27 junho 2008

 

Berlusconi e a comunhão

Não sei por que é que a hierarquia católica, com o aval de Bento XVI, se recusa tão obstinadamente a dar a comunhão a Berlusconi. E ele tão desejoso de se entranhar do corpo de Cristo! A princípio, na minha ingenuidade, ainda pensei que fosse por causa de negócios obscuros, defraudações do Estado, cujos interesses confunde com os da sua coutada privada, manipulações infames da justiça, criando leis para se eximir às suas próprias responsabilidades. Isto, sim, parecia constituir um sério óbice a que ele comungasse do corpo de Cristo, esse Cristo do Evangelho que pegou do azorrague e, com santa ira, expulsou os vendilhões do templo. Isto, sim, parecia constituir um sinal evidente, público e notório, de incompatibilidade com a ética cristã. Agora, recusar-lhe a comunhão por causa do divórcio!... Francamente, é uma decepção.
A hierarquia da Igreja Católica, com tal atitude, só mostra o seu impenitente desfasamento com o andar dos tempos. Considerar o casamento indissolúvel é tão arcaico como a proibição do uso da pílula ou do preservativo. E já não há ninguém que respeite essas posições em que a Igreja se entrincheira como num fortim medieval. Por outro lado, os valores éticos que hoje se impõem como prementes, nomeadamente os que dizem respeito à condução dos negócios públicos parecem ser muito menos valiosos do que o dogma do casamento como sacramento indissolúvel.

 

A revisão do Estauto dos Magistrados Judiciais

As alterações ao EMJ são, em meu entender, genericamente de aplaudir.
Assim é com a introdução das provas públicas para o acesso às Relações e ao STJ, o que reforçará evidentemente o rigor na selecção dos (melhores) candidatos, e indirectamente a credibilidade dos próprios tribunais.
O "esforço" no recrutamento de "juristas de mérito" para o STJ também é louvável. Vamos lá ver se eles (os juristas de - verdadeiro - mérito) se candidatam. Vamos esperar para ver.
Quanto ao CSM, também é visível o esforço para que todos os membros, mesmo os não magistrados, aceitem exercer o cargo a tempo inteiro. Será que eles (os "laicos") vão aceitar essa "dedicação total"? Também aqui fica o meu voto favorável e a expectativa (e também a dúvida...).

23 junho 2008

 

O (mau) funcionamento da justiça, segundo Rui Rio

Refere a imprensa que Rui Rio "desferiu um ataque cerrado" contra a justiça no congresso do PSD. Citando: "É normal que o presidente da segunda maior câmara do país seja arguido quase desde que tomou posse e esteja com termo de identidade e residência?"
Portanto, RR não se queixou de morosidade ou de falta de justiça, mas sim de excesso de justiça. Queixou-se, como arguido, de a justiça funcionar. Em seu entender, o presidente da segunda câmara do país (e por maioria de razão, creio, o da primeira, mas foi omisso, nessa parte) não pode/não deve ser arguido. É um estatuto de impunidade que RR reclama.
Berlusconi começa a ter discípulos em Portugal.

22 junho 2008

 

Camões, à luz do Europeu

Vós, portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais,
Vós, que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna dilatais;
Assi do céu ditadas são as sortes,
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa cristandade,
Que tanto, Ó Cristo, exaltas a humildade!

Vede os alemães, soberbo gado,
Que por tão largos campos se apascenta,
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa;
Vede-lo em feias guerras ocupado
(Que inda co'o cego error se não contenta)
Não contra o soberbíssimo otomano,
Mas por sair do jugo soberano.

(Os Lusíadas, Canto VII, III e IV)


O "soberbo gado" atacou primeiro os cristãos lusitanos, que não estiveram à altura dos seus históricos pergaminhos, mas agora tem de enfrentar os otomanos.
Vamos torcer pelos infiéis?

 

O progresso vai chegar a Fazendas de Almeirim

A construção de um estabelecimento prisional, com capacidade para 800/900 reclusos, em Fazendas de Almeirim, foi saudada efusivamente pelo presidente da Junta de Freguesia e pelo Governador Civil do distrito como uma "alavanca de progresso e de riqueza para a região".
Só os gastos diários que o funcionamento do estabelecimento prisional envolverá representarão três vezes o orçamento da Câmara Municipal de Almeirim.
Mas há mais: as "mais-valias indirectas", como "o aumento de procura de habitação, das escolas e do consumo de bens, desde o supermercado à aquisição de viaturas".
Uma onda vertiginosa de progresso vai abater-se, pois, sobre o concelho de Almeirim. Quando outros concelhos souberem, vão certamente ficar invejosos e reclamar também prisões nas suas áreas, reclamações a que o Governo não poderá certamente ficar indiferente.
O único problema poderá vir a ser a falta de reclusos. Isso será dramático, porque contituirá um travão à prosperidade e ao progresso.
Portanto, há que rever a legislação que tem vindo a abrir caminho às penas alternativas e à obrigação de permanência na habitação, como medida de coacção.
Reclusos, são precisos!

 

Direito de retenção

Este conhecido instituto de direito civil tem agora um importante impulso no direito europeu, ao ser aplicado aos "imigrantes irregulares"
É assim: identificado um "imigrante irregular" no (sagrado) solo europeu (que não foi feito para ser pisado por estrangeiros de bolsos vazios), ele é logo "convidado" para regressar lá para o sertão de onde veio, no prazo de 30 dias.
Caso o "irregular" não aceite o convite ou tenha aspecto de querer fugir, entra em acção o tal "direito de retenção", que permite ao estado "reter" o "irregular" até 18meses, em "centros" apropriados para o efeito. (Qualquer semelhança entre retenção e prisão não é pura coincidência.)
A Europa gosta muito de prègar democracia e direitos humanos aos outros, mas por vezes não se enxerga.
O mais interessante é que um membro do Governo português, aliás um jurista qualificado, José Magalhães, classificou a medida como um "passo positivo", com o argumento de que actualmente há países em que o tal "direito de retenção" é maior ou mesmo ilimitado.
Quando pensamos que já nada nos pode surpreender, eis que uma (desagradável) surpresa espera por nós.

 

Notícias sobre o Estado de Direito em Itália

São más as notícias de Itália, como era de prever perante a vitória do Cavaliere e seus comparsas.
Não é exagerado dizer que o Estado de Direito corre perigo quando o exercito é lançado nas ruas para combater o crime e quando são apresentados projectos legislativos tendentes a suspender os processos-crime em que o Cavaliere figura como arguido (alías, ele próprio reconhece o "intuitu personae" desse projecto) e para a imunidade das cinco mais importantes figuras do Estado (enre as quais ele próprio, evidentemente, mas aqui é magnânimo e alarga a protecção a mais quatro).
O pior de tudo é que os italianos votaram nele sabendo bem o que ele é, pois já lá esteve duas vezes.
Que fazer, num caso destes? O povo tem sempre razão?
Para onde caminha um povo que se entrega nas mãos providenciais de um tal cavalheiro?

21 junho 2008

 

O regresso a casa

“Acabou-se o sonho”, diz um dos jornais, referindo-se ao rápido e inesperado epílogo da nossa aventura no Euro 2008. Já estávamos preparados para um novo canto d´ Os Lusíadas:

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
Que Ronaldo e Scolari enobreceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Mas eis que tudo acabou numa «apagada e vil tristeza». A turma germânica derrotou os nossos com uma estratégia bem urdida por Low. A chamada equipa das quinas regressou ao solo pátrio cabisbaixa, depois de dele ter partido com ufania, iniciando a sua navegação em Belém, como não podia deixar de ser, sob os bons auspícios de D. Aníbal, que saudou e exaltou os nossos «Barões assinalados».
Acabou-se, pronto. A realidade aí está de volta, a crua realidade. Um compatriota, auscultado pela comunicação social, exprimiu tudo nesta frase assassina: «Se calhar até foi bom. Já metia nojo ouvir falar tanto da selecção». Não era um compatriota; era talvez um traidor à pátria.

19 junho 2008

 

Agora Escolha.

No relato de mais um passo da União Europeia no caminho da expansão repressiva, digo, harmonização legislativa, desta feita em matéria de imigração ilegal, surge um verdadeiro momento Vera Roquette na imprensa ibérica...:

«Outra das alterações previstas na “Directiva de Retorno” é o alargamento do tempo de detenção dos ilegais, que podem ficar presos até uma máximo de 18 meses. Esta é uma das disposições que mais polémica tem levantado, uma vez que há nove Estados-membros que não querem qualquer prazo máximo de detenção». Ponto, quanto ao processo de aprovação da directiva.

"Finalmente, no ha prosperado ninguna de las enmiendas con que los socialistas pretendían suavizar un tanto el texto que les enviaron los Gobiernos. En particular, en lo referente a la expulsión de menores y la exigencia de que las órdenes administrativas de detención sean refrendadas por órdenes judiciales en menos de 72 horas. De los 662 diputados que han emitido sus votos, 369 han votado a favor del texto, 197 en contra y 106 lo han hecho en blanco". E prossegue, explanando as posições dos eurodeputados espanhóis e fazendo uma resenha das diversas soluções plasmadas na directiva.

 

Europa 2008: um outro campeonato.

Na Noruega: "Norway's parliament on Wednesday adopted a new marriage law that allows homosexuals to marry and adopt children and permits lesbians to be artificially inseminated".

Na Itália: "Italy's paramilitary police, the carabinieri, have been ordered not to have extramarital affairs by the country's highest court".

 

Memória e Património.

Ainda que, na realidade, não me suscite especial desalento, do ponto de vista da memória comum, a circunstância de o edifício onde se mostra instalado o Tribunal da Boa-Hora vir a ser, em breve, transmutado em hotel de charme (atendendo desde logo a outras transformações muito mais inusitadas), admito a minha simpatia pela preservação no espaço colectivo de locais que, marcantemente, espelhem “(...) o imenso património que herdámos (...)”. Por isso, tendo a subscrever as preocupações aqui manifestadas acerca desta matéria.
Parece-me porém que, ainda que meritório, não é bastante para a inscrição na memória histórica, o mero recurso a expedientes lúdico- memoriais de preservação de específicos espaços. Mais premente (e seguramente mais eficaz neste aspecto) seria um real compromisso político com os valores democráticos que informam a vivência contemporânea portuguesa e a assunção da história com todos os seus significados e contextos, que determinasse, por exemplo, e face a um expresso requerimento de exigência e rigor, uma inequívoca explicação justificativa do erro (admitindo eu serenamente que o mesmo não revela uma particular vinculação ideológica) de designar o dia 10 de Junho de 2008 como o dia da raça.
Talvez assim tal imenso património se transforme, efectivamente, “(...) num verdadeiro instrumento ao serviço do progresso e da prosperidade do nosso povo (...)”.

17 junho 2008

 

A minha Boa-Hora

Trabalhei quase 6 anos na Boa-Hora. Aí participei em muitos julgamentos, digamos, "históricos" (PRP-BR, José Diogo, cap. Roby, etc.) e por isso a Boa-Hora constitui uma página inapagável da minha memória. Como da memória de muitos magistrados, funcionários e advogados. São mais de 150 anos ao serviço da justiça (ou contra ela, conforme o ponto de vista).
Já não falo da memória dos frades que a habitaram, porque creio bem que não haverá já nenhum vivo para dizer de sua justiça.
A transformação do velho convento/tribunal num hotel de charme parece-me apenas um "sinal dos tempos". Alguns ministérios do Terreiro do Paço parece que vão ter o mesmo destino. Talvez chegue a vez do Palácio de São Bento, quem sabe...

 

história, juizes e memória

Como já vi num outro post sobre a questão, pessoalmente a Boa Hora pouco me diz. Nunca aí exerci funções… nem consta que tivesse grande biblioteca!

Questão diferente será a necessidade de não apagar factos essenciais de uma memória que se pretende cada vez mais «curta».

Gunter Grass, em Descascando a cebola, conta o episódio de um seu tio, «Franz», fuzilado por ordem dos alemães no inicio da guerra, fuzilamento sustentado numa das legítimas sentenças de morte assinada por um juiz, que, «pôde continuar até muito depois do final da guerra como juiz e assinar sentenças».

Também Pulido Valente, em Ir prò maneta sublinha a característica dos magistrados na época da guerra peninsular, sempre «demasiado prontos em obedecer às ordens de um governo intruso».

Um hotel de charme, (e porque não uma pensão?), será sempre um óptimo meio de suprimir mais alguns factos nunca esclarecidos sobre a história dos tribunais e da magistratura.


16 junho 2008

 

A «não inscrição» e os julgamentos criminais


A propósito deste texto do Luís Eloy, era para acrescentar um comentário, adiado por falta de tempo, depois do novo texto do Eloy, devo reconhecer que relativizo, no plano da «não inscrição», o «reencaminhamento» do espaço físico por comparação com a falta do registo (preservação do sobrevivente e atenção ao mesmo) do que se fez (e faz) na dita Boa-Hora (que sendo um espelho significativo de um certo país tenho dúvidas que seja merecedor de comemorações)1.
Um apagamento, ou obscurecimento, que constitui um sinal impressivo da tradição que persiste (apesar dos registos audio para efeitos de recurso, o que se sabe na sociedade sobre o «hábito» dos julgamentos criminais? o que se comunica e decide dos julgamentos sobre as más horas dos indivíduos, arguidos, vítimas, testemunhas? Quem está interessado?).
Um pequeno exemplo de outra «tradição» pode ser encontrado aqui, o registo dos julgamentos ocorridos entre 1674-1913 no «Old Bailey», o tribunal central criminal de Londres, «apenas» 197.745 julgamentos, como bem se diz na página de entrada «the largest body of texts detailing the lives of non-elite people ever published».
Acrescente-se que a propósito do tribunal plenário de Lisboa que residiu na Boa-Hora, em regra tem sido chamada a atenção para as particularidades dos julgamentos aí ocorridos, mas, não menos importante, são os aspectos similares aos comuns, as regras que serviam para a verdade de uns e outros, talvez um ponto de partida para uma história do julgamento criminal em Portugal no último século, e toda uma matriz de (des)responsabilizações.

1 A boa qualidade da edição dos estudos comemorativos constitui, aliás, como o Luís Eloy refere, um bom exemplo do país engalanado, um conjunto de conferências jurídicas, de alguns dos mais destacados nomes da nossa Academia, que nada nos dizem, nem era suposto fazerem-no, sobre a realidade (passada e presente) do objecto da comemoração. Volume de que, ao que sei, poucos exemplares terão sido vendidos, estando ainda muitos a aguardar, em caixotes nas instalações do Ministério da Justiça, a boa-hora em que serão ofertados a quem os aprecie ou ecologicamente afectados para outra utilização, quem sabe se em compartimentos adjacentes a quartos de um hotel de charme.

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Mais um recorde americano

Não é de atletismo que vou falar.
É do sistema repressivo e prisional. Aí é que, na última década, os EUA têm batido sucessivos recordes, numa sucessão imparável de êxitos.
Para lá de 2 milhões de reclusos (1% dos adultos), 4,2 milhões de pessoas estão sob vigilância (em cumprimento de pena ou como medida de coacção), 1 milhão em liberdade condicional. Um total de 7,2 milhões de indivíduos incluídos no "sistema".
É uma autêntica orgia repressiva!

 

42 dias de detenção

A Inglaterra gozava da fama de país liberal e muito respeitador dos direitos dos arguidos.
Mas o vendaval Bush/Blair (e seu apêndice Brown) tem sido desastroso. A Inglaterra foi, depois dos EUA, o país mais fustigado pela fúria securitária.
Um prazo de 28 dias de detenção, mesmo em casos de terrorismo, já era uma aberração. Agora, passou para 42 dias!
E quem votou a favor foi o Partido Trabalhista, com algumas honrosas excepções. Contra estiveram o Partido Conservador e o Liberal!
E agora a esperança de travagem do processo está na Câmara dos Lordes!!!
Em Inglaterra está tudo de pernas para o ar...

 

O falhanço das seringas

O falhanço aparente do programa de seringas nas prisões é uma péssima notícia.
Só seria boa se ela corresppondesse a uma fectiva redução drástica do conumo de estupefacientes intra-muros.
Mas alguém acredita nisso seriamente?
O falhanço do programa não significa que a saúde dos reclusos esteja melhor.
Mas sim que ganharam os interesses instalados.

 

Os betinhos não desistem

Desde há meses que se assiste a uma ofensiva sistemática dos betinhos contra o IDT e o seu presidente, João Goulão.
Os pretextos são vários, desde o dicionário de calão (eles não dizem asneiras, em público, claro) ao lançamento de suspeições sobre a lisura de actuação do próprio presidente.
Tudo serve.
Porque eles não se conformam com as linhas estratégicas sobre toxicodependência que o IDT, em cumprimento da lei, tem vindo a desenvolver, fundamentalmente no que concerne às políticas de redução de danos.
Embora nenhuma "revolução" nem "subversão" venha sendo levada a cabo pelo IDT presidido por João Goulão, mas apenas aquilo que por toda a Europa já se faz, muitas vezes sem directo apoio legal, os betinhos não se conformam com a "subalternização" do tratamento (e do negócio chorudo que o envolve) como objectivo único de intervenção.
A questão está aí.

 

Ainda sobre o Tribunal da Boa-Hora

Segue-se mais um texto do Luís Eloy com o título em epígrafe:


Em 1993 realizaram-se as comemorações dos 150 anos do Tribunal da Boa-Hora. A essas comemorações associaram-se as mais altas individualidades do Estado, de que destacamos o Presidente da República, Mário Soares e o Ministro da Justiça, Laborinho Lúcio. No seu âmbito foram produzidas diversas conferências de grande qualidade de diversos Professores como Figueiredo Dias, Costa Andrade, Teresa Beleza, Faria Costa, Fernanda Palma e Rui Pereira.
Publicaram-se, em 1995, os Estudos Comemorativos do 150º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora numa edição do Ministério da Justiça.
A revisitação do que aí foi dito e produzido, perante a anunciada alienação do Tribunal da Boa-Hora e transformação num Hotel de Charme, deixa-nos perante uma absoluta perplexidade.
“Cento e cinquenta anos são já tempo de triunfo” Laborinho Lúcio.
“A história da Boa-Hora é inseparável da própria história das últimas décadas da monarquia, do itinerário da República, do regime de Salazar e Caetano, da luta da oposição democrática contra a ditadura e, ainda, da eclosão do 25 de Abril, nos seus vários acidentes de percurso” António Valdemar.
Confesso que ou existiu um problema de desmesura no que então foi referido ou estamos perante um complicado problema de dupla personalidade estatal.
Acho que o “velho casarão conventual”, na expressão de Raúl Proença, com os seus imponentes 165 anos de Tribunal, merecia uma adequada e comunitária comemoração de 200 anos.
Seremos os coveiros deste importante espaço de inscrição da nossa memória colectiva?


Luís Eloy Azevedo

15 junho 2008

 

Uma semana para a desgraça

Portugal perdeu por 2 – 0 frente à Suíça, em Basileia, quando o triunfo parecia garantido para a selecção portuguesa. Este jogo era mesmo considerado menor, uma espécie de brincadeira, a ponto de Scolari ter dispensado os principais jogadores da nossa equipa, para lhes poupar energias para futuros jogos. Mas nada está de antemão garantido e, por isso, a semana terminou com um domingo chuvoso, molengão e tristonho.
Um fim-de-semana à medida da nossa deprimente realidade. Na sexta-feira passada, Medina Carreira, esse profeta da desgraça, exibiu o país num plano inclinadíssimo para o abismo. Num artigo no “Público”, intitulado “O declínio inequívoco de Portugal”, Medina mostrou, com a atroz realidade dos números, a desenfreada carreira em que vamos rolando para a sorte que nos espera: o último lugar no pelotão da Europa.
E, por falar em Europa, o referendo da Irlanda foi uma machadada no “Tratado de Lisboa” e, pelos vistos, na “carreira” de Sócrates. Esta, ao que parece, vai-se deprimindo quer a nível interno, quer em contexto europeu.
Semana fatídica em que nem o futebol nos safou.
De tudo, só se aproveita uma frase bem humorada de Rui Tavares, também no “Público” de 11 de Junho, que reza assim: «A verdadinha é que toda a gente é hoje mais ou menos reformista e social-democrata». Uma frase com “charme” no meio da desgraça.

 

Uma gramática do Direito Penal








George P. Fletcher é, porventura, o mais prestigiado penalista norte-americano vivo. Marcou a ciência penal nos últimos 30 anos com a mais do que celebrada obra Rethinking Criminal Law (1978). A sólida formação filosófica e o domínio proficiente de 6 línguas (desde o hebraico ao russo, passando por outras menos “exóticas”) e o domínio de outras 3 como línguas de trabalho (entre elas o japonês!) deixaram nos seus trabalhos mais importantes um vincado traço de ecletismo e de “cosmopolitismo penal”, que lhe dão agora as condições, na sua recente The Grammar of Criminal Law – American, Comparative, and International, Volume One, Foundations, Oxford: Oxford University Press, 2007 (o primeiro de 3 volumes que o próprio autor significa como o culminar do seu contributo sobre o temário), para transpor uma visão paroquial do Direito Penal e ensaiar, como título indica, uma “gramática” da teoria penal, a edificação de princípios e de conceitos de valia transnacional em matéria penal. O objectivo capta-se bem nesta passagem (p. 20): “Refining and elaborating the shared grammar and transnational principles of criminal law will be the challenge of the twenty-first century. As the nineteenth-century writers addressed the definition of particular offenses and twentieth-century scholars refined local principles governing the general part, the task of theorists in the current century is to elaborate the general principles of criminal law that should be recognized not only in the International Criminal Courts, but in all civilized nations”. Em The Grammar (não confundir com La Grammatica del Diritto Penale, do mesmo autor, que é antes a versão italiana de uma outra obra dele, Basic Concepts of Criminal Law) considero especialmente interessante e útil, sobretudo porque um tanto estranho à tradição da literatura penal continental, as claras e sistematizadas ligações que o autor estabelece entre o DP e Filosofia Moral e Política (essa relação, conquanto óbvia, muito raramente é tratada nestes termos, seja do lado de penalistas, seja do lado de filósofos; de entre as obras de referência da filosofia política contemporânea, talvez apenas a do libertário Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia (1974), constitua excepção). Utilitarismo e deontologismo (kantiano), por um lado, liberalismo, libertarismo, comunitarismo e, enfim, perfeccionismo, por outro, todos são analisados sob o prisma das várias opções possíveis em sede de escolha de um certo “tipo” de DP. Quem quer que tenha curiosidade de conhecer o “estado da arte” do debate sobre a construção de um “sistema universal de DP” tem, pois, nesta obra de Fletcher (em curso de tradução para o castelhano por Muñoz Conde, tradutor das demais obras do autor) um referência inultrapassável.

11 junho 2008

 

Os advogados do Paquistão

O movimento de advogados que há longos meses luta contra o golpe de Estado palaciano levado a cabo por Musharraf, ao demitir os juízes do Supremo Tribunal que se opunham, por motivo de inconstitucionