22 fevereiro 2007
Onde isto já vai...
De acordo com o que se diz aqui, a Justiça é o tópico mais importante da Bíblia. Vai daí e uma espécie de “comissão de sábios” alemães, entendeu por bem reescrever o documento de forma a expurgá-lo de reais ou virtuais tiques sexistas e anti-semitas.
Exemplos:
«”Perhaps, you know the sentence from the Epistle to the Romans, in which Paul says: 'I admonish you, dear brothers.' In the new translation, we have 'I encourage you, brothers and sisters,'" Janssen said. "Women were members of the communities at the time. They were prophetesses, teachers, or disciples. They were also there in the everyday life as artisans or fishers. It is them that we are making visible in our translation.”»
Ou ainda,
«The history of Christianity has also been characterized by anti-Semitic sentiments, which kept being disseminated by various biblical translations.
“When, for example, in the Gospel according to John, one reads about the 'Jews,' people say today that Jesus was confronting the Jews. Our translation makes it clear that Jesus was confronting the Jews, but also that he was a Jew himself. We tried to highlight that in various places.”»
E também,
«In many new translations, God is referred to in the feminine form to stress the fact that God exists beyond the polarity of the sexes.
“We are very much used to speaking about God in the masculine," Crüsemann said. "In the new translation, however, the feminine aspect prevails, which I find to be good and exciting.”»
Mais, aqui, sobre a questão das traduções da Bíblia neutras em relação à questão do género.
Exemplos:
«”Perhaps, you know the sentence from the Epistle to the Romans, in which Paul says: 'I admonish you, dear brothers.' In the new translation, we have 'I encourage you, brothers and sisters,'" Janssen said. "Women were members of the communities at the time. They were prophetesses, teachers, or disciples. They were also there in the everyday life as artisans or fishers. It is them that we are making visible in our translation.”»
Ou ainda,
«The history of Christianity has also been characterized by anti-Semitic sentiments, which kept being disseminated by various biblical translations.
“When, for example, in the Gospel according to John, one reads about the 'Jews,' people say today that Jesus was confronting the Jews. Our translation makes it clear that Jesus was confronting the Jews, but also that he was a Jew himself. We tried to highlight that in various places.”»
E também,
«In many new translations, God is referred to in the feminine form to stress the fact that God exists beyond the polarity of the sexes.
“We are very much used to speaking about God in the masculine," Crüsemann said. "In the new translation, however, the feminine aspect prevails, which I find to be good and exciting.”»
Mais, aqui, sobre a questão das traduções da Bíblia neutras em relação à questão do género.
21 fevereiro 2007
Os juízes e a liberdade de expressão
Concordo inteiramente com as ideias que Pacheco Pereira expendeu no seu “Abrupto” sobre a liberdade de expressão dos juízes em público a respeito de decisões judiciais de processos em curso.
A propósito do que se tem passado, ele escreveu:
Ou é impressão minha ou os juízes andam a falar demais? É evidente que os juízes são cidadãos como outros quaisquer mas haver juízes a criticar decisões de outros juízes em público, em processos que ainda estão em aberto, a não ser em casos de interesse público relevante, quase de crise das instituições, de ameaça à democracia, de obrigação moral excepcional, não me parece que tenha outro efeito senão dissolver a autoridade dos próprios juízes face aos cidadãos que deles esperam distância, prudência, sensatez e alguma reserva. A reserva do poder.Dito isto, não tenho qualquer dúvida que não vale a pena dizê-lo. A mediatização da vida toda não parará à porta dos tribunais nem da cabeça dos juízes. Eles querem, como toda a gente, participar na grande cacofonia universal e tornar-se como os outros. A ilusão está em que, tornando-se como os outros, pensam que poderão manter o estatuto e os poderes que hoje têm. Estão enganados, mas ninguém os vai convencer disso, porque também eles querem ser “protagonistas”.
Ora, isto nada tem a ver com as ideias que os juízes possam exprimir acerca deste ou daquele problema em discussão, expressando o seu ponto de vista, mas evitando imiscuir-se no caso concreto. Dizia Trindade Coelho, um ilustre magistrado que muito se preocupou com a liberdade de expressão em geral e com as dos magistrados em particular, ele próprio tendo disseminado por uma série de jornais escritos seus em que opinava sobre questões momentosas, que “tudo se pode dizer; a questão é sabê-lo dizer”.
Pronunciar-se sobre questões de processos pendentes exige cautela e tacto. Mas criticar abertamente decisões de outros juízes é coisa que, em princípio, não me parece admissível, por todas as razões, a começar por razões de deontologia e, sobretudo por razões que se prendem com a credibilidade das instituições judiciárias. A crítica aberta e generalizada a esse nível desautoriza os tribunais e confunde os cidadãos, que são os sustentáculos do poder soberano, no qual radica o exercício da administração da justiça.
Só em caos excepcionais, do tipo daqueles que são referidos por Pacheco Pereira, é que será admissível quebrar o dever de reserva.
Isto não é uma limitação à liberdade de expressão. Quando muito, é um exercício de auto-regulação, em que entra a ponderação criteriosa de interesses conflituantes. Se isto não for compreendido, então isso é um sinal de que se não interiorizaram adequadamente as exigências da função.
Muitas vezes pensa-se que, demarcando-se de determinada decisão, se salvaguarda o prestígio de um múnus que se não quer ver associado a vilipendiados interesses corporativos ou a posições que um determinado pensamento dominante tem como sintomas de crise, mas a verdade é que, quase sempre, é o narcisismo que aflora e toma a bandeira de um protagonismo fácil.
A propósito do que se tem passado, ele escreveu:
Ou é impressão minha ou os juízes andam a falar demais? É evidente que os juízes são cidadãos como outros quaisquer mas haver juízes a criticar decisões de outros juízes em público, em processos que ainda estão em aberto, a não ser em casos de interesse público relevante, quase de crise das instituições, de ameaça à democracia, de obrigação moral excepcional, não me parece que tenha outro efeito senão dissolver a autoridade dos próprios juízes face aos cidadãos que deles esperam distância, prudência, sensatez e alguma reserva. A reserva do poder.Dito isto, não tenho qualquer dúvida que não vale a pena dizê-lo. A mediatização da vida toda não parará à porta dos tribunais nem da cabeça dos juízes. Eles querem, como toda a gente, participar na grande cacofonia universal e tornar-se como os outros. A ilusão está em que, tornando-se como os outros, pensam que poderão manter o estatuto e os poderes que hoje têm. Estão enganados, mas ninguém os vai convencer disso, porque também eles querem ser “protagonistas”.
Ora, isto nada tem a ver com as ideias que os juízes possam exprimir acerca deste ou daquele problema em discussão, expressando o seu ponto de vista, mas evitando imiscuir-se no caso concreto. Dizia Trindade Coelho, um ilustre magistrado que muito se preocupou com a liberdade de expressão em geral e com as dos magistrados em particular, ele próprio tendo disseminado por uma série de jornais escritos seus em que opinava sobre questões momentosas, que “tudo se pode dizer; a questão é sabê-lo dizer”.
Pronunciar-se sobre questões de processos pendentes exige cautela e tacto. Mas criticar abertamente decisões de outros juízes é coisa que, em princípio, não me parece admissível, por todas as razões, a começar por razões de deontologia e, sobretudo por razões que se prendem com a credibilidade das instituições judiciárias. A crítica aberta e generalizada a esse nível desautoriza os tribunais e confunde os cidadãos, que são os sustentáculos do poder soberano, no qual radica o exercício da administração da justiça.
Só em caos excepcionais, do tipo daqueles que são referidos por Pacheco Pereira, é que será admissível quebrar o dever de reserva.
Isto não é uma limitação à liberdade de expressão. Quando muito, é um exercício de auto-regulação, em que entra a ponderação criteriosa de interesses conflituantes. Se isto não for compreendido, então isso é um sinal de que se não interiorizaram adequadamente as exigências da função.
Muitas vezes pensa-se que, demarcando-se de determinada decisão, se salvaguarda o prestígio de um múnus que se não quer ver associado a vilipendiados interesses corporativos ou a posições que um determinado pensamento dominante tem como sintomas de crise, mas a verdade é que, quase sempre, é o narcisismo que aflora e toma a bandeira de um protagonismo fácil.
20 fevereiro 2007
Desinteligências públicas e kafkianismo
As pretensas “desinteligências públicas entre altos magistrados” a propósito das custas do “habeas corpus” para obtenção da libertação do sargento Luís Gomes “não condenaram, uma vez mais, a justiça à pesada sentença da descredibilidade”, ao contrário do que escreveu o jornalista João Garcia do “Expresso”, que substituiu o arguto José António Lima nos “Altos e Baixos.” Chamar “desinteligência públicas” a opiniões divergentes, em matéria de interpretação da lei, é, no mínimo, não saber do que se está a falar. E dizer que há descredibilização da justiça, porque nem eles (os tais altos magistrados) se entendem, é ter uma visão demasiado popularucha da justiça. Quem assim se descredibiliza não é a justiça, de certeza.
E já que falo do “Expresso”, o seu Director, Henrique Monteiro, talvez pudesse arranjar uma melhor história, e mais consistente, para ilustrar aquilo que já é um lugar comum, sempre que se fala de justiça – o seu kafkianismo.
E já que falo do “Expresso”, o seu Director, Henrique Monteiro, talvez pudesse arranjar uma melhor história, e mais consistente, para ilustrar aquilo que já é um lugar comum, sempre que se fala de justiça – o seu kafkianismo.
19 fevereiro 2007
As custas do habeas
Especulou-se sobre a questão das custas do “habeas corpus” referente à libertação do sargento Luís Gomes: se seria de pagar uma só taxa de justiça; se tantas quantos os requerentes, dada a regra de que as custas, em processo penal, são individuais. Esta questão dividiu os juristas, pelo menos alguns dos que se pronunciaram sobre a matéria.
Ora, o pagamento de dez mil taxas de justiça, para além de outras razões, iria dar azo certamente a um tal pandemónio e a uma tal complicação burocrática, que só por si iria contribuir para a imagem dos tribunais como gigantesca máquina de produção labiríntica. O tal monstro Kafkiano. Felizmente, assim não sucedeu.
Com o fim de dar a conhecer publicamente, de uma forma mais pormenorizada, as razões em que se baseou a nota do Supremo Tribunal de Justiça enviada para a comunicação social, transcrevo, com a devida autorização, o texto que serviu de base a essa nota e que, expondo com muita lucidez e argúcia técnica aquelas razões, é de autoria do relator da decisão do “habeas corpus”, o Conselheiro Pereira Madeira.
“A condenação em taxa de justiça «é sempre individual» - art.º 513.º, n.º 3, do CPP - no pressuposto de que cada recorrente defenda um interesse próprio no processo.
É justo que assim seja: se cada um dos recorrentes, mesmo num único procedimento de recurso, tenta obter um benefício pessoal, dá autonomamente causa a custas, pelo que deve suportar a taxa correspondente à prestação do serviço por ele pedido à Justiça.
Porém, no caso do presente procedimento de habeas corpus, os cidadãos subscritores encabeçaram, todos eles em conjunto, o interesse de um só. E que nem sequer era um deles.
De resto, tal como lhes é facultado pela disposição especialíssima do artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em claro afastamento do regime dos recursos ordinários que, como resulta do disposto no artigo 401.º do mesmo corpo de leis, só podem ser interpostos pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis, ou os que tiverem sido condenados em custas ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão. O que, mais uma vez, demonstra que o procedimento excepcional em causa não é um recurso e como tal também não tem de obedecer a idêntico regime de custas.
Tudo se passa como se, no seu conjunto, aqueles cidadãos estivessem no lugar do único preso que queriam ver imediatamente restituído à liberdade.
Não foram formalizados na petição de habeas corpus tantos interesses, e, assim, tantos pedidos individuais de que cumprisse conhecer, quantos os requerentes. Pelo contrário, todos os subscritores se conjugaram na defesa do interesse do preso, de um preso, solidarizando-se, assim, em torno de um só pedido para o que estavam legitimados, ao invés do que sucederia num recurso ordinário como se viu.
Vigorando em matéria de custas judiciais um conhecido princípio de causalidade – paga as custas quem lhe dá causa – logo se percebe que os requerentes, melhor, o universo dos requerentes, apenas motivou a apreciação jurisdicional de um [só] pedido com os mesmos singulares fundamentos a que todos aderiram subscrevendo-o: a libertação imediata do arguido preso. Logo, não deram causa a custas para além das que emergem da apreciação desse único pedido de habeas corpus.
Portanto, pese embora a pluralidade de subscritores, daí não resultou qualquer tarefa acrescida para o Supremo Tribunal de Justiça. A actividade jurisdicional despendida foi a mesma que teria de ser acaso o subscritor fosse um só, com ou sem patrocínio de advogado, por vezes, até, manuscrito na prisão pelo próprio preso, como tantas vezes tem acontecido.
Assim, tem cabimento jurídico a solução segundo a qual, num caso de procedimento excepcional como este, em vez de pagarem 10.000 taxas de justiça – o que seria absurdo até pela exorbitância do montante global das custas assim devidas em manifesta desproporção com a actividade jurisdicional reclamada, e, que, por isso, não passaria pela mente de um qualquer juiz dotado de um mínimo de sensatez – paguem uma só taxa, correspondente ao único pedido que subscreveram e foi julgado e a cujas custas em conjunto deram causa. (…)”
Ora, o pagamento de dez mil taxas de justiça, para além de outras razões, iria dar azo certamente a um tal pandemónio e a uma tal complicação burocrática, que só por si iria contribuir para a imagem dos tribunais como gigantesca máquina de produção labiríntica. O tal monstro Kafkiano. Felizmente, assim não sucedeu.
Com o fim de dar a conhecer publicamente, de uma forma mais pormenorizada, as razões em que se baseou a nota do Supremo Tribunal de Justiça enviada para a comunicação social, transcrevo, com a devida autorização, o texto que serviu de base a essa nota e que, expondo com muita lucidez e argúcia técnica aquelas razões, é de autoria do relator da decisão do “habeas corpus”, o Conselheiro Pereira Madeira.
“A condenação em taxa de justiça «é sempre individual» - art.º 513.º, n.º 3, do CPP - no pressuposto de que cada recorrente defenda um interesse próprio no processo.
É justo que assim seja: se cada um dos recorrentes, mesmo num único procedimento de recurso, tenta obter um benefício pessoal, dá autonomamente causa a custas, pelo que deve suportar a taxa correspondente à prestação do serviço por ele pedido à Justiça.
Porém, no caso do presente procedimento de habeas corpus, os cidadãos subscritores encabeçaram, todos eles em conjunto, o interesse de um só. E que nem sequer era um deles.
De resto, tal como lhes é facultado pela disposição especialíssima do artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em claro afastamento do regime dos recursos ordinários que, como resulta do disposto no artigo 401.º do mesmo corpo de leis, só podem ser interpostos pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis, ou os que tiverem sido condenados em custas ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão. O que, mais uma vez, demonstra que o procedimento excepcional em causa não é um recurso e como tal também não tem de obedecer a idêntico regime de custas.
Tudo se passa como se, no seu conjunto, aqueles cidadãos estivessem no lugar do único preso que queriam ver imediatamente restituído à liberdade.
Não foram formalizados na petição de habeas corpus tantos interesses, e, assim, tantos pedidos individuais de que cumprisse conhecer, quantos os requerentes. Pelo contrário, todos os subscritores se conjugaram na defesa do interesse do preso, de um preso, solidarizando-se, assim, em torno de um só pedido para o que estavam legitimados, ao invés do que sucederia num recurso ordinário como se viu.
Vigorando em matéria de custas judiciais um conhecido princípio de causalidade – paga as custas quem lhe dá causa – logo se percebe que os requerentes, melhor, o universo dos requerentes, apenas motivou a apreciação jurisdicional de um [só] pedido com os mesmos singulares fundamentos a que todos aderiram subscrevendo-o: a libertação imediata do arguido preso. Logo, não deram causa a custas para além das que emergem da apreciação desse único pedido de habeas corpus.
Portanto, pese embora a pluralidade de subscritores, daí não resultou qualquer tarefa acrescida para o Supremo Tribunal de Justiça. A actividade jurisdicional despendida foi a mesma que teria de ser acaso o subscritor fosse um só, com ou sem patrocínio de advogado, por vezes, até, manuscrito na prisão pelo próprio preso, como tantas vezes tem acontecido.
Assim, tem cabimento jurídico a solução segundo a qual, num caso de procedimento excepcional como este, em vez de pagarem 10.000 taxas de justiça – o que seria absurdo até pela exorbitância do montante global das custas assim devidas em manifesta desproporção com a actividade jurisdicional reclamada, e, que, por isso, não passaria pela mente de um qualquer juiz dotado de um mínimo de sensatez – paguem uma só taxa, correspondente ao único pedido que subscreveram e foi julgado e a cujas custas em conjunto deram causa. (…)”
16 fevereiro 2007
OS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM RISCO
Ultimamente os trabalhadores da Administração Pública (AP) são o alvo preferencial do ataque das estruturas do poder político, em especial, e estranhamente, do Governo. Daí que comecem a surgir efeitos ou consequências das recentes medidas governamentais do PRACE e do Simplex, sobretudo, ao nível dos quadros e dos postos de trabalho, desde logo, porque há fusões e extinções de organismos públicos, e também efeitos das medidas de contenção financeira do Orçamento do Estado, com a inexistência de abertura de postos de trabalho. E agora serão os resultados da discussão acerca das funções do Estado.
Este tema recorrente pode ser teoricamente muito interessante – foi até objecto das Jornadas Parlamentares do PS: a reforma da Administração Pública -, mas quem o discute esquece a projecção no universo dos trabalhadores da AP, se, como se antevê, a tendência vier a apontar para o “emagrecimento do Estado”. À fórmula “mais Estado, melhores serviços” contrapõe-se agora “menos Estado, serviços reduzidos”, através da devolução ao sector privado, mesmo encapotada, das incumbências que a política e a Constituição assinalam ao Estado.
Se o Estado existe, como ficção jurídica e como resultado da dominação de uma classe social sobre as outras classes sociais, para servir a comunidade e dar satisfação às necessidades colectivas que ela sente, cada vez mais múltiplas e variadas, a escolha de umas tantas e o abandono de outras só pode significar o tal “emagrecimento do Estado”.
Pelos vistos, o que se pretende é fixar apenas um núcleo duro e reduzido, no essencial, às chamadas funções de soberania: segurança, defesa, diplomacia e justiça. Tudo o mais ficará à margem directa do Estado (educação, saúde e, de modo geral, o bem-estar dos cidadãos).
O custo de tudo isso vai pesar forte nos trabalhadores da AP, na sua vinculação ao Estado, no nível salarial e na insegurança das reformas. O risco está aí bem presente.
Guilherme da Fonseca
Este tema recorrente pode ser teoricamente muito interessante – foi até objecto das Jornadas Parlamentares do PS: a reforma da Administração Pública -, mas quem o discute esquece a projecção no universo dos trabalhadores da AP, se, como se antevê, a tendência vier a apontar para o “emagrecimento do Estado”. À fórmula “mais Estado, melhores serviços” contrapõe-se agora “menos Estado, serviços reduzidos”, através da devolução ao sector privado, mesmo encapotada, das incumbências que a política e a Constituição assinalam ao Estado.
Se o Estado existe, como ficção jurídica e como resultado da dominação de uma classe social sobre as outras classes sociais, para servir a comunidade e dar satisfação às necessidades colectivas que ela sente, cada vez mais múltiplas e variadas, a escolha de umas tantas e o abandono de outras só pode significar o tal “emagrecimento do Estado”.
Pelos vistos, o que se pretende é fixar apenas um núcleo duro e reduzido, no essencial, às chamadas funções de soberania: segurança, defesa, diplomacia e justiça. Tudo o mais ficará à margem directa do Estado (educação, saúde e, de modo geral, o bem-estar dos cidadãos).
O custo de tudo isso vai pesar forte nos trabalhadores da AP, na sua vinculação ao Estado, no nível salarial e na insegurança das reformas. O risco está aí bem presente.
Guilherme da Fonseca
A FIGURA DO RECURSO DE AMPARO: UM DÉFICE DEMOCRÁTICO
A propósito do caso mediático do Sargento Luís Gomes, condenado a pena de prisão grave pelo crime de sequestro, a minha atenção foi desperta de novo para o recurso de amparo, que tenho defendido para ser incluído no leque das competências do Tribunal Constitucional, como meio de defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias, que a Constituição consagra a bem do cidadão.
É que uma solução rápida e eficaz para a situação da prisão do Sargento Luís Gomes poderia alcançar-se no nosso sistema jurídico-constitucional se funcionasse um recurso de amparo, à semelhança do que acontece na vizinha Espanha.
Com efeito, esse recurso permitiria ao Sargento directa e imediatamente impugnar a sentença condenatória junto do Tribunal Constitucional e este com rapidez iria decidir se o recorrente poderia ser libertado e, consequentemente, aguardar em liberdade o desenrolar do processo.
Doutro modo, como funciona actualmente o nosso sistema judiciário, o Sargento Luís Gomes terá de aguardar na prisão o resultado final do processo, em especial, o recurso jurisdicional que certamente interpôs para o Tribunal da Relação.
Mas, o recurso de amparo não suscitaria certamente nenhum obstáculo quanto ao seu conhecimento de fundo e o Tribunal Constitucional dar-lhe-ia provimento, com toda a certeza, em defesa do direito à liberdade.
Para quando a previsão na Constituição do recurso de amparo?
Guilherme da Fonseca
É que uma solução rápida e eficaz para a situação da prisão do Sargento Luís Gomes poderia alcançar-se no nosso sistema jurídico-constitucional se funcionasse um recurso de amparo, à semelhança do que acontece na vizinha Espanha.
Com efeito, esse recurso permitiria ao Sargento directa e imediatamente impugnar a sentença condenatória junto do Tribunal Constitucional e este com rapidez iria decidir se o recorrente poderia ser libertado e, consequentemente, aguardar em liberdade o desenrolar do processo.
Doutro modo, como funciona actualmente o nosso sistema judiciário, o Sargento Luís Gomes terá de aguardar na prisão o resultado final do processo, em especial, o recurso jurisdicional que certamente interpôs para o Tribunal da Relação.
Mas, o recurso de amparo não suscitaria certamente nenhum obstáculo quanto ao seu conhecimento de fundo e o Tribunal Constitucional dar-lhe-ia provimento, com toda a certeza, em defesa do direito à liberdade.
Para quando a previsão na Constituição do recurso de amparo?
Guilherme da Fonseca
Novo blog
Disintilligentsia Juridica. Um novo blog de Direito, a seguir com atenção.
Falta de "fair play"
Um deputado independente à Assembleia Regional dos Açores apresentou uma extraordinária proposta àquele órgão legislativo no sentido de obstar a que lei da República descriminalizadora do aborto praticado até às 10 semanas seja aplicada nos Açores, em respeito pela vontade popular expressa no arquipélago, onde o “Não” venceu por larga margem.
Alinhando pela mesma bitola, o Presidente da Região Autónoma da Madeira afirmou, ontem, que por o resultado do referendo não ter sido juridicamente vinculativo há razões para suscitar a inconstitucionalidade da lei descriminalizadora que venha a ser aprovada.
Parece, ainda, que há quem sustente, relativamente aos factos susceptíveis de integrarem crime de aborto praticado antes da entrada em vigor da lei descriminalizadora, que eles continuam a ser puníveis desde que aquele ilícito penal não tenha sido praticado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, como se antes da entrada em vigor da nova lei existissem estabelecimentos legalmente autorizados para …. efectuarem abortos até essa altura ilegais!
Não haveria razão para preocupação se todos esses dislates relevassem, apenas, de olímpica ignorância da Lei Constitucional ou de elementares princípios de Direito Penal (e mesmo da mais rudimentar lógica, quanto ao “problema” da aplicação retroactiva da lei mais favorável às arguidas, mesmo que tenham abortado em “estabelecimento de saúde não autorizado”). O que de facto desassossega é que tais posições são demonstrativas de uma atávica resistência aos valores da democracia (onde não há lugar para “mau perder”) e aos instrumentos em que eles se expressam. Para citar um ilustre penalista, a propósito de questão bem distinta, não se trata, nas citadas posições, de “erro intelectual”. Do que se trata, está bom de ver, é de “erro da consciência ética”.
Alinhando pela mesma bitola, o Presidente da Região Autónoma da Madeira afirmou, ontem, que por o resultado do referendo não ter sido juridicamente vinculativo há razões para suscitar a inconstitucionalidade da lei descriminalizadora que venha a ser aprovada.
Parece, ainda, que há quem sustente, relativamente aos factos susceptíveis de integrarem crime de aborto praticado antes da entrada em vigor da lei descriminalizadora, que eles continuam a ser puníveis desde que aquele ilícito penal não tenha sido praticado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, como se antes da entrada em vigor da nova lei existissem estabelecimentos legalmente autorizados para …. efectuarem abortos até essa altura ilegais!
Não haveria razão para preocupação se todos esses dislates relevassem, apenas, de olímpica ignorância da Lei Constitucional ou de elementares princípios de Direito Penal (e mesmo da mais rudimentar lógica, quanto ao “problema” da aplicação retroactiva da lei mais favorável às arguidas, mesmo que tenham abortado em “estabelecimento de saúde não autorizado”). O que de facto desassossega é que tais posições são demonstrativas de uma atávica resistência aos valores da democracia (onde não há lugar para “mau perder”) e aos instrumentos em que eles se expressam. Para citar um ilustre penalista, a propósito de questão bem distinta, não se trata, nas citadas posições, de “erro intelectual”. Do que se trata, está bom de ver, é de “erro da consciência ética”.
13 fevereiro 2007
O preço da demagogia
Foi quase comovedora a agonia de um Sr. advogado / professor de Direito, ontem, no reality show mais conhecido por Prós & Contras, quando confrontado com a possibilidade de a habilidade mediático-judiciária do habeas corpus no “caso Esmeralda” custar, a cada um dos 10000 peticionantes, a módica quantia de 480€.
Cambalhotas de hermenêutica, piruetas analógicas e cascatas de bom-senso, tudo serviu de argumentário para afastar a aplicação de um artigozinho do CPP que prescreve, de modo muito singelo, que a taxa de justiça em processo penal “é sempre individual”. O legislador deveria ser menos insensível ao circo demagógico-mediático e consagrar uma excepção tipo: “Não há lugar a taxa de justiça se a providência de habeas corpus for requerida por mais de mil cidadãos, orientados por professor de direito, como modo de induzir levantamento popular contra decisão judicial e desde que esse levantamento seja noticiado, pelo menos, em dois canais de televisão e durante uma semana”.
Acontece, porém, que a providência de habeas corpus é coisa muito séria; tem dignidade constitucional e não deve ser requerida por “dá cá aquela palha”. Subscrevê-la porque é dada a assinar numa bomba de gasolina leva resultados como este.
A glória dos patrocinadores deste tipo de hapenings é, como se vê, efémera. Pena é que não sejam apenas eles, os instigadores da turba, a pagar a fava.
12 fevereiro 2007
"Só faltam oito anos..."
Tem algum sentido pôr em causa a legitimidade do resultado do referendo para mudar a lei?
Quanto à participação: é comparável uma abstenção de 68% (1998) a outra de 56% (2007)?
Será razoável esperar uma participação em referendo superior a 50%, enquanto os cadernos eleitorais não forem automaticamente actualizados e os referendos não coincidirem com eleições políticas (como geralmente acontece onde eles existem)?
Uma diferença de 19% entre o "sim" e o "não" não é significativo?
Já agora: há algum país (tirando a Polónia) em que se voltasse atrás em matéria de IVG? Nem o Bush filho tentou!
Eduardo Maia Costa
Quanto à participação: é comparável uma abstenção de 68% (1998) a outra de 56% (2007)?
Será razoável esperar uma participação em referendo superior a 50%, enquanto os cadernos eleitorais não forem automaticamente actualizados e os referendos não coincidirem com eleições políticas (como geralmente acontece onde eles existem)?
Uma diferença de 19% entre o "sim" e o "não" não é significativo?
Já agora: há algum país (tirando a Polónia) em que se voltasse atrás em matéria de IVG? Nem o Bush filho tentou!
Eduardo Maia Costa
Cinquenta e seis por cento.
Cerca de cinquenta e seis em cada cem cidadãs e cidadãos deste país entenderam que nada tinham a dizer sobre a pergunta que lhes foi colocada ontem. Cinquenta e seis pessoas em cem entenderam, porventura, que a questão que lhes era pública e oficialmente dirigida não era de tal modo importante que justificasse uma saída à rua e uns pingos de chuva. Parece-me dramático, do ponto de vista da responsabilidade cívica e política, que essas cinquenta e seis pessoas pensem que uma questão como a da despenalização do aborto, nas circunstâncias enunciadas, nada lhes diz respeito e que deixem aos demais a resposta definitiva sobre o assunto. Reflecte, a meu ver e apesar de tudo, a cinzenta apatia da sociedade portuguesa que, mesmo quando solenemente chamada a intervir, não é, na sua maioria, capaz de agir.
De todo o modo, a verdade é que três milhões, oitocentos e cinquenta e um mil, seiscentos e treze cidadãs e cidadaõs entenderam ter uma palavra a dizer. E felizmente que a maior parte daquelas e daqueles percebeu o que realmente se discutia e considerou que não existe espaço, num Código Penal democrático, para a criminalização de condutas cuja valoração passa, essencialmente, pela ordem moral pessoal e não pela óptica valorativa de cariz constitucional. Cumpre, agora, com redobrada razão, colocar algumas destas questões e dar-lhes solução legal rápida e adequada.
Para além disso, a resposta ao referendo é, a meu ver, um passo que denota, ainda que com necessidade de recurso a uma discutível legitimidade popular referendária, um evidente distanciamento do Estado face à doutrina da Igreja Católica no plano das relações familiares, que, de um ponto de vista optimista, augura um aprofundamento da legalidade laica e um recuo saudável do Estado face a uma moral religiosa, seguramente não unânime.
De todo o modo, a verdade é que três milhões, oitocentos e cinquenta e um mil, seiscentos e treze cidadãs e cidadaõs entenderam ter uma palavra a dizer. E felizmente que a maior parte daquelas e daqueles percebeu o que realmente se discutia e considerou que não existe espaço, num Código Penal democrático, para a criminalização de condutas cuja valoração passa, essencialmente, pela ordem moral pessoal e não pela óptica valorativa de cariz constitucional. Cumpre, agora, com redobrada razão, colocar algumas destas questões e dar-lhes solução legal rápida e adequada.
Para além disso, a resposta ao referendo é, a meu ver, um passo que denota, ainda que com necessidade de recurso a uma discutível legitimidade popular referendária, um evidente distanciamento do Estado face à doutrina da Igreja Católica no plano das relações familiares, que, de um ponto de vista optimista, augura um aprofundamento da legalidade laica e um recuo saudável do Estado face a uma moral religiosa, seguramente não unânime.
11 fevereiro 2007
Mulheres do meu país
Hoje é um dia histórico para as mulheres portuguesas. Tanto, pelo menos, como quando adquiriram o direito ao sufrágio, como quando passaram a ter direito ao divórcio. Hoje ganharam o direito a controlo da fertilidade, acabando com a escravatura da maternidade indesejada.
A partir de hoje as mulheres portuguesas vão ser cidadãs na plenitude dos seus direitos.
É claro que é preciso agora legislar. E legislar rapidamente, porque o aborto clandestino vai continuar a ser uma realidade de todos os dias até lá.
Recordo, neste momento, o nome de uma mulher: Lisete, do Aldoar, bairro degradado do Porto. Morreu no final de 1998, alguns meses depois do primeiro referendo, em consequência de complicações decorrentes de um aborto clandestino. Uma vida que foi imolada no altar da intolerância e do dogmatismo ideológico do "não".
(este texto vai sair em nome da Patrícia Agostinho por "motivos técnicos, mas é meu, de Eduardo Maia Costa)
A partir de hoje as mulheres portuguesas vão ser cidadãs na plenitude dos seus direitos.
É claro que é preciso agora legislar. E legislar rapidamente, porque o aborto clandestino vai continuar a ser uma realidade de todos os dias até lá.
Recordo, neste momento, o nome de uma mulher: Lisete, do Aldoar, bairro degradado do Porto. Morreu no final de 1998, alguns meses depois do primeiro referendo, em consequência de complicações decorrentes de um aborto clandestino. Uma vida que foi imolada no altar da intolerância e do dogmatismo ideológico do "não".
(este texto vai sair em nome da Patrícia Agostinho por "motivos técnicos, mas é meu, de Eduardo Maia Costa)
Errata
Garantimos que não somos esquizofrénicos e que não temos problemas de identificação pessoal. A verdade é só uma: dois licenciados em Direito armados em informáticos deu nisto.
Assim onde se lê "Patrícia Naré Agostinho" em alguns dos posts que estão abaixo deve ler-se "Eduardo Maia Costa". Não podemos elencar um a um mas achamos que pelo estilo chegam lá.
Boa sorte!
Patrícia e Eduardo Maia Costa
A imprensa portuguesa, segundo Álvaro de Campos
(Enquanto não vêm os resultados ou, pelo menos, as sondagens do referendo, leia boa poesia)
Ora porra!
Então a imprensa portuguesa
é que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.
(poema sem data)
Ora porra!
Então a imprensa portuguesa
é que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.
(poema sem data)
10 fevereiro 2007
Imagem
"Uma imagem vale mil palavras" é comum ouvir-se dizer. Face à visualização, a descrição é desnecessária, pois as imagens falam por si. As imagens falam, dizem, literalmente, do ponto de vista de quem as capta, não são inócuas; fixam um momento, mas nem sempre fixam a realidade.
09 fevereiro 2007
Dos bons baixos salários
Ou de como os baixos salários do nosso povo são um trunfo inesperado para o estabelecimento de relações cordiais e sobretudo comerciais com outros povos dos confins da Terra, que o extraordinário progresso do nosso tempo tornou mais próximos do que alguma vez se imaginou.
Desta vez, a proposta não é minha, e bem pena tenho que a autoria me tenha sido sonegada por quem, com um inegável brilho, se adiantou a fazê-la. Refiro-me à proposta do nosso Senhor D. Manuel Pinho, o ilustre e sempre ilustrado ministro da Economia do nosso reino.
Dá-se o caso de, viajando pelas longínquas terras do império chino com o nosso ilustríssimo primeiro-ministro, aquele discreto, mas eficaz membro do nosso governo ter aproveitado o ensejo para propor a venda de um produto que tanto pode contribuir para dilatar o nosso comércio com os povos daqueles reinos do Levante. Refiro-me à mão-de-obra lusíada. Aquele nosso respeitável ministro, com o intento de atrair o investimento da gente china ao nosso reino não se cansou de exaltar o aspecto sedutor dessa nossa veniaga: barata, encantadora e muito boa para quem queira tirar dela um partido recompensador, ou seja, em termos menos ortodoxos nos tempos que correm, uma boa taxa de exploração.
Sempre movido pelo desejo de encarecimento patriótico dessa nossa referida mercadoria, o nosso simpático ministro falou sobretudo do seu extraordinário embaratecimento (coisa aparentemente paradoxal, na medida em que a estava a encarecer) e, levado por esse abnegado espírito de patriotismo, não hesitou mesmo em revelar nesses territórios distantes a verdade que, por modéstia, não ousaria dizer de portas adentro: a mão-de-obra lusíada é uma das mais baratas da Europa.
Coisa extraordinária e sobretudo verdadeira! Nós, que nunca conseguimos atrelar a carruagem (que digo eu?... a traquitana) do nosso reino à marcha do progresso dos principais reinos europeus, com excepção daquele período da nossa História em que, dando novos mundos ao Mundo, descobrimos as sonhadas Índias, voltamos a ter agora um motivo que nos põe na dianteira dessa mesma Europa: a barateza da nossa mão-de-obra. Poucos são os países europeus que se nos avantajam a essa riqueza singular. Os nossos trabalhadores são mal pagos, mas eis que reside aí um pólo de atracção para o investimento estrangeiro no nosso reino. E não qualquer investimento estrangeiro, mas o investimento desse fabuloso continente em ascensão que é o império chino, tão justamente conhecido pela agressiva competitividade com que entra na nova ordem global, devido ao nível baixo dos salários dos seus trabalhadores e aos nulos direitos de que desfrutam, os quais só como empecilhos ou obstáculos ao progresso dos novos tempos se podem conceber. Daí que o nosso atento D. Manuel Pinho tenha muito justamente acoimado os sindicatos, que tão malevolamente reagiram à sua patriótica proposta (as gazetas da informação são muito rápidas, hoje, a difundir as boas novas) de “forças de atraso”. Fê-lo com aquele ar de serenidade imperturbável que o caracteriza em todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas, mesmo as mais caricatas.
Tratando-se de despachar a nossa veniaga, ainda para mais no remoto império chino, podia o ilustre ministro do nosso reino não se ter dado ao trabalho de encarecer tanto os nossos baixos salários, parecendo que estava a doirar de mais a pílula, como soi dizer-se, mas manda a boa verdade que se diga que o que o moveu foi uma honesta e recta intenção, pois que justamente baixos são os salários dos nossos trabalhadores e não outra cousa, de forma que o nosso ministro estava rigorosamente a dar o valor exacto à nossa mercadoria e não a dourá-la sem pudor, ao contrário daqueles que, movidos da cobiça, lançam mão de imundas e baixas cousas, a ponto de venderem o próprio esterco dos homens como excelente veniaga, como assinalou o nosso aventureiro Fernão Mendes Pinto, quando andou vagueando por aquelas paragens.
De sorte que o nosso reino, com a sagaz proposta do nosso ministro, foi de certeza guindado a grande altura, nação ilustre entre as nações da Europa, não sendo fora de propósito a invocação, aqui, daqueles versos do nosso épico, gravados para sempre como uma exaltação do nosso valor: “E julgareis qual é mais excelente/ Se ser do mundo Rei, se de tal gente”.
Jonathan Swift (1665 – 1745)
Desta vez, a proposta não é minha, e bem pena tenho que a autoria me tenha sido sonegada por quem, com um inegável brilho, se adiantou a fazê-la. Refiro-me à proposta do nosso Senhor D. Manuel Pinho, o ilustre e sempre ilustrado ministro da Economia do nosso reino.
Dá-se o caso de, viajando pelas longínquas terras do império chino com o nosso ilustríssimo primeiro-ministro, aquele discreto, mas eficaz membro do nosso governo ter aproveitado o ensejo para propor a venda de um produto que tanto pode contribuir para dilatar o nosso comércio com os povos daqueles reinos do Levante. Refiro-me à mão-de-obra lusíada. Aquele nosso respeitável ministro, com o intento de atrair o investimento da gente china ao nosso reino não se cansou de exaltar o aspecto sedutor dessa nossa veniaga: barata, encantadora e muito boa para quem queira tirar dela um partido recompensador, ou seja, em termos menos ortodoxos nos tempos que correm, uma boa taxa de exploração.
Sempre movido pelo desejo de encarecimento patriótico dessa nossa referida mercadoria, o nosso simpático ministro falou sobretudo do seu extraordinário embaratecimento (coisa aparentemente paradoxal, na medida em que a estava a encarecer) e, levado por esse abnegado espírito de patriotismo, não hesitou mesmo em revelar nesses territórios distantes a verdade que, por modéstia, não ousaria dizer de portas adentro: a mão-de-obra lusíada é uma das mais baratas da Europa.
Coisa extraordinária e sobretudo verdadeira! Nós, que nunca conseguimos atrelar a carruagem (que digo eu?... a traquitana) do nosso reino à marcha do progresso dos principais reinos europeus, com excepção daquele período da nossa História em que, dando novos mundos ao Mundo, descobrimos as sonhadas Índias, voltamos a ter agora um motivo que nos põe na dianteira dessa mesma Europa: a barateza da nossa mão-de-obra. Poucos são os países europeus que se nos avantajam a essa riqueza singular. Os nossos trabalhadores são mal pagos, mas eis que reside aí um pólo de atracção para o investimento estrangeiro no nosso reino. E não qualquer investimento estrangeiro, mas o investimento desse fabuloso continente em ascensão que é o império chino, tão justamente conhecido pela agressiva competitividade com que entra na nova ordem global, devido ao nível baixo dos salários dos seus trabalhadores e aos nulos direitos de que desfrutam, os quais só como empecilhos ou obstáculos ao progresso dos novos tempos se podem conceber. Daí que o nosso atento D. Manuel Pinho tenha muito justamente acoimado os sindicatos, que tão malevolamente reagiram à sua patriótica proposta (as gazetas da informação são muito rápidas, hoje, a difundir as boas novas) de “forças de atraso”. Fê-lo com aquele ar de serenidade imperturbável que o caracteriza em todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas, mesmo as mais caricatas.
Tratando-se de despachar a nossa veniaga, ainda para mais no remoto império chino, podia o ilustre ministro do nosso reino não se ter dado ao trabalho de encarecer tanto os nossos baixos salários, parecendo que estava a doirar de mais a pílula, como soi dizer-se, mas manda a boa verdade que se diga que o que o moveu foi uma honesta e recta intenção, pois que justamente baixos são os salários dos nossos trabalhadores e não outra cousa, de forma que o nosso ministro estava rigorosamente a dar o valor exacto à nossa mercadoria e não a dourá-la sem pudor, ao contrário daqueles que, movidos da cobiça, lançam mão de imundas e baixas cousas, a ponto de venderem o próprio esterco dos homens como excelente veniaga, como assinalou o nosso aventureiro Fernão Mendes Pinto, quando andou vagueando por aquelas paragens.
De sorte que o nosso reino, com a sagaz proposta do nosso ministro, foi de certeza guindado a grande altura, nação ilustre entre as nações da Europa, não sendo fora de propósito a invocação, aqui, daqueles versos do nosso épico, gravados para sempre como uma exaltação do nosso valor: “E julgareis qual é mais excelente/ Se ser do mundo Rei, se de tal gente”.
Jonathan Swift (1665 – 1745)
08 fevereiro 2007
Homossexualidade, ovelhas, ciência e ideologia
Enquanto noutros sítios se especula sobre a legitimidade e as implicações políticas de um estudo sobre a homossexualidade entre ovelhas (aqui e a aqui), por cá, «uma das mais eminentes cientistas sociais em Portugal na área da família», esclarece-nos que a redução de casamentos e o aumento das uniões de facto constitui um progresso, «juízo [que] nada tem de ideológico, é uma afirmação científica» - enquanto a mediadora jornalística da «eminência» leva ao extremo o rigor científico não admitindo que se infira que onde «a proporção de mulheres é de 66 por cento» existe o «dobro de mulheres».
07 fevereiro 2007
A quem dói mais?
No últimos dias, a campanha do "não" tem acelerado em dramatização, mas com um toque "científico". Vêm médicos, embriologistas e cientistas garantir que um feto de 10 semanas é já um homenzinho (ou mulherzinha), com o coração a bater, já muito senhor de si e, supremo argumento, já capaz de sentir a dor. Uma dor que não pode verbalizar, mas para isso estão aí os defensores do "não", que são os porta-vozes dos fetos sem voz mas com dor.
E a mulher que pretende interromper a gravidez, essa não é sensível à dor? A obrigação de "aguentar" uma gravidez não desejada não provoca dor? Uma gravidez e a subsequente maternidade imposta contra a sua vontade não são uma violência dolorosa?
É claro que se poderá responder que a mulher é a culpada: se engravidou foi porque quis! Mais soezmente dir-se-á: gozou, agora que sofra as consequências da libertinagem. Que expie o pecado! Porque o desejo sexual na mulher é pecaminoso; e a gravidez é o castigo!
Por isso a dor da mulher é irrelevante. Ou melhor: é relevante como punição!
E a mulher que pretende interromper a gravidez, essa não é sensível à dor? A obrigação de "aguentar" uma gravidez não desejada não provoca dor? Uma gravidez e a subsequente maternidade imposta contra a sua vontade não são uma violência dolorosa?
É claro que se poderá responder que a mulher é a culpada: se engravidou foi porque quis! Mais soezmente dir-se-á: gozou, agora que sofra as consequências da libertinagem. Que expie o pecado! Porque o desejo sexual na mulher é pecaminoso; e a gravidez é o castigo!
Por isso a dor da mulher é irrelevante. Ou melhor: é relevante como punição!
06 fevereiro 2007
Ética directiva e silogismos – um exemplo
Mesquita ouve e retira ilações... JPP sabe-se que lê, muito, será que também extrai conclusões pessoais sobre as novas regras público(citadas)?
Quanto ao director do Público que é especialista em rigor normativo e silogismos, poderá fazer de conta que os leitores são muito burros e explicar outra vez: o que são «ligações partidárias»? ser administrador da FLAD corresponde a «ligações partidárias»?
JMF também terá dito que o «ponto central é a margem de liberdade do colunista», e que MM teria reconhecido que «haveria áreas sobre as quais não escreveria», será que a comunicação de tais pruridos o chocou?
PS- Todos sabemos que JMF não escreve sobre quem lhe paga o ordenado (alguns editoriais de que me estou a lembrar foram decerto escritos por um homónimo).
(revisto 10:50)
05 fevereiro 2007
A democracia paga-se!
Campos e Cunha, ex-ministro, apresentou hoje uma sugestão importante para o reforço da democracia. A democracia, diz ele, fica cara (já veremos em que sentido). E acrescenta: "A minha sugestão é simples: é pagar aos titulares de cargos políticos e da alta administração pública com base na média dos salários declarados em fonte de IRS nos três anos anteriores e ainda com um pequeno bónus. Assim poder-se-ia atrair os melhores para lugares onde se pode estar quatro anos ou quatro meses." (sic)
Ficamos, assim, talvez a saber as razões profundas e inconfessadas da sua demissão do cargo de ministro. Pelo menos ficamos a saber que, se algum Governo o quiser futuramente recrutar, e tendo em conta o que foi oportunamente indicado como sendo o seu rendimento, terá que abrir os cordões à bolsa, e de que maneira.
Não nos queixemos, pois. Se queremos democracia, temos de a pagar.
Ficamos, assim, talvez a saber as razões profundas e inconfessadas da sua demissão do cargo de ministro. Pelo menos ficamos a saber que, se algum Governo o quiser futuramente recrutar, e tendo em conta o que foi oportunamente indicado como sendo o seu rendimento, terá que abrir os cordões à bolsa, e de que maneira.
Não nos queixemos, pois. Se queremos democracia, temos de a pagar.
O pelotão de Portugal
André Freire, que é dos poucos que hoje em dia vale a pena ler nos jornais, comete hoje um erro de palmatória no Público. Em defesa assumida do "sim", argumenta que Portugal pertence ao "pequeníssimo pelotão" europeu das legislações mais restritivas, no qual se incluiriam a Polónia, a Irlanda, Chipre, Malta e a Suíça.
Só que a Suíça já mudou, há quase 5 anos. Efectivamente, após um referendo em Junho de 2002, a lei passou a admitir o direito de opção até às 12 semanas.
Portugal pertence afinal a um pelotão mais pequenino ainda, o pelotão da cauda...
Só que a Suíça já mudou, há quase 5 anos. Efectivamente, após um referendo em Junho de 2002, a lei passou a admitir o direito de opção até às 12 semanas.
Portugal pertence afinal a um pelotão mais pequenino ainda, o pelotão da cauda...
03 fevereiro 2007
A virtualidade da vida
Já tinha ouvido falar do Second Life através de um post de um qualquer blog, mas nunca tinha dado grande importância ao assunto e rapidamente o esqueci. Ontem ao ler um artigo na revista do Público é que fiquei a saber o que é realmente o Second Life. Nada mais, nada menos do que um jogo virtual que simula... a vida.
Nesse mundo virtual podemos criar uma personagem à la carte, sem defeitos e só virtudes. Mas sem o vil metal ao que parece não vamos muito longe (virtualíssimo!). Impressionante, impressionante é o guia oficial que contém dicas e que só tem 300 páginas. Já viram a vantagem disto: quando se entra naquele novo mundo tem-se logo acesso a um manual de instruções, essenciais para a sobrevivência!
Para os pequerruchos há o Second Life Teen e quando atingem a maioridade passam automaticamente para o mundo dos maiores e vacinados, sem passarem pela casa da partida e em vez de se irem inscrever na Escola de Condução.
O efeito mais interessante para mim do Second Life é, porém, o jogo que logo, logo foi criado pela concorrência o Get a First Life.
Os fetos de Bagão
Pegando no tema dos “fetos deserdados” abordado por Maia Costa, eu gostava de dar o meu contributo para a incongruência apontada por Bagão Félix. A meu ver não há incongruência nenhuma. Será que, havendo a perspectiva de um bom testamento para o nascituro, uma mãe será tão cruel que vá privar o embrião que traz dentro de si de vir a nascer e tornar-se, ipso facto, senhor dos bens que com tanto carinho lhe foram destinados por disposição testamentária, livrando-se do pobre embrião logo às primeiras semanas? Será que mãe alguma é capaz de espezinhar o direito desse embrião a entrar na posse dos bens e vir a gozar-se deles? Eu não conheço mães assim desnaturadas. É uma incongruência de tal maneira monstruosa, que dificilmente se concebe na prática. Ninguém priva um hipotético filho seu do direito de vir a ser alguém, com bens patrimoniais já preparadinhos para o feliz dia em que ele venha ao mundo. Isso, não. Por aqui o Não está garantido de certeza. E o Código Civil também. Bagão Félix escusa de se preocupar. Não é só um coração que bate; é a grande força tilintante da pecúnia que chama o embrião para um futuro risonho. Assim cantassem os amanhãs de todos os fetos.
Despenalizar, legalizar, liberalizar
Dizem alguns do "não", acusando o "sim": não se trata só de despenalizar, trata-se também de legalizar e de liberalizar a IVG.
Quanto a "legalizar", claro que sim, é evidente que sim, nem poderia ser de outra forma. Despenaliza-se a IVG no prazo inicial de 10 semanas para simultaneamente a legalizar, isto é, a tornar legal e praticável no próprio Serviço Nacional de Saúde. Como poderia ser de outra forma? Despenalizava-se e depois as mulheres teriam à mesma que recorrer ao circuito clandestino? Aliás, as situações de despenalização que a lei actual prevê não permitem simultaneamente a IVG legal e praticada nos hospitais públicos? Qual então o escândalo? À despenalização não pode deixar de corresponder a legalização nos estritos termo dessa despenalização.
E a "liberalização"? Palavra terrível, que aparece associada a libertinagem, a rebaldaria. Mas vamos lá com calma. A ideia de que a concessão de um "direito" de opção às mulheres, sem comprovação objectiva de uma indicação justificativa, abrirá portas à completa irresponsabilidade parece não ser muito abonatória para as mulheres portuguesas. Que ideia têm de facto das mulheres os adversários da "liberalização"? Certamente de pessoas imaturas, que precisam de tutela, que não sabem decidir sozinhas, enfim toda a imagem tradicionalista da mulher própria de uma sociedade patriarcal, que se julgava já erradicada maioritariamente na sociedade portuguesa.
Em todo o caso, deverá afirmar-se sem rodeios que ninguém quer "liberalizar" no sentido de que eles falam, ou seja, de prescindir de todo e qualquer formalismo na prossecução do "direito de opção". É sabido que a generalidade dos sistemas jurídicos que reconhecem o direito de opção estabelecem procedimentos mais ou menos rigorosos para o seu prosseguimento, nomeadamente a obrigatoriedade de consulta prévia e de um período de reflexão. Essa imposição não contraria o direito de opção, antes permite um seu exercício responsável. Mas, que fique claro: nunca tal obrigação poderá retirar à mulher a "última palavra".
Mas há quem diga que não há nenhuma garantia que venha a ser assim, que a pergunta do referendo não fala nisso. É claro que não fala, nem poderia falar, para não tornar a pergunta mais confusa (e portanto inconstitucional). Mas ninguém de boa fé porá em dúvida de que alguma regulação terá que ser estabelecida.
Acalmem-se, pois: não vem o descalabro dos costumes ou a desonra das famílias, não vamos tornar-nos numa nova Sodoma ou Gomorra. Vamos fazer as coisas como os nossos parceiros da União Europeia têm feito. É só isso que está em causa.
Quanto a "legalizar", claro que sim, é evidente que sim, nem poderia ser de outra forma. Despenaliza-se a IVG no prazo inicial de 10 semanas para simultaneamente a legalizar, isto é, a tornar legal e praticável no próprio Serviço Nacional de Saúde. Como poderia ser de outra forma? Despenalizava-se e depois as mulheres teriam à mesma que recorrer ao circuito clandestino? Aliás, as situações de despenalização que a lei actual prevê não permitem simultaneamente a IVG legal e praticada nos hospitais públicos? Qual então o escândalo? À despenalização não pode deixar de corresponder a legalização nos estritos termo dessa despenalização.
E a "liberalização"? Palavra terrível, que aparece associada a libertinagem, a rebaldaria. Mas vamos lá com calma. A ideia de que a concessão de um "direito" de opção às mulheres, sem comprovação objectiva de uma indicação justificativa, abrirá portas à completa irresponsabilidade parece não ser muito abonatória para as mulheres portuguesas. Que ideia têm de facto das mulheres os adversários da "liberalização"? Certamente de pessoas imaturas, que precisam de tutela, que não sabem decidir sozinhas, enfim toda a imagem tradicionalista da mulher própria de uma sociedade patriarcal, que se julgava já erradicada maioritariamente na sociedade portuguesa.
Em todo o caso, deverá afirmar-se sem rodeios que ninguém quer "liberalizar" no sentido de que eles falam, ou seja, de prescindir de todo e qualquer formalismo na prossecução do "direito de opção". É sabido que a generalidade dos sistemas jurídicos que reconhecem o direito de opção estabelecem procedimentos mais ou menos rigorosos para o seu prosseguimento, nomeadamente a obrigatoriedade de consulta prévia e de um período de reflexão. Essa imposição não contraria o direito de opção, antes permite um seu exercício responsável. Mas, que fique claro: nunca tal obrigação poderá retirar à mulher a "última palavra".
Mas há quem diga que não há nenhuma garantia que venha a ser assim, que a pergunta do referendo não fala nisso. É claro que não fala, nem poderia falar, para não tornar a pergunta mais confusa (e portanto inconstitucional). Mas ninguém de boa fé porá em dúvida de que alguma regulação terá que ser estabelecida.
Acalmem-se, pois: não vem o descalabro dos costumes ou a desonra das famílias, não vamos tornar-nos numa nova Sodoma ou Gomorra. Vamos fazer as coisas como os nossos parceiros da União Europeia têm feito. É só isso que está em causa.
02 fevereiro 2007
Populismo penal
O populismo penal é uma doença moderna da democracia. A "democracia de opinião", alimentada pelos meios de comunicação social, que medeiam e controlam o "sentimento popular", sobrepõe-se às instituições e ao exercício constitucional dos poderes.
No âmbito penal, geralmente a opinião exprime-se de forma rude, quase primitiva, contra todos os desviantes e especialmente contra certas categorias de delinquentes. Não é raro aparecer algum "popular" na TV, à porta dum tribunal onde um suspeito de crime grave (sexual, nomeadamente) está a ser ouvido, a sugerir que ele seja dependurado no candeeiro público mais próximo, ou que se meta no meio das matas em chamas os suspeitos de lhes pegar o fogo, e indigna-se perante a passividade da justiça.
Outras vezes, porém, o "sentimento popular" dá para se enternecer com certos arguidos e então transborda de emoção e verte grossas lágrimas pelo seu sofrimento nas mãos da implacável justiça.
Mas não se creia que o populismo penal se circunscreve aos populares, à "populaça" que tem o seu breve tempo de antena na TV para promoção das audiências. O populismo chegou às "elites". É o que se pode concluir da afirmação de uma professora de direito que entende que os tribunais, nas suas decisões, devem ter em conta a "consciência moral do povo". Esta afirmação é das ideias mais reaccionárias que tenho ouvido ultimamente, apesar de ter uma capa progressista. Onde estamos nós? Num Estado de direito, regido pela Constituição, ou num regime político governado ao sabor do "sentimento popular", tal como é interpretado e protagonizado por certas "elites"?
No âmbito penal, geralmente a opinião exprime-se de forma rude, quase primitiva, contra todos os desviantes e especialmente contra certas categorias de delinquentes. Não é raro aparecer algum "popular" na TV, à porta dum tribunal onde um suspeito de crime grave (sexual, nomeadamente) está a ser ouvido, a sugerir que ele seja dependurado no candeeiro público mais próximo, ou que se meta no meio das matas em chamas os suspeitos de lhes pegar o fogo, e indigna-se perante a passividade da justiça.
Outras vezes, porém, o "sentimento popular" dá para se enternecer com certos arguidos e então transborda de emoção e verte grossas lágrimas pelo seu sofrimento nas mãos da implacável justiça.
Mas não se creia que o populismo penal se circunscreve aos populares, à "populaça" que tem o seu breve tempo de antena na TV para promoção das audiências. O populismo chegou às "elites". É o que se pode concluir da afirmação de uma professora de direito que entende que os tribunais, nas suas decisões, devem ter em conta a "consciência moral do povo". Esta afirmação é das ideias mais reaccionárias que tenho ouvido ultimamente, apesar de ter uma capa progressista. Onde estamos nós? Num Estado de direito, regido pela Constituição, ou num regime político governado ao sabor do "sentimento popular", tal como é interpretado e protagonizado por certas "elites"?
01 fevereiro 2007
Educação sexual para a castidade?
Com o devido respeito pelo Cardeal Policarpo, parece-me absolutamente peregrina a ideia de uma educação sexual orientada na "perspectiva da castidade". Seria como andar em aulas de condução para aprender a não conduzir... Aprende-se um saber para o praticar (com sabedoria, evidentemente, por isso se aprende), não para o evitar.
Mas esta posição revele afinal que a Igreja (a hierarquia) parece estar como dantes. O horror ao sexo é algo de medonho, é a renúncia ao que há de mais humano em nós: o Eros (na formulação freudiana), ou seja, a afectividade partilhada, a alegria, a criação, a vida. O adversário de Eros é Thanatos, a destruição, a morte.
A educação sexual deve ser a educação para seguir o Eros. Para formar pessoas que encarem saudavelmente o sexo, enquanto parcela nuclear da nossa vida humana, essencial ao livre desenvolvimento da nossa personalidade.
Mas esta posição revele afinal que a Igreja (a hierarquia) parece estar como dantes. O horror ao sexo é algo de medonho, é a renúncia ao que há de mais humano em nós: o Eros (na formulação freudiana), ou seja, a afectividade partilhada, a alegria, a criação, a vida. O adversário de Eros é Thanatos, a destruição, a morte.
A educação sexual deve ser a educação para seguir o Eros. Para formar pessoas que encarem saudavelmente o sexo, enquanto parcela nuclear da nossa vida humana, essencial ao livre desenvolvimento da nossa personalidade.
Fetos deserdados?
A campanha do referendo tem proporcionado alguns momentos hilariantes, com alguns "argumentos" de inultrapassável humor (involuntário, que é sempre o melhor).
Por exemplo o argumentário testamentário-patrimonial de Bagão Félix, essa luminária do nosso pensamento sócio-capitalista. Invocou ele, como supremo argumento do "não", que a vitória do "sim" provocará uma contradição entre o Código Civil e o Código Penal, porque o "art. 1873º do CC" (sic) permite que os nascituros não concebidos recebam herança e, desta forma, com a vitória do "sim", os fetos até às 10 semanas perdem protecção jurídica e o direito de receber testamento (!!!). Vem assim Bagão Félix em defesa destes fetos com tão boas expectativas testamentárias.
Não reparou certamente Bagão Félix que os nascituros não concebidos de que falou não são sequer fetos, nem embriões, nem nada existente: são eventuais projectos, desejos ou fantasias e nada mais. (Também não reparou que o artigo a que se queria referir é o art. 2033º do CC, mas isso é que o menos importa, embora o rigor seja sempre desejável.) Esquece sobretudo que aqueles fetos (ou simples projectos) beneficiários de testamento não vão ter problemas em receber a herança, simplesmente porque são desejados pelos seus pais.
De qualquer forma, ele invocou uma disposição legal que, ironicamente, serve de argumento em sentido contrário, pois determina que a capacidade sucessória passiva não depende da existência de vida, mas apenas da vontade do testador. É evidente que a efectividade do testamento ficará dependente, tal como acontece com a sucessão dos nascituros já concebidos, do nascimento (art. 66º, nº 2 do CC). Sem nascimento, ainda que já concebidos, não há herdeiros...
Por exemplo o argumentário testamentário-patrimonial de Bagão Félix, essa luminária do nosso pensamento sócio-capitalista. Invocou ele, como supremo argumento do "não", que a vitória do "sim" provocará uma contradição entre o Código Civil e o Código Penal, porque o "art. 1873º do CC" (sic) permite que os nascituros não concebidos recebam herança e, desta forma, com a vitória do "sim", os fetos até às 10 semanas perdem protecção jurídica e o direito de receber testamento (!!!). Vem assim Bagão Félix em defesa destes fetos com tão boas expectativas testamentárias.
Não reparou certamente Bagão Félix que os nascituros não concebidos de que falou não são sequer fetos, nem embriões, nem nada existente: são eventuais projectos, desejos ou fantasias e nada mais. (Também não reparou que o artigo a que se queria referir é o art. 2033º do CC, mas isso é que o menos importa, embora o rigor seja sempre desejável.) Esquece sobretudo que aqueles fetos (ou simples projectos) beneficiários de testamento não vão ter problemas em receber a herança, simplesmente porque são desejados pelos seus pais.
De qualquer forma, ele invocou uma disposição legal que, ironicamente, serve de argumento em sentido contrário, pois determina que a capacidade sucessória passiva não depende da existência de vida, mas apenas da vontade do testador. É evidente que a efectividade do testamento ficará dependente, tal como acontece com a sucessão dos nascituros já concebidos, do nascimento (art. 66º, nº 2 do CC). Sem nascimento, ainda que já concebidos, não há herdeiros...