28 fevereiro 2010
Leituras de fim de semana: "O Eterno Marido", de Dostoievski
Quando nas fastidiosas aulas de direito, nos anos 60, devorei os grandes romances de Dostoievski, escapou-me um livrinho “menor”, que só há pouco li: “O Eterno Marido”. Para constatar que não há livros menores na obra gigantesca do autor.
O adultério foi o tema por excelência do realismo do sec. XIX; basta citar, por ordem cronológica, “Madame Bovary”, “Anna Karenina”, “O Primo Basílio”. Mas em todo eles é a adúltera, e reflexamente o seu amante, que ganham o primeiro plano da cena, ela como heróica vítima, ele como cínico agressor, mas afinal “compreendido” e até “exaltado” pela sua “vitória”. O marido é nesses romances uma figura praticamente inexistente, ridícula, um pobre diabo, um “vencido” por natureza, nem herói, nem vítima, apenas uma figura do cenário de fundo do drama que se desenrola à boca da cena.
Dostoievski vai pegar também no tema do adultério, mas vai fazê-lo de forma completamente diferente. O “herói” é agora o marido enganado, o “eterno marido”. A adúltera aqui não é vítima; pelo contrário, consumou o(s) adultério(s) com prazer e proveito e morre na paz doméstica e no reconhecimento social. Não há castigo, nem sequer “crime”. É a inversão completa da abordagem daqueles outros autores.
Quando o romance começa, a adúltera já morreu e é então que o “eterno marido” inicia a sua peregrinação em busca dos amantes da mulher. Não para se vingar, nem sequer motivado pelo ressentimento. Apenas pela curiosidade, pela necessidade de saber o que tinham os outros a mais do que ele, ou de diferente, que levara a mulher a elegê-los como amantes. É essa inquietante figura enlutada que percorre as ruas de São Petersburgo, seguindo o amante da mulher, que inicialmente não reconhece de quem se trata. Depois de estabelecerem o primeiro contacto, seguir-se-á uma estranha relação, que deixa o ex-amante completamente desconcertado: que quererá o outro de facto? É uma ligação ambígua: ódio, ressentimento, inveja, admiração, e também afectividade, uma afectividade ambígua pela pessoa que a mulher amou…
O Eterno Marido é resgatado por Dostoievski da sua condição de pária ou de bobo da história, adquirindo a grandeza de “herói”, isto é, de portador da dignidade, da profundidade e da complexidade de sentimentos e razões que caracteriza a frágil “condição humana”, que, mais do que ninguém, Dostoievski, esse explorador do abismo interior, soube revelar e trazer à superfície.
O adultério foi o tema por excelência do realismo do sec. XIX; basta citar, por ordem cronológica, “Madame Bovary”, “Anna Karenina”, “O Primo Basílio”. Mas em todo eles é a adúltera, e reflexamente o seu amante, que ganham o primeiro plano da cena, ela como heróica vítima, ele como cínico agressor, mas afinal “compreendido” e até “exaltado” pela sua “vitória”. O marido é nesses romances uma figura praticamente inexistente, ridícula, um pobre diabo, um “vencido” por natureza, nem herói, nem vítima, apenas uma figura do cenário de fundo do drama que se desenrola à boca da cena.
Dostoievski vai pegar também no tema do adultério, mas vai fazê-lo de forma completamente diferente. O “herói” é agora o marido enganado, o “eterno marido”. A adúltera aqui não é vítima; pelo contrário, consumou o(s) adultério(s) com prazer e proveito e morre na paz doméstica e no reconhecimento social. Não há castigo, nem sequer “crime”. É a inversão completa da abordagem daqueles outros autores.
Quando o romance começa, a adúltera já morreu e é então que o “eterno marido” inicia a sua peregrinação em busca dos amantes da mulher. Não para se vingar, nem sequer motivado pelo ressentimento. Apenas pela curiosidade, pela necessidade de saber o que tinham os outros a mais do que ele, ou de diferente, que levara a mulher a elegê-los como amantes. É essa inquietante figura enlutada que percorre as ruas de São Petersburgo, seguindo o amante da mulher, que inicialmente não reconhece de quem se trata. Depois de estabelecerem o primeiro contacto, seguir-se-á uma estranha relação, que deixa o ex-amante completamente desconcertado: que quererá o outro de facto? É uma ligação ambígua: ódio, ressentimento, inveja, admiração, e também afectividade, uma afectividade ambígua pela pessoa que a mulher amou…
O Eterno Marido é resgatado por Dostoievski da sua condição de pária ou de bobo da história, adquirindo a grandeza de “herói”, isto é, de portador da dignidade, da profundidade e da complexidade de sentimentos e razões que caracteriza a frágil “condição humana”, que, mais do que ninguém, Dostoievski, esse explorador do abismo interior, soube revelar e trazer à superfície.
27 fevereiro 2010
destapar a memória
«Um branco e um preto não eram apenas de raças diferentes.A distância entre brancos e pretos era equivalente à que existe entre diferentes espécies».
«Caderno de memórias coloniais», Isabel Figueiredo, angelus novus, 2010.
Uma escrita desassombrada sobre a memória (colectiva e individual) e o que poucos disseram sobre ela.
Imperdível!
«Caderno de memórias coloniais», Isabel Figueiredo, angelus novus, 2010.
Uma escrita desassombrada sobre a memória (colectiva e individual) e o que poucos disseram sobre ela.
Imperdível!
Crónica de uma tragédia anunciada: adenda
Em adenda a este post de Maia Costa, seguem-se as ligações para a reportagem completa da Biosfera dividida em duas partes:
26 fevereiro 2010
Segredo de justiça
Ainda a propósito do segredo de justiça, ontem, quando vinha no comboio de Lisboa para o Porto, ocorreu-me que me esqueci de mencionar um aspecto relevante. Diz ele respeito ao facto, já aflorado por alguns, de se ter lançado a suspeita de que são os magistrados os violadores por excelência do segredo de justiça. Ora, sem excluir a hipótese de os magistrados prevaricarem nesse aspecto, a verdade é que hoje, com a configuração que se deu à regulação da publicidade/segredo no inquérito criminal a partir das alterações ao Código de Processo Penal de 2007, e com o alargamento substancial dos direitos concedidos aos participantes processuais e, designadamente do arguido (casos do 1.º interrogatório do arguido detido e de outros interrogatórios, e da aplicação de medidas de coacção), implicando derrogações ao segredo de justiça interno, quando o sigilo processual tenha sido determinado, com o consequente acesso aos autos por parte daqueles e seus advogados, a revelação de actos do processo passou a ser mais fácil, do mesmo passo que se multiplicaram as fontes de divulgação. Neste contexto, é injusto focalizar a suspeita nos magistrados, havendo fortes motivos para suspeitar que muitas revelações provêm de outra fonte com os intuitos mais diversos.
Merece aqui menção especial a reacção do Secretário de Estado da Justiça ao enunciar um propósito, ou sugestão ou “ameaça”, que ia no sentido de, uma vez ocorrida uma violação do segredo de justiça, o processo passar a ser público. Tratar-se-ia, ao que parece, de uma sanção, como se a questão da investigação eficaz de um crime, que pode ser muito grave, pudesse estar à mercê de qualquer inconfidência. Com certeza que, a ser posta em prática, uma tal solução, em vez de constituir o remédio, seria o “vírus” para inoperacionalizar todas as investigações. Uma tal concepção representa a subversão completa dos valores do processo penal.
Merece aqui menção especial a reacção do Secretário de Estado da Justiça ao enunciar um propósito, ou sugestão ou “ameaça”, que ia no sentido de, uma vez ocorrida uma violação do segredo de justiça, o processo passar a ser público. Tratar-se-ia, ao que parece, de uma sanção, como se a questão da investigação eficaz de um crime, que pode ser muito grave, pudesse estar à mercê de qualquer inconfidência. Com certeza que, a ser posta em prática, uma tal solução, em vez de constituir o remédio, seria o “vírus” para inoperacionalizar todas as investigações. Uma tal concepção representa a subversão completa dos valores do processo penal.
Segredos, teses e peles
Cruzando teses de diferentes peles: Se num inquérito em que se estão realizar diligências de obtenção de prova que se pretendem secretas (por ex. buscas e escutas), existe uma fuga de informação e um dos visados é informado e fica a saber do que está em curso (além de destruir o material comprometedor e mudar de telemóvel) tem também direito a saber tudo o que consta do inquérito (em juridiquês, é o fim do segredo interno). Por outro lado, o procurador e o juiz de instrução que intervieram no inquérito devem passar a estar sob escuta, pois por inerência de funções são suspeitos de crime e a diligência é indispensável para a descoberta da verdade de crime, não interessando a respectiva pena dada a qualidade dos escutados (e como o crime já foi cometido sabendo-se que pela boca morre o peixe, preventivamente, deve-se assegurar que os mesmos não voltam a morder, nem nenhum dos respectivos vigilantes já que, a teoria subjacente à construção parece que impõe a sequência aqui identificada). Como disse o Pedro Albergaria, soluções legislativas edificantes…
Etiquetas: a normalidade, processo penal, verdade
Crónica de uma tragédia anunciada
É indspensável e urgente que os portugueses, especialmente os madeirenses, vejam os cinco minutos do programa "Biosfera" da RTP2, passado em Abril de 2008, e agora recuperado pelo SAPO, sobre os perigos do urbanismo tal como é praticado na Madeira. Está lá tudo. Bastava ter ouvido os alertas.
25 fevereiro 2010
Quem são os proprietários dos "media"?
A ERC quer ter uma informação actualizada e parece que tem competência para perguntar.
Mas a pergunta parece que incomoda... O "Público" (o jornal que, para o bem e para o mal, eu leio) pôs logo a foto do presidente da ERC com uma setinha para o lado...
No entanto, no mesmo número do jornal vinha uma notícia curiosa: relatores de quatro insituições internacionais, entre as quais a ONU e a OSCE, aprovaram uma declaração em que referenciam dez inimigos da lberdade de expressão, entre as quais as "pressões comerciais, incluindo a concentração da propriedade dos 'media'" (citação).
O assunto, portanto, é sério.
E os "media" devem dizer a verdade. A verdade até sobre os seus donos (para confirmarmos, com júbilo, que não são a voz deles).
Mas a pergunta parece que incomoda... O "Público" (o jornal que, para o bem e para o mal, eu leio) pôs logo a foto do presidente da ERC com uma setinha para o lado...
No entanto, no mesmo número do jornal vinha uma notícia curiosa: relatores de quatro insituições internacionais, entre as quais a ONU e a OSCE, aprovaram uma declaração em que referenciam dez inimigos da lberdade de expressão, entre as quais as "pressões comerciais, incluindo a concentração da propriedade dos 'media'" (citação).
O assunto, portanto, é sério.
E os "media" devem dizer a verdade. A verdade até sobre os seus donos (para confirmarmos, com júbilo, que não são a voz deles).
Myra
"Myra", de Maria Velho da Costa, acaba de ser premiado nas Correntes d'Escritas da Póvoa de Varzim. É um grande romance, para mim dos melhores das últimas décadas. É uma história picaresca, um livro desapiedado e por vezes feroz de aventuras de uma jovem russa imigrante no nosso país. Escrito como poucos, muito poucos, escrevem em Portugal. É, digamos, um festival da língua portuguesa. É mesmo a não perder.
Escutas a magistrados
A propósito das escutas a juízes e magistrados do Ministério Público, que ultimamente tem vindo a ser ventilada, no âmbito da violação do segredo de justiça e no seguimento de afirmações atribuídas à Procuradora-Geral Adjunta Cândida Almeida, já o meu amigo e colega Maia Costa colocou um “post” em que, recorrendo à sátira, mostrou o absurdo da questão.
Todavia, o que de mais gravoso e incorrecto tem passado para o público, inclusive em algumas declarações que têm sido feitas, é a ideia de que os magistrados, pelo simples facto de o serem, não podem ser objecto de escutas telefónicas, quando haja fortes suspeitas de terem praticado um crime dos elencados no art. 187.º do Código de Processo Penal, verificadas as demais condições exigidas por esse normativo.
Ora, nada de mais falso.
Os magistrados não se distinguem de outros cidadãos para tais efeitos, porque também eles não estão acima da lei. Mais: já tem havido casos de magistrados que têm sido objecto de intercepção telefónica, no âmbito de processos-crime em que eles aparecem como suspeitos ou arguidos. Um deles foi até «irradiado» da magistratura. O que acontece é que o crime de violação do segredo de justiça não faz parte do catálogo de crimes que admitem intercepção e gravação de conversações telefónicas, por ausência de especificação nas diversas alíneas do n.º 1 do mencionado artigo 187.º Mas também não seria sem graves dificuldades que ele lá poderia ser incluído. Foi essa dificuldade que Maia Costa traduziu ao levar para o terreno da sátira uma tal solução.
O que é lamentável é a ideia acima focada que tem passado para a opinião pública. Curiosamente, que eu saiba, só Manuel António Pina, que é licenciado em Direito e já exerceu como advogado, mas estando afastado da prática jurídica há muitos anos, teve a lucidez de ver o problema no seu excelente artigo de opinião de ontem, 24 de Fevereiro, no Jornal de Notícias, lembrando o facto de «nada na lei isentar, quem quer que seja, magistrado ou não, de ser alvo de escutas (…)».
Todavia, o que de mais gravoso e incorrecto tem passado para o público, inclusive em algumas declarações que têm sido feitas, é a ideia de que os magistrados, pelo simples facto de o serem, não podem ser objecto de escutas telefónicas, quando haja fortes suspeitas de terem praticado um crime dos elencados no art. 187.º do Código de Processo Penal, verificadas as demais condições exigidas por esse normativo.
Ora, nada de mais falso.
Os magistrados não se distinguem de outros cidadãos para tais efeitos, porque também eles não estão acima da lei. Mais: já tem havido casos de magistrados que têm sido objecto de intercepção telefónica, no âmbito de processos-crime em que eles aparecem como suspeitos ou arguidos. Um deles foi até «irradiado» da magistratura. O que acontece é que o crime de violação do segredo de justiça não faz parte do catálogo de crimes que admitem intercepção e gravação de conversações telefónicas, por ausência de especificação nas diversas alíneas do n.º 1 do mencionado artigo 187.º Mas também não seria sem graves dificuldades que ele lá poderia ser incluído. Foi essa dificuldade que Maia Costa traduziu ao levar para o terreno da sátira uma tal solução.
O que é lamentável é a ideia acima focada que tem passado para a opinião pública. Curiosamente, que eu saiba, só Manuel António Pina, que é licenciado em Direito e já exerceu como advogado, mas estando afastado da prática jurídica há muitos anos, teve a lucidez de ver o problema no seu excelente artigo de opinião de ontem, 24 de Fevereiro, no Jornal de Notícias, lembrando o facto de «nada na lei isentar, quem quer que seja, magistrado ou não, de ser alvo de escutas (…)».
24 fevereiro 2010
Ou há moralidade...
A “tese” do “cão de guarda que vigia o cão de guarda”, da autoria de uma alta responsável do MP, veio agora ser complementada com outra “tese” (hoje toda a gente tem “teses”) do Sr. Secretário de Estado da Justiça (mas, o que parece ser uma atenuante, enquanto advogado!) sobre o segredo de justiça: “a partir do momento em que um jornal quebre o segredo de justiça de um processo, os arguidos também devem poder violá-lo”. É a versão judiciária da velha máxima “ou há moralidade ou comem todos”. Edificante…
papeis velhos - segredos e controlos
Os titulares das autoridades judiciárias [...], como a generalidade dos órgãos do Estado, estão submetidos ao controlo público relativo ao exercício das suas competências, nomeadamente, da sua actividade investigatória e da motivação das suas decisões, devendo informar o público das mesmas quando revistam interesse público e permitir o acesso aos autos para a respectiva avaliação.
(artigo «o segredo do inquérito penal - uma leitura jurídico-constitucional», 2000)
(artigo «o segredo do inquérito penal - uma leitura jurídico-constitucional», 2000)
Etiquetas: controlos, estado de direito, interesse público, papeis velhos
23 fevereiro 2010
No país dos escuteiros
Está dito: ninguém escapará às escutas!
Pensavam os magistrados estar isentos? Desenganem-se!
No futuro, quando a lei for alterada (ah, imprevidente legislador!) e permitir as escutas quanto ao crime de segredo de justiça, passará a ser assim: logo que iniciado um inquérito, o magistrado titular passará, imediatamente, a ter os telefones sob escuta, pois ele é o principal suspeito da eventual futura violação do dito segredo. Imediatamente, porque só esse procedimento preventivo poderá identificar o violador.
Para tanto, abrir-se-á um inquérito, a cargo de outro magistrado do MP, que passará igualmente, e pelas razões apontadas a estar sob escuta, tal como o JIC que as autorizar.
Consequentemente, abrir-se-á novo inquérito para autorizar e acompanhar as ditas escutas, cujos magistrados, pelas razões apontadas, passarão a estar sob escuta, abrindo-se novo inquérito.
E assim sucessivamente. Enquanto houver magistrados disponíveis...
Pensavam os magistrados estar isentos? Desenganem-se!
No futuro, quando a lei for alterada (ah, imprevidente legislador!) e permitir as escutas quanto ao crime de segredo de justiça, passará a ser assim: logo que iniciado um inquérito, o magistrado titular passará, imediatamente, a ter os telefones sob escuta, pois ele é o principal suspeito da eventual futura violação do dito segredo. Imediatamente, porque só esse procedimento preventivo poderá identificar o violador.
Para tanto, abrir-se-á um inquérito, a cargo de outro magistrado do MP, que passará igualmente, e pelas razões apontadas a estar sob escuta, tal como o JIC que as autorizar.
Consequentemente, abrir-se-á novo inquérito para autorizar e acompanhar as ditas escutas, cujos magistrados, pelas razões apontadas, passarão a estar sob escuta, abrindo-se novo inquérito.
E assim sucessivamente. Enquanto houver magistrados disponíveis...
Faulkner
Já que Maia Costa relatou a sua experiência com «O Som e a Fúria» e recomendou a sua leitura ou releitura, também gostava de relatar a minha experiência de leitor dessa obra magna de Faulkner. Li o livro quando estava em Coimbra. Fiquei com uma vaga impressão geral. Ao longo do tempo viria a ler uma série de obras de Faulkner. A obra que eu mais li dele foi «Palmeiras Bravas», com tradução de Jorge de Sena, que também fez o prefácio. Um livro fascinante. Li sempre os livros de Faulkner mais do que uma vez, excepto «O Som e a Fúria». Até que, em anos mais recentes, li «Absalon, Absalon!». Um livro difícil, que me obrigou a relê-lo nas férias seguintes, munido de bloco de apontamentos. Em seguida, pensei em ajustar contas com «O Som e a Fúria», e empreendi a sua releitura. Fiquei de tal maneira perplexo, que, mal acabada a leitura, voltei ao princípio. Só então, reconstituindo os elementos-chave com paciência, servindo-me de notas cuidadosamente tomadas, comecei a vislumbrar alguma claridade. Lembrei-me daquela frase de Marx que dizia mais ou menos isto: para atingir as culminâncias do saber ⌠eu acrescentaria: e da beleza⌡, é preciso arriscar-se a subir árduas montanhas.
A síntese feita por Maia Costa é uma bela síntese. Para responder ao seu apelo, não digo que não volte à releitura do livro. É que há livros inesgotáveis. O contrário dos “best-sellers” actuais, que se lêem como perecíveis objectos de consumo.
A síntese feita por Maia Costa é uma bela síntese. Para responder ao seu apelo, não digo que não volte à releitura do livro. É que há livros inesgotáveis. O contrário dos “best-sellers” actuais, que se lêem como perecíveis objectos de consumo.
22 fevereiro 2010
A corrida às presidenciais
Foi com perplexidade, como muita gente, que acolhi a notícia de que Fernando Nobre se candidatava à presidência da República. E foi com perplexidade que o ouvi apresentar a sua candidatura naquele tom profético que fazia lembrar o de Miguel Torga a recitar os seus próprios poemas.
Fernando Nobre estava bem onde estava, e aí é que ele concitava a admiração e o respeito de toda a gente. Era uma espécie de “missionário” laico de causas nobres. Não se imaginaria que se deixasse arrastar para as lides “prosaicas” da política por uns tantos indivíduos que vivem a sonhar com a política-como-missão-impoluta e por outros tantos que talvez se queiram servir da sua bandeira de filantropo incontestado para outros fins nada impolutos. Há quem avente com plausíveis razões que se trata de fazer frente à candidatura de Alegre e que há hostes soaristas por trás de si (Vide Fernando Madrinha no último “Expresso”). Se assim for, tanto pior. Mário Soares seria a personagem invisível desta movimentação, representando ele, agora, por interposta pessoa, o “shakspireano” papel de Coriolano que Eduardo Lourenço imputou a Salgado Zenha, quando este se candidatou, nas eleições de 1986, contra Soares.
Fernando Nobre estava bem onde estava, e aí é que ele concitava a admiração e o respeito de toda a gente. Era uma espécie de “missionário” laico de causas nobres. Não se imaginaria que se deixasse arrastar para as lides “prosaicas” da política por uns tantos indivíduos que vivem a sonhar com a política-como-missão-impoluta e por outros tantos que talvez se queiram servir da sua bandeira de filantropo incontestado para outros fins nada impolutos. Há quem avente com plausíveis razões que se trata de fazer frente à candidatura de Alegre e que há hostes soaristas por trás de si (Vide Fernando Madrinha no último “Expresso”). Se assim for, tanto pior. Mário Soares seria a personagem invisível desta movimentação, representando ele, agora, por interposta pessoa, o “shakspireano” papel de Coriolano que Eduardo Lourenço imputou a Salgado Zenha, quando este se candidatou, nas eleições de 1986, contra Soares.
Comunicado oficial do Governo Regional da Madeira para ser divulgado no estrangeiro
Na madrugada do passado sábado ocorreram alguns chuviscos na Madeira. Algumas estradas ficaram com poças de água. As ribeiras correram mais velozes e arrastaram mesmo alguma lama.
Inexplicavelmente, algumas pessoas assustaram-se e morreram do susto. Mas o povo é sereno e tudo regressou à normalidade.
As lágrimas do Rúben Mikael no início do jogo no Estádio do Dragão ficaram a dever-se às saudades que ele sente da Madeira, pois manifestamente não está a adaptar-se à vida no Continente.
E o Cristinano Ronaldo, quando, depois do monumental golo, mostrou a camisola interior com a inscrição "Madeira", estava a promover turisticamente a nossa Região.
Portanto, os turistas podem vir que estamos preparados para os receber. Mas não venham já, porque estamos a acabar umas obrazitas de reparação e pinturas para tornar a nossa ilha ainda mais bonita.
Inexplicavelmente, algumas pessoas assustaram-se e morreram do susto. Mas o povo é sereno e tudo regressou à normalidade.
As lágrimas do Rúben Mikael no início do jogo no Estádio do Dragão ficaram a dever-se às saudades que ele sente da Madeira, pois manifestamente não está a adaptar-se à vida no Continente.
E o Cristinano Ronaldo, quando, depois do monumental golo, mostrou a camisola interior com a inscrição "Madeira", estava a promover turisticamente a nossa Região.
Portanto, os turistas podem vir que estamos preparados para os receber. Mas não venham já, porque estamos a acabar umas obrazitas de reparação e pinturas para tornar a nossa ilha ainda mais bonita.
21 fevereiro 2010
As armas do Irão
Está há muito em marcha uma campanha contra o Irão em tudo idêntica à montada contra o Iraque. Agora não são as "armas de destruição maciça", são as "armas nucleares" que o Irão estaria a construir.
Tal como Hans Blix, o sueco que presidia às inspecções a que o Iraque estava sujeito, nunca viu as ditas armas, também El Baradei, egípcio, presidente da Agência de Energia Atómica da ONU, nunca reuniu elementos objectivos sobre o alegado programa militar nuclear do Irão. Mas os EUA e o "Ocidente" em geral não estavam satisfeitos com esse entendimento (como não estavam anteriormente com Hans Blix, que foi corrido do Iraque antes de levar com alguma bomba americana em cima).
Terminado o mandato de El Baradei, foi escolhido um sujeito muito mais compreensivo com os interesses ocidentais, um tal Yukiya Amano (cuja nacionalidade desconheço). Com os mesmos dados de El Baradei (note-se, com os mesmos dados) chega a conclusões muito diferentes (e ainda dizem que o direito é que é ambíguo!): há "suspeitas", ou a "possibilidade" de que o Irão esteja mesmo a executar um programa de armamento nuclear! "Suspeitas" são provas quando se trata de um inimigo do "Ocidente"!
A opinião pública europeia e americana tem vindo a ser preparada sistematicamente há anos para um eventual acto de força contra aquele país. Então não é evidente para toda a gente que o Irão tem bombas nucleares, ou que pode vir a tê-las (o que é mesmo, não é verdade)? Alguém tem dúvidas?
Tal como Hans Blix, o sueco que presidia às inspecções a que o Iraque estava sujeito, nunca viu as ditas armas, também El Baradei, egípcio, presidente da Agência de Energia Atómica da ONU, nunca reuniu elementos objectivos sobre o alegado programa militar nuclear do Irão. Mas os EUA e o "Ocidente" em geral não estavam satisfeitos com esse entendimento (como não estavam anteriormente com Hans Blix, que foi corrido do Iraque antes de levar com alguma bomba americana em cima).
Terminado o mandato de El Baradei, foi escolhido um sujeito muito mais compreensivo com os interesses ocidentais, um tal Yukiya Amano (cuja nacionalidade desconheço). Com os mesmos dados de El Baradei (note-se, com os mesmos dados) chega a conclusões muito diferentes (e ainda dizem que o direito é que é ambíguo!): há "suspeitas", ou a "possibilidade" de que o Irão esteja mesmo a executar um programa de armamento nuclear! "Suspeitas" são provas quando se trata de um inimigo do "Ocidente"!
A opinião pública europeia e americana tem vindo a ser preparada sistematicamente há anos para um eventual acto de força contra aquele país. Então não é evidente para toda a gente que o Irão tem bombas nucleares, ou que pode vir a tê-las (o que é mesmo, não é verdade)? Alguém tem dúvidas?
A judicialização da política
A judicialização da política, traduzida na tentativa de transposição para o processo penal da luta político-partidária, não traz nada de bom. Uma coisa é o plano do processo, em que se investigam crimes, havendo entidades encarregadas constitucionalmente de os investigar e julgar. Outra coisa é a arena política, com outros protagonistas e outros processos de acção.
O processo não pode ser o lugar da chicana político-partidária, antes e apenas o da averiguação rigorosa, segundo os meios admitidos, da prática de um crime.
Responsabilidade penal e responsabilidade política não se confundem. Extinta a responsabilidade penal, pode subsistir a ética e a política, que têm outros lugares de sindicação.
É para este último plano que se deve agora orientar a discussão e a investigação sobre a denunciada tentativa, alegadamente revelada pelas escutas da "Face Oculta", de "condicionamento da liberdade de imprensa".
No entanto, exigir-se-ia uma maior transparência nas decisões judiciais. Por duas razões: uma porque, nesta sociedade tão mediatizada, tudo vem a saber-se, por portas direitas ou travessas; outra porque o notório interesse público da matéria deveria determinar um esclarecimento do povo, a quem cabe o direito de conhecer, por via recta, e não ínvia, a verdade sobre quem o governa. Para bem do povo e dos próprios governantes, quando acusados injustamente.
Ficam ensinamentos para o futuro.
O processo não pode ser o lugar da chicana político-partidária, antes e apenas o da averiguação rigorosa, segundo os meios admitidos, da prática de um crime.
Responsabilidade penal e responsabilidade política não se confundem. Extinta a responsabilidade penal, pode subsistir a ética e a política, que têm outros lugares de sindicação.
É para este último plano que se deve agora orientar a discussão e a investigação sobre a denunciada tentativa, alegadamente revelada pelas escutas da "Face Oculta", de "condicionamento da liberdade de imprensa".
No entanto, exigir-se-ia uma maior transparência nas decisões judiciais. Por duas razões: uma porque, nesta sociedade tão mediatizada, tudo vem a saber-se, por portas direitas ou travessas; outra porque o notório interesse público da matéria deveria determinar um esclarecimento do povo, a quem cabe o direito de conhecer, por via recta, e não ínvia, a verdade sobre quem o governa. Para bem do povo e dos próprios governantes, quando acusados injustamente.
Ficam ensinamentos para o futuro.
O Som e a Fúria
Não, não vou falar destes dias tumultuodos que vivemos,mas sim e apenas do famoso livro de W. Faulkner.
A primeira vez que iniciei a sua leituta foi há mais de 40 anos. Mas, como tantas vezes me aconteceu, a leitura "não pegou". Pu-lo de lao. Ao longo dos anos voltei lá várias vezes, sempre com o mesmo resultado.
Até que há pouco passei um fim de semana a "devorá-lo" (coisa que raramente me acontece) e ao fim passei a inclui-lo na lista dos "livros da minha vida".
O que sucedeu foi simples: tive agora a paciência de avançar às apalpadelas no nevoeiro inicial em que o leitor mergulha. Não se percebe nada, há várias vozes, há uma série de nomes referidos, mas não se percebe quem são, quem fala, de que se fala. Tudo parece incoerente. E na verdade é. Mas pouco a pouco vamo-nos apercebendo que o narrador é um idiota incapaz de um discurso coerente, apenas sensível a estímulos sensoriais, que vai debitando fragmentos de vivências sem lógica aparente. Acabamos por saber que se chama Benjy, que tem um negro encarregado de tomar conta dele, etc.
Múltiplas são as referências e informações fragmentárias que vão ficando e que, mais tarde, encaixarão rigorosamente, pois afinal o romance é um puzzle em que nenhuma peça falta nem sobra.
Segue-se a narrativa de um irmão de Benjy. Chama-se Quentin. O discurso é agora coerente, mas pouco se avança na compreensão da lógica da narrativa. Vamos sabendo que são vários irmãos, é a família Compson, proprietários do Sul, os dramas e a decadência da família vão aparecendo em fragmentos.
Na terceira parte aparece o irmão Jason, o patriarca da família, depois da morte do pai. O nevoeiro dissolve-se quase totalmente. De forma admirável Faulkner consegue desenhar, através da narrativa na primeira pessoa, o perfil deste herdeiro directo dos sulistas anteriores à Guerra da Secessão, racista ("tenho uma cozinha cheia de pretos para sustentar", repete constantemente), puritano, brutal, administrador férreo do património da família, que vê em contínua degradação.
Mas é com a última parte, a cargo de um narrador omnisciente, que ficamos a saber "tudo". Tudo encaixa, tudo é simples e transparente: uma família do Sul, perseguida pela decadência económica e pela infelicidade - idiotia de Benjy, suicídio de Quentin, "mau comportamento" de Caddy, a irmã.
Afinal, era tudo simples. Afinal, o romance podia ter sido lido ao contrário e nenhumas dificuldades teria então a leitura. Isso é certamente uma das coisas admiráveis do romance: poder ser lido da frente para trás como de trás para a frente.
Fica também na retina a figura da Dilsey, a "mãe negra", que é afinal o sustentáculo da família branca. A fidelidade aos "patrões", o sentimento de pertencer também à mesma família e simultaneamente o estatuto de poder que essa pertença lhe conferia no governo da casa e na sobrevivência da família, fazem dela uma figura grandiosa.
Bom, em resumo, recomendo a leitura a quem não leu. A quem já leu, recomendo a releitura. É o que eu vou fazer. Agora de trás para a frente!
A primeira vez que iniciei a sua leituta foi há mais de 40 anos. Mas, como tantas vezes me aconteceu, a leitura "não pegou". Pu-lo de lao. Ao longo dos anos voltei lá várias vezes, sempre com o mesmo resultado.
Até que há pouco passei um fim de semana a "devorá-lo" (coisa que raramente me acontece) e ao fim passei a inclui-lo na lista dos "livros da minha vida".
O que sucedeu foi simples: tive agora a paciência de avançar às apalpadelas no nevoeiro inicial em que o leitor mergulha. Não se percebe nada, há várias vozes, há uma série de nomes referidos, mas não se percebe quem são, quem fala, de que se fala. Tudo parece incoerente. E na verdade é. Mas pouco a pouco vamo-nos apercebendo que o narrador é um idiota incapaz de um discurso coerente, apenas sensível a estímulos sensoriais, que vai debitando fragmentos de vivências sem lógica aparente. Acabamos por saber que se chama Benjy, que tem um negro encarregado de tomar conta dele, etc.
Múltiplas são as referências e informações fragmentárias que vão ficando e que, mais tarde, encaixarão rigorosamente, pois afinal o romance é um puzzle em que nenhuma peça falta nem sobra.
Segue-se a narrativa de um irmão de Benjy. Chama-se Quentin. O discurso é agora coerente, mas pouco se avança na compreensão da lógica da narrativa. Vamos sabendo que são vários irmãos, é a família Compson, proprietários do Sul, os dramas e a decadência da família vão aparecendo em fragmentos.
Na terceira parte aparece o irmão Jason, o patriarca da família, depois da morte do pai. O nevoeiro dissolve-se quase totalmente. De forma admirável Faulkner consegue desenhar, através da narrativa na primeira pessoa, o perfil deste herdeiro directo dos sulistas anteriores à Guerra da Secessão, racista ("tenho uma cozinha cheia de pretos para sustentar", repete constantemente), puritano, brutal, administrador férreo do património da família, que vê em contínua degradação.
Mas é com a última parte, a cargo de um narrador omnisciente, que ficamos a saber "tudo". Tudo encaixa, tudo é simples e transparente: uma família do Sul, perseguida pela decadência económica e pela infelicidade - idiotia de Benjy, suicídio de Quentin, "mau comportamento" de Caddy, a irmã.
Afinal, era tudo simples. Afinal, o romance podia ter sido lido ao contrário e nenhumas dificuldades teria então a leitura. Isso é certamente uma das coisas admiráveis do romance: poder ser lido da frente para trás como de trás para a frente.
Fica também na retina a figura da Dilsey, a "mãe negra", que é afinal o sustentáculo da família branca. A fidelidade aos "patrões", o sentimento de pertencer também à mesma família e simultaneamente o estatuto de poder que essa pertença lhe conferia no governo da casa e na sobrevivência da família, fazem dela uma figura grandiosa.
Bom, em resumo, recomendo a leitura a quem não leu. A quem já leu, recomendo a releitura. É o que eu vou fazer. Agora de trás para a frente!
Liberdade de imprensa e de informação
A propósito do escarcéu que para aí vai sobre o estar ou não em causa a liberdade de expressão, de imprensa e de informação em Portugal, oferece-se-me dizer o seguinte:
É verdade que a liberdade de imprensa e de informação não estão formalmente em causa, ou não vivêssemos em democracia. Porém, os indícios que ultimamente têm sido trazidos a público são inquietantes exactamente por, a comprovarem-se, traduzirem formas ínvias de condicionamento e uniformização dos órgãos de informação, através de manobras conjugadas de vários poderes e grupos de influência, com destaque para o poder político e o poder económico, este sobretudo representado por empresas do sector público do Estado, em que existe uma nítida promiscuidade entre os representantes do poder político (ou político-partidário) e os protagonistas da gestão e administração dessas empresas, mas também empresas privadas que reproduzem essa relação de promiscuidade com o poder político, embora sob outras formas. Uns e outros aparecem conjugados no sentido de, por meio de complicadas engenharias económico-financeiras, destinadas a camuflarem os verdadeiros propósitos que lhes subjazem, predisporem as coisas para uma “tomada de poder” em grandes órgãos de informação que não servem os seus interesses, de modo a trazê-los para o seu campo de influência. Nada que seja inédito ou específico deste ou daquele sector ideológico-político dos que têm imperado na chamada 2.ª República, mas não é porque assim tem sido sempre, com maior ou menor afoiteza ou descaramento, que não nos devemos escandalizar, sobretudo quando os protagonistas ostentam uma determinada “marca” ideológica.
Por outro lado, é cada vez mais ostensiva a apetência de grandes grupos económicos pelos «media» de todos os tipos, complexos mediáticos em que se incluem a clássica imprensa escrita, os meios audiovisuais, a internet, as telecomunicações (a indústria pesada do nosso tempo, como lhe chamou Hugo Hernandez (Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, OUT 2003). Este fenómeno, que não augura nada de bom para a sorte da liberdade de imprensa e de informação, também tem sido visível nas recentes revelações que têm sido trazidas a público. O peso da administração das empresas de comunicação social na orientação desses órgãos parece ser uma coisa cada vez mais palpável e até quase transparente em certas declarações que têm sido tornadas públicas.
A acrescer a isto, que já não é pouco, registe-se o fenómeno, hoje tão corrente, da precarização das relações laborais dos jornalistas, segundo a lógica dominante que impregna as próprias empresas de comunicação social, afectando a qualidade, objectividade e veracidade dos serviços de (in)formação que prestam, para já não falar nos objectivos constitucionais de independência, liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, colocando estes nas mãos de empresários que não têm outro escopo senão o da maximização dos lucros.
PS – Eu sei que muitos dos factos que têm vindo a público representam, ao que parece, violações do segredo de justiça – violações incessantemente gritadas por personalidades que se sentem indignadas -, mas a verdade é que muitas dessas personalidades são responsáveis por terem conferido à investigação criminal um carácter público como regra, tornando o segredo de justiça excepcional e residual, contra a opinião de penalistas e contra as propostas da própria Unidade de Missão para a reforma penal.
É verdade que a liberdade de imprensa e de informação não estão formalmente em causa, ou não vivêssemos em democracia. Porém, os indícios que ultimamente têm sido trazidos a público são inquietantes exactamente por, a comprovarem-se, traduzirem formas ínvias de condicionamento e uniformização dos órgãos de informação, através de manobras conjugadas de vários poderes e grupos de influência, com destaque para o poder político e o poder económico, este sobretudo representado por empresas do sector público do Estado, em que existe uma nítida promiscuidade entre os representantes do poder político (ou político-partidário) e os protagonistas da gestão e administração dessas empresas, mas também empresas privadas que reproduzem essa relação de promiscuidade com o poder político, embora sob outras formas. Uns e outros aparecem conjugados no sentido de, por meio de complicadas engenharias económico-financeiras, destinadas a camuflarem os verdadeiros propósitos que lhes subjazem, predisporem as coisas para uma “tomada de poder” em grandes órgãos de informação que não servem os seus interesses, de modo a trazê-los para o seu campo de influência. Nada que seja inédito ou específico deste ou daquele sector ideológico-político dos que têm imperado na chamada 2.ª República, mas não é porque assim tem sido sempre, com maior ou menor afoiteza ou descaramento, que não nos devemos escandalizar, sobretudo quando os protagonistas ostentam uma determinada “marca” ideológica.
Por outro lado, é cada vez mais ostensiva a apetência de grandes grupos económicos pelos «media» de todos os tipos, complexos mediáticos em que se incluem a clássica imprensa escrita, os meios audiovisuais, a internet, as telecomunicações (a indústria pesada do nosso tempo, como lhe chamou Hugo Hernandez (Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, OUT 2003). Este fenómeno, que não augura nada de bom para a sorte da liberdade de imprensa e de informação, também tem sido visível nas recentes revelações que têm sido trazidas a público. O peso da administração das empresas de comunicação social na orientação desses órgãos parece ser uma coisa cada vez mais palpável e até quase transparente em certas declarações que têm sido tornadas públicas.
A acrescer a isto, que já não é pouco, registe-se o fenómeno, hoje tão corrente, da precarização das relações laborais dos jornalistas, segundo a lógica dominante que impregna as próprias empresas de comunicação social, afectando a qualidade, objectividade e veracidade dos serviços de (in)formação que prestam, para já não falar nos objectivos constitucionais de independência, liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, colocando estes nas mãos de empresários que não têm outro escopo senão o da maximização dos lucros.
PS – Eu sei que muitos dos factos que têm vindo a público representam, ao que parece, violações do segredo de justiça – violações incessantemente gritadas por personalidades que se sentem indignadas -, mas a verdade é que muitas dessas personalidades são responsáveis por terem conferido à investigação criminal um carácter público como regra, tornando o segredo de justiça excepcional e residual, contra a opinião de penalistas e contra as propostas da própria Unidade de Missão para a reforma penal.
19 fevereiro 2010
O que é um atentado contra o Estado de Direito?
Muito se tem falado neste tipo de atentados nos últimos dias. Mas pouco ou nada se tem dito sobre o que, no plano estritamente penal, tal significa.
Existem evidentemente outras dimensões de análise, a política, a ética, etc.
Mas quando se fala no "crime de atentado contra o estado de Direito" é preciso saber do que se fala (e geralmente não se sabe...). É disso que trata o texto que segue, da autoria do António Henriques Gaspar.
CRIMES DE RESPONSABILIDADE DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
LEI Nº 34/87, DE 16 DE JULHO
O ARTIGO 9º: «ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO»
1. A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, define os crimes especiais de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, estabelecendo alguns princípios específicos e tipificando os actos que constituem, em especial, crimes de responsabilidade.
A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, constitui o resultado do processo legislativo parlamentar iniciado com os Projectos de Lei nº 377/IV (PS) e nº 387/IV (PRD), como votação final em 29 de Abril de 1987 (DAR, I série, nº 73, de 29 de Abril de 1987).
As Introduções explicativas dos Projectos, e a discussão na generalidade, revelam a preocupação de cumprir (reconhecendo os deputados que tardiamente) a injunção constitucional do artigo 120º, 2 da CRP – actualmente artigo 117º, 2 – no que respeitava à responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por actos e omissões praticados no exercício das funções. A desadequação e as fortes dúvidas sobre a validade de vigência da Lei nº 266, de 27 de Julho de 1914, impunham a intervenção legislativa da competência absoluta do Parlamento.
2. Os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, definidos nos artigos 7º a 27º do diploma, podem agregar-se por categorias delimitadas pelos interesses e valores específicos que protegem e pela consequente definição do bem jurídico.
O artigo 7º («Traição à Pátria») protege os valores da integridade territorial do País e da independência da Nação, prevenindo a separação, por acto não violento, de territórios da Mão Pátria ou a submissão a soberania estrangeira de todo ou parte do território nacional, ou ofender ou pôr em perigo a independência da País. È um crime de traição à Pátria, por meio de acção não violenta, isto é, como resultado de um acto político, em de que a moldura penal prevista traduz a gravidade.
Os artigos 8º, 9º, 10º e 15º constituem crimes contra o Estado de direito, como modelo constitucional de realização de valores, direitos e garantias fundamentais, ou contra a perturbação de funcionamento de órgãos constitucionais. As molduras penais previstas permitem a indicação sobre a relevância e a identidade material e a intensidade dos valores protegidos nas incriminações. A medida das penas transmite indicações sobre a identidade e a homogeneidade dos valores protegidos nos artigos 9º, 10º e 15º e das acções que os afectam.
Os artigos 11º e 13 constituem crimes puros de exercício de funções, protegendo a regularidade funcional do respectivo exercício – são crimes também de direito penal comum relativo a funcionários.
O artigo 14º constitui um crime financeiro, na dimensão orçamental, protegendo a integridade e o rigor na execução orçamental.
Os artigos 16º, 17º e 18º («corrupção»), 20º e 22º («peculato») e 13º («participação económica em negócio») constituem crimes comuns de funcionários, e por isso sem especial significado típico ou valorativo enquanto crimes de responsabilidade.
Os artigos 24º a 27º constituem também crimes comuns, sem particularidades que justificassem a previsão autónoma e específica como crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos.
3. O artigo 9º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, prevê o crime de «Atentado contra o Estado de direito»: «O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido».
O crime previsto nesta disposição, considerados os seus elementos constitutivos, deve ser qualificado como crime próprio, puro, e tanto pela previsão específica da lei, como pela centralidade e essencialidade da qualidade do agente, é um crime de “mão-própria”, em que concorrem elementos que parecem afastar a comparticipação de extraneus – artigo 28º, nº 2, parte final, do Código Penal.
A descrição típica do crime é relativamente complexa, pela utilização de várias noções ou conceitos materiais e valorativos de perímetro indeterminado ou relativamente elástico.
A complexidade é, também, muito induzida pela dimensão (ou natureza) simbólica – ou mesmo hiper-simbólica – da incriminação.
A dimensão simbólica está bem presente em espaços da discussão parlamentar do processo legislativo (DAR, I série, nº 70, de 24 de Abril de 1987), com afirmações de manifesta carga proclamatória – o que, por regra, traduz um pacto genético de ineficácia, ou de prognose de inexistência ou mesmo de impossibilidade de ocorrência de factos, situações ou motivos que pudessem determinar a aplicação.
Por esta razão, impõe-se também um especial cuidado na interpretação.
O crime previsto no artigo 9º (como outros de carga típica, valorativa e simbólica semelhante) existe, no entanto, e apresenta, de qualquer modo, um conjunto de elementos que carecem de interpretação, como pressuposto da delimitação e integração dos elementos do tipo e, por aqui, das circunstâncias de possível aplicabilidade ou aplicação.
A lei penal tem de ser certa e determinada. O princípio da legalidade constitui, com efeito, uma garantia fundamental com assento constitucional e consagração nos instrumentos internacionais de protecção de direitos fundamentais – v. g., no artigo 7º da CEDH.
As exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da legalidade devem encontrar tradução e fazem-se sentir de forma mais intensa na definição do tipo de ilícito.
Deste modo, na interpretação da lei penal, e especialmente da determinação dos elementos do tipo de ilícito, as palavras utilizadas, o teor literal e os significados comuns que comportam, constituem a referência essencial. Depois, dentro do quadro de significações possíveis das palavras da lei, intervirão considerações teleologicamente comandadas e funcionalmente justificadas.
A conjugação das palavras, do seu âmbito de significados comuns e da razão teleológica permitirá encontrar um sentido vinculado a razões e a fins, especialmente quando a utilização de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais ou de «fórmulas gerais de valor» introduza alguma dificuldade na determinabilidade objectiva das condutas proibidas.
A função de garantia da lei penal não suporta interpretações que não sejam estritas.
Deste modo, na interpretação do tipo, o primeiro elemento de referência – para além da especificidade do agente – será o esclarecimento sobre o ambiente e o contexto da acção, simultaneamente apresentados como elementos da tipicidade e da ilicitude.
Os actos que o tipo do artigo 9º prevê têm de ser praticados pelo titular de cargo político no exercício das funções ou por causa ou no contexto do exercício das respectivas funções; constitui um crime de exercício e não simplesmente um crime de qualidade.
E no exercício das respectivas funções, «com flagrante desvio ou abuso das suas funções, ou com grave violação dos inerentes deveres». No exercício das funções significa acção integrada por actos ou omissões praticados no exercício do complexo das competências ou poderes políticos próprios do titular de cargo político que possa estar em causa.
Os actos que integram a acção típica têm de ser praticados com «flagrante desvio ou abuso de funções». Que significa e tem de revelar um afastamento manifesto das finalidades a que está adstrita a atribuição de competências, com desrespeito intolerável pelos deveres que as funções impõem e a que obrigam.
Para além da natureza e da qualificação da actuação, tem de concorrer uma intenção específica para a produção de um efeito – tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República e em instrumentos internacionais sobre direitos e garantias fundamentais.
A formulação permite, assim, revelar a construção do tipo como crime de empreendimento, em que a tentativa integra já, por si, o crime acabado, considerando-se a acabamento apenas como critério de delimitação das molduras penais previstas.
A descrição, a natureza e o conteúdo (e a intenção específica) e o resultado da acção, ou visado com a acção, é determinante para a leitura e interpretação do tipo e constitui mesmo o elemento central para a compreensão do crime.
A destruição, alteração ou subversão do estado de direito constitucionalmente estabelecido – destruição, alteração ou subversão dos direitos, liberdades e garantias constitucionais que dão substância, consistência e dimensão jurídica e política ao Estado de direito como modelo constitucional de organização de uma sociedade política – constituem fórmulas para designação ou identificação de formas ou modos de afectação radical e na substância mesma, impedindo a subsistência do estado de direito como modelo de referência constitucional.
Destruir, alterar ou subverter constituem fórmulas de linguagem que significam e correspondem a conteúdos materiais de ruptura sistémica.
As palavras têm um significado e um conteúdo que define e qualifica uma determinada realidade.
A destruição significa eliminar, danificar de modo irreversível, desfazer, aniquilar.
A alteração, em significado com idêntica carga valorativa, consiste em modificar, degenerar ou corromper.
A subversão é destruição, perturbação, perversão.
Todos são termos e fórmulas verbais com uma específica carga semântica, que reverte sempre para uma modificação essencial, determinante, ou para a eliminação ou aniquilamento de uma realidade antes consistente; a dimensão semântica aponta, como se salientou, para expressões com significado material de ruptura.
Deste modo, na estrutura típica, o crime de «atentado ao Estado de direito» tem de consistir numa ruptura, no aniquilamento, ou na supressão geral e sistémica, se não total pelo menos de modo substancial, dos elementos constitucionais da noção – soberania popular, pluralismo de expressão e organização política democrática, separação e interdependência de poderes e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 2º da Constituição.
Direitos, liberdades e garantias fundamentais que a Constituição enuncia no Título II, sejam pessoais, sejam de participação política ou dos trabalhadores.
A alteração, destruição ou aniquilamento é, pois, sistémica, de supressão efectiva e geral ou substancialmente considerável para constituir uma alteração de modelo constitucional nos modos, nos termos e nas condições gerais de exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
O resultado tem de ser de dimensão modelar, de desconfiguração, do nível da radicalidade que altere a forma de organização, o conteúdo e a expressão externa do Estado de direito.
Em suma, o crime de «atentado ao Estado de direito», previsto no artigo 9º da Lei nº 43/87, de 16 de Julho, tem de consistir em acções ou num empreendimento que tenham como resultado uma modificação de tal nível, generalidade e intensidade, que se apresente como um verdadeiro «golpe de estado» por meios não violentos.
5. A razão dos valores constitucionais que carecem de tutela penal – a proporcionalidade dos crimes e das penas como critério principal na axiologia da Constituição - e a eadem ratio de proporção e razoabilidade comparada intra-sistemática entre os crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º da Lei nº 34/87 apontam no mesmo sentido
Existe, ou tem de existir, com efeito, uma proporção interna, medida pelas molduras penais como índice material da gravidade dos crimes previstos. A medida das penas igual ou diversa aponta para uma semelhança ou diferenciação das valorações materiais, logo no plano assumido pelo legislador.
A identidade de molduras penais dos crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º não pode deixar de valer como significado de aproximação ou identidade de valorações, que tem necessário reflexo na determinação das condutas que podem estar, razoável e teleologicamente, contidas nos significados comuns das noções que utilizam.
O artigo 10º prevê o impedimento ou constrangimento, ainda que por meio não violento, do livre exercício das funções de órgão de soberania.
O artigo 15º, por seu lado, prevê a suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias não susceptíveis de suspensão, ou sem recurso legítimo aos estados se sítio ou de emergência, ou restrições ao exercício dos direitos, liberdades e garantias com violação grave das regras de execução do estado de excepção declarado.
O impedimento ou constrangimento do livre exercício das funções dos órgãos de soberania afecta, na própria substância, os fundamentos institucionais do Estado de direito, e a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias, sem recurso aos estados de emergência, está prevista no tipo respectivo como acção com efeitos de generalidade, aplicáveis em geral, e não especificamente para casos individualizados ou pontuais, sem significado colectivo e sistémico.
A interpretação dos elementos do tipo do artigo 9º, mediada também pela razão das correlações valorativas de homogeneidade material, não pode deixar de apontar, como se salientou, para uma alteração, desfiguração, destruição ou impedimento de exercício, em geral, das liberdades constitucionais, de modo que se verifique uma alteração na substância do Estado de direito.
(António Henriques Gaspar)
Existem evidentemente outras dimensões de análise, a política, a ética, etc.
Mas quando se fala no "crime de atentado contra o estado de Direito" é preciso saber do que se fala (e geralmente não se sabe...). É disso que trata o texto que segue, da autoria do António Henriques Gaspar.
CRIMES DE RESPONSABILIDADE DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
LEI Nº 34/87, DE 16 DE JULHO
O ARTIGO 9º: «ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO»
1. A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, define os crimes especiais de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, estabelecendo alguns princípios específicos e tipificando os actos que constituem, em especial, crimes de responsabilidade.
A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, constitui o resultado do processo legislativo parlamentar iniciado com os Projectos de Lei nº 377/IV (PS) e nº 387/IV (PRD), como votação final em 29 de Abril de 1987 (DAR, I série, nº 73, de 29 de Abril de 1987).
As Introduções explicativas dos Projectos, e a discussão na generalidade, revelam a preocupação de cumprir (reconhecendo os deputados que tardiamente) a injunção constitucional do artigo 120º, 2 da CRP – actualmente artigo 117º, 2 – no que respeitava à responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por actos e omissões praticados no exercício das funções. A desadequação e as fortes dúvidas sobre a validade de vigência da Lei nº 266, de 27 de Julho de 1914, impunham a intervenção legislativa da competência absoluta do Parlamento.
2. Os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, definidos nos artigos 7º a 27º do diploma, podem agregar-se por categorias delimitadas pelos interesses e valores específicos que protegem e pela consequente definição do bem jurídico.
O artigo 7º («Traição à Pátria») protege os valores da integridade territorial do País e da independência da Nação, prevenindo a separação, por acto não violento, de territórios da Mão Pátria ou a submissão a soberania estrangeira de todo ou parte do território nacional, ou ofender ou pôr em perigo a independência da País. È um crime de traição à Pátria, por meio de acção não violenta, isto é, como resultado de um acto político, em de que a moldura penal prevista traduz a gravidade.
Os artigos 8º, 9º, 10º e 15º constituem crimes contra o Estado de direito, como modelo constitucional de realização de valores, direitos e garantias fundamentais, ou contra a perturbação de funcionamento de órgãos constitucionais. As molduras penais previstas permitem a indicação sobre a relevância e a identidade material e a intensidade dos valores protegidos nas incriminações. A medida das penas transmite indicações sobre a identidade e a homogeneidade dos valores protegidos nos artigos 9º, 10º e 15º e das acções que os afectam.
Os artigos 11º e 13 constituem crimes puros de exercício de funções, protegendo a regularidade funcional do respectivo exercício – são crimes também de direito penal comum relativo a funcionários.
O artigo 14º constitui um crime financeiro, na dimensão orçamental, protegendo a integridade e o rigor na execução orçamental.
Os artigos 16º, 17º e 18º («corrupção»), 20º e 22º («peculato») e 13º («participação económica em negócio») constituem crimes comuns de funcionários, e por isso sem especial significado típico ou valorativo enquanto crimes de responsabilidade.
Os artigos 24º a 27º constituem também crimes comuns, sem particularidades que justificassem a previsão autónoma e específica como crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos.
3. O artigo 9º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, prevê o crime de «Atentado contra o Estado de direito»: «O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido».
O crime previsto nesta disposição, considerados os seus elementos constitutivos, deve ser qualificado como crime próprio, puro, e tanto pela previsão específica da lei, como pela centralidade e essencialidade da qualidade do agente, é um crime de “mão-própria”, em que concorrem elementos que parecem afastar a comparticipação de extraneus – artigo 28º, nº 2, parte final, do Código Penal.
A descrição típica do crime é relativamente complexa, pela utilização de várias noções ou conceitos materiais e valorativos de perímetro indeterminado ou relativamente elástico.
A complexidade é, também, muito induzida pela dimensão (ou natureza) simbólica – ou mesmo hiper-simbólica – da incriminação.
A dimensão simbólica está bem presente em espaços da discussão parlamentar do processo legislativo (DAR, I série, nº 70, de 24 de Abril de 1987), com afirmações de manifesta carga proclamatória – o que, por regra, traduz um pacto genético de ineficácia, ou de prognose de inexistência ou mesmo de impossibilidade de ocorrência de factos, situações ou motivos que pudessem determinar a aplicação.
Por esta razão, impõe-se também um especial cuidado na interpretação.
O crime previsto no artigo 9º (como outros de carga típica, valorativa e simbólica semelhante) existe, no entanto, e apresenta, de qualquer modo, um conjunto de elementos que carecem de interpretação, como pressuposto da delimitação e integração dos elementos do tipo e, por aqui, das circunstâncias de possível aplicabilidade ou aplicação.
A lei penal tem de ser certa e determinada. O princípio da legalidade constitui, com efeito, uma garantia fundamental com assento constitucional e consagração nos instrumentos internacionais de protecção de direitos fundamentais – v. g., no artigo 7º da CEDH.
As exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da legalidade devem encontrar tradução e fazem-se sentir de forma mais intensa na definição do tipo de ilícito.
Deste modo, na interpretação da lei penal, e especialmente da determinação dos elementos do tipo de ilícito, as palavras utilizadas, o teor literal e os significados comuns que comportam, constituem a referência essencial. Depois, dentro do quadro de significações possíveis das palavras da lei, intervirão considerações teleologicamente comandadas e funcionalmente justificadas.
A conjugação das palavras, do seu âmbito de significados comuns e da razão teleológica permitirá encontrar um sentido vinculado a razões e a fins, especialmente quando a utilização de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais ou de «fórmulas gerais de valor» introduza alguma dificuldade na determinabilidade objectiva das condutas proibidas.
A função de garantia da lei penal não suporta interpretações que não sejam estritas.
Deste modo, na interpretação do tipo, o primeiro elemento de referência – para além da especificidade do agente – será o esclarecimento sobre o ambiente e o contexto da acção, simultaneamente apresentados como elementos da tipicidade e da ilicitude.
Os actos que o tipo do artigo 9º prevê têm de ser praticados pelo titular de cargo político no exercício das funções ou por causa ou no contexto do exercício das respectivas funções; constitui um crime de exercício e não simplesmente um crime de qualidade.
E no exercício das respectivas funções, «com flagrante desvio ou abuso das suas funções, ou com grave violação dos inerentes deveres». No exercício das funções significa acção integrada por actos ou omissões praticados no exercício do complexo das competências ou poderes políticos próprios do titular de cargo político que possa estar em causa.
Os actos que integram a acção típica têm de ser praticados com «flagrante desvio ou abuso de funções». Que significa e tem de revelar um afastamento manifesto das finalidades a que está adstrita a atribuição de competências, com desrespeito intolerável pelos deveres que as funções impõem e a que obrigam.
Para além da natureza e da qualificação da actuação, tem de concorrer uma intenção específica para a produção de um efeito – tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República e em instrumentos internacionais sobre direitos e garantias fundamentais.
A formulação permite, assim, revelar a construção do tipo como crime de empreendimento, em que a tentativa integra já, por si, o crime acabado, considerando-se a acabamento apenas como critério de delimitação das molduras penais previstas.
A descrição, a natureza e o conteúdo (e a intenção específica) e o resultado da acção, ou visado com a acção, é determinante para a leitura e interpretação do tipo e constitui mesmo o elemento central para a compreensão do crime.
A destruição, alteração ou subversão do estado de direito constitucionalmente estabelecido – destruição, alteração ou subversão dos direitos, liberdades e garantias constitucionais que dão substância, consistência e dimensão jurídica e política ao Estado de direito como modelo constitucional de organização de uma sociedade política – constituem fórmulas para designação ou identificação de formas ou modos de afectação radical e na substância mesma, impedindo a subsistência do estado de direito como modelo de referência constitucional.
Destruir, alterar ou subverter constituem fórmulas de linguagem que significam e correspondem a conteúdos materiais de ruptura sistémica.
As palavras têm um significado e um conteúdo que define e qualifica uma determinada realidade.
A destruição significa eliminar, danificar de modo irreversível, desfazer, aniquilar.
A alteração, em significado com idêntica carga valorativa, consiste em modificar, degenerar ou corromper.
A subversão é destruição, perturbação, perversão.
Todos são termos e fórmulas verbais com uma específica carga semântica, que reverte sempre para uma modificação essencial, determinante, ou para a eliminação ou aniquilamento de uma realidade antes consistente; a dimensão semântica aponta, como se salientou, para expressões com significado material de ruptura.
