que seria necessária a maioria de 2/3 dos deputados. Eu diria que a lei tem óbvios reflexos nas regras eleitorais, mas é materialmente uma lei contra a desigualdade. E portanto poderá ser aprovada por maioria simples.
Em primeiro lugar, não colhe a arguição de inconstitucionalidade com base no art. 109º da Constituição, porque aí o que se pretende banir é a discriminação negativa entre os sexos, não a positiva. (Esse é aliás o sentido geral das leis anti-discriminatórias.) Que é assim resulta confirmado do próprio texto desse artigo quando impõe a promoção da igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos.
Em segundo lugar, aceito que a lei é necessariamente transitória, sob pena de inconstitucionalidade. Contudo, como marcar, desde já, um prazo? Não é mais natural, dada a incerteza quanto ao tempo necessário para se conseguirem os resultados pretendidos, que a futura revogação da lei dependa de uma reanálise da situação por parte da AR?
Por último, a maior dificuldade constitucional residirá na questão de determinar se estamos ou não perante uma "lei eleitoral", hipótese em que seria necessária a maioria de 2/3 dos deputados. Eu diria que a lei tem óbvios reflexos nas regras eleitorais, mas é materialmente uma lei contra a desigualdade. E portanto poderá ser aprovada por maioria simples.
Paridade
Apoio a proposta de paridade que hoje vai a discussão parlamenter. Apoio-a porque penso que a discriminação positiva é a única forma de lutar contra a desigualdade entre os sexos no acesso aos cargos políticos.
Mas considero que deve ser uma medida transitória (o que não significa necessariamente de curta duração). Ou seja, sendo uma medida instrumental, só é justificável enquanto se mantiver presumivelmente a situação de desigualdade que a justifica agora.
Termino lembrando que a coerência impõe a aplicação do princípio da paridade ao Governo, onde aliás a falta de paridade é mesmo chocante (e tanto mais chocante quando comparado com o governo espanhol de Zapatero, que levou à letra a ideia da paridade).
Mas considero que deve ser uma medida transitória (o que não significa necessariamente de curta duração). Ou seja, sendo uma medida instrumental, só é justificável enquanto se mantiver presumivelmente a situação de desigualdade que a justifica agora.
Termino lembrando que a coerência impõe a aplicação do princípio da paridade ao Governo, onde aliás a falta de paridade é mesmo chocante (e tanto mais chocante quando comparado com o governo espanhol de Zapatero, que levou à letra a ideia da paridade).
29 março 2006
A ficção e a realidade
Quem diz que a realidade não tem nada a ver com a ficção, ou que esta é menos verdadeira do que aquela? Ou ainda que há menos carga de fantástico no real do que no ficcionado? A ficção conta uma mentira que é mais verdadeira do que a verdade (Javier Cercas, em entrevista ao «Mil Folhas» de 11/3/06). E quanto ao aspecto fantástico, por vezes a realidade ultrapassa a ficção mais arrojada (ver Gabriel Garcia Marquez, que disse que tudo quanto de fantástico escreveu o bebeu na realidade e que esta sempre foi além da sua invenção). Outras vezes ainda é a ficção que desfigura a realidade para a tornar mais verdadeira.
Kafka criou um mundo monstruoso para nos dar o retrato de uma sociedade burocratizada e desumanizada. Agora, a propósito de tudo e de nada, vem Kafka à baila com uma familiaridade que pareceria antagónica do seu mundo tão estranho. E até as próprias instâncias que costumam ser a fonte da burocracia invocam Kafka em nome da simplificação da teia burocrática dos serviços. Assim é que se inventou um «teste Kafka», nome que, segundo o «Público» de 28 deste mês, foi conferido pelos belgas a um «instrumento técnico de que o legislador dispõe para avaliar (…) os custos para o cidadão e empresas derivados do cumprimento de formalidades administrativas» e que será posto em prática entre nós para testar as medidas de simplificação da Administração Pública que o governo de Sócrates se propõe implementar.
Quem diz que entre a ficção e a realidade não há influências recíprocas? Kafka não imaginaria que a sua obra de ficção, que ele quis destruir, mas que o seu in(fiel) amigo Max Brod resolveu salvar, traindo o desejo do escritor checo, viria um dia a servir para tão louváveis intuitos.
Resta-nos esperar para ver o resultado do teste, aguardando a tão propalada «metamorfose» da Administração Pública portuguesa.
Se o teste passar, Sócrates bem poderá obter, como prémio, a medalha Kafka, a criar pela comissão de medalhas e condecorações honoríficas (fora de brincadeiras).
E por que não criar o prémio Nobel da «deskafkianização»?
Kafka criou um mundo monstruoso para nos dar o retrato de uma sociedade burocratizada e desumanizada. Agora, a propósito de tudo e de nada, vem Kafka à baila com uma familiaridade que pareceria antagónica do seu mundo tão estranho. E até as próprias instâncias que costumam ser a fonte da burocracia invocam Kafka em nome da simplificação da teia burocrática dos serviços. Assim é que se inventou um «teste Kafka», nome que, segundo o «Público» de 28 deste mês, foi conferido pelos belgas a um «instrumento técnico de que o legislador dispõe para avaliar (…) os custos para o cidadão e empresas derivados do cumprimento de formalidades administrativas» e que será posto em prática entre nós para testar as medidas de simplificação da Administração Pública que o governo de Sócrates se propõe implementar.
Quem diz que entre a ficção e a realidade não há influências recíprocas? Kafka não imaginaria que a sua obra de ficção, que ele quis destruir, mas que o seu in(fiel) amigo Max Brod resolveu salvar, traindo o desejo do escritor checo, viria um dia a servir para tão louváveis intuitos.
Resta-nos esperar para ver o resultado do teste, aguardando a tão propalada «metamorfose» da Administração Pública portuguesa.
Se o teste passar, Sócrates bem poderá obter, como prémio, a medalha Kafka, a criar pela comissão de medalhas e condecorações honoríficas (fora de brincadeiras).
E por que não criar o prémio Nobel da «deskafkianização»?
333 medidas ou a política-espectáculo
Estavam anunciadas 400 medidas contra a burocracia, mas só apareceram 333 (o que terá acontecido à restantes 67?). Mesmo assim foi preciso um notável esforço de desdobramentos e multiplicações das mesmas medidas para se alcançar aquele número cabalístico. É a política-espectáculo no seu melhor (aliás, pior).
27 março 2006
Foro especial para políticos
Vale a pena transcrever a crónica de hoje de Manuel António Pina no Jornal de Notícias e aqui o faço com a devida vénia (e presuntivo consentimento):
O país "deles"
O ministro Alberto Costa ficará na História (resta saber em que género de História...) pelo desassombro com que está a pôr em prática, na parte que lhe toca, o sonho inconfessado de todos os políticos: um país para eles e outros para o resto dos cidadãos. Depois da operação "Contra as corporações, marchar, marchar", chegou a vez, com a reforma penal, da operação "Um país, dois sistemas", espécie de orwelliano "Triunfo dos porcos" judiciário: todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais que outros... Já se sabia que um dos privilégios da corporação dos políticos será o de não ser escutada senão com autorização de um tribunal superior, enquanto para mandar escutar um cidadão comum bastará um comum juiz de 1ª instância. (E se um juiz de 1ª instância autorizar uma escuta a um comum cidadão corruptor e este for apanhado a corromper um político? Servirá a escuta para condenar o corruptor mas não o corrupto?). Soube-se agora - se o leitor não acredita consulte o projecto do novo Código Penal - que, se mesmo assim um político corrupto vier, por milagre, a ser condenado, não será preso. O pior que lhe poderá acontecer é ser... demitido. Fátima Felgueiras tinha, como se vê, boas razões para voltar do Brasil...
Para poupar tempo e trabalho ao leitor, transcrevo de seguida os preceitos em causa do projecto de revisão do CP:
Artigo 43º
3. A pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos a crime praticado por titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, é substituída por proibição do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
4. O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável à profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.
Não são precisos mais comentários. Mas recomenda-se ainda a leitura do excelente artigo de Paulo Rangel, deputado do PSD, intitulado "Contra o privilégio do foro", saído no Público de 15 deste mês.
O país "deles"
O ministro Alberto Costa ficará na História (resta saber em que género de História...) pelo desassombro com que está a pôr em prática, na parte que lhe toca, o sonho inconfessado de todos os políticos: um país para eles e outros para o resto dos cidadãos. Depois da operação "Contra as corporações, marchar, marchar", chegou a vez, com a reforma penal, da operação "Um país, dois sistemas", espécie de orwelliano "Triunfo dos porcos" judiciário: todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais que outros... Já se sabia que um dos privilégios da corporação dos políticos será o de não ser escutada senão com autorização de um tribunal superior, enquanto para mandar escutar um cidadão comum bastará um comum juiz de 1ª instância. (E se um juiz de 1ª instância autorizar uma escuta a um comum cidadão corruptor e este for apanhado a corromper um político? Servirá a escuta para condenar o corruptor mas não o corrupto?). Soube-se agora - se o leitor não acredita consulte o projecto do novo Código Penal - que, se mesmo assim um político corrupto vier, por milagre, a ser condenado, não será preso. O pior que lhe poderá acontecer é ser... demitido. Fátima Felgueiras tinha, como se vê, boas razões para voltar do Brasil...
Para poupar tempo e trabalho ao leitor, transcrevo de seguida os preceitos em causa do projecto de revisão do CP:
Artigo 43º
3. A pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos a crime praticado por titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, é substituída por proibição do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
4. O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável à profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.
Não são precisos mais comentários. Mas recomenda-se ainda a leitura do excelente artigo de Paulo Rangel, deputado do PSD, intitulado "Contra o privilégio do foro", saído no Público de 15 deste mês.
Separação de poderes
A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da AR hesitou, hesitou, mas acabou por aceitar o pedido dos jornalistas do 24 Horas para serem ouvidos nessa comissão sobre a sua versão relativamente à busca judicial realizada na redacção daquele jornal. A única dúvida da comissão é se a audição é à porta aberta ou à porta fechada. Apenas um problema de portas, mas que será ultrapassado, mais porta, menos porta.
Trata-se portanto de um inquérito informal sobre um inquérito criminal a decorrer. Não me lembro de uma intromissão assim, em trinta anos de regime constitucional, do poder legislativo no poder judicial. Parece que aquela comissão tem uma concepção expansiva dos poderes parlamentares, ignorando frontalmente o princípio da separação de poderes, que é um pilar do Estado de direito e vem enunciado no art. 2º da nossa Constituição. Numa Comissão de Assuntos Constitucionais é elementar o conhecimento da Constituição.
Trata-se portanto de um inquérito informal sobre um inquérito criminal a decorrer. Não me lembro de uma intromissão assim, em trinta anos de regime constitucional, do poder legislativo no poder judicial. Parece que aquela comissão tem uma concepção expansiva dos poderes parlamentares, ignorando frontalmente o princípio da separação de poderes, que é um pilar do Estado de direito e vem enunciado no art. 2º da nossa Constituição. Numa Comissão de Assuntos Constitucionais é elementar o conhecimento da Constituição.
A verdade da maioria
Comprovou-se, mais uma vez, que nos inquéritos parlamentares nunca há uma só verdade. Há a da maioria e a da oposição (uma ou várias, conforme o caso). Melhor: a determinação da verdade não depende de juízos lógico-racionais, de raciocínios argumentados e fundamentados, mas sim das maiorias parlamentares do momento. A maioria decreta a verdade, por ser a maioria, não por ter melhores argumentos.
No caso Eurominas, a maioria foi aliás muito clara e frontal desde o início e ao longo de todo o inquérito quanto às suas intenções, ao recusar sistematicamente o aprofundamento da investigação, negando a realização de audições sugeridas por membros da comissão, dificultando ou recusando a requisição de documentos e finalmente reservando para apenas um dos seus o papel de relator.
Fala-se de uma próxima revisão das regras de funcionamento das comissões parlamentares de inquérito. É realmente essencial, a bem do prestígio da AR. Mas será que essas regras vão mudar no fundamental, quando temos uma maioria parlamentar absoluta de um só partido?
De tudo isto fica-nos uma ideia aproximada do que é uma investigação "politicamente orientada". E do que seria a investigação nos casos "sensíveis" se o MP estivesse submetido à orientação funcional do executivo.
No caso Eurominas, a maioria foi aliás muito clara e frontal desde o início e ao longo de todo o inquérito quanto às suas intenções, ao recusar sistematicamente o aprofundamento da investigação, negando a realização de audições sugeridas por membros da comissão, dificultando ou recusando a requisição de documentos e finalmente reservando para apenas um dos seus o papel de relator.
Fala-se de uma próxima revisão das regras de funcionamento das comissões parlamentares de inquérito. É realmente essencial, a bem do prestígio da AR. Mas será que essas regras vão mudar no fundamental, quando temos uma maioria parlamentar absoluta de um só partido?
De tudo isto fica-nos uma ideia aproximada do que é uma investigação "politicamente orientada". E do que seria a investigação nos casos "sensíveis" se o MP estivesse submetido à orientação funcional do executivo.
Socratite aguda
É uma doença de intelectuais. Ataca o órgão da vista e a faculdade do discernimento. Os olhos passam a ver tudo cor-de-rosa e o entendimento é afectado por um atrofiamento do sentido crítico e um empolamento do fascínio pela autoridade.
Mas não é muito grave, pois é recuperável e até sem tratamento.
É só deixar passar o tempo...
Mas não é muito grave, pois é recuperável e até sem tratamento.
É só deixar passar o tempo...
20 março 2006
Um outro feminismo
No sábado passado, saiu um artigo no jornal «El País» assinado por um grupo de mulheres, onde se incluem três magistradas, que intenta uma outra visão sobre problemas que concernem especificamente às mulheres e que têm vindo a ser alvo de produção legislativa em vários campos. As autoras, se bem que se congratulem com a preocupação do Governo de Zapatero pelos referidos problemas, por um lado exprimem o seu receio por uma excessiva tutela legislativa sobre a vida das mulheres e, por outro, demarcam-se de uma visão que tende a ver os homens e as mulheres como duas realidades «blindadas y opuestas», que faz das mulheres puras vítimas e dos homens, simples dominadores.
Entre os problemas que lhes merecem mais atenção estão o da violência de género, os problemas relacionados com o divórcio (pagamento de pensões, mediação familiar, custódia dos filhos) e a prostituição.
Relativamente à violência de género, discordam completamente da teoria do «impulso masculino de domínio» como único factor desencadeante da violência contra as mulheres, e mencionam outras condicionantes como a estrutura familiar e o seu papel no amortecimento ou criação de tensões , a educação religiosa, a escassa capacidade dos cônjuges para a resolução de conflitos, as dependências de vária ordem, como o alcoolismo e a toxicodependência. Por outro lado, opõem-se a um excessivo peso concedido ao que denominam de «filosofia do castigo», que sobretudo criminaliza condutas e busca em penas graves o remédio para todos os males da violência de género, quando, se é verdade que as situações de maus tratos devem ser punidas, a experiência demonstra que não é nas penas duras que está a solução.
Passando por cima dos problemas relacionados com o divórcio e saltando para o da prostituição, as autoras criticam vivamente as posições do «Instituto de la Mujer», que acusam de seguir a linha do feminismo puritano de reforma moral dos fins do século XIX e servindo de paliativo para perpetuar as péssimas condições em que as prostitutas exercem o seu trabalho.
Enfim, para estas mulheres, o feminismo não deve ser revanchista nem vingativo, mas visar sobretudo relações igualitárias, de respeito mútuo e saudáveis, relações de qualidade entre mulheres e homens.
Entre os problemas que lhes merecem mais atenção estão o da violência de género, os problemas relacionados com o divórcio (pagamento de pensões, mediação familiar, custódia dos filhos) e a prostituição.
Relativamente à violência de género, discordam completamente da teoria do «impulso masculino de domínio» como único factor desencadeante da violência contra as mulheres, e mencionam outras condicionantes como a estrutura familiar e o seu papel no amortecimento ou criação de tensões , a educação religiosa, a escassa capacidade dos cônjuges para a resolução de conflitos, as dependências de vária ordem, como o alcoolismo e a toxicodependência. Por outro lado, opõem-se a um excessivo peso concedido ao que denominam de «filosofia do castigo», que sobretudo criminaliza condutas e busca em penas graves o remédio para todos os males da violência de género, quando, se é verdade que as situações de maus tratos devem ser punidas, a experiência demonstra que não é nas penas duras que está a solução.
Passando por cima dos problemas relacionados com o divórcio e saltando para o da prostituição, as autoras criticam vivamente as posições do «Instituto de la Mujer», que acusam de seguir a linha do feminismo puritano de reforma moral dos fins do século XIX e servindo de paliativo para perpetuar as péssimas condições em que as prostitutas exercem o seu trabalho.
Enfim, para estas mulheres, o feminismo não deve ser revanchista nem vingativo, mas visar sobretudo relações igualitárias, de respeito mútuo e saudáveis, relações de qualidade entre mulheres e homens.
19 março 2006
Carta a um político de mui nobre estirpe
com a mais viva concordância relativamente a uma proposta de foro especial para os dignos representantes do Poder do nosso pequeno e nobre Reino
Senhor:
Pediu-me V.ª S.ª um conselho sobre a forma mais prática e, por assim dizer, maximamente discreta, de fazer julgar os dignos representantes dos órgãos do Poder do nosso pequeno Reino, quando, prevaricando em funções ou fora delas, tenham o azar de ser descobertos e, como consequência, venham a ser alvo de processo crime, que, como se sabe, nos tempos que correm, vem logo a ser trombeteado nos meios de comunicação social, principalmente aqueles que não são afectos ao governo, porque sempre os há, não obstante as medidas que se possam sabiamente tomar, desde a oferta de certos lugares de relevo a jornalistas de todas as tendências até à introdução de melhorias profissionais que se possam estender a toda a classe jornalística, em ordem a reduzir o sensacionalismo da imprensa à volta desses casos.
É deveras compreensível a preocupação com tais casos, dada a frequência com que certas personalidades vêm a ser envolvidas em situações que não só as desacreditam a elas próprias, como principalmente as instituições que representam e, por repercussão, enlameiam o bom nome do nosso Reino, se bem que os outros Reinos nossos vizinhos, de hábitos democráticos mais sólidos e com outra reputação no seio das Nações, nos tenham fornecido nos últimos tempos abundantes exemplos de escândalos que embaciam o brilho das respectivas classes políticas e empanam a aura desses Reinos. Por via disso é que a classe política tem descido na cotação dos Povos, ao mesmo tempo que as instituições representativas do Poder têm caído em descrédito. Ora, convenhamos que é preciso prestigiar aquela e credibilizar estas. V.ª S.ª manifesta o receio de o Poder vir a cair na rua e de ser alvo de chacota e de vilipêndio por parte de multidões ignaras, como já tem acontecido, e eu gabo-lhe as nobres preocupações que o animam, porque o que está no centro delas é o acendrado amor ao nosso Reino e o enaltecimento dos valores em que se fundou a carta das liberdades que tem regido o destino da grei.
Pois bem! A proposta que V.ª S.ª teve a bondade de submeter ao critério deste pobre homem parece-me estar imbuída de uma refinada sabedoria e de um altíssimo sentido das responsabilidades. Digo-o com a sinceridade de amigo desinteressado que não busca honrarias nem recompensas, extraindo deleite do simples facto de ser um seu humilde criado. Propõe V.ª S.ª que o julgamento dos políticos, ou seja dos que exercem funções aos vários níveis do Poder, quando não possa ser evitado através de oportunos critérios de oportunidade, seja efectuado nas instâncias superiores. Pois nada mais genial do que essa solução.
Com efeito, se é verdade que os políticos cometem deslizes (permita-se-me o eufemismo) e, às vezes, crassos deslizes, também é verdade que servem a «res publica», e essa circunstância deve sobrelevar todas as demais. Como tal, para causas elevadas, tribunais elevados. Este é um princípio que se poderia dizer inscrito na natureza das cousas e das causas. Os tribunais superiores, pelo seu próprio posicionamento espacial, estão situados nas alturas, lá onde não acede o vulgo, ao contrário do que sucede com os tribunais de cá de baixo. Estes estão perto da rua, da confusão, do atropelo, dos gestos ameaçadores, do vozeario da populaça, das carrinhas que transportam os presos, da «tralha» da comunicação social. Lá em cima é outra cousa. Tudo se passa a um nível mais discreto, sem grandes alardes, sem praticamente intromissões de curiosos. A retumbância de certos casos, que muito justamente pode indignar a população, mas ao mesmo tempo pôr em sério risco as instituições, perde grande parte do seu efeito com a deslocação dos julgamentos para os patamares superiores da administração da justiça. Essa é, pois, a solução ideal que concilia o prestígio das instituições com a discrição que deve envolver os julgamentos dos súbditos que escolheram servir o bem público, mas que, por vezes, como qualquer mortal, caem no lodaçal do crime (releve-me, Senhor, esta metáfora tão cansada - «o lodaçal do crime» - mas de momento não vejo outra forma de exprimir a sujidade que o crime representa).
Inquieta-se V.ª S.ª com a questão da igualdade de todos os súbditos, que pode ser ferida com a solução proposta e tendo em vista que o seu partido é contra os privilégios. Não tenha V.ª S.ª tal escrúpulo. A igualdade não é toda igual, perdoe-se-me o paradoxo. Como os privilégios o não são. É que a sociedade não é horizontal; organiza-se por escalões, por estratos, por classes. Ora, o princípio da igualdade só é ferido quando uma solução ultrapassa a medida do razoável dentro de cada escalão ou classe. Não vamos agora pretender um nivelamento generalizado ou uma igualdade igual para todos os súbditos. Essa utopia, que hão-de designar de «igualitária», só surgirá daqui a muitos anos, quando, no seguimento de grandes convulsões sociais e mesmo de revoluções (não me pergunte como tenho este pressentimento) se começar a falar de «socialismo». Mas isso será daqui a muitos anos, quando eu e V.ª S.ª já cá não estivermos para ver.
Guarde-se, pois, V.ª S.ª de cuidados vãos e passe muito bem.
Seu humilde servidor
Jonatham Swift (1665 – 1745)
Senhor:
Pediu-me V.ª S.ª um conselho sobre a forma mais prática e, por assim dizer, maximamente discreta, de fazer julgar os dignos representantes dos órgãos do Poder do nosso pequeno Reino, quando, prevaricando em funções ou fora delas, tenham o azar de ser descobertos e, como consequência, venham a ser alvo de processo crime, que, como se sabe, nos tempos que correm, vem logo a ser trombeteado nos meios de comunicação social, principalmente aqueles que não são afectos ao governo, porque sempre os há, não obstante as medidas que se possam sabiamente tomar, desde a oferta de certos lugares de relevo a jornalistas de todas as tendências até à introdução de melhorias profissionais que se possam estender a toda a classe jornalística, em ordem a reduzir o sensacionalismo da imprensa à volta desses casos.
É deveras compreensível a preocupação com tais casos, dada a frequência com que certas personalidades vêm a ser envolvidas em situações que não só as desacreditam a elas próprias, como principalmente as instituições que representam e, por repercussão, enlameiam o bom nome do nosso Reino, se bem que os outros Reinos nossos vizinhos, de hábitos democráticos mais sólidos e com outra reputação no seio das Nações, nos tenham fornecido nos últimos tempos abundantes exemplos de escândalos que embaciam o brilho das respectivas classes políticas e empanam a aura desses Reinos. Por via disso é que a classe política tem descido na cotação dos Povos, ao mesmo tempo que as instituições representativas do Poder têm caído em descrédito. Ora, convenhamos que é preciso prestigiar aquela e credibilizar estas. V.ª S.ª manifesta o receio de o Poder vir a cair na rua e de ser alvo de chacota e de vilipêndio por parte de multidões ignaras, como já tem acontecido, e eu gabo-lhe as nobres preocupações que o animam, porque o que está no centro delas é o acendrado amor ao nosso Reino e o enaltecimento dos valores em que se fundou a carta das liberdades que tem regido o destino da grei.
Pois bem! A proposta que V.ª S.ª teve a bondade de submeter ao critério deste pobre homem parece-me estar imbuída de uma refinada sabedoria e de um altíssimo sentido das responsabilidades. Digo-o com a sinceridade de amigo desinteressado que não busca honrarias nem recompensas, extraindo deleite do simples facto de ser um seu humilde criado. Propõe V.ª S.ª que o julgamento dos políticos, ou seja dos que exercem funções aos vários níveis do Poder, quando não possa ser evitado através de oportunos critérios de oportunidade, seja efectuado nas instâncias superiores. Pois nada mais genial do que essa solução.
Com efeito, se é verdade que os políticos cometem deslizes (permita-se-me o eufemismo) e, às vezes, crassos deslizes, também é verdade que servem a «res publica», e essa circunstância deve sobrelevar todas as demais. Como tal, para causas elevadas, tribunais elevados. Este é um princípio que se poderia dizer inscrito na natureza das cousas e das causas. Os tribunais superiores, pelo seu próprio posicionamento espacial, estão situados nas alturas, lá onde não acede o vulgo, ao contrário do que sucede com os tribunais de cá de baixo. Estes estão perto da rua, da confusão, do atropelo, dos gestos ameaçadores, do vozeario da populaça, das carrinhas que transportam os presos, da «tralha» da comunicação social. Lá em cima é outra cousa. Tudo se passa a um nível mais discreto, sem grandes alardes, sem praticamente intromissões de curiosos. A retumbância de certos casos, que muito justamente pode indignar a população, mas ao mesmo tempo pôr em sério risco as instituições, perde grande parte do seu efeito com a deslocação dos julgamentos para os patamares superiores da administração da justiça. Essa é, pois, a solução ideal que concilia o prestígio das instituições com a discrição que deve envolver os julgamentos dos súbditos que escolheram servir o bem público, mas que, por vezes, como qualquer mortal, caem no lodaçal do crime (releve-me, Senhor, esta metáfora tão cansada - «o lodaçal do crime» - mas de momento não vejo outra forma de exprimir a sujidade que o crime representa).
Inquieta-se V.ª S.ª com a questão da igualdade de todos os súbditos, que pode ser ferida com a solução proposta e tendo em vista que o seu partido é contra os privilégios. Não tenha V.ª S.ª tal escrúpulo. A igualdade não é toda igual, perdoe-se-me o paradoxo. Como os privilégios o não são. É que a sociedade não é horizontal; organiza-se por escalões, por estratos, por classes. Ora, o princípio da igualdade só é ferido quando uma solução ultrapassa a medida do razoável dentro de cada escalão ou classe. Não vamos agora pretender um nivelamento generalizado ou uma igualdade igual para todos os súbditos. Essa utopia, que hão-de designar de «igualitária», só surgirá daqui a muitos anos, quando, no seguimento de grandes convulsões sociais e mesmo de revoluções (não me pergunte como tenho este pressentimento) se começar a falar de «socialismo». Mas isso será daqui a muitos anos, quando eu e V.ª S.ª já cá não estivermos para ver.
Guarde-se, pois, V.ª S.ª de cuidados vãos e passe muito bem.
Seu humilde servidor
Jonatham Swift (1665 – 1745)
16 março 2006
Nulidades processuais e interesse nacional
O julgamento de Zacarias Moussaoui, o franco-marroquino acusado de ligações à Al-Qaida, foi suspenso por se ter descoberto que a acusação tinha "preparado" o depoimento de algumas testemunhas. Seguiu-se uma consternação geral: por causa de uma nulidade processual não pode cair por terra um julgamento considerado essencial para satisfazer os sentimentos das famílias das vítimas do 11 de Setembro (apesar de Moussaiou não ter participado nos atentados!) e o interesse nacional na luta contrra o terrorismo. A opinião pública pressiona, a acusação também, aflita que está pelo "erro" cometido, a juíza está aterrada e tenta a todo o custo "salvar" o processo. Mas não sendo seguramente essa a função dos juízes (salvarem os processos à custa das garantias e direitos dos arguidos), fica-se na dúvida se este não é precisamente um caso em que existem pressões ilegítimas sobre o poder judicial. Ou será que esta juíza entende a função de julgar como parte integrante da estratégia contra o terrorismo? Significativo é que, tendo sido considerado uma vitória do arguido (e do direito) o seu julgamento perante um tribunal comum (e não diante duma daquelas comissões militares que Bush nomeou), parece que afinal as garantias de um julgamento imparcial e justo são mais virtuais que reais.
"Risco de ditadura nos EUA"
Quem o disse não foi um qualquer antiamericano ao serviço de potências desconhecidas (já não pode ser de Moscovo), mas sim a discreta ex-juíza do Supremo Tribunal dos EUA Sandra Day O'Connor. As suas declarações vieram numa também muito discreta notícia do Público do dia 14. Nos EUA a divulgação que tiveram foi quase nula. Chama-se a isso "liberdade de imprensa". Queixou-se ela, numa intervenção na Universidade de Georgetown, em Washington, das pressões que o poder judicial está a sofrer naquele país. Um romancista inglês, que teve acesso ao teor dessa intervenção, disse que era "dinamite política" e "de arrepiar a espinha". Mas era inglês.
A homossexualidade é uma ameaça na Polónia
O Presidente polaco é impagável. De visita à Alemanha, não perdeu a oportunidade de afirmar o seu eurocepticismo, o que é corrente nos políticos do "Leste", mas não deixa de ser curioso: primeiro querem entrar na União Europeia; quando se apanham lá dentro passam a eurocépticos (mas não querem sair!).
Mas o melhor veio a seguir. Perguntado sobre as queixas dos homossexuais polacos sobre alegadas discriminações, o mesmo Presidente disse "não ver motivo para encorajar a homossexualidade" (mas quem lhe pedia tanto?). E explicou: "assim a humanidade está ameaçada de morte lenta".
A Polónia está bem entregue.
Mas o melhor veio a seguir. Perguntado sobre as queixas dos homossexuais polacos sobre alegadas discriminações, o mesmo Presidente disse "não ver motivo para encorajar a homossexualidade" (mas quem lhe pedia tanto?). E explicou: "assim a humanidade está ameaçada de morte lenta".
A Polónia está bem entregue.
Abertura aos imigrantes ilegais
Mas nem tudo é mau. Segundo parece, o Governo prepara uma alteração à lei de imigração que facilita o acesso de imigrantes ao território nacional, eliminando a exigência de existência prévia de um contrato de trabalho em Portugal, exigência que constituía um evidente obstáculo à imigração legal. Este projecto, conjugado com as recentes alterações à Lei da Nacionalidade, denunciam um rumo certo e coerente na política governamental nesta área. As migrações são movimentos que não se travam por decreto, pois correspondem a necessidades profundas. O que importa (o que é inteligente) é controlar esses movimentos, racionalizá-los, reprimir a exploração e o abuso dos imigrantes, encaminhá-los para o mercado de trabalho e integrá-los na sociedade, nos vários sistemas que a compõem (saúde, segurança social, fisco), o que reduz obviamente os riscos ligados à exclusão social que sempre espreita os "ilegais". Assim, todos têm a ganhar. Parece que finalmente se compreendeu isto, que é tão simples.
Corporações a abater
A luta contra as corporações vai continuar. Quem o promete é o Governo. E tem o apoio de ilustres intelectuais, que se posicionam até na vanguarda dessa luta.
À lista das corporações a pôr na ordem junta-se mais outra: a das grávidas. Queriam elas ter os filhos ao pé da porta, mas desiludam-se! Para já seis maternidades vão fechar. Mas o Estado é tão generoso que até as deixa escolher qualquer maternidade sobrevivente em qualquer ponto do país para ter a criança. E mais: até podem ir a Badajoz!!! Quem é amigo, quem?
À lista das corporações a pôr na ordem junta-se mais outra: a das grávidas. Queriam elas ter os filhos ao pé da porta, mas desiludam-se! Para já seis maternidades vão fechar. Mas o Estado é tão generoso que até as deixa escolher qualquer maternidade sobrevivente em qualquer ponto do país para ter a criança. E mais: até podem ir a Badajoz!!! Quem é amigo, quem?
Roda-livre
No princípio, era o Ministério Público. O Ministério Público é que tem o poder de iniciativa e, portanto, tudo estava em condicionar esse poder, criar um mecanismo de responsabilização que mitigasse (ou mesmo suprimisse de vez, segundo os desejos explícitos ou implícitos de alguns) a autonomia do Ministério Público. Este não podia andar em «roda-livre», e ele tem andado em «roda-livre». Uma ideia que foi sendo sistematicamente martelada até se tornar praticamente evidente. O Ministério Público tinha que ser responsabilizado, e essa responsabilização só lhe podia advir da sua subordinação ao poder político democrático, ou seja, para a maior parte dos pregadores da teoria da «roda-livre», ao Poder Executivo. Lá os juízes serem independentes, isso sim. Os juízes sempre foram independentes. Nem outra coisa se podia conceber. Aliás, não tendo poder de iniciativa, mas um poder condicionado à resolução de questões suscitadas e conformadas, inicial e sucessivamente, nas várias fases do processo, por quem tem legalmente aquele poder de iniciativa, a independência dos juízes não mete tanto medo como isso.
O certo é que o tempo foi decorrendo, saiu o governo meteórico de Santana Lopes, que, no domínio da justiça não foi tão mau como isso, entrou o governo maioritário de Sócrates, e este quis tomar para si a audácia de uma «profunda» reforma na justiça, apropriando-se, como se fossem suas, de algumas ideias que vinham de trás, e tentando inovar aqui e ali, o mais das vezes de forma atrabiliária, ao jeito populista, seguindo os tais consensos generalizados de ordinário veiculados pela comunicação social, nalguns casos parecendo mesmo querer enveredar por soluções que tinham uma motivação muito própria. Dentro dessa estratégia (nome pomposo!), o Ministério Público vai ser responsabilizado pela execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, não interessando agora em que termos. Ou seja, vai dar-se início ao princípio do fim da «roda-livre» em que tem girado o Ministério Público. Isto com geral aplauso e particular ênfase de alguns opinadores como Sousa Tavares, que é um «desencantado» da autonomia do Ministério Público, a qual começou por defender, segundo não se cansa se dizer, de alma e coração, defendendo agora exactamente o contrário dessa autonomia, por causa dos desastres a que terá conduzido.
Pois bem! Parecendo estar em vias de solução (um começo de solução) o problema da roda-livre do Ministério Público (e aqui não ponho em causa, em tese, a bondade da definição de uma política criminal por quem de direito, que não o Ministério Público), a linguagem dos críticos do deplorável sistema de justiça, para cuja demolição se têm empregado todos os esforços (bem intencionados ou mal intencionados, não interessa; o que interessa é que se têm empregado todos os esforços), entrou ela mesma em derrapagem (talvez em roda-livre) e já se começou a falar (não sei se têm topado) na roda-livre em que tem andado a justiça. Já não é, portanto, o Ministério Público, essa entidade que tem poder de iniciativa, mas a justiça no seu todo – o poder judicial – que anda em roda-livre. É bem certo que devagar se vai ao longe e que, talvez para pôr um travão nessa carreira desabrida da justiça, já se adiantam sem rebuço soluções como a de controlar actos jurisdicionais através de comissões ditas independentes. Comissões independentes para fiscalizarem actos de órgãos de soberania independentes! Num país que, de original, não tem nada, salvo, como diz o filósofo José Gil, o nevoeiro, não só a Norte do Cabo da Roca, mas como elemento climático generalizado, é caso para dizer que anda tudo em roda-livre, atropelando-se debaixo desse tal nevoeiro, sob o império sólido da asneira.
O certo é que o tempo foi decorrendo, saiu o governo meteórico de Santana Lopes, que, no domínio da justiça não foi tão mau como isso, entrou o governo maioritário de Sócrates, e este quis tomar para si a audácia de uma «profunda» reforma na justiça, apropriando-se, como se fossem suas, de algumas ideias que vinham de trás, e tentando inovar aqui e ali, o mais das vezes de forma atrabiliária, ao jeito populista, seguindo os tais consensos generalizados de ordinário veiculados pela comunicação social, nalguns casos parecendo mesmo querer enveredar por soluções que tinham uma motivação muito própria. Dentro dessa estratégia (nome pomposo!), o Ministério Público vai ser responsabilizado pela execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, não interessando agora em que termos. Ou seja, vai dar-se início ao princípio do fim da «roda-livre» em que tem girado o Ministério Público. Isto com geral aplauso e particular ênfase de alguns opinadores como Sousa Tavares, que é um «desencantado» da autonomia do Ministério Público, a qual começou por defender, segundo não se cansa se dizer, de alma e coração, defendendo agora exactamente o contrário dessa autonomia, por causa dos desastres a que terá conduzido.
Pois bem! Parecendo estar em vias de solução (um começo de solução) o problema da roda-livre do Ministério Público (e aqui não ponho em causa, em tese, a bondade da definição de uma política criminal por quem de direito, que não o Ministério Público), a linguagem dos críticos do deplorável sistema de justiça, para cuja demolição se têm empregado todos os esforços (bem intencionados ou mal intencionados, não interessa; o que interessa é que se têm empregado todos os esforços), entrou ela mesma em derrapagem (talvez em roda-livre) e já se começou a falar (não sei se têm topado) na roda-livre em que tem andado a justiça. Já não é, portanto, o Ministério Público, essa entidade que tem poder de iniciativa, mas a justiça no seu todo – o poder judicial – que anda em roda-livre. É bem certo que devagar se vai ao longe e que, talvez para pôr um travão nessa carreira desabrida da justiça, já se adiantam sem rebuço soluções como a de controlar actos jurisdicionais através de comissões ditas independentes. Comissões independentes para fiscalizarem actos de órgãos de soberania independentes! Num país que, de original, não tem nada, salvo, como diz o filósofo José Gil, o nevoeiro, não só a Norte do Cabo da Roca, mas como elemento climático generalizado, é caso para dizer que anda tudo em roda-livre, atropelando-se debaixo desse tal nevoeiro, sob o império sólido da asneira.
14 março 2006
Reformas ao almoço – Substitui-se a prisão até 3 anos de alguns eleitos? De quem será? Não, devo ter lido mal...
Ontem de manhã fui contactado por uma jornalista da Antena 1 que simpaticamente me convidou para «botar» opinião sobre o anteprojecto de reforma do Código Penal. Foi manifestamente uma das negativas mais fáceis de dar, «que não pois não conheço o objecto do opinar», apercebi-me que haveria outros que não seriam acanhados a tal ponto, mas lá se passou e fui à minha vida.
À hora de almoço mordido por alguma curiosidade visitei o sítio do Ministério da Justiça, onde tropecei numas irresistíveis (para mim naturalmente) mães de Bragança, e a procura da reforma ficou para outras núpcias.
Ainda pensei em lá voltar à noite, mas o que entretanto fui ouvindo sobre a reforma, «que sim senhor», «pois com certeza», fez-me recear que mesmo uma primeira leitura teria de ser mais esmiuçada e tecnicista, nomeadamente, no confronto das propostas com os instrumentos internacionais a que Portugal está vinculado que seriam os determinantes de muitas das alterações.
Mas como o criminoso tende a voltar ao lugar do crime, lá retornei hoje ao mesmo sítio, mas sem me deixar desconcentrar por causa das bragantinas senhoras cliquei na Revisão do Código Penal.
Constato que, afinal, o comentado anteprojecto ainda não está acessível, mas apenas o que será a sua exposição de motivos, leio na diagonal o princípio que vai coincidindo, em grande parte, com o que ouvi na véspera e chego a um dos pontos que seria fruto de inovações autónomas de compromissos internacionais:
«previsão de novas penas substitutivas da prisão e reforço das já existentes. Assim, contempla-se a pena de obrigação de permanência no domicílio, com vigilância electrónica, para substituir penas de prisão até um ano e em casos excepcionais até dois anos (gravidez e crianças ou familiares a cargo). Por outro lado, prevê-se a pena de proibição de função, actividade ou profissão para substituir pena de prisão limite máximo até três anos. Também a pena de trabalho a favor da comunidade que hoje só pode substituir penas de prisão até um ano, poderá vir a substituir penas de prisão até dois anos.»
No meio de duas soluções «pouco ousadas» de que ontem ouvi referências eis que surge um verdadeiro «golpe de asa», sobre o qual nada tinha ouvido, uma nova pena de substituição (não acessória!) de prisão concreta até 3 anos para quem exerça determinada «função, actividade ou profissão».
Hmmm.... de que «funções, actividades ou profissões» se tratará? É capaz de ser importante esclarecer aqueles que ainda podem enveredar por certas carreiras...
De certo que percebi mal, é melhor aguardar pela disponibilização do anteprojecto, mais vale parar a leitura por aqui, aproveitando para almoçar ao sol!
13 março 2006
As mães de Bragança, o IRS, o MJ e o MP
Quem for hoje ao sítio do Ministério da Justiça pode deparar com uma notícia intitulada «Esclarecimento – Mães de Bragança». Curioso sobre a razão de ministeriais comunicados relativos ou dirigidos a «mães de Bragança», lá fiz o necessário clique e constato que afinal a notícia é sobre «as notícias relativas à fuga de um arguido com pulseira electrónica, no âmbito do caso conhecido como Mães de Bragança».
Mas a expectativa de algo de estranho afinal não é desmentida, pois no «comunicado de imprensa» afirma-se que:
«1. O Ministério da Justiça recebeu do Instituto de Reinserção Social (IRS) o relatório com todas as informações sobre este caso de onde resulta não ter existido qualquer falha nos procedimentos e na qualidade no sistema de vigilância electrónica pelo qual é responsável.
2. No mesmo relatório apuraram-se indícios da eventual falha de procedimentos por parte do Ministério Público, fundamentais para a garantia da aplicação da medida de coacção decidida pelo Tribunal.»
O que se estranha, obviamente, não é a susceptibilidade de ocorrer num processo (aliás em múltiplos) uma «falha de procedimento» do Ministério Público, mas um ministerial comunicado a referir de forma assertiva, sem, sequer, a concretizar.
Total e absoluta ausência de factos e dois juízos de valor: (a) não se verificou «qualquer falha» do IRS, (b) ocorreu «uma falha de procedimentos» do MP.
Acresce que no «Kit» do IRS sobre a vigilância electrónica, destaca-se em vários passos, o protagonismo do IRS, enfatizando-se que «A entidade competente para executar a VE é o IRS que, para tal, recorreu à contratação aos serviços de uma empresa privada para instalar, assegurar e manter o funcionamento dos meios telemáticos. O IRS elabora e transmite de imediato ao juiz informação sempre que ocorram circunstâncias susceptíveis de justificar uma intervenção judicial». Brochura de 11 páginas bem preenchidas de texto em que apenas se detectam duas referências ao MP ambas no mesmo parágrafo: «A decisão compete ao juiz durante o inquérito, na sequência de requerimento do Ministério Público ou do arguido e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público» (pag. 6).
O facto do «kit» do IRS centralizar toda a responsabilidade pela execução da vigilância electrónica nesse mesmo IRS, não me parece que à partida exclua uma eventual responsabilidade do MP (aliás a confrontação do regime da vigilância electrónica e da lei processual permite constatar que o «Kit» do IRS estará longe de... ser exaustivo em questões de procedimentos necessários).
Mas parece verificar-se uma eventual «falha de procedimento» no comunicado de imprensa datado de 11 de Março, não só relativamente a regras que julgava estabelecidas no plano da ética da comunicação de instituições do Estado (e nas referências recíprocas), como em sede genérica de imputações. Esta suposção, se calhar não passa de uma susceptibilidade derivada de deformação profissional: pensar que as imputações devem, não só ser precedidas do cumprimento de regras procedimentais, como compreender factos (para que possam não só ser confirmadas como contraditadas).
Um «case study»
Afinal, o jornal «24 Horas», ao aceder aos registos de chamadas telefónicas de numerosas personalidades públicas, descodificando os respectivos dados informáticos e tornando-os públicos, praticou uma acção patriótica digna de todo o aplauso e provavelmente merecedora de uma medalha, talvez a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Essa parece ser a conclusão a extrair das palavras do Professor Jónatas Machado, que enalteceu essa heroicidade jornalística enquadrando-a na meritória categoria de «jornalismo de investigação» e exortando o jornalismo nacional, tão pobre de exemplos desse género, a seguir esse audacioso exemplo. Esse rasgado elogio do Professor, que escreveu uma tese sobre «Liberdade de Expressão» com cerca de 900 páginas, ficou-me atravessado, e depois de sair do programa «Prós e Contras» vim a pensar nesse curioso tipo de «jornalismo de investigação» inaugurado pelo jornal «24 Horas». «Jornalismo de investigação?» - questionava-me eu com inquietação, enquanto me conduziam da Casa do Artista, onde o programa tivera lugar, para o hotel. Respondia absortamente às observações do simpático motorista sobre o tempo, a paisagem urbana envolvente, as ruas desertas àquela hora nocturna. «Jornalismo de investigação?», ia eu matutando. Bem! uma pessoa está sempre a aprender, não é? Mas a verdade é que isso me baralhava os conceitos, e de que maneira! E dizia para comigo que, nestes tempos que estamos a viver, não há nada que se possa ter por assente. Se alguma coisa há que se possa ter por assente, ela é a confusão. Cá para mim, aquilo que o jornal «24 Horas» tinha feito não passava da exploração sensacionalista de um incidente, muito adequado a proporcionar ao jornal o seu momento de glória e a fazer acrescer o rol de incidentes com que certa imprensa vai, interessadamente, lançando o descrédito sobre um processo em curso. Mas, pelos vistos, se um conceituado académico nos assevera que se trata de uma genuína investigação jornalística, então talvez tenhamos de ver nessa acção um enriquecimento do género. E talvez isso seja digno de um aprofundamento teorético à altura, como verdadeiro «case study».
Reformas penais - o todo e as partes
O governo anda activo na área da «pequena e média criminalidade», é uma lei-quadro da política criminal em que se fala das soluções alternativas à acusação penal e à definição de prioridades nessa matéria (pela Assembleia da República e proposta do Governo) mas nada se diz sobre eventuais alterações do Código de Processo Penal (CPP), é agora uma iniciativa legislativa sobre mediação penal (em que se alteram de forma drástica regras do CPP sem, contudo, introduzir mudanças no texto do CPP), é uma anunciada reforma do CPP cujo conteúdo ainda estará em segredo de justiça (tirando algumas «fugas de informação»).
Não aparecendo de forma clara uma orientação programática, nem o discurso unificador de um desiderato comum pode concluir-se que ou se está a proceder a reformas descoordenadas de um mesmo objecto ou se trata de parcelas de uma mesma reforma que, por razões de estratégia política, se decidiu camuflar através do fraccionamento.
Seja uma ou outra a resposta, parece-me que a leitura compreensiva da reforma terá de ter presente que o todo será necessariamente mais complexo que a simples soma das partes.
Feita essa ressalva, acho que se deve aproveitar o repto do Latas, acompanhado de lapidar introdução e identificação de questões, para se discutir o anteprojecto sobre a mediação penal, já que se trata de uma parcela particularmente reveladora da filosofia, desígnios, métodos e até competências na actual vaga de produção legislativa (para além de uma oportunamente assinalada estratégia procedimental).
E que pontos serão exemplares neste anteprojecto, a título meramente exemplificativo: a sensibilidade à posição da vítima e à disparidade de meios das «partes»; a deflacção do Estado; a (des)preocupação ou leveza na adaptação ao modelo nacional de institutos com elevado potencial como a mediação; e, em particular no plano da produção legislativa, a ausência de estudos empíricos fiáveis de suporte de certas experimentações, a par da desconsideração dos ensinos de outras paragens (provavelmente não poderiam ser adquiridos numa rápida viagem de uma pomposa comitiva), denota-se ainda uma tendência fragmentadora inversa ao modelo da codificação.
Espero conseguir ilustrar esta leitura nos próximos tempos (embora nesta semana tal se venha a revelar particularmente difícil por força de outros afazeres).
Não aparecendo de forma clara uma orientação programática, nem o discurso unificador de um desiderato comum pode concluir-se que ou se está a proceder a reformas descoordenadas de um mesmo objecto ou se trata de parcelas de uma mesma reforma que, por razões de estratégia política, se decidiu camuflar através do fraccionamento.
Seja uma ou outra a resposta, parece-me que a leitura compreensiva da reforma terá de ter presente que o todo será necessariamente mais complexo que a simples soma das partes.
Feita essa ressalva, acho que se deve aproveitar o repto do Latas, acompanhado de lapidar introdução e identificação de questões, para se discutir o anteprojecto sobre a mediação penal, já que se trata de uma parcela particularmente reveladora da filosofia, desígnios, métodos e até competências na actual vaga de produção legislativa (para além de uma oportunamente assinalada estratégia procedimental).
E que pontos serão exemplares neste anteprojecto, a título meramente exemplificativo: a sensibilidade à posição da vítima e à disparidade de meios das «partes»; a deflacção do Estado; a (des)preocupação ou leveza na adaptação ao modelo nacional de institutos com elevado potencial como a mediação; e, em particular no plano da produção legislativa, a ausência de estudos empíricos fiáveis de suporte de certas experimentações, a par da desconsideração dos ensinos de outras paragens (provavelmente não poderiam ser adquiridos numa rápida viagem de uma pomposa comitiva), denota-se ainda uma tendência fragmentadora inversa ao modelo da codificação.
Espero conseguir ilustrar esta leitura nos próximos tempos (embora nesta semana tal se venha a revelar particularmente difícil por força de outros afazeres).
08 março 2006
Descobrimentos...
Lendo o texto do Maia Costa, interrogo-me, embora a despropósito:
Afinal, o que é que os portugueses ousados (da época dos descobrimentos) pretendiam quando, em “cascas de nozes”, se aventuravam por esses mares fora, atingindo o considerado “inexistente” para a época?
O que os movia?
A fé cristã, a aventura, o comércio ou a ânsia de conhecerem “novos mundos”?
PS. O que me interessa agora é fazer uma experiência informática….
Afinal, o que é que os portugueses ousados (da época dos descobrimentos) pretendiam quando, em “cascas de nozes”, se aventuravam por esses mares fora, atingindo o considerado “inexistente” para a época?
O que os movia?
A fé cristã, a aventura, o comércio ou a ânsia de conhecerem “novos mundos”?
PS. O que me interessa agora é fazer uma experiência informática….
Monstruosa indigência de espírito? – uma citação
Ainda a propósito do texto do Maia Costa e do meu comentário, uma citação impertinente:
«[O] adeus neo-conservador à modernidade dirige-se portanto não à desenfreada dinâmica da modernização social mas antes à auto-compreensão cultural da modernidade que parece ter sido já ultrapassada [...]
«[Noutra] perspectiva a modernização social não pode sobreviver ao fim da modernidade cultural, de que derivou, não deverá poder resistir ao anarquismo “vindo dos tempos imemoriais”, cuja bandeira a pós-modernidade arvora».
Jürgen Habermas (1985)
«[O] adeus neo-conservador à modernidade dirige-se portanto não à desenfreada dinâmica da modernização social mas antes à auto-compreensão cultural da modernidade que parece ter sido já ultrapassada [...]
«[Noutra] perspectiva a modernização social não pode sobreviver ao fim da modernidade cultural, de que derivou, não deverá poder resistir ao anarquismo “vindo dos tempos imemoriais”, cuja bandeira a pós-modernidade arvora».
Jürgen Habermas (1985)
Estrangeirados
Antigamente os portugueses ilustrados viajavam pelo estrangeiro na ânsia de ampliarem os seus conhecimentos e experiências e, quando voltavam, traziam ideias novas e projectos regeneradores para Portugal. Foi assim com D. Pedro, o das Sete Partidas, com os humanistas do sec. XVI, com os estrangeirados do sec. XVIII, com os expatriados dos secs. XIX e XX. O país e os seus governantes nomeadamente mostravam-se avessos às novidades, quando não as perseguia, a elas e aos seus promotores.
As coisas estão muito mudadas. Hoje são os póprios governantes que, à falta de ideias e de projectos, vão lá fora em busca de "inspiração". Chegam, fazem umas visitas, ouvem algumas pessoas, tiram umas cábulas e lá vêm todos contentes anunciar ao povo (que ficou cá) que trazem a solução no bolso para os nossos problemas. E quem duvidar, não é patriota.
As coisas estão muito mudadas. Hoje são os póprios governantes que, à falta de ideias e de projectos, vão lá fora em busca de "inspiração". Chegam, fazem umas visitas, ouvem algumas pessoas, tiram umas cábulas e lá vêm todos contentes anunciar ao povo (que ficou cá) que trazem a solução no bolso para os nossos problemas. E quem duvidar, não é patriota.
Jorge Sampaio
No último dia do(s) seu(s) mandato(s), também eu quero aqui fazer o meu balanço da acção presidencial de Jorge Sampaio. E devo já dizer que a ideia global que tenho é negativa. É certo que tivemos um homem culto, tolerante, progressista na presidência durante 10 anos. Mas ele foi demasiadas vezes incoerente e inconsequente com o seu ideário, sempre na ânsia de parecer neutro, imparcial, abrangente, para ser reconhecido como "Presidente de todos os portugueses" (???), para não alienar nenhum sector de opinião, foi demasiado incoerente e inconsequente, hesitante, salomónico (denunciando claramente dificuldade em assumir frontalmente posições de ruptura), para que o seu exercício presidencial possa ser reconhecido como positivo e enriquecedor da silhueta constitucional da figura do PR. A posição errática que assumiu quanto à invasão do Iraque ficou como paradigma desse tipo de actuação.
Aliás, tudo fez Sampaio para reduzir a figura do PR. No início do seu segundo mandato, publicou um extenso artigo no Público, onde expunha desenvolvidamente a sua concepção parlamentarista do regime, esvaziando assim o mais possível os seus poderes. E foi essa a sua prática, evitando quanto possível o uso do direito de veto e de fiscalização preventiva da constitucionalidade, circunscrevendo a sua acção, e aí empolando-a a limites contestáveis, à "pedagogia" da democracia e da tolerância, e à prática da "magistratura de influência". É que não nos podemos esquecer que o PR em Portugal é eleito por sufrágio universal. Não se mobiliza todo um eleitorado (com a despesa que isso dá!) para eleger um presidente-pedagogo, um discreto promotor de consensos, um conselheiro do executivo. Para isso basta um presidente eleito por um colégio eleitoral alargado. É mais barato e faz o mesmo. Em Itália, o PR também faz (e muito) "magistratura de influência" e pedagogia da democracia e não é eleito universalmente.
O PR, na nossa Constituição, detém um implícito (mas efectivo) poder moderador, para além dos "poderes radicais" de demissão do Governo e de dossolução da AR. É essa a única leitura compatível com a legitimidade que retira da sua eleição por sufrágio universal.
A própria realidade se encarregou aliás de demonstrar que é assim: Sampaio viu-se obrigado a pôr de lado as suas teorizações e a dissolver a AR, tal era o descalabro da governação de Santana Lopes, apesar de esse governo ter maioria parlamentar! A interpretação correcta da Constituição impôs-se. E Sampaio sai da presidência conotado com uma visão semi-presidencialista do regime, ele que queria a todo o custo apresentar-se como o oposto!
Para lá de tudo isto, tem, no entanto, de reconhecer-se diversos méritos à acção de Sampaio (e por isso deixo esta parte para o fim!). Ele tem a seu favor o facto de ter colocado na ordem do dia certas matérias em que outros não queriam pegar. Foi o que aconteceu com a droga e a toxicodependência, onde assumiu iniciativas úteis, que tiveram algum alcande prático, e com a justiça, em que avançou com críticas e propostas ao sistema e ao seu funcionamento. O seu discurso na última sessão de abertura do ano judicial é um marco neste âmbito e foi vivamente aplaudida pela plateia heterogénea que o ouvia no STJ.
Duas últimas notas também muito favoráveis: a homenagem a Teixeira-Gomes (ontem à noite ouvi na TV um imbecil dizer que Teixeira-Gomes é um "vencido da vida"; e esse imbecil o que pensa que é, além disso mesmo?); e a visita ao Estabelecimento Prisional de Lisboa. Só o facto da visita aos reclusos seria simbolicamente muito significativa. Mas Sampaio aproveitou para fazeruma crítica e enviar um alerta quanto aos cúmulos de penas. Com muita pertinência, pois este é um dos pontos críticos do direito penal (ou da jurisprudência). Noutro momento direi mais sobre isto. Agora quero salientar que não é um dos méritos menores de Sampaio ter-se lembrado dos reclusos na hora da partida.
Aliás, tudo fez Sampaio para reduzir a figura do PR. No início do seu segundo mandato, publicou um extenso artigo no Público, onde expunha desenvolvidamente a sua concepção parlamentarista do regime, esvaziando assim o mais possível os seus poderes. E foi essa a sua prática, evitando quanto possível o uso do direito de veto e de fiscalização preventiva da constitucionalidade, circunscrevendo a sua acção, e aí empolando-a a limites contestáveis, à "pedagogia" da democracia e da tolerância, e à prática da "magistratura de influência". É que não nos podemos esquecer que o PR em Portugal é eleito por sufrágio universal. Não se mobiliza todo um eleitorado (com a despesa que isso dá!) para eleger um presidente-pedagogo, um discreto promotor de consensos, um conselheiro do executivo. Para isso basta um presidente eleito por um colégio eleitoral alargado. É mais barato e faz o mesmo. Em Itália, o PR também faz (e muito) "magistratura de influência" e pedagogia da democracia e não é eleito universalmente.
O PR, na nossa Constituição, detém um implícito (mas efectivo) poder moderador, para além dos "poderes radicais" de demissão do Governo e de dossolução da AR. É essa a única leitura compatível com a legitimidade que retira da sua eleição por sufrágio universal.
A própria realidade se encarregou aliás de demonstrar que é assim: Sampaio viu-se obrigado a pôr de lado as suas teorizações e a dissolver a AR, tal era o descalabro da governação de Santana Lopes, apesar de esse governo ter maioria parlamentar! A interpretação correcta da Constituição impôs-se. E Sampaio sai da presidência conotado com uma visão semi-presidencialista do regime, ele que queria a todo o custo apresentar-se como o oposto!
Para lá de tudo isto, tem, no entanto, de reconhecer-se diversos méritos à acção de Sampaio (e por isso deixo esta parte para o fim!). Ele tem a seu favor o facto de ter colocado na ordem do dia certas matérias em que outros não queriam pegar. Foi o que aconteceu com a droga e a toxicodependência, onde assumiu iniciativas úteis, que tiveram algum alcande prático, e com a justiça, em que avançou com críticas e propostas ao sistema e ao seu funcionamento. O seu discurso na última sessão de abertura do ano judicial é um marco neste âmbito e foi vivamente aplaudida pela plateia heterogénea que o ouvia no STJ.
Duas últimas notas também muito favoráveis: a homenagem a Teixeira-Gomes (ontem à noite ouvi na TV um imbecil dizer que Teixeira-Gomes é um "vencido da vida"; e esse imbecil o que pensa que é, além disso mesmo?); e a visita ao Estabelecimento Prisional de Lisboa. Só o facto da visita aos reclusos seria simbolicamente muito significativa. Mas Sampaio aproveitou para fazeruma crítica e enviar um alerta quanto aos cúmulos de penas. Com muita pertinência, pois este é um dos pontos críticos do direito penal (ou da jurisprudência). Noutro momento direi mais sobre isto. Agora quero salientar que não é um dos méritos menores de Sampaio ter-se lembrado dos reclusos na hora da partida.
07 março 2006
Varanasi (Benares), Índia
Monstruosa indigência de espírito? – um comentário
Concordo integralmente com o texto do Maia Costa, com excepção da perspectiva generosa de que a abordagem aí criticada seja fruto de uma monstruosa indigência de espírito, antes fosse...
Com efeito, o assassinato de Gisela determinou duas linhas de leituras oportunistas, em que se revelam inconfessáveis semelhanças ao brandir armas contra as alegadas passividades ou benevolências na reacção social:
a) o problema deriva do tratamento dos delinquentes como vítimas e da falta de responsabilização dos jovens marginais;
b) a falta de uma musculada e adequada reacção deriva dos preconceitos contra a vítima transexual, acrescentando os mais fervorosos que o facto dos criminosos estarem a cargo de uma instituição da Igreja Católica só reforça a solidariedade social com os mesmos (a qual, obviamente, tem de ser quebrada).
Os factos raramente incomodam estes opinadores ideologicamente impregnados, nomeadamente a dificuldade em divisar neste caso falta de indignação colectiva (o que aliás seria improvável num país campeão das indignações) relativamente à violência inclassificável que atingiu de forma gratuita uma vítima indefesa e a circunstância de na resposta estadual se ter aplicado a medida cautelar mais grave prevista na lei a 13 dos 14 suspeitos, inclusive ao «jovem adulto» de 16 anos - em última instância poderão sempre invocar a omissão de um linchamento à antiga.
Já a afirmação, mesmo fora da retórica da ressocialização (que bem ou mal consta das leis que regulam as reacções a factos penalmente ilícitos praticados por menores e maiores), de que a resposta do Estado não pode ser assumida em nome da estrita justiça à vítima (que já não pode beneficiar dela) certamente implicará que o autor da mesma seja premiado com um qualquer labéu. E então, se se afirmar que mesmo estes suspeitos devem beneficiar da presunção de inocência, e que em espirais de violência colectivas existirá um especial dever de indagação das plurais individualidades envolvidas, será uma argumentação certamente percepcionada como fruto de uma empatia com a delinquência ou de uma solidariedade com a discriminação revelada no assassinato.
Com efeito, o assassinato de Gisela determinou duas linhas de leituras oportunistas, em que se revelam inconfessáveis semelhanças ao brandir armas contra as alegadas passividades ou benevolências na reacção social:
a) o problema deriva do tratamento dos delinquentes como vítimas e da falta de responsabilização dos jovens marginais;
b) a falta de uma musculada e adequada reacção deriva dos preconceitos contra a vítima transexual, acrescentando os mais fervorosos que o facto dos criminosos estarem a cargo de uma instituição da Igreja Católica só reforça a solidariedade social com os mesmos (a qual, obviamente, tem de ser quebrada).
Os factos raramente incomodam estes opinadores ideologicamente impregnados, nomeadamente a dificuldade em divisar neste caso falta de indignação colectiva (o que aliás seria improvável num país campeão das indignações) relativamente à violência inclassificável que atingiu de forma gratuita uma vítima indefesa e a circunstância de na resposta estadual se ter aplicado a medida cautelar mais grave prevista na lei a 13 dos 14 suspeitos, inclusive ao «jovem adulto» de 16 anos - em última instância poderão sempre invocar a omissão de um linchamento à antiga.
Já a afirmação, mesmo fora da retórica da ressocialização (que bem ou mal consta das leis que regulam as reacções a factos penalmente ilícitos praticados por menores e maiores), de que a resposta do Estado não pode ser assumida em nome da estrita justiça à vítima (que já não pode beneficiar dela) certamente implicará que o autor da mesma seja premiado com um qualquer labéu. E então, se se afirmar que mesmo estes suspeitos devem beneficiar da presunção de inocência, e que em espirais de violência colectivas existirá um especial dever de indagação das plurais individualidades envolvidas, será uma argumentação certamente percepcionada como fruto de uma empatia com a delinquência ou de uma solidariedade com a discriminação revelada no assassinato.
O que lhes interessa é apenas exemplos públicos e não perder oportunidade para revelarem zelo na superação de certos tabus, aliás a história mostra-nos que a distância entre determinados pólos marca-se apenas no lado da barricada... as vítimas e outras baixas de certo que não podem esperar muito de tais defensores.
O mais preocupante é a circunstância de tais prelectores não padecerem de uma monstruosa indigência de espírito que poderia atenuar a sua capacidade de influência em todas as instâncias!
06 março 2006
Império sem norte
Há muito que me parece que o problema principal da actual administração americana não é o imperialismo (o Império existe ponto e nenhuma presidência dos EUA poderá deixar de ser imperial), mas a absoluta falta de sentido de responsabilidade imperial (um isolacionismo a determinar decisões no centro do poder num plano que só terá tido paralelo com o que verificou até à crise de 1929). O editorial de ontem do New York Times, parte da constatação de um império sem centro nem norte num mundo cada vez mais multipolar - em que os novos eixos já não serão apenas os previstos (China e India). A dúvida (angústia) maior é gerada pela reduzida probabilidade de os múltiplos danos (directos e colaterais) provocados por esta gente poderem ser efectivamente minorados por uma futura presidência com sentido de Império, que vai ter de conviver com uma situação muito mais complexa do que a recebida por Cheney e seus «muchachos», e em que a margem de manobra do Império está extraordinariamente limitada.
05 março 2006
Manuel Teixeira-Gomes
O texto transcrito de Sabina Freire, foi retirado do volume 16 da Biblioteca Breve, com o título: O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910), 1ª ed., Instituto de Cultura Portuguesa, 1978 (disponível na Internet).
Sabina Freire (1905), de Manuel Teixeira-Gomes
Acto II, cena XII
(…)
SABINA: Ah! Se o teu amor fosse sincero, verdadeiro, incondicional!... Se nascesse das entranhas, se te varresse da memória todas as afeições, todos os preconceitos, todas as influências..., se fosse exclusivo, indispensável, absorvente...
JÚLIO: É tudo isso...; é muito mais... Juro-te... juro-te...
SABINA: Ah!... Se assim fosse e se a tua razão se iluminasse e exigindo a supressão daquele obstáculo; se a tua inteligência se abrisse à radiante perspectiva da liberdade, do infindo, incalculável gozo de caminharmos pela existência fora como duas criaturas divinas, espalhando benefícios, socorrendo infortúnios, aliviando misérias, fomentando a ideia do belo, do justo; se obedecendo ao teu amor tu tomasses a resolução inabalável de me seguir ainda quando eu te levasse pela senda do crime; se tivesses ânimo para jurar: o que fizeres, Sabina, é bem feito...
JÚLIO: Juro, juro pelo amor que te tenho...
SABINA: É um crime como a sociedade o julga, mas a sociedade seria a primeira a fruir as úteis consequências do que ela assim chama... Às consciências dos fortes, às almas diamantinas que resplandecem acima da mesquinhez das convenções miseráveis, ele impôr-se-ia como um acto de suprema justiça.
JÚLIO: Que acto..., diz já...
SABINA: E não te figures que correríamos o menor risco, nem que lhe causaríamos sofrimento... Pouco antes de morrer, meu pai que era um alemão ideólogo e fantástico, espécie de alquimista sonhando o niilismo platónico, deu-me a cadeia de oiro com os dois frascos que me acompanham sempre e te inspiram tanta curiosidade, obrigando-me a prometer que nunca me desfaria de corrente sem primeiro empregar o conteúdo de algum dos frascos. E acrescentou: nada mais precioso possuo, minha filha, do que esta corrente; num dos frascos encontrarás a morte fulminante: é a libertação; o outro contém a morte lenta: é a vingança... Um desses frascos está com efeito cheio de ácido cianídrico; duas gotas bastarão para que a tua mãe desapareça sem dor nem agonia... E que médico haverá capaz de suspeitar de envenenamento a morte repentina que tão bem imita a apoplexia?...
JÚLIO: Matar a minha mãe!... Sabina!...
SABINA: A tua mãe!... O nosso carrasco, queres tu dizer... Mas quem a matava era eu...
JÚLIO (levantando-se arrebatadamente): Sabina!...
SABINA (que também se levanta e o fixa de frente estendendo-lhe as mãos): Então, o que tens?...
JÚLIO (recuando): Não me toques!... Sinto a impressão de ver levantar-se-me debaixo dos pés uma víbora...
SABINA: Júlio, deixa-te de farsas...
JÚLIO: Não, mulher, não é farsa, é uma sufocação de horror, é um pasmo de te haver escutado tanto tempo sem te pressentir a infâmia, é uma alucinação, um remoinho infernal, é a demência...
SABINA: Pobre Júlio!
JÚLIO: Eu não quero inspirar piedade, mulher..., pois tu não avalias o que há de abominável no teu projecto, pois tu não sabes que à mais abjecta das mães o filho está ligado pelo dever e pelo sangue...
SABINA: Entras no melodrama...
JÚLIO: Entro na tragédia ignóbil... Ah! Ninguém pode imaginar quanto eu sofro... Meu Deus, meu Deus!... (Cai no sofá e esconde o rosto nas mãos).
SABINA: Pobre Júlio... (Impetuosa e colérica) Desgraçado insignificante... Coração de trapos, alma indigna da minha... Como foi possível que eu te aceitasse por companheiro, a ti criatura vil, e inerte e mole e pegajosa...
(…)
SABINA: Ah! Se o teu amor fosse sincero, verdadeiro, incondicional!... Se nascesse das entranhas, se te varresse da memória todas as afeições, todos os preconceitos, todas as influências..., se fosse exclusivo, indispensável, absorvente...
JÚLIO: É tudo isso...; é muito mais... Juro-te... juro-te...
SABINA: Ah!... Se assim fosse e se a tua razão se iluminasse e exigindo a supressão daquele obstáculo; se a tua inteligência se abrisse à radiante perspectiva da liberdade, do infindo, incalculável gozo de caminharmos pela existência fora como duas criaturas divinas, espalhando benefícios, socorrendo infortúnios, aliviando misérias, fomentando a ideia do belo, do justo; se obedecendo ao teu amor tu tomasses a resolução inabalável de me seguir ainda quando eu te levasse pela senda do crime; se tivesses ânimo para jurar: o que fizeres, Sabina, é bem feito...
JÚLIO: Juro, juro pelo amor que te tenho...
SABINA: É um crime como a sociedade o julga, mas a sociedade seria a primeira a fruir as úteis consequências do que ela assim chama... Às consciências dos fortes, às almas diamantinas que resplandecem acima da mesquinhez das convenções miseráveis, ele impôr-se-ia como um acto de suprema justiça.
JÚLIO: Que acto..., diz já...
SABINA: E não te figures que correríamos o menor risco, nem que lhe causaríamos sofrimento... Pouco antes de morrer, meu pai que era um alemão ideólogo e fantástico, espécie de alquimista sonhando o niilismo platónico, deu-me a cadeia de oiro com os dois frascos que me acompanham sempre e te inspiram tanta curiosidade, obrigando-me a prometer que nunca me desfaria de corrente sem primeiro empregar o conteúdo de algum dos frascos. E acrescentou: nada mais precioso possuo, minha filha, do que esta corrente; num dos frascos encontrarás a morte fulminante: é a libertação; o outro contém a morte lenta: é a vingança... Um desses frascos está com efeito cheio de ácido cianídrico; duas gotas bastarão para que a tua mãe desapareça sem dor nem agonia... E que médico haverá capaz de suspeitar de envenenamento a morte repentina que tão bem imita a apoplexia?...
JÚLIO: Matar a minha mãe!... Sabina!...
SABINA: A tua mãe!... O nosso carrasco, queres tu dizer... Mas quem a matava era eu...
JÚLIO (levantando-se arrebatadamente): Sabina!...
SABINA (que também se levanta e o fixa de frente estendendo-lhe as mãos): Então, o que tens?...
JÚLIO (recuando): Não me toques!... Sinto a impressão de ver levantar-se-me debaixo dos pés uma víbora...
SABINA: Júlio, deixa-te de farsas...
JÚLIO: Não, mulher, não é farsa, é uma sufocação de horror, é um pasmo de te haver escutado tanto tempo sem te pressentir a infâmia, é uma alucinação, um remoinho infernal, é a demência...
SABINA: Pobre Júlio!
JÚLIO: Eu não quero inspirar piedade, mulher..., pois tu não avalias o que há de abominável no teu projecto, pois tu não sabes que à mais abjecta das mães o filho está ligado pelo dever e pelo sangue...
SABINA: Entras no melodrama...
JÚLIO: Entro na tragédia ignóbil... Ah! Ninguém pode imaginar quanto eu sofro... Meu Deus, meu Deus!... (Cai no sofá e esconde o rosto nas mãos).
SABINA: Pobre Júlio... (Impetuosa e colérica) Desgraçado insignificante... Coração de trapos, alma indigna da minha... Como foi possível que eu te aceitasse por companheiro, a ti criatura vil, e inerte e mole e pegajosa...
Manuel Teixeira-Gomes
Já neste blogue se discutiu o balanço dos mandatos presidenciais de Jorge Sampaio. Eu também quero meter uma colherada nesse assunto. Mas hoje quero apenas comentar o seu último acto público: a homenagem a Teixeira-Gomes. Esse acto tem particular significado porque é simultaneamente uma homenagem à coerência e integridade políticas e à cultura.
A 1ª República deu-nos uma galeria de presidentes ilustres, entre os quais se destacam as figuras de Teófilo Braga e de Bernardino Machado. Mas, dentre eles, Teixeira-Gomes é um caso muito especial. Como político, ele foi de um empenhamento cívico e de um rigor ético inexcedíveis. Foi precisamente isso que fez dele primeiro um exilado interno, na esteira de antecessores ilustres como Herculano e Antero e, depois, um exilado voluntário, de mal com a pátria por amor aos valores a que era fiel (isso de ser fiel a valores é hoje coisa anacrónica, como sabemos, a não ser que sejam valores financeiros, claro).
Como figura humana, Teixeira-Gomes desenhou um perfil de homem dado ao mesmo tempo às coisas do corpo e do espírito: um perfil tipicamente helénico, cosmopolita (no sentido kantiano, evidentemente), voluptuoso, pagão e amante das artes, numa harmonia que só os gregos de antigamente naturalmente conseguiam.
A sua faceta de escritor comunga destes valores. Embora não seja propriamente um ficcionista, deu-nos obras notáveis nessa área, como Maria Adelaide e Novelas Eróticas, nas quais o seu erotismo, o seu paganismo se espraiam livremente (embora de forma contida, como homem elegante e de gosto). A sua prosa, percorrendo os lugares desse Algarve mítico de outrora, ora desenhando figuras e episódios picarescos, ora vivências e mulheres voluptuosas, é de uma grande agilidade, de um cromatismo a versatilidade verdadeiramente raros na nossa literatura. Eu sei que são chavões. Mas eu faço prova do que digo: apresento de seguida um pequeno texto extraído de Inventário de Junho, 2ª ed., 1918, a que me limitei a actualizar a ortografia. Leiam e verão!
A terminar: não digo que tudo está bem quando acaba bem; mas Jorge Sampaio, ao proceder a esta homenagem, dignificou o seu mandato.
Vénus momentânea
Vento mareiro fresco, encapelando levemente a água em ondas verdes, floridas de espuma efémera. Aragem que sacia os pulmões…
À sombra de um leixão, deitado na areia seca e fina, eu lia versos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto horizonte, embalado pela canção cristalina do mar.
Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graça, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha desfraldada à popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouça com elegância.
De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e param, que prosseguem dispersas, precipitadas, numa desordem de fuga, ou caminham regaladamente em grupos de conversa, e tudo vai direito á barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde.
Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atravessa m prado cheio de erva.
O céu, de um azul intensíssimo, está como que esponjado de pequenas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do sol, acende-se em oiro.
Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infinito espelho…
Era a hora da tarde em que os banhos recomeçam, e, como de costume, naquela raia cheia de recortados leixões, os banhistas despiam-se junto ás rochas, pendurando nelas o seu fato.
Em volta do leixão, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem duvida pertenciam ao grupo de serranas que ali próximo, de mãos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam à babugem da agua um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com quem amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía certa moça forte, feia e espadaúda, que andava sempre de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém certamente desejaria ofender.
Naturalmente, a minha vista não se distraía do encanto da paisagem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evoluções mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuárias, e foi assim que elas saíram do mar, e vieram para o leixão onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal.
De repente senti que alguém tossia, fazendo-o para chamar a minha atenção. Voltei-me instintivamente: era a serrana pudenda que se limpava, acocorada, numa anfractuosidade da rocha que formava nicho.
Tão depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os braços e soltou o lençol.
Prodígio de elegância, perfeição e graça escultural, se me patenteou então o seu corpo enrijecido pela frialdade da agua, cujas gotas ainda lhe escorriam pela carne marmórea. O peso da água afeiçoara-lhe na cabeça hirsuta um toucado de estatua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que vão voar…
Impassível, sem um sorriso, e lentamente - tal uma estátua em pedestal móvel - ela rodou sobre si mesma, franqueando à minha vista sôfrega as mais secretas maravilhas do seu corpo.
Terminada a volta, agachou-se, meteu-se no lençol, e chamou por outra mulher que a veio limpar.
Daí a nada passava por mim já vestida - entrouxada nas suas vestimentas de serrana lorpa - arrastando os sapatos de bezerro, estúpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos…
Espreitei-a depois, no banho, vezes sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente.
Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas…
Concluí que assistira, por acaso, à passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia…
A 1ª República deu-nos uma galeria de presidentes ilustres, entre os quais se destacam as figuras de Teófilo Braga e de Bernardino Machado. Mas, dentre eles, Teixeira-Gomes é um caso muito especial. Como político, ele foi de um empenhamento cívico e de um rigor ético inexcedíveis. Foi precisamente isso que fez dele primeiro um exilado interno, na esteira de antecessores ilustres como Herculano e Antero e, depois, um exilado voluntário, de mal com a pátria por amor aos valores a que era fiel (isso de ser fiel a valores é hoje coisa anacrónica, como sabemos, a não ser que sejam valores financeiros, claro).
Como figura humana, Teixeira-Gomes desenhou um perfil de homem dado ao mesmo tempo às coisas do corpo e do espírito: um perfil tipicamente helénico, cosmopolita (no sentido kantiano, evidentemente), voluptuoso, pagão e amante das artes, numa harmonia que só os gregos de antigamente naturalmente conseguiam.
A sua faceta de escritor comunga destes valores. Embora não seja propriamente um ficcionista, deu-nos obras notáveis nessa área, como Maria Adelaide e Novelas Eróticas, nas quais o seu erotismo, o seu paganismo se espraiam livremente (embora de forma contida, como homem elegante e de gosto). A sua prosa, percorrendo os lugares desse Algarve mítico de outrora, ora desenhando figuras e episódios picarescos, ora vivências e mulheres voluptuosas, é de uma grande agilidade, de um cromatismo a versatilidade verdadeiramente raros na nossa literatura. Eu sei que são chavões. Mas eu faço prova do que digo: apresento de seguida um pequeno texto extraído de Inventário de Junho, 2ª ed., 1918, a que me limitei a actualizar a ortografia. Leiam e verão!
A terminar: não digo que tudo está bem quando acaba bem; mas Jorge Sampaio, ao proceder a esta homenagem, dignificou o seu mandato.
Vénus momentânea
Vento mareiro fresco, encapelando levemente a água em ondas verdes, floridas de espuma efémera. Aragem que sacia os pulmões…
À sombra de um leixão, deitado na areia seca e fina, eu lia versos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto horizonte, embalado pela canção cristalina do mar.
Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graça, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha desfraldada à popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouça com elegância.
De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e param, que prosseguem dispersas, precipitadas, numa desordem de fuga, ou caminham regaladamente em grupos de conversa, e tudo vai direito á barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde.
Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atravessa m prado cheio de erva.
O céu, de um azul intensíssimo, está como que esponjado de pequenas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do sol, acende-se em oiro.
Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infinito espelho…
Era a hora da tarde em que os banhos recomeçam, e, como de costume, naquela raia cheia de recortados leixões, os banhistas despiam-se junto ás rochas, pendurando nelas o seu fato.
Em volta do leixão, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem duvida pertenciam ao grupo de serranas que ali próximo, de mãos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam à babugem da agua um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com quem amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía certa moça forte, feia e espadaúda, que andava sempre de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém certamente desejaria ofender.
Naturalmente, a minha vista não se distraía do encanto da paisagem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evoluções mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuárias, e foi assim que elas saíram do mar, e vieram para o leixão onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal.
De repente senti que alguém tossia, fazendo-o para chamar a minha atenção. Voltei-me instintivamente: era a serrana pudenda que se limpava, acocorada, numa anfractuosidade da rocha que formava nicho.
Tão depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os braços e soltou o lençol.
Prodígio de elegância, perfeição e graça escultural, se me patenteou então o seu corpo enrijecido pela frialdade da agua, cujas gotas ainda lhe escorriam pela carne marmórea. O peso da água afeiçoara-lhe na cabeça hirsuta um toucado de estatua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que vão voar…
Impassível, sem um sorriso, e lentamente - tal uma estátua em pedestal móvel - ela rodou sobre si mesma, franqueando à minha vista sôfrega as mais secretas maravilhas do seu corpo.
Terminada a volta, agachou-se, meteu-se no lençol, e chamou por outra mulher que a veio limpar.
Daí a nada passava por mim já vestida - entrouxada nas suas vestimentas de serrana lorpa - arrastando os sapatos de bezerro, estúpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos…
Espreitei-a depois, no banho, vezes sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente.
Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas…
Concluí que assistira, por acaso, à passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia…
Prioridades de investigação versus prioridades de investigação criminal?
O divulgado despacho do director nacional da PJ sobre “prioridades de gestão” suscitou dúvidas muito pertinentes de alguns deputados. Na verdade, o perigo que espreita é o de, por via de definição de “prioridades de gestão” (o que parece muito inocente), se manipularem as prioridades de investigação criminal. Porque a distribuição dos recursos (sempre escassos) e outras opções de gestão não são decisões neutras, podem até constituir obstáculos à prossecução dos objectivos da organização.
Em princípio, a gestão de uma organização, assim como a definição dos objectivos, cabe aos seus órgãos dirigentes. Mas o que há de específico na PJ (como nos organismos da administração pública em geral) é que a definição dos objectivos não compete à direcção, vem de fora. Por isso, a gestão não pode entrar em confronto com esses objectivos.
Não deixaria de ser divertido que o MP tivesse de “assumir” a política criminal da AR e a PJ ficasse desobrigada de o fazer, por via da definição de “prioridades de gestão”!…
Em princípio, a gestão de uma organização, assim como a definição dos objectivos, cabe aos seus órgãos dirigentes. Mas o que há de específico na PJ (como nos organismos da administração pública em geral) é que a definição dos objectivos não compete à direcção, vem de fora. Por isso, a gestão não pode entrar em confronto com esses objectivos.
Não deixaria de ser divertido que o MP tivesse de “assumir” a política criminal da AR e a PJ ficasse desobrigada de o fazer, por via da definição de “prioridades de gestão”!…
04 março 2006
As “regras" na “liberdade de expressão”
Quem como eu é uma menor formiga com catarro (isto para satisfazer aquela necessidade imperiosa, bem humana, de tudo «rotular», classificar, de acordo com as interpretações que cada um faz «à sua Imagem», mais ou menos modesta, vaidosa, exibicionista ou não), diria, grosseiramente, seguindo o que é «natural» («normal»), que há que por um freio nos dentes…
A democracia, a liberdade - bandeiras das sociedades modernas, ditas pluralistas - são chavões que todos utilizamos, com vontade de acreditar que existem e, por isso, queremos que iluminem a realidade individual e, também, a própria comunidade em que nos inserimos. Mas quem disse que não há limites?
Desenganem-se os jovens, os bem-aventurados eternamente jovens, os rebeldes, os insurrectos e por aí fora. Uma coisa é o plano dos princípios, as filosofias mais ou menos liberais, que encantam personalidades, sejam arrivistas ou não e, outra, bem diferente, é a prática, a vida terrena, nesta sociedade (por acaso europeia) cheia de pruridos, com sensibilidades tão distintas. Já pregava…
E, se a liberdade de expressão é o direito à opinião, traduzida em escritos, imagens, filmes etc. porque não estabelecer determinadas “regras” de comunicação à «boa ou má» maneira salazarista, ou melhor, com toda a legitimidade democrática? (mas que aberração: como se pode fazer a analogia entre certas ditaduras e certas democracias…)
Liberdade de expressão sim mas, há que estabelecer temas tabu doa a quem doer.
Nem toda a verdade (que conceito tão relativo) é para se dizer e o direito à opinião tem de respeitar o primado do «tema-tabu». Ponderar entre um interesse e outro mas, claro, dar primazia ao tabu que está naturalmente institucionalizado. Com todo o direito aliás e ponto final.
«Polícias» (não vou chamar censura porque isso cheirava a ditadura) precisam-se, por exemplo, na blogosfera, para reporem a ordem no seio da desordem. E não venham cá dizer que só anda a visitar blogues quem quer…
Essas indignas caricaturas e afins (aqui se incluindo todo o tipo de imagens, animadas ou não ou como tais equivalentes, v.g. virtuais, usadas para ridicularizar ou para fins considerados liberalmente “impróprios” ou “inadequados”) têm que ser banidas em nome da democracia, da liberdade, em suma, da segurança da própria sociedade!
A Lei não é a lei da selva mas, a lei do naturalmente mais forte, do mais graduado (quem nunca foi à tropa sabe, ou pelo menos pensa, que é o general que manda no soldado). Não é por acaso que a hierarquia existe. Tudo é explicado democraticamente, até mesmo de forma lógica: os mais velhos, ou melhor, os menos jovens (que são, por regra, os graduados) têm toda uma experiência de vida, uma maturidade bem reflectida, interiorizada, que lhes dá naturalmente a autoridade e a sabedoria adequadas. Por isso, podem discorrer seja sobre que tema for, com à vontade e mais ou menos (dependendo do engenho e arte) habilidade.
Assim, aproveitando o mote da última “postagem” de Paulo Dá Mesquita (perdoem-me a ignorância de também não saber fazer ligações para outros textos…), além da criação, a nível europeu, de um Programa Comunitário de Temas Tabu (PCTT) - procedendo à respectiva Revisão da Estratégia de Lisboa de 2000 - talvez fosse de estabelecer, ainda, uma idade mínima para se poder exercer a liberdade de expressão. Eu cá colocava o limite, pelo menos, nos 55 anos de idade. Claro que, quem tivesse mais de 55 anos e continuasse «rebelde» podia ser-lhe retirado o exercício do direito à liberdade de expressão ou então, o próprio, podia recusar o exercício desse direito, renunciando expressamente ao mesmo. E, toda a gente ficava a saber (porque vivemos em sociedades transparentes) que, aquela pessoa, apesar de ter 55 anos ou mais, não tinha os requisitos necessários para poder dar opiniões, fosse por que forma fosse. Depois há as regras da “boa educação”, que todos sabemos quais são embora nem todos saibamos fazer uso delas. Mas há que respeitar, adequar-se ao politicamente correcto e criar, a nível nacional, no plano das reformas, o CBP (catálogo de boas práticas)!
Para decidir as também naturais (evidentes) excepções às ditas regras (aqui incluindo os maiores de 55 anos de idade que continuassem rebeldes e os menores de 55 anos de “reconhecido mérito”), deveriam ser criadas, a nível regional, “brigadas” (que até chamaria de Entidades Reguladoras das Regras de Comunicação e da Liberdade de Expressão, abreviadamente ERRCLE), compostas por pessoas bem amadurecidas, de preferência com mais de 60 anos de idade, que estivessem próximas do «poder» ou até mesmo de «lobbies» ou outras «forças de pressão»… para equilibradamente, de acordo com as SS (Superiores Sabedorias), melhor gerirem os interesses, ou seja, os valores a preservar em sociedades democráticas.
Depois, consoante as carências de cada sociedade (tendo em atenção “crises”, económicas e outras de cada Estado), poderia pensar-se no luxo de criar uma real ou aparente super-brigada (Alta Autoridade das Entidades Reguladoras, AAER), que fiscalizasse as ERRCLE. E por aí fora para quem precisar de mais «fiscais», de mais emprego, de colocar os “amigos”, etc.…
Mas, que mania de tudo contestar, de deturpar, de não aceitar o óbvio!
A democracia, a liberdade - bandeiras das sociedades modernas, ditas pluralistas - são chavões que todos utilizamos, com vontade de acreditar que existem e, por isso, queremos que iluminem a realidade individual e, também, a própria comunidade em que nos inserimos. Mas quem disse que não há limites?
Desenganem-se os jovens, os bem-aventurados eternamente jovens, os rebeldes, os insurrectos e por aí fora. Uma coisa é o plano dos princípios, as filosofias mais ou menos liberais, que encantam personalidades, sejam arrivistas ou não e, outra, bem diferente, é a prática, a vida terrena, nesta sociedade (por acaso europeia) cheia de pruridos, com sensibilidades tão distintas. Já pregava…
E, se a liberdade de expressão é o direito à opinião, traduzida em escritos, imagens, filmes etc. porque não estabelecer determinadas “regras” de comunicação à «boa ou má» maneira salazarista, ou melhor, com toda a legitimidade democrática? (mas que aberração: como se pode fazer a analogia entre certas ditaduras e certas democracias…)
Liberdade de expressão sim mas, há que estabelecer temas tabu doa a quem doer.
Nem toda a verdade (que conceito tão relativo) é para se dizer e o direito à opinião tem de respeitar o primado do «tema-tabu». Ponderar entre um interesse e outro mas, claro, dar primazia ao tabu que está naturalmente institucionalizado. Com todo o direito aliás e ponto final.
«Polícias» (não vou chamar censura porque isso cheirava a ditadura) precisam-se, por exemplo, na blogosfera, para reporem a ordem no seio da desordem. E não venham cá dizer que só anda a visitar blogues quem quer…
Essas indignas caricaturas e afins (aqui se incluindo todo o tipo de imagens, animadas ou não ou como tais equivalentes, v.g. virtuais, usadas para ridicularizar ou para fins considerados liberalmente “impróprios” ou “inadequados”) têm que ser banidas em nome da democracia, da liberdade, em suma, da segurança da própria sociedade!
A Lei não é a lei da selva mas, a lei do naturalmente mais forte, do mais graduado (quem nunca foi à tropa sabe, ou pelo menos pensa, que é o general que manda no soldado). Não é por acaso que a hierarquia existe. Tudo é explicado democraticamente, até mesmo de forma lógica: os mais velhos, ou melhor, os menos jovens (que são, por regra, os graduados) têm toda uma experiência de vida, uma maturidade bem reflectida, interiorizada, que lhes dá naturalmente a autoridade e a sabedoria adequadas. Por isso, podem discorrer seja sobre que tema for, com à vontade e mais ou menos (dependendo do engenho e arte) habilidade.
Assim, aproveitando o mote da última “postagem” de Paulo Dá Mesquita (perdoem-me a ignorância de também não saber fazer ligações para outros textos…), além da criação, a nível europeu, de um Programa Comunitário de Temas Tabu (PCTT) - procedendo à respectiva Revisão da Estratégia de Lisboa de 2000 - talvez fosse de estabelecer, ainda, uma idade mínima para se poder exercer a liberdade de expressão. Eu cá colocava o limite, pelo menos, nos 55 anos de idade. Claro que, quem tivesse mais de 55 anos e continuasse «rebelde» podia ser-lhe retirado o exercício do direito à liberdade de expressão ou então, o próprio, podia recusar o exercício desse direito, renunciando expressamente ao mesmo. E, toda a gente ficava a saber (porque vivemos em sociedades transparentes) que, aquela pessoa, apesar de ter 55 anos ou mais, não tinha os requisitos necessários para poder dar opiniões, fosse por que forma fosse. Depois há as regras da “boa educação”, que todos sabemos quais são embora nem todos saibamos fazer uso delas. Mas há que respeitar, adequar-se ao politicamente correcto e criar, a nível nacional, no plano das reformas, o CBP (catálogo de boas práticas)!
Para decidir as também naturais (evidentes) excepções às ditas regras (aqui incluindo os maiores de 55 anos de idade que continuassem rebeldes e os menores de 55 anos de “reconhecido mérito”), deveriam ser criadas, a nível regional, “brigadas” (que até chamaria de Entidades Reguladoras das Regras de Comunicação e da Liberdade de Expressão, abreviadamente ERRCLE), compostas por pessoas bem amadurecidas, de preferência com mais de 60 anos de idade, que estivessem próximas do «poder» ou até mesmo de «lobbies» ou outras «forças de pressão»… para equilibradamente, de acordo com as SS (Superiores Sabedorias), melhor gerirem os interesses, ou seja, os valores a preservar em sociedades democráticas.
Depois, consoante as carências de cada sociedade (tendo em atenção “crises”, económicas e outras de cada Estado), poderia pensar-se no luxo de criar uma real ou aparente super-brigada (Alta Autoridade das Entidades Reguladoras, AAER), que fiscalizasse as ERRCLE. E por aí fora para quem precisar de mais «fiscais», de mais emprego, de colocar os “amigos”, etc.…
Mas, que mania de tudo contestar, de deturpar, de não aceitar o óbvio!
Monstruosa indigência de espírito
O caso do transexual assassinado por um grupo de miúdos, só um deles penalmente imputável, levantou uma vaga de indignação e de interrogações de diversa ordem. A comoção pública é natural, porque o crime é macabro. Mas talvez o mais interessante seja a reacção de certas cabeças pensantes, das quais eu seleccionaria a de Esther Mucznik (no Público de hoje), que sintetiza de forma notável o novo pensamento dominante, nestes tempos de desgraça intelectual, e não só.
Revolta-se ela contra o facto de, no seu entender, não se fazer distinção entre carrascos e vítimas, de todos serem catalogados como vítimas, ainda quando agressores. E condói-se (e esta é a parte mais compungente) com os que detêm o poder, porque esses não têm desculpa ou compreensão por parte de ninguém! Os demais podem fazer tudo o que há de pior que os seus actos sempre serão explicados e justificados. E insurge-se contra o legado do "materialismo marxista" que responsabiliza sempre os poderosos e desculpa os sem-poder (adorável este sentimento de solidariedade com o poder, sempre tão mal compreendido!).
É sempre triste e confrangedor ler declarações de renegados. Mas, como é possível chegar a este mísero nível de análise? O mundo divide-se apenas entre bons e maus? Os bons são sempre bons e os maus sempre maus? Os actos humanos não podem (e devem) ser apreciados na globalidade e complexidade do seu contexto? Os actos humanos não são sempre complexos? Para que servem as ciências, as ciências humanas, o acervo imenso de conhecimentos acumulados ao longo de séculos? Para agora voltarmos a dizer que os maus são maus e não há nada a fazer senão puni-los? Tudo o que a sociedade humana conquistou em termos de conhecimentos e de garantias fundamentais é para mandar para as urtigas? Agora há apenas o catecismo do bem e do mal, da recompensa e do castigo (do céu e do inferno)? É um Estado punitivo, um Estado penitenciário, a nova Idade do Ouro sonhada por estes profetas?
Revolta-se ela contra o facto de, no seu entender, não se fazer distinção entre carrascos e vítimas, de todos serem catalogados como vítimas, ainda quando agressores. E condói-se (e esta é a parte mais compungente) com os que detêm o poder, porque esses não têm desculpa ou compreensão por parte de ninguém! Os demais podem fazer tudo o que há de pior que os seus actos sempre serão explicados e justificados. E insurge-se contra o legado do "materialismo marxista" que responsabiliza sempre os poderosos e desculpa os sem-poder (adorável este sentimento de solidariedade com o poder, sempre tão mal compreendido!).
É sempre triste e confrangedor ler declarações de renegados. Mas, como é possível chegar a este mísero nível de análise? O mundo divide-se apenas entre bons e maus? Os bons são sempre bons e os maus sempre maus? Os actos humanos não podem (e devem) ser apreciados na globalidade e complexidade do seu contexto? Os actos humanos não são sempre complexos? Para que servem as ciências, as ciências humanas, o acervo imenso de conhecimentos acumulados ao longo de séculos? Para agora voltarmos a dizer que os maus são maus e não há nada a fazer senão puni-los? Tudo o que a sociedade humana conquistou em termos de conhecimentos e de garantias fundamentais é para mandar para as urtigas? Agora há apenas o catecismo do bem e do mal, da recompensa e do castigo (do céu e do inferno)? É um Estado punitivo, um Estado penitenciário, a nova Idade do Ouro sonhada por estes profetas?
03 março 2006
Direito à blasfémia
Sem querer polemizar, mas afrontando o risco, devo dizer que reivindico o direito à blasfémia (embora sem intenção de o usar).
Vem isto a propósito da intervenção do Cardeal Policarpo (figura aliás que muito respeito a vários títulos). É que, por um lado, o conceito de blasfémia é muito flexível, dependendo muito da sensibilidade dos crentes. Por outro, a blasfémia só existe, ou só tem relevância, verdadeiramente onde e quando ela é transgessora. Ela desafia a intolerância e pega em armas pela liberdade.
Foi como transgressão que ela foi usada por Aretino e por Bocage, para dar dois exemplos históricos superlativos. Mais recentemente citaria Dario Fo e Luiz Pacheco, cada um no respectivo contexto nacional. O blasfemo só faz mossa em sociedades integralistas, onde é "pecado" (e proibido, banido, punido, etc.) "dizer mal" da ortodoxia religiosa (geralmente religioso-política). Onde as confissões são tolerantes e abertas, o blasfemo cai no ridículo e cala-se. Por isso, eu reivindico o direito à blasfémia: porque é uma componente do direito à liberdade de expressão.
Mas atenção: o autêntico blasfemo não satiriza a religião dos "outros" - luta "dentro de muros". Por isso, não considero "blasfemas" as caricaturas dinamarquesas, que não visam conquistar um espaço de liberdade na sociedade dinamarquesa (nem a ajudou a conquistar nos países muçulmanos), mas "achincalhar" as crenças de sociedades alheias. Não é que tal seja ilegítimo ou proibido. É apenas inoportuno e perigoso, atendendo ao estado das coisas a nível internacional.
É fácil blasfemar quando não se correm perigos. Mas o verdadeiro blasfemo transgride e desafia. Esse o seu mérito e a sua glória. E o seu risco. Os nomes acima citados são testemunhos.
Vem isto a propósito da intervenção do Cardeal Policarpo (figura aliás que muito respeito a vários títulos). É que, por um lado, o conceito de blasfémia é muito flexível, dependendo muito da sensibilidade dos crentes. Por outro, a blasfémia só existe, ou só tem relevância, verdadeiramente onde e quando ela é transgessora. Ela desafia a intolerância e pega em armas pela liberdade.
Foi como transgressão que ela foi usada por Aretino e por Bocage, para dar dois exemplos históricos superlativos. Mais recentemente citaria Dario Fo e Luiz Pacheco, cada um no respectivo contexto nacional. O blasfemo só faz mossa em sociedades integralistas, onde é "pecado" (e proibido, banido, punido, etc.) "dizer mal" da ortodoxia religiosa (geralmente religioso-política). Onde as confissões são tolerantes e abertas, o blasfemo cai no ridículo e cala-se. Por isso, eu reivindico o direito à blasfémia: porque é uma componente do direito à liberdade de expressão.
Mas atenção: o autêntico blasfemo não satiriza a religião dos "outros" - luta "dentro de muros". Por isso, não considero "blasfemas" as caricaturas dinamarquesas, que não visam conquistar um espaço de liberdade na sociedade dinamarquesa (nem a ajudou a conquistar nos países muçulmanos), mas "achincalhar" as crenças de sociedades alheias. Não é que tal seja ilegítimo ou proibido. É apenas inoportuno e perigoso, atendendo ao estado das coisas a nível internacional.
É fácil blasfemar quando não se correm perigos. Mas o verdadeiro blasfemo transgride e desafia. Esse o seu mérito e a sua glória. E o seu risco. Os nomes acima citados são testemunhos.
Equívocos
Oh, Sr. Dr. Artur Costa, tem toda a razão: é claro que foi um exagero!
Quando muito, tal como diz, “podemos questionar a formulação da referida passagem do acórdão (de resto, redigida com um cuidado e uma subtileza que raramente foram captados por uma opinião pública dominada pelo simplismo dos «media»)”.
Quando muito, tal como diz, “podemos questionar a formulação da referida passagem do acórdão (de resto, redigida com um cuidado e uma subtileza que raramente foram captados por uma opinião pública dominada pelo simplismo dos «media»)”.
Acusações graves devem ser fundamentadas
No quadro de um esforço generoso para se regular as regras de comunicação na esfera pública, constato que hoje foi consagrado, com superior autoridade científica e democrática, um princípio e que pode ser a base de um eventual clausulado:
1.Há acusações que, de tão graves, deveriam ser bem fundamentadas
Nesse mesmo articulado poderia ainda regular-se a correcção de acusações graves por iniciativa do autor das mesmas com a definição de algumas regras procedimentais para a blogosfera:
2. Quando se proceda à correcção de acusações graves realizadas na «blogosfera» deve:
a) justificar-se a alteração com referência dos motivos da acusação eliminada e da sua modificação;
b) A correcção de acusações deve ser a oportunidade para passar a sustentar acusações graves subsistentes insuficientemente fundamentadas.
Na exposição de motivos do regime será também pertinente destacar que os princípios referidos não derivam de razões que a razão constitucional desconhece
NOTA: Por esta via normativa não se estará a esvaziar o espaço para o desenvolvimento de controvérsias hermenêuticas entre juristas, por exemplo sobre o conceito de acusação grave (dever) ter uma base objectiva ou subjectiva, sobre a circunstância de certas figuras não poderem beneficiar da tutela das proibições de acusações graves (pode mesmo criar-se uma comissão legitimada democraticamente pelo governo com o encargo de elaborar a lista desses «inimigos públicos»), o conceito de factos notórios que não carecem de fundamentação, etc, etc, etc.
1.Há acusações que, de tão graves, deveriam ser bem fundamentadas
Nesse mesmo articulado poderia ainda regular-se a correcção de acusações graves por iniciativa do autor das mesmas com a definição de algumas regras procedimentais para a blogosfera:
2. Quando se proceda à correcção de acusações graves realizadas na «blogosfera» deve:
a) justificar-se a alteração com referência dos motivos da acusação eliminada e da sua modificação;
b) A correcção de acusações deve ser a oportunidade para passar a sustentar acusações graves subsistentes insuficientemente fundamentadas.
Na exposição de motivos do regime será também pertinente destacar que os princípios referidos não derivam de razões que a razão constitucional desconhece
NOTA: Por esta via normativa não se estará a esvaziar o espaço para o desenvolvimento de controvérsias hermenêuticas entre juristas, por exemplo sobre o conceito de acusação grave (dever) ter uma base objectiva ou subjectiva, sobre a circunstância de certas figuras não poderem beneficiar da tutela das proibições de acusações graves (pode mesmo criar-se uma comissão legitimada democraticamente pelo governo com o encargo de elaborar a lista desses «inimigos públicos»), o conceito de factos notórios que não carecem de fundamentação, etc, etc, etc.
De facto, o que parece não é...
Parece que, involuntariamente, feri uma susceptibilidade com o meu texto sobre Frida Kahlo. Ora, ao tecer um comentário, a pretexto da reprodução do quadro que a Dr.ª Carmo introduziu neste blogue com todo o êxito e entusiasmado empenho, fazendo-o acompanhar de uma pequena nota sobre a motivação da pintora, eu não pretendi fazer propriamente uma crítica. Pretendi apenas chamar a atenção para a relativização de todas as leituras e, de certo modo, para a irrelevância das motivações do (neste caso, da) artista. O quadro retrata uma situação de violência homicida (uma mulher nua, morta numa cama, toda ensanguentada, e ao lado, de pé e vestido, um homem com uma enorme faca numa das mãos e um sorriso macabro (diabólico?), que parece remeter para uma situação de gozo sádico).
Diz-se que a pintora se inspirou numa notícia que leu num jornal, em que um homem matou a mulher por ciúmes e, no tribunal, disse que foram apenas uns não sei quantos golpes. Foi esta narrativa que a Dr.ª Carmo introduziu como comentário à reprodução.
Diz-se também que a pintora pretendeu vingar-se da relação que o marido (Diego de Rivera) manteve com a irmã dela. Tomada de ciúmes, quem ela matou ali, simbolicamente, com todo o sadismo, foi a irmã.
Ora, o que eu pretendi dizer foi nada mais nada menos que uma obra de arte não remete para nada de exterior a ela e que as motivações do artista são só as motivações do artista. Numa grande parte dos casos, o artista nem sequer gosta de dar explicações sobre as suas motivações pessoais. Apresentada ao público, uma obra de arte deixa de ser do artista, e s leituras que dela se façam (necessariamente subjectivas e as mais das vezes sendo projecções do próprio intérprete) não têm nada a ver com essas motivações. Como diz Prado Coelho na sua crónica de ontem no «Público», a obra de arte pressupõe sempre uma assimetria entre quem a fez e quem a vê. E eu acrescentaria que as visões são tantas quantos os que a vêem ou lêem.
Foi exactamente isso que eu pretendi transmitir.
Acontece que a Dr.ª Carmo, segundo informa agora, teve presente, ao inserir a reprodução do quadro, entre outras situações (naturalmente), o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/5/04 a que o quadro de Frida Kahlo poderia, segundo ela, servir de ilustração.
Porém, um acórdão do Supremo não é, manifestamente, uma obra de arte (ainda que tenha tido, neste caso, como Relator, um juiz reconhecidamente brilhante, e eu tenha sido um dos adjuntos, mas não acredito que a Dr.ª Carmo o soubesse, e mesmo que soubesse, era o mesmo; o mais certo é ter-se tratado daquilo que os surrealistas – já que falei de surrealismo, se calhar impropriamente, a propósito de Frida Kahlo – designavam de «acaso objectivo»). Ora, se é lícita qualquer leitura do quadro de Frida Kahlo, mais «engajada» ou menos «engajada», já não será assim com o acórdão do Supremo. E, manifestamente, a leitura que desse aresto faz a Dr.ª Carmo não é suportada pelo texto, mesmo ressalvadas as devidas distâncias. Na verdade, em nenhuma parte dele se diz que a violação dos deveres conjugais equivale a ou justifica «desconfianças de infidelidade». O que nele se diz, em contraposição a uma afirmação da decisão da 1ª instância, que referiu, tautologicamente, a violação dos deveres conjugais por parte do arguido, matando a vítima, é que, tendo esta vindo a recusar a manutenção de relações sexuais com o arguido, desde o regresso deste de França, conforme estava provado, sem que se soubesse o motivo dessa recusa, também configuraria violação dos deveres conjugais, sendo que o casamento implica, como toda a gente sabe, o comércio sexual e a sua recusa continuada pode ser motivo de divórcio. Em termos penais, afirmava-se que, não se sabendo o motivo daquela recusa, o que teria de beneficiar o arguido por força do principio «in dubio pro reo», e sendo o mesmo arguido um analfabeto, tal poderia «ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a infidelidade da mulher» (sic). Portanto, o que foi valorado em termos de atenuação da culpa, por força da dúvida, foi, no contexto sócio-cultural do arguido, o comportamento da mulher, aliado à suspeita que este teve de que ela lhe era infiel, por se recusar continuadamente a ter relações sexuais com ele, sem que alguma vez lhe explicasse o motivo.
O divórcio existe para essas situações, não se justificando, portanto, o homicídio da mulher? Com certeza. Mas alguma vez o homicídio é justificável, salvo nos casos em que intervenha alguma causa de justificação? E, estando nós em face de um crime de homicídio, não temos que valorar a conduta do agente de todos os ângulos, incluindo as condições pessoais do agente, o contexto económico, familiar, sócio-cultural, etc., tudo isso tendo influência em termos de culpa e de prevenção?
Ó Drª Carmo, podemos questionar a formulação da referida passagem do acórdão ( de resto, redigida com um cuidado e uma subtileza que raramente foram captados por uma opinião pública dominada pelo simplismo dos «media»). Podemos até, vá lá!, questionar a perspectiva em que aquela circunstância foi apreciada e valorada, mas daí até dizer que nele se faz a equiparação da violação dos deveres conjugais a suspeitas de infidelidade, sem ao menos passar tudo isso pela intermediação de uma personalidade, que era a que estava em causa no julgamento, francamente! Quanto a Frida Kahlo, pode pôr à vontade o quadro dela a ilustrar o acórdão, mas diga-me lá com franqueza: também não será um exagero?
Diz-se que a pintora se inspirou numa notícia que leu num jornal, em que um homem matou a mulher por ciúmes e, no tribunal, disse que foram apenas uns não sei quantos golpes. Foi esta narrativa que a Dr.ª Carmo introduziu como comentário à reprodução.
Diz-se também que a pintora pretendeu vingar-se da relação que o marido (Diego de Rivera) manteve com a irmã dela. Tomada de ciúmes, quem ela matou ali, simbolicamente, com todo o sadismo, foi a irmã.
Ora, o que eu pretendi dizer foi nada mais nada menos que uma obra de arte não remete para nada de exterior a ela e que as motivações do artista são só as motivações do artista. Numa grande parte dos casos, o artista nem sequer gosta de dar explicações sobre as suas motivações pessoais. Apresentada ao público, uma obra de arte deixa de ser do artista, e s leituras que dela se façam (necessariamente subjectivas e as mais das vezes sendo projecções do próprio intérprete) não têm nada a ver com essas motivações. Como diz Prado Coelho na sua crónica de ontem no «Público», a obra de arte pressupõe sempre uma assimetria entre quem a fez e quem a vê. E eu acrescentaria que as visões são tantas quantos os que a vêem ou lêem.
Foi exactamente isso que eu pretendi transmitir.
Acontece que a Dr.ª Carmo, segundo informa agora, teve presente, ao inserir a reprodução do quadro, entre outras situações (naturalmente), o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/5/04 a que o quadro de Frida Kahlo poderia, segundo ela, servir de ilustração.
Porém, um acórdão do Supremo não é, manifestamente, uma obra de arte (ainda que tenha tido, neste caso, como Relator, um juiz reconhecidamente brilhante, e eu tenha sido um dos adjuntos, mas não acredito que a Dr.ª Carmo o soubesse, e mesmo que soubesse, era o mesmo; o mais certo é ter-se tratado daquilo que os surrealistas – já que falei de surrealismo, se calhar impropriamente, a propósito de Frida Kahlo – designavam de «acaso objectivo»). Ora, se é lícita qualquer leitura do quadro de Frida Kahlo, mais «engajada» ou menos «engajada», já não será assim com o acórdão do Supremo. E, manifestamente, a leitura que desse aresto faz a Dr.ª Carmo não é suportada pelo texto, mesmo ressalvadas as devidas distâncias. Na verdade, em nenhuma parte dele se diz que a violação dos deveres conjugais equivale a ou justifica «desconfianças de infidelidade». O que nele se diz, em contraposição a uma afirmação da decisão da 1ª instância, que referiu, tautologicamente, a violação dos deveres conjugais por parte do arguido, matando a vítima, é que, tendo esta vindo a recusar a manutenção de relações sexuais com o arguido, desde o regresso deste de França, conforme estava provado, sem que se soubesse o motivo dessa recusa, também configuraria violação dos deveres conjugais, sendo que o casamento implica, como toda a gente sabe, o comércio sexual e a sua recusa continuada pode ser motivo de divórcio. Em termos penais, afirmava-se que, não se sabendo o motivo daquela recusa, o que teria de beneficiar o arguido por força do principio «in dubio pro reo», e sendo o mesmo arguido um analfabeto, tal poderia «ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a infidelidade da mulher» (sic). Portanto, o que foi valorado em termos de atenuação da culpa, por força da dúvida, foi, no contexto sócio-cultural do arguido, o comportamento da mulher, aliado à suspeita que este teve de que ela lhe era infiel, por se recusar continuadamente a ter relações sexuais com ele, sem que alguma vez lhe explicasse o motivo.
O divórcio existe para essas situações, não se justificando, portanto, o homicídio da mulher? Com certeza. Mas alguma vez o homicídio é justificável, salvo nos casos em que intervenha alguma causa de justificação? E, estando nós em face de um crime de homicídio, não temos que valorar a conduta do agente de todos os ângulos, incluindo as condições pessoais do agente, o contexto económico, familiar, sócio-cultural, etc., tudo isso tendo influência em termos de culpa e de prevenção?
Ó Drª Carmo, podemos questionar a formulação da referida passagem do acórdão ( de resto, redigida com um cuidado e uma subtileza que raramente foram captados por uma opinião pública dominada pelo simplismo dos «media»). Podemos até, vá lá!, questionar a perspectiva em que aquela circunstância foi apreciada e valorada, mas daí até dizer que nele se faz a equiparação da violação dos deveres conjugais a suspeitas de infidelidade, sem ao menos passar tudo isso pela intermediação de uma personalidade, que era a que estava em causa no julgamento, francamente! Quanto a Frida Kahlo, pode pôr à vontade o quadro dela a ilustrar o acórdão, mas diga-me lá com franqueza: também não será um exagero?