Deste modo, na estrutura típica, o crime de «atentado ao Estado de direito» tem de consistir numa ruptura, no aniquilamento, ou na supressão geral e sistémica, se não total pelo menos de modo substancial, dos elementos constitucionais da noção – soberania popular, pluralismo de expressão e organização política democrática, separação e interdependência de poderes e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 2º da Constituição.
Direitos, liberdades e garantias fundamentais que a Constituição enuncia no Título II, sejam pessoais, sejam de participação política ou dos trabalhadores.
A alteração, destruição ou aniquilamento é, pois, sistémica, de supressão efectiva e geral ou substancialmente considerável para constituir uma alteração de modelo constitucional nos modos, nos termos e nas condições gerais de exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
O resultado tem de ser de dimensão modelar, de desconfiguração, do nível da radicalidade que altere a forma de organização, o conteúdo e a expressão externa do Estado de direito.
Em suma, o crime de «atentado ao Estado de direito», previsto no artigo 9º da Lei nº 43/87, de 16 de Julho, tem de consistir em acções ou num empreendimento que tenham como resultado uma modificação de tal nível, generalidade e intensidade, que se apresente como um verdadeiro «golpe de estado» por meios não violentos.
5. A razão dos valores constitucionais que carecem de tutela penal – a proporcionalidade dos crimes e das penas como critério principal na axiologia da Constituição - e a eadem ratio de proporção e razoabilidade comparada intra-sistemática entre os crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º da Lei nº 34/87 apontam no mesmo sentido
Existe, ou tem de existir, com efeito, uma proporção interna, medida pelas molduras penais como índice material da gravidade dos crimes previstos. A medida das penas igual ou diversa aponta para uma semelhança ou diferenciação das valorações materiais, logo no plano assumido pelo legislador.
A identidade de molduras penais dos crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º não pode deixar de valer como significado de aproximação ou identidade de valorações, que tem necessário reflexo na determinação das condutas que podem estar, razoável e teleologicamente, contidas nos significados comuns das noções que utilizam.
O artigo 10º prevê o impedimento ou constrangimento, ainda que por meio não violento, do livre exercício das funções de órgão de soberania.
O artigo 15º, por seu lado, prevê a suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias não susceptíveis de suspensão, ou sem recurso legítimo aos estados se sítio ou de emergência, ou restrições ao exercício dos direitos, liberdades e garantias com violação grave das regras de execução do estado de excepção declarado.
O impedimento ou constrangimento do livre exercício das funções dos órgãos de soberania afecta, na própria substância, os fundamentos institucionais do Estado de direito, e a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias, sem recurso aos estados de emergência, está prevista no tipo respectivo como acção com efeitos de generalidade, aplicáveis em geral, e não especificamente para casos individualizados ou pontuais, sem significado colectivo e sistémico.
A interpretação dos elementos do tipo do artigo 9º, mediada também pela razão das correlações valorativas de homogeneidade material, não pode deixar de apontar, como se salientou, para uma alteração, desfiguração, destruição ou impedimento de exercício, em geral, das liberdades constitucionais, de modo que se verifique uma alteração na substância do Estado de direito.
(António Henriques Gaspar)
18 fevereiro 2010
Portugal é um dos melhores países para se viver
No ruído e perturbação destes dias perturbados, os portugueses não se terão porventura apercebido de uma notícia crucial e redentora: Portugal foi colocado pela revista "International Living" (?) em 21º (a contar do princípio) na tabela dos melhores países para viver, numa lista de 194, subindo 4 lugares relativamente ao ano transacto!
Alguns dos indicadores são muito lisonjeiros: em matéria de liberdade, por exemplo, 100 pontos em 100 possíveis (é de arrasar); e o mesmo se passa com a segurança.
Descemos, no entanto, no custo de vida (de 59 para 55) e no clima (de 92 para 83), mas isso são pormenores. E o clima vai recuperar certamente com a primavera que avizinha e anuncia prometedora. Vamos certamente continuar a subir!
Aqui fica esta notícia para os derrotistas e maledicentes, que aqui abundam (felizmente esse indicador não entra para a classificação...).
Sorriam, por favor!
Alguns dos indicadores são muito lisonjeiros: em matéria de liberdade, por exemplo, 100 pontos em 100 possíveis (é de arrasar); e o mesmo se passa com a segurança.
Descemos, no entanto, no custo de vida (de 59 para 55) e no clima (de 92 para 83), mas isso são pormenores. E o clima vai recuperar certamente com a primavera que avizinha e anuncia prometedora. Vamos certamente continuar a subir!
Aqui fica esta notícia para os derrotistas e maledicentes, que aqui abundam (felizmente esse indicador não entra para a classificação...).
Sorriam, por favor!
A crueldade do desemprego
Gonçalo M. Tavares é seguramente um dos mais originais escritores portugueses dos últimos anos (ou décadas). A sua escrita é dura, corrosiva, de um humor cruel.
Particularmente cáustico é "O Senhor Brecht", esse contador de histórias atrozes.
Esta é a história de um desempregado:
O desempregado com filhos
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
"O Senhor Brecht" (2004)
Particularmente cáustico é "O Senhor Brecht", esse contador de histórias atrozes.
Esta é a história de um desempregado:
O desempregado com filhos
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
"O Senhor Brecht" (2004)
Um MDE eternamente adiado em Londres
O MDE enviado às justiças inglesas para detenção de Vale Azevedo há dois anos sofreu mais um adiamento!
Das duas uma: ou os tribunais ingleses desconhecem em absoluto o que é um MDE (que é um processo expedito, com prazos muito apertados para decisão, e se baseia no princípio da confiança e do reconhecimento mútuo entre os estados comunitários) ou então desobedece deliberadamente ao teor da directiva comunitária que o criou.
Em qualquer caso, algo está errado nas justiças daquele reino, que não pode estar eternamente com um pé de fora e outro dentro da União Europeia.
Das duas uma: ou os tribunais ingleses desconhecem em absoluto o que é um MDE (que é um processo expedito, com prazos muito apertados para decisão, e se baseia no princípio da confiança e do reconhecimento mútuo entre os estados comunitários) ou então desobedece deliberadamente ao teor da directiva comunitária que o criou.
Em qualquer caso, algo está errado nas justiças daquele reino, que não pode estar eternamente com um pé de fora e outro dentro da União Europeia.
12 fevereiro 2010
Providências desmesuradas e mesquinhez lusitana
Certamente que, para que a providência cautelar visando o "Sol" tivesse sido decretada, foi invocado o perigo de lesões suficientemente graves e irreparáveis (embora não descortináveis à vista desarmada) para a pessoa do requerente e eventual lesado, de forma a fazer prevalecer os interesses deste sobre o interesse público no acesso à informação. Pois essa ponderação de interesses contraditórios deverá sempre ser feita na apreciação das providências cautelares.
De qualquer forma, a reacção do "Sol" foi bem mesquinha, bem à portuguesa: fugir à notificação é como procedem geralmente os que têm medo de assumir as consequências dos seus actos. Incapaz de assumir uma atitude frontal de desobediência civil, em nome da ética jornalística e do superior interesse público, o procedimento do "Sol" é mesquinho, é rasca.
De qualquer forma, a reacção do "Sol" foi bem mesquinha, bem à portuguesa: fugir à notificação é como procedem geralmente os que têm medo de assumir as consequências dos seus actos. Incapaz de assumir uma atitude frontal de desobediência civil, em nome da ética jornalística e do superior interesse público, o procedimento do "Sol" é mesquinho, é rasca.
07 fevereiro 2010
O caso "Crespo"
Sobre a questão das escutas telefónicas em que vêm à liça revelações importantes sobre a gestão da coisa pública e das diferentes respostas que pode merecer a nível jurídico e ético-político, já me pronunciei em “post” colocado neste blog no passado dia 14 de Dezembro de 2009.
Hoje, queria tecer breves considerações sobre o chamado caso “Crespo”.
Duas questões:
A) A questão da privacidade.
A suposta privacidade de uma conversa não é obstáculo à realização de uma ofensa à honra de um terceiro que não participa nessa conversa. Se uma pessoa, em privado, imputar factos lesivos da honra, consideração ou bom nome de um terceiro, esse terceiro, sendo sabedor do acto, pode reagir contra o ofensor pelos meios legais. E pode divulgar o facto, sobretudo se lhe encontrar relevância bastante para lhe dar publicidade.
Com isto, não digo que tivesse havido qualquer ofensa ao jornalista Mário Crespo ou que devam ser tomadas como verídicas as suas afirmações. Apenas respondo a uma questão que foi colocada em vários quadrantes (por exemplo, no artigo de Pulido Valente, no “Público” de sábado passado).
B) A questão da recusa de publicação do artigo de Mário Crespo no Jornal de Notícias, de que é colaborador em artigos de opinião.
Embora a direcção do jornal o pudesse fazer, desde logo em nome da linha editorial do periódico, acho estranho que o tenha feito. Na verdade, os directores dos jornais bateram-se vigorosamente pela cessação da sua responsabilidade criminal, que vigorava na primeira lei de imprensa, no caso de artigos de opinião devidamente assinados por pessoa identificada e conseguiram fazer com que isso ficasse consagrado na lei. Assim, só os autores do escrito incriminado respondem criminalmente por infracções cometidas através dos seus escritos (art. 31.º, n.º 5 da Lei n. 2/99, de 13 de Janeiro – Lei de Imprensa). Daí que os directores praticamente não exerçam o mínimo controle sobre esses escritos. Trata-se de uma excepção à lei penal geral.
É, assim, de estranhar que, neste caso, se tenha invocado a falta de contraditório e de confirmação por parte do jornal dos factos imputados por Mário Crespo para recusar a publicação.
Isto, com uma ressalva: o facto de a responsabilidade civil por factos danosos poder não estar excluída, se bem interpreto o art. 29.º, n.º 2 da mesma lei: «No caso de escrito ou imagem inseridos numa publicação periódica com conhecimento e sem oposição do director ou seu substituto legal, as empresas jornalísticas são solidariamente responsáveis com o autor pelos danos que tiverem causado.»
Hoje, queria tecer breves considerações sobre o chamado caso “Crespo”.
Duas questões:
A) A questão da privacidade.
A suposta privacidade de uma conversa não é obstáculo à realização de uma ofensa à honra de um terceiro que não participa nessa conversa. Se uma pessoa, em privado, imputar factos lesivos da honra, consideração ou bom nome de um terceiro, esse terceiro, sendo sabedor do acto, pode reagir contra o ofensor pelos meios legais. E pode divulgar o facto, sobretudo se lhe encontrar relevância bastante para lhe dar publicidade.
Com isto, não digo que tivesse havido qualquer ofensa ao jornalista Mário Crespo ou que devam ser tomadas como verídicas as suas afirmações. Apenas respondo a uma questão que foi colocada em vários quadrantes (por exemplo, no artigo de Pulido Valente, no “Público” de sábado passado).
B) A questão da recusa de publicação do artigo de Mário Crespo no Jornal de Notícias, de que é colaborador em artigos de opinião.
Embora a direcção do jornal o pudesse fazer, desde logo em nome da linha editorial do periódico, acho estranho que o tenha feito. Na verdade, os directores dos jornais bateram-se vigorosamente pela cessação da sua responsabilidade criminal, que vigorava na primeira lei de imprensa, no caso de artigos de opinião devidamente assinados por pessoa identificada e conseguiram fazer com que isso ficasse consagrado na lei. Assim, só os autores do escrito incriminado respondem criminalmente por infracções cometidas através dos seus escritos (art. 31.º, n.º 5 da Lei n. 2/99, de 13 de Janeiro – Lei de Imprensa). Daí que os directores praticamente não exerçam o mínimo controle sobre esses escritos. Trata-se de uma excepção à lei penal geral.
É, assim, de estranhar que, neste caso, se tenha invocado a falta de contraditório e de confirmação por parte do jornal dos factos imputados por Mário Crespo para recusar a publicação.
Isto, com uma ressalva: o facto de a responsabilidade civil por factos danosos poder não estar excluída, se bem interpreto o art. 29.º, n.º 2 da mesma lei: «No caso de escrito ou imagem inseridos numa publicação periódica com conhecimento e sem oposição do director ou seu substituto legal, as empresas jornalísticas são solidariamente responsáveis com o autor pelos danos que tiverem causado.»
A Crise Financeira e a Resposta Penal: uma reflexão importante
Publico esta comunicação de António Henriques Gaspar à Conferência "Direito Sancionatório e Sistema Financeiro", organizada pela Procuradoria-Geral da República e pelo Banco de Portugal em 28-29 de Janeiro últimos. Trata-se de uma reflexão muito interessante e útil sobre as limitações e inconsequências da sobrecriminalização, nomeadamente em matéria económico-financeira.
A CRISE FINANCEIRA E A RESPOSTA PENAL:
PERPLEXIDADE PRESENTE E REFLEXÃO SOBRE O FUTURO
1. Em Outubro de 2008 desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro, em que «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo» (Denis Muzet no “Nouvel Observateur”).
Foi o excesso de uma sociedade dominada pela financiarização da economia, e também por uma crise do bom senso.
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que tocou o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
Porque também não tem responsáveis que possam ser claramente designados pelas derivas, e sem culpados a crise não oferece a redenção da via da expiação. Apenas a sanção anónima dos abusos e dos excessos injustificados.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
2. A crise financeira e económica afectou profundamente os consumidores e os negócios que, em consequência, retraíram fortemente.
O sistema financeiro pareceu entrar em colapso e os sistemas de regulação falharam na prevenção de erros e abusos.
As explicações que os saberes específicos da economia nos concedem situam-se mais nas consequências do que nas causas. Faltou, talvez, falarem-nos das causas das causas.
A crise reflecte, segundo se escreve nas análises ou na «narrativa» mediática, o maior falhanço do sistema de regulação na história moderna, tanto da supervisão das entidades dos mercados de capitais como a omissão de intervenção prudencial.
Mas também na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência de alguns; quando a fronteira entre o virtual e o real é pouco nítida, torna-se relativamente simples fazer crer numa realidade volátil e sem distinção entre a ficção e a não ficção.
3. A crise surgiu como que com tempo marcado.
As crises financeiras, parece que emergem todas em Outubro.
Na aparente irrealidade dos factos, como lição da história e na dose suplementar de absurdo parece assemelhar-se, salvaguardadas as proporções, à crise das tulipas de 1636, obrigando a reflexões póstumas sobre a natureza dos factos e sobre a intervenção ou a omissão do direito penal.
Em primeiro lugar, a descrição do que foi explicado e nos transporta para uma dimensão quase irreal.
A começar pelas consequências. Segundo se estima, alguns bancos norte americanos, baralhando papel e recolhendo centenas de milhões de dólares em bónus, causaram perdas de 40 triliões de dólares na saúde financeira e provocaram a perda de 100 milhões de empregos na economia mundial.
A complexidade por detrás entorpece a compreensão dos leigos, já que as explicações não parecem ao alcance do senso comum.
A invenção de produtos financeiros possibilitada pelas novas tecnologias, segundo modelos matemáticos, através da titularização de pacotes de créditos, a criação de «derivados», não ligados a quaisquer activos reais, ou a titularização de várias naturezas com rentabilidade prometida aos compradores dos títulos, invadiram os mercados financeiros.
Na titularização e na multiplicação de camadas de titularização, a cadeia entre a base e o investidor final tornava-se cada vez mais distante e complexa.
Prometendo rendimentos excepcionais, superiores ao crescimento da economia, tais produtos foram disseminados e revendidos a todas as instituições financeiras, que por sua vez fabricavam e ofereciam outros produtos sem que ninguém pudesse estabelecer o seu «traço» ou «rasto» e a ligação à sua origem.
E se nos bancos ou nos fundos especulativos (hedge funds) alguns pudessem saber um pouco sobre o risco de tais produtos (o que depois da crise se vulgarizou na nomenclatura como «produtos tóxicos»), os aforadores ou investidores individuais não dispunham de qualquer meio de os conhecer ou avaliar.
A assimetria da informação teve uma dimensão inigualável.
Leigos, ficámos a conhecer siglas cujo significado não dominamos, e que nos transportam para uma dimensão de irrealidade num mundo virtual.
Subprimes, ABS (asset-backed securities); CDO (collateralized debt obligation); CDS (credit default swap), exteriorizam a identificação, quase iniciática, de «produtos» cuja natureza, construção, conteúdo, função, ligações, valor e riscos, não apreendemos, e apenas estão (estavam) ao alcance, presume-se, de uns quantos especialistas - «iniciados».
Sabemos hoje que algumas destas coisas eram produtos inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que por vezes dependiam dos acasos e eram indomináveis pelos seus criadores, e até cada vez menos compreensíveis para os dirigentes das próprias instituições financeiras que os propunham.
Alguns estabelecimentos financeiros «propunham aos seus clientes títulos desta natureza, cuja descrição constava de um manual de 150 páginas, que nenhum quadro superior do banco podia compreender e, consequentemente, controlar».
Toda a montagem foi, na verdade, um engodo, com a passividade, descuidado ou incompetência das (agora) todo poderosas agências de rating.
As remunerações dos dirigentes destas instituições financeiras e dos criadores destes produtos eram constituídas, no essencial, por bónus indexados aos benefícios anuais. Estavam associados aos lucros, mas não às perdas.
As instituições estruturaram-se para evasão à regulação: contabilidades dúbias, supervisões fragilizadas, produtos financeiros sem cobertura em activos reais, multiplicados sem fim em sistema de apostas (KRUGMAN).
Sem ancoragem no real, tudo parecia assemelhar-se a um jogo de ficção; ninguém sabia ou poderia saber o valor destes produtos.
Mas sustentavam as contas dos bancos, alojados em activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimulá-los aos reguladores.
Segundo algumas análises (JACQUES ATTALI, “La crise, et après”), quando, tarde e por vezes por razões acidentais, outros tomaram consciência da natureza insustentável das dívidas e dos activos, os «iniciados», perante o falhanço da construção, lograram manter o domínio da situação e conseguir obter dos Estados o financiamento das suas perdas, salvando um sistema de que haviam extraído tudo o que puderam.
No fim, parece que a crise serviu para «limpar» os activos «tóxicos», a expensas dos contribuintes.
No fundo, ganharam (e muito) os que deveriam perder, e perderam todos os outros – os inocentes da crise.
4. Na normalidade das coisas, esta realidade deveria ter convocado o direito penal.
A aparente irrealidade dos factos e o montante astronómico das somas, perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras, levam alguns mais radicais a considerar os contornos da crise como «a vast criminal enterprise», considerando que falta contar «the real story».
E manifestam surpresa por não haver investigações criminais, bem como por não existirem da parte dos economistas explicações fáceis de compreender. Quem causou a crise financeira e económica «It is a riddle, wrapped in a mystery, inside an enigma» (Churchill em 1939).
As recriminações começaram, no entanto.
Como refere um alto funcionário norte-americano dos serviços da inspecção financeira, a história ensina que a exposição de tanto dinheiro num tão curto período de tempo atrai inevitavelmente os que procuram lucrar criminalmente («History teaches us that an outlay of so much money in such a short period of time will inevitably draw those seeking to profit criminaly»).
De acordo com recentes dados públicos, disponíveis nos meios de informação global, nos EEUU o FBI iniciou mais de 1800 investigações relacionadas com fraudes na actividade bancária dos créditos hipotecários, estando as white-collar crime resources limitadas pelo número de investigações com fraudes societárias e nas instituições financeiras.
A fraude gigantesca que Bernard Madoff montou, embora constitua questão diferente e apresente uma incompreensível duração e montantes, tratando-se de um (dir-se-ia vulgar) esquema piramidal de Ponzi, certamente que aproveitou do ambiente em que se desenvolveu a crise.
No entanto, o discurso lenitivo sobre o paraíso da mundialização financeira e o quadro ideológico e político da desregulação criaram novas relações de valores e referências, relegando para outro plano ou diverso paradigma a dimensão, o conceito e o lugar da designada criminalidade económica e financeira.
Por isso, na narrativa pós declaração da crise esteve presente um conselho, que se deveria ler como advertência ou imposição: «let criminal law aside».
E só aconselha, impondo, quem pode impor o conselho.
Na desregulação que os mercados financeiros exigiram, tendo poder para exigir, e por certo precisamente por isso, «o direito penal não é para aqui chamado».
Os mercados financeiros são demasiado grandes e poderosos para ser contidos.
E no entanto as categorias penais clássicas pareceriam assentar bem no molde feito de factos que o registo exterior da revelação da crise nos apresentou.
Poderemos interrogar-nos sobre se a criação e o oferecimento para captação de aforros dos produtos financeiros inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que dependiam dos acasos, indomináveis pelos seus criadores, e cuja construção, natureza, riscos e valor apenas estariam ao alcance de uns quantos especialistas e nem seriam do domínio dos dirigentes das instituições financeiras, sem relação com valor real, mas muitos meramente virtuais e inteiramente especulativos, não deveriam ser acolhidos a categorias clássicas do direito penal, como a burla.
Ou se a utilização indevida de fundos entregues como depósitos em produtos de elevado risco sem a vontade esclarecida do depositante não se acolhe na categoria de abuso de confiança.
Ou ainda avaliar se os comportamentos de gestão em limites de risco mais do que temerário, colados à perda do sentido da decência de alguns, com consequências devastadoras para as instituições financeiras e para os seus accionistas, não poderiam eventualmente ser considerados nos tipos de infidelidade (artigo 224º do CP) ou de administração danosa (artigo 235º do CP).
Também as categorias dos artigos 255º e seguintes do CP (falsificação) poderiam acolher situações de manipulação dos balanços dos bancos, por meios de inscrição dos activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimular dos reguladores imparidades comprometedoras.
Para não falar dos tipos de insolvência (artigos 227º e 228º do CP), que, porventura, só a intervenção e o socorro do Estado impediram.
Haverá que aguardar que as entidades de investigação e as instâncias judiciais façam o seu caminho, percorrendo-o com a leitura e com os instrumentos normativos que julgarem adequados.
Mas estas são reflexões de circunstância, certamente sem consistência, por não se saber qual a realidade com que contamos, quando nos movemos numa realidade virtual.
As causas da crise apresentam-se sem responsáveis, e sem responsáveis não há direito penal.
5. Poderemos talvez tirar algumas lições para o futuro.
A dimensão da crise, com os seus mistérios, mostrou as consequências da desregulação.
A solução, como vem sendo proclamado, exige que os mercados, sobretudo ou pelo menos os financeiros, sejam equilibrados através de um Estado de direito eficaz.
A instituição de mecanismos de regulação para a detecção de riscos sistémicos para o conjunto do sistema financeiro – supervisão macro-prudencial, e para supervisão do comportamento individual das instituições financeiras – supervisão micro-prudencial, consta das propostas apresentadas pela Comissão Europeia (23 de Setembro de 2009) de reforma da regulação do sector financeiro europeu.
Mas nesta matéria talvez não seja de prever uma presença assídua do direito penal, nem que o direito penal possa ser de grande auxílio.
É certo que o direito penal económico, construído na pós-modernidade muito ao serviço de politicas e já não de valores, não de ultima ratio, mas ao sabor de circunstâncias às vezes para a simples gestão política do quotidiano, cresce de maneira exponencial, e nos «grandes domínios da economia» protege «o domínio financeiro do Estado» e a «tutela económica dos interesses da colectividade», em «áreas onde de forma aberta e sensível se podem e devem considerar penalmente relevantes alguns comportamentos que perturbam para lá do socialmente aceitável, o jogo claro e límpido em que a economia, enquanto valor instrumental, se traduz» (FARIA COSTA, “Direito Penal Económico”).
Os comportamentos que a crise financeira revelou, com as consequências próximas de catástrofe na economia, se perturbaram de forma brutal «o jogo claro e límpido», devem exigir a previsão de tipos penais adequados que os abranjam e que previnam o futuro.
Mas, se existir, ou quando exista adequada regulação, os tipos penais só poderiam ser pensados para as violações sérias das decisões reguladoras.
Haverá, porém, que reconhecer que o «carácter virtual dos actores» e a sua diluição nas organizações, só possibilitaria certamente encontrar uma responsabilidade limitada em muito ao âmbito das pessoas colectivas.
6. No entanto, algumas hipóteses podem ser pensadas sobre modos de enquadramento em categorias penais de alguns factores genéticos da crise que desagregaram o sentido do real e desafiaram os limites éticos.
A crise nasceu, segundo dizem, de imponderados comportamentos de risco e da falta de sentido da decência de muitos actores financeiros.
Os comportamentos temerariamente especulativos, com riscos muito elevados, sem relação com o real, com a criação, ou invenção, de produtos financeiros sem ligação sustentada, sem informação minimamente avisada e compreensível por quem investe na aquisição destes produtos de valor insuportavelmente distante de âncoras reais de segurança, afectam seriamente bens jurídicos instrumentais da actividade económica.
A previsão de tipos penais de perigo para prevenção de comportamentos na actividade financeira que geram riscos sérios de perturbação e de produção de danos para além do socialmente aceitável, poderia ser um caminho, com a vantagem de dar um sinal claro sobre a validade, a relevância dos interesses e dos valores instrumentais da actividade financeira, permitindo uma protecção recuada a momentos anteriores à produção de danos, com vantagens parava a investigação e a reconstituição processual.
Numa outra perspectiva, os tipos legais de infidelidade e de gestão danosa, relativamente esquecidos, poderiam acolher alguma recomposição da tipicidade.
Nas sociedades financeiras com grande dispersão de capital social é cada vez mais distante a relação entre os accionistas – ou um vasto universo diluído de accionistas – e as administrações, que são constituídas por gestores profissionais.
A separação entre accionistas e gestores como consequência da dispersão de accionistas produz um distanciamento de que emerge como que uma apropriação gestionária das próprias sociedades.
Nas sociedades financeiras, a separação, a alienidade da gestão e as contrapartidas remuneratórias dos gestores por bónus, podem predispor à assunção de riscos desproporcionados ou temerários, com consequências assimétricas, em que um eventual êxito será muito favorável ao gestor, mas em que as perdas comprometem essencialmente a estabilidade, penalizando os accionistas com a quebra ou desaparecimento do valor das suas acções.
A reconfiguração dos elementos típicos de “infidelidade” e de “administração danosa” poderia responder á carência de tutela penal dos desvios de racionalidade, prevenindo a repetição de aventuras gestionárias que a crise revelou.
Na infidelidade, porventura cindindo ou reavaliando a intensidade do elemento subjectivo, de modo a abranger comportamentos de temeridade especulativa, que estão paredes-meias ou valorativamente contíguos ao artifício ou engano.
Na administração danosa, alargando o âmbito objectivo da tipicidade para a generalidade dos sectores económicos, sem a actual restrição aos sectores público ou cooperativo.
A lacuna maior e mais evidente que emerge das circunstâncias da crise, permito-me encontrá-la, porém, na dificuldade de aplicação das actuais categorias do crime de insolvência, mesmo com a intervenção dos modelos dogmáticos das formas do crime (tentativa), quando a insolvência não chegue a ocorrer apenas por virtude da intervenção do Estado, por decisão de política, para evitar o risco sistémico para o sistema financeiro.
A intervenção pública, no entanto, se evita os graves danos sistémicos e a cascata de consequências associadas, não afasta nem apaga os comportamentos que conduziriam uma sociedade, nomeadamente de natureza financeira, a uma situação de insolvência.
A lei penal deveria, pois, prever, sem as dúvidas dogmáticas na construção, que em tais circunstâncias e não obstante a intervenção pública a impedir a insolvência por razões de interesse público, o tipo de crime deveria poder ser preenchido, com a consequente necessidade de averiguação e de processo para verificar a concorrência dos restantes elementos do crime doloso ou negligente de insolvência.
7. Mas, nestas matérias, tudo será questão de política, de vontade e de juízo de utilidade, quando o direito penal está, como arma de constrição, sobretudo ao serviço de políticas e não de valores, e não raro como instrumento voluntarista sem visão de sistema.
E na complexidade volátil dos mercados financeiros e dos seus interesses muito específicos, que não serão coincidentes com o jogo «claro e límpido» da economia, pode ser difícil um consenso social e político sobre o bem jurídico a proteger como valor relevante carente de tutela penal.
Na semana passada, o Presidente Obama anunciou medidas para limitar os riscos que a banca assumiu no passado e que estiveram na origem da crise financeira.
E justificou a intenção política referindo a «irresponsabilidade» manifestada pelo sistema financeiro, um ano depois, com o regresso a «velhas práticas».
Soaram as campainhas de alarme em Wall Street, com respostas que parecem conter alguma ameaça dos mercados financeiros.
Poderemos interrogar-nos, pois, se, aqui, o direito penal poderá ter alguma função útil de regulação preventiva, a não ser por uma intenção simbólica que, por regra, contém um pacto de ineficácia.
Recordo, de novo, o aviso deixado por aqueles que pensam poder avisar: «let criminal law aside».
(António Henriques Gaspar)
A CRISE FINANCEIRA E A RESPOSTA PENAL:
PERPLEXIDADE PRESENTE E REFLEXÃO SOBRE O FUTURO
1. Em Outubro de 2008 desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro, em que «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo» (Denis Muzet no “Nouvel Observateur”).
Foi o excesso de uma sociedade dominada pela financiarização da economia, e também por uma crise do bom senso.
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que tocou o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
Porque também não tem responsáveis que possam ser claramente designados pelas derivas, e sem culpados a crise não oferece a redenção da via da expiação. Apenas a sanção anónima dos abusos e dos excessos injustificados.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
2. A crise financeira e económica afectou profundamente os consumidores e os negócios que, em consequência, retraíram fortemente.
O sistema financeiro pareceu entrar em colapso e os sistemas de regulação falharam na prevenção de erros e abusos.
As explicações que os saberes específicos da economia nos concedem situam-se mais nas consequências do que nas causas. Faltou, talvez, falarem-nos das causas das causas.
A crise reflecte, segundo se escreve nas análises ou na «narrativa» mediática, o maior falhanço do sistema de regulação na história moderna, tanto da supervisão das entidades dos mercados de capitais como a omissão de intervenção prudencial.
Mas também na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência de alguns; quando a fronteira entre o virtual e o real é pouco nítida, torna-se relativamente simples fazer crer numa realidade volátil e sem distinção entre a ficção e a não ficção.
3. A crise surgiu como que com tempo marcado.
As crises financeiras, parece que emergem todas em Outubro.
Na aparente irrealidade dos factos, como lição da história e na dose suplementar de absurdo parece assemelhar-se, salvaguardadas as proporções, à crise das tulipas de 1636, obrigando a reflexões póstumas sobre a natureza dos factos e sobre a intervenção ou a omissão do direito penal.
Em primeiro lugar, a descrição do que foi explicado e nos transporta para uma dimensão quase irreal.
A começar pelas consequências. Segundo se estima, alguns bancos norte americanos, baralhando papel e recolhendo centenas de milhões de dólares em bónus, causaram perdas de 40 triliões de dólares na saúde financeira e provocaram a perda de 100 milhões de empregos na economia mundial.
A complexidade por detrás entorpece a compreensão dos leigos, já que as explicações não parecem ao alcance do senso comum.
A invenção de produtos financeiros possibilitada pelas novas tecnologias, segundo modelos matemáticos, através da titularização de pacotes de créditos, a criação de «derivados», não ligados a quaisquer activos reais, ou a titularização de várias naturezas com rentabilidade prometida aos compradores dos títulos, invadiram os mercados financeiros.
Na titularização e na multiplicação de camadas de titularização, a cadeia entre a base e o investidor final tornava-se cada vez mais distante e complexa.
Prometendo rendimentos excepcionais, superiores ao crescimento da economia, tais produtos foram disseminados e revendidos a todas as instituições financeiras, que por sua vez fabricavam e ofereciam outros produtos sem que ninguém pudesse estabelecer o seu «traço» ou «rasto» e a ligação à sua origem.
E se nos bancos ou nos fundos especulativos (hedge funds) alguns pudessem saber um pouco sobre o risco de tais produtos (o que depois da crise se vulgarizou na nomenclatura como «produtos tóxicos»), os aforadores ou investidores individuais não dispunham de qualquer meio de os conhecer ou avaliar.
A assimetria da informação teve uma dimensão inigualável.
Leigos, ficámos a conhecer siglas cujo significado não dominamos, e que nos transportam para uma dimensão de irrealidade num mundo virtual.
Subprimes, ABS (asset-backed securities); CDO (collateralized debt obligation); CDS (credit default swap), exteriorizam a identificação, quase iniciática, de «produtos» cuja natureza, construção, conteúdo, função, ligações, valor e riscos, não apreendemos, e apenas estão (estavam) ao alcance, presume-se, de uns quantos especialistas - «iniciados».
Sabemos hoje que algumas destas coisas eram produtos inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que por vezes dependiam dos acasos e eram indomináveis pelos seus criadores, e até cada vez menos compreensíveis para os dirigentes das próprias instituições financeiras que os propunham.
Alguns estabelecimentos financeiros «propunham aos seus clientes títulos desta natureza, cuja descrição constava de um manual de 150 páginas, que nenhum quadro superior do banco podia compreender e, consequentemente, controlar».
Toda a montagem foi, na verdade, um engodo, com a passividade, descuidado ou incompetência das (agora) todo poderosas agências de rating.
As remunerações dos dirigentes destas instituições financeiras e dos criadores destes produtos eram constituídas, no essencial, por bónus indexados aos benefícios anuais. Estavam associados aos lucros, mas não às perdas.
As instituições estruturaram-se para evasão à regulação: contabilidades dúbias, supervisões fragilizadas, produtos financeiros sem cobertura em activos reais, multiplicados sem fim em sistema de apostas (KRUGMAN).
Sem ancoragem no real, tudo parecia assemelhar-se a um jogo de ficção; ninguém sabia ou poderia saber o valor destes produtos.
Mas sustentavam as contas dos bancos, alojados em activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimulá-los aos reguladores.
Segundo algumas análises (JACQUES ATTALI, “La crise, et après”), quando, tarde e por vezes por razões acidentais, outros tomaram consciência da natureza insustentável das dívidas e dos activos, os «iniciados», perante o falhanço da construção, lograram manter o domínio da situação e conseguir obter dos Estados o financiamento das suas perdas, salvando um sistema de que haviam extraído tudo o que puderam.
No fim, parece que a crise serviu para «limpar» os activos «tóxicos», a expensas dos contribuintes.
No fundo, ganharam (e muito) os que deveriam perder, e perderam todos os outros – os inocentes da crise.
4. Na normalidade das coisas, esta realidade deveria ter convocado o direito penal.
A aparente irrealidade dos factos e o montante astronómico das somas, perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras, levam alguns mais radicais a considerar os contornos da crise como «a vast criminal enterprise», considerando que falta contar «the real story».
E manifestam surpresa por não haver investigações criminais, bem como por não existirem da parte dos economistas explicações fáceis de compreender. Quem causou a crise financeira e económica «It is a riddle, wrapped in a mystery, inside an enigma» (Churchill em 1939).
As recriminações começaram, no entanto.
Como refere um alto funcionário norte-americano dos serviços da inspecção financeira, a história ensina que a exposição de tanto dinheiro num tão curto período de tempo atrai inevitavelmente os que procuram lucrar criminalmente («History teaches us that an outlay of so much money in such a short period of time will inevitably draw those seeking to profit criminaly»).
De acordo com recentes dados públicos, disponíveis nos meios de informação global, nos EEUU o FBI iniciou mais de 1800 investigações relacionadas com fraudes na actividade bancária dos créditos hipotecários, estando as white-collar crime resources limitadas pelo número de investigações com fraudes societárias e nas instituições financeiras.
A fraude gigantesca que Bernard Madoff montou, embora constitua questão diferente e apresente uma incompreensível duração e montantes, tratando-se de um (dir-se-ia vulgar) esquema piramidal de Ponzi, certamente que aproveitou do ambiente em que se desenvolveu a crise.
No entanto, o discurso lenitivo sobre o paraíso da mundialização financeira e o quadro ideológico e político da desregulação criaram novas relações de valores e referências, relegando para outro plano ou diverso paradigma a dimensão, o conceito e o lugar da designada criminalidade económica e financeira.
Por isso, na narrativa pós declaração da crise esteve presente um conselho, que se deveria ler como advertência ou imposição: «let criminal law aside».
E só aconselha, impondo, quem pode impor o conselho.
Na desregulação que os mercados financeiros exigiram, tendo poder para exigir, e por certo precisamente por isso, «o direito penal não é para aqui chamado».
Os mercados financeiros são demasiado grandes e poderosos para ser contidos.
E no entanto as categorias penais clássicas pareceriam assentar bem no molde feito de factos que o registo exterior da revelação da crise nos apresentou.
Poderemos interrogar-nos sobre se a criação e o oferecimento para captação de aforros dos produtos financeiros inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que dependiam dos acasos, indomináveis pelos seus criadores, e cuja construção, natureza, riscos e valor apenas estariam ao alcance de uns quantos especialistas e nem seriam do domínio dos dirigentes das instituições financeiras, sem relação com valor real, mas muitos meramente virtuais e inteiramente especulativos, não deveriam ser acolhidos a categorias clássicas do direito penal, como a burla.
Ou se a utilização indevida de fundos entregues como depósitos em produtos de elevado risco sem a vontade esclarecida do depositante não se acolhe na categoria de abuso de confiança.
Ou ainda avaliar se os comportamentos de gestão em limites de risco mais do que temerário, colados à perda do sentido da decência de alguns, com consequências devastadoras para as instituições financeiras e para os seus accionistas, não poderiam eventualmente ser considerados nos tipos de infidelidade (artigo 224º do CP) ou de administração danosa (artigo 235º do CP).
Também as categorias dos artigos 255º e seguintes do CP (falsificação) poderiam acolher situações de manipulação dos balanços dos bancos, por meios de inscrição dos activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimular dos reguladores imparidades comprometedoras.
Para não falar dos tipos de insolvência (artigos 227º e 228º do CP), que, porventura, só a intervenção e o socorro do Estado impediram.
Haverá que aguardar que as entidades de investigação e as instâncias judiciais façam o seu caminho, percorrendo-o com a leitura e com os instrumentos normativos que julgarem adequados.
Mas estas são reflexões de circunstância, certamente sem consistência, por não se saber qual a realidade com que contamos, quando nos movemos numa realidade virtual.
As causas da crise apresentam-se sem responsáveis, e sem responsáveis não há direito penal.
5. Poderemos talvez tirar algumas lições para o futuro.
A dimensão da crise, com os seus mistérios, mostrou as consequências da desregulação.
A solução, como vem sendo proclamado, exige que os mercados, sobretudo ou pelo menos os financeiros, sejam equilibrados através de um Estado de direito eficaz.
A instituição de mecanismos de regulação para a detecção de riscos sistémicos para o conjunto do sistema financeiro – supervisão macro-prudencial, e para supervisão do comportamento individual das instituições financeiras – supervisão micro-prudencial, consta das propostas apresentadas pela Comissão Europeia (23 de Setembro de 2009) de reforma da regulação do sector financeiro europeu.
Mas nesta matéria talvez não seja de prever uma presença assídua do direito penal, nem que o direito penal possa ser de grande auxílio.
É certo que o direito penal económico, construído na pós-modernidade muito ao serviço de politicas e já não de valores, não de ultima ratio, mas ao sabor de circunstâncias às vezes para a simples gestão política do quotidiano, cresce de maneira exponencial, e nos «grandes domínios da economia» protege «o domínio financeiro do Estado» e a «tutela económica dos interesses da colectividade», em «áreas onde de forma aberta e sensível se podem e devem considerar penalmente relevantes alguns comportamentos que perturbam para lá do socialmente aceitável, o jogo claro e límpido em que a economia, enquanto valor instrumental, se traduz» (FARIA COSTA, “Direito Penal Económico”).
Os comportamentos que a crise financeira revelou, com as consequências próximas de catástrofe na economia, se perturbaram de forma brutal «o jogo claro e límpido», devem exigir a previsão de tipos penais adequados que os abranjam e que previnam o futuro.
Mas, se existir, ou quando exista adequada regulação, os tipos penais só poderiam ser pensados para as violações sérias das decisões reguladoras.
Haverá, porém, que reconhecer que o «carácter virtual dos actores» e a sua diluição nas organizações, só possibilitaria certamente encontrar uma responsabilidade limitada em muito ao âmbito das pessoas colectivas.
6. No entanto, algumas hipóteses podem ser pensadas sobre modos de enquadramento em categorias penais de alguns factores genéticos da crise que desagregaram o sentido do real e desafiaram os limites éticos.
A crise nasceu, segundo dizem, de imponderados comportamentos de risco e da falta de sentido da decência de muitos actores financeiros.
Os comportamentos temerariamente especulativos, com riscos muito elevados, sem relação com o real, com a criação, ou invenção, de produtos financeiros sem ligação sustentada, sem informação minimamente avisada e compreensível por quem investe na aquisição destes produtos de valor insuportavelmente distante de âncoras reais de segurança, afectam seriamente bens jurídicos instrumentais da actividade económica.
A previsão de tipos penais de perigo para prevenção de comportamentos na actividade financeira que geram riscos sérios de perturbação e de produção de danos para além do socialmente aceitável, poderia ser um caminho, com a vantagem de dar um sinal claro sobre a validade, a relevância dos interesses e dos valores instrumentais da actividade financeira, permitindo uma protecção recuada a momentos anteriores à produção de danos, com vantagens parava a investigação e a reconstituição processual.
Numa outra perspectiva, os tipos legais de infidelidade e de gestão danosa, relativamente esquecidos, poderiam acolher alguma recomposição da tipicidade.
Nas sociedades financeiras com grande dispersão de capital social é cada vez mais distante a relação entre os accionistas – ou um vasto universo diluído de accionistas – e as administrações, que são constituídas por gestores profissionais.
A separação entre accionistas e gestores como consequência da dispersão de accionistas produz um distanciamento de que emerge como que uma apropriação gestionária das próprias sociedades.
Nas sociedades financeiras, a separação, a alienidade da gestão e as contrapartidas remuneratórias dos gestores por bónus, podem predispor à assunção de riscos desproporcionados ou temerários, com consequências assimétricas, em que um eventual êxito será muito favorável ao gestor, mas em que as perdas comprometem essencialmente a estabilidade, penalizando os accionistas com a quebra ou desaparecimento do valor das suas acções.
A reconfiguração dos elementos típicos de “infidelidade” e de “administração danosa” poderia responder á carência de tutela penal dos desvios de racionalidade, prevenindo a repetição de aventuras gestionárias que a crise revelou.
Na infidelidade, porventura cindindo ou reavaliando a intensidade do elemento subjectivo, de modo a abranger comportamentos de temeridade especulativa, que estão paredes-meias ou valorativamente contíguos ao artifício ou engano.
Na administração danosa, alargando o âmbito objectivo da tipicidade para a generalidade dos sectores económicos, sem a actual restrição aos sectores público ou cooperativo.
A lacuna maior e mais evidente que emerge das circunstâncias da crise, permito-me encontrá-la, porém, na dificuldade de aplicação das actuais categorias do crime de insolvência, mesmo com a intervenção dos modelos dogmáticos das formas do crime (tentativa), quando a insolvência não chegue a ocorrer apenas por virtude da intervenção do Estado, por decisão de política, para evitar o risco sistémico para o sistema financeiro.
A intervenção pública, no entanto, se evita os graves danos sistémicos e a cascata de consequências associadas, não afasta nem apaga os comportamentos que conduziriam uma sociedade, nomeadamente de natureza financeira, a uma situação de insolvência.
A lei penal deveria, pois, prever, sem as dúvidas dogmáticas na construção, que em tais circunstâncias e não obstante a intervenção pública a impedir a insolvência por razões de interesse público, o tipo de crime deveria poder ser preenchido, com a consequente necessidade de averiguação e de processo para verificar a concorrência dos restantes elementos do crime doloso ou negligente de insolvência.
7. Mas, nestas matérias, tudo será questão de política, de vontade e de juízo de utilidade, quando o direito penal está, como arma de constrição, sobretudo ao serviço de políticas e não de valores, e não raro como instrumento voluntarista sem visão de sistema.
E na complexidade volátil dos mercados financeiros e dos seus interesses muito específicos, que não serão coincidentes com o jogo «claro e límpido» da economia, pode ser difícil um consenso social e político sobre o bem jurídico a proteger como valor relevante carente de tutela penal.
Na semana passada, o Presidente Obama anunciou medidas para limitar os riscos que a banca assumiu no passado e que estiveram na origem da crise financeira.
E justificou a intenção política referindo a «irresponsabilidade» manifestada pelo sistema financeiro, um ano depois, com o regresso a «velhas práticas».
Soaram as campainhas de alarme em Wall Street, com respostas que parecem conter alguma ameaça dos mercados financeiros.
Poderemos interrogar-nos, pois, se, aqui, o direito penal poderá ter alguma função útil de regulação preventiva, a não ser por uma intenção simbólica que, por regra, contém um pacto de ineficácia.
Recordo, de novo, o aviso deixado por aqueles que pensam poder avisar: «let criminal law aside».
(António Henriques Gaspar)
Os limites do segredo
Não verto lágrimas pela extinção de um programa de TV como o “Jornal das 6ª" que, nada tendo a ver com a informação isenta e imparcial, manifestamente prosseguia uma determinada agenda política.
Parece-me aliás evidente a falta de um autêntico pluralismo de opinião na comunicação social de hoje, dominada pelos grupos económicos, que, além dos inte-resses económico-financeiros, têm também interesses políticos…
Mas é óbvio que uma coisa é o interesse público na existência de pluralismo de opinião, outra o interesse (de algum titular) do poder político circunstancial em silenciar vozes incómodas, ainda que pouco dignas de fé. A tolerância à crítica, ainda que soez, deve ser apanágio dos titulares de cargos públicos. O TEDH tem muita jurisprudência sobre isso. No caso de difamação, há os tribunais. Fazer calar alguém por meios ínvios, não assumidos, é que não é admissível.
A revelação pelo "Sol" dos despachos do MP e do JIC e de parte das escutas do caso “Face Oculta” suscita algumas questões.
Como cidadão, condição inalienável, emitirei a minha opinião.
Tendo sido proferido despacho de arquivamento sobre as certidões extraídas do processo de Aveiro, por inexistência de indícios suficientes do eventual crime de atentado ao Estado de Direito, está encerrada a discussão jurídico-judicial sobre essa matéria (a não ser que surjam novos elementos).
Mas não a de foro político (da "polis"). Na verdade, uma determinada situação ou acção pode não ser penalmente ilícita, mas ser eticamente censurável. Os actos dos titulares de cargos públicos estão sujeitos a um particular escrutínio por parte dos seus concidadãos nessa dimensão (ética). O TEDH tem também muita jurisprudência sobre este ponto.
Apresenta-se, pois, como de interesse público a revelação e a discussão dos elementos que possam habilitar o povo a formar e emitir opinião sobre o tema. O segredo de justiça não é um valor absoluto. O interesse público prevalece, na ponde-ração de interesses com os protegidos pelo segredo. Aliás, nenhum facto indiciado se reporta à vida privada ou íntima de quem quer que seja.
Manter o segredo, pelas incertezas e dúvidas que alimentaria, seria até pior para os próprios “interessados”. E, em qualquer caso, pior para a formação adequada e justa da opinião pública, que de outra forma ficaria à mercê de atoardas e especulações que não poderia escrutinar.
Parece-me aliás evidente a falta de um autêntico pluralismo de opinião na comunicação social de hoje, dominada pelos grupos económicos, que, além dos inte-resses económico-financeiros, têm também interesses políticos…
Mas é óbvio que uma coisa é o interesse público na existência de pluralismo de opinião, outra o interesse (de algum titular) do poder político circunstancial em silenciar vozes incómodas, ainda que pouco dignas de fé. A tolerância à crítica, ainda que soez, deve ser apanágio dos titulares de cargos públicos. O TEDH tem muita jurisprudência sobre isso. No caso de difamação, há os tribunais. Fazer calar alguém por meios ínvios, não assumidos, é que não é admissível.
A revelação pelo "Sol" dos despachos do MP e do JIC e de parte das escutas do caso “Face Oculta” suscita algumas questões.
Como cidadão, condição inalienável, emitirei a minha opinião.
Tendo sido proferido despacho de arquivamento sobre as certidões extraídas do processo de Aveiro, por inexistência de indícios suficientes do eventual crime de atentado ao Estado de Direito, está encerrada a discussão jurídico-judicial sobre essa matéria (a não ser que surjam novos elementos).
Mas não a de foro político (da "polis"). Na verdade, uma determinada situação ou acção pode não ser penalmente ilícita, mas ser eticamente censurável. Os actos dos titulares de cargos públicos estão sujeitos a um particular escrutínio por parte dos seus concidadãos nessa dimensão (ética). O TEDH tem também muita jurisprudência sobre este ponto.
Apresenta-se, pois, como de interesse público a revelação e a discussão dos elementos que possam habilitar o povo a formar e emitir opinião sobre o tema. O segredo de justiça não é um valor absoluto. O interesse público prevalece, na ponde-ração de interesses com os protegidos pelo segredo. Aliás, nenhum facto indiciado se reporta à vida privada ou íntima de quem quer que seja.
Manter o segredo, pelas incertezas e dúvidas que alimentaria, seria até pior para os próprios “interessados”. E, em qualquer caso, pior para a formação adequada e justa da opinião pública, que de outra forma ficaria à mercê de atoardas e especulações que não poderia escrutinar.
02 fevereiro 2010
A pandemia do século
Ou de como se mostra ser o nosso reino um belo exemplo de moderação, poupança e inteligência no concerto das Nações.
A respeito da pandemia gripal que foi anunciada com contornos de catástrofe a nível mundial, quero salientar a forma altamente digna e responsável como se portou o nosso pequeno, mas sempre exemplar reino. A referida pandemia, que foi primeiramente designada como “gripe suína” e depois, sob os altos critérios da ciência, “gripe A H1N1”, tornando-a mais digna de assentar na nobre carcaça humana, poderia dizimar, segundo as mais fiáveis previsões cientificas, milhões de seres humanos. O nosso reino não escaparia a ser assolado pelo terrível flagelo, pois nenhum país a ele se subtrairia, tanto mais que se tratava de uma pandemia a correr mundo a altíssima velocidade. Rapidamente o grau de perigo foi acentuado e dado o alerta vermelho pelas previdentes e mais do que prudentes autoridades sanitárias das organizações internacionais. Compreende-se: não vivemos na escuridão da Idade Média, em que as pestes alastravam com rapidez e ceifavam milhares de vidas, enquanto os sinos das igrejas tocavam a rebate. Hoje, mal desponta um foco infeccioso de qualquer natureza, difunde-se logo, urbi et orbi, por meios de comunicação poderosos, a iminente investida do morbo e tenta-se aniquilá-lo antes que ele leve a cabo a sua obra de devastação.
Assim aconteceu desta vez. Sem armas eficazes para repelir o mal, cientistas de craveira mundial rapidamente inventaram uma arma: uma agulha, uma seringa e um líquido para ser injectado no corpo humano e torná-lo imune. Chama-se a isso uma vacina. Tal a arma.
Inventada ela, tratou-se de propagandear a sua difusão, alertando-se sempre para os graves perigos mortais do vírus e para as muitas e muitas mortes que ocorreriam, caso a dita vacina não fosse aplicada em massa. As empresas farmacêuticas começaram a exportar, em doses maciças, a dita arma. Diariamente, acorriam aos diversos países milhares e milhares de agulhas e seringas – um autêntico arsenal de guerra para fazer face ao vírus destruidor. Em alguns deles, foi mesmo obrigatório submeter-se à picadela, sob pena de pesadas multas.
Ora acontece que o vírus se exilou e não apareceu com o ímpeto mortífero que tinha sido anunciado. Quando era suposto estar a pandemia a alastrar-se rápida e assustadoramente, chegou-se à conclusão de que o vírus tinha feito uma negaça e o número de doentes era ainda menos do que em anos de vírus normal. Assim, começou a zoar que tudo isto tinha sido uma gigantesca fraude das indústrias farmacêuticas, na qual tinham colaborado as tais instituições internacionais, o que até vinha a calhar para essas empresas encherem os bolsos, atendendo à grave crise que assola o mundo.
Ora, no meu modesto entender, não foi nada disso. O que se passou foi que o vírus arreganhou mesmo os dentes e estava preparado para fazer uma hecatombe. Todavia, fez-se tanto alarde contra o vírus e pôs-se em acção tamanho arsenal bélico para o debelar, que aquele deu-se por vencido e deu em retirada do campo de batalha. Assim se ganhou a guerra com uma monumental acção psicológica e uma presença ostensiva do armamento fabricado. Mas, para tal resultado, foi necessário produzir e exibir esse armamento, ainda que não utilizado na sua maior parte. Com isso o vírus assustou-se e as empresas tiveram, sem dúvida, para além de grandes e merecidos lucros, um papel altamente meritório, que é de toda a conveniência não depreciar. Igualmente, as entidades sanitárias tiveram um papel de largo alcance ao porem a população em situação de alerta máximo, porque este é igualmente muito útil em circunstâncias destas. O alerta máximo é uma espécie de prevenção superlativa e se um homem prevenido vale por dois, imagine-se quanto não representarão milhares de homens e mulheres em alerta máximo.
O nosso reino teve nisto uma actuação exemplar, como sempre tem tido ao longo de um já velho passado. Com efeito, as autoridades sanitárias assustaram a população em termos comedidos. Como afirmou um dos responsáveis nesta matéria, nunca se disse que ia haver uma mortandade. Sabendo que o nosso povo é bastante esperto e dotado de bravura, mas ao mesmo tempo um bocadinho relapso, alguns governantes deixaram-se exibir de braço ao léu, com uma enfermeira sorridente e obsequiosa a espetar-lhes uma comprida agulha. Tanto bastou para que uma escassa percentagem da população se fosse vacinar - o número de cidadãos suficiente para o vírus, temeroso da nossa proverbial resistência, se pôr logo em debandada, contentando-se com escassas dezenas de vítimas.
Deste modo, não foi preciso utilizar uma grande quantidade de vacinas, nem coagir os cidadãos a tomá-la. E muito mais do que isso: nem sequer foi necessário aplicar a 2.ª dose prevista. Por cima de tudo, como as vacinas encomendadas foram em quantidade muito inferior à de outros países, pois se o nosso povo é esperto os governantes também o são, quando toca a poupar esforços e dinheiro, não houve sobras nem gastos supérfluos, como se verificou na maior parte dos países que nos rodeiam. Assim demos um grande exemplo de como administrar sabiamente os fracos recursos que temos e debelar com comedimento inteligente os flagelos que nos assolam.
Jonathan Swift (1665 – 1745)
A respeito da pandemia gripal que foi anunciada com contornos de catástrofe a nível mundial, quero salientar a forma altamente digna e responsável como se portou o nosso pequeno, mas sempre exemplar reino. A referida pandemia, que foi primeiramente designada como “gripe suína” e depois, sob os altos critérios da ciência, “gripe A H1N1”, tornando-a mais digna de assentar na nobre carcaça humana, poderia dizimar, segundo as mais fiáveis previsões cientificas, milhões de seres humanos. O nosso reino não escaparia a ser assolado pelo terrível flagelo, pois nenhum país a ele se subtrairia, tanto mais que se tratava de uma pandemia a correr mundo a altíssima velocidade. Rapidamente o grau de perigo foi acentuado e dado o alerta vermelho pelas previdentes e mais do que prudentes autoridades sanitárias das organizações internacionais. Compreende-se: não vivemos na escuridão da Idade Média, em que as pestes alastravam com rapidez e ceifavam milhares de vidas, enquanto os sinos das igrejas tocavam a rebate. Hoje, mal desponta um foco infeccioso de qualquer natureza, difunde-se logo, urbi et orbi, por meios de comunicação poderosos, a iminente investida do morbo e tenta-se aniquilá-lo antes que ele leve a cabo a sua obra de devastação.
Assim aconteceu desta vez. Sem armas eficazes para repelir o mal, cientistas de craveira mundial rapidamente inventaram uma arma: uma agulha, uma seringa e um líquido para ser injectado no corpo humano e torná-lo imune. Chama-se a isso uma vacina. Tal a arma.
Inventada ela, tratou-se de propagandear a sua difusão, alertando-se sempre para os graves perigos mortais do vírus e para as muitas e muitas mortes que ocorreriam, caso a dita vacina não fosse aplicada em massa. As empresas farmacêuticas começaram a exportar, em doses maciças, a dita arma. Diariamente, acorriam aos diversos países milhares e milhares de agulhas e seringas – um autêntico arsenal de guerra para fazer face ao vírus destruidor. Em alguns deles, foi mesmo obrigatório submeter-se à picadela, sob pena de pesadas multas.
Ora acontece que o vírus se exilou e não apareceu com o ímpeto mortífero que tinha sido anunciado. Quando era suposto estar a pandemia a alastrar-se rápida e assustadoramente, chegou-se à conclusão de que o vírus tinha feito uma negaça e o número de doentes era ainda menos do que em anos de vírus normal. Assim, começou a zoar que tudo isto tinha sido uma gigantesca fraude das indústrias farmacêuticas, na qual tinham colaborado as tais instituições internacionais, o que até vinha a calhar para essas empresas encherem os bolsos, atendendo à grave crise que assola o mundo.
Ora, no meu modesto entender, não foi nada disso. O que se passou foi que o vírus arreganhou mesmo os dentes e estava preparado para fazer uma hecatombe. Todavia, fez-se tanto alarde contra o vírus e pôs-se em acção tamanho arsenal bélico para o debelar, que aquele deu-se por vencido e deu em retirada do campo de batalha. Assim se ganhou a guerra com uma monumental acção psicológica e uma presença ostensiva do armamento fabricado. Mas, para tal resultado, foi necessário produzir e exibir esse armamento, ainda que não utilizado na sua maior parte. Com isso o vírus assustou-se e as empresas tiveram, sem dúvida, para além de grandes e merecidos lucros, um papel altamente meritório, que é de toda a conveniência não depreciar. Igualmente, as entidades sanitárias tiveram um papel de largo alcance ao porem a população em situação de alerta máximo, porque este é igualmente muito útil em circunstâncias destas. O alerta máximo é uma espécie de prevenção superlativa e se um homem prevenido vale por dois, imagine-se quanto não representarão milhares de homens e mulheres em alerta máximo.
O nosso reino teve nisto uma actuação exemplar, como sempre tem tido ao longo de um já velho passado. Com efeito, as autoridades sanitárias assustaram a população em termos comedidos. Como afirmou um dos responsáveis nesta matéria, nunca se disse que ia haver uma mortandade. Sabendo que o nosso povo é bastante esperto e dotado de bravura, mas ao mesmo tempo um bocadinho relapso, alguns governantes deixaram-se exibir de braço ao léu, com uma enfermeira sorridente e obsequiosa a espetar-lhes uma comprida agulha. Tanto bastou para que uma escassa percentagem da população se fosse vacinar - o número de cidadãos suficiente para o vírus, temeroso da nossa proverbial resistência, se pôr logo em debandada, contentando-se com escassas dezenas de vítimas.
Deste modo, não foi preciso utilizar uma grande quantidade de vacinas, nem coagir os cidadãos a tomá-la. E muito mais do que isso: nem sequer foi necessário aplicar a 2.ª dose prevista. Por cima de tudo, como as vacinas encomendadas foram em quantidade muito inferior à de outros países, pois se o nosso povo é esperto os governantes também o são, quando toca a poupar esforços e dinheiro, não houve sobras nem gastos supérfluos, como se verificou na maior parte dos países que nos rodeiam. Assim demos um grande exemplo de como administrar sabiamente os fracos recursos que temos e debelar com comedimento inteligente os flagelos que nos assolam.
Jonathan Swift (1665 – 1745)
01 fevereiro 2010
Orçamento 2010
Já mandei fazer uma série de furos nos meus cintos. (Estou seguro de que o eng. Ângelo Correia já fez o mesmo.) Apelaram ao meu patriotismo e não desertei.
Mas em 2013 quero comprar cintos novos. E então não me falem mais em patriotismos. Tudo tem os seus limites. O patriotismo (orçamental) também.
Mas em 2013 quero comprar cintos novos. E então não me falem mais em patriotismos. Tudo tem os seus limites. O patriotismo (orçamental) também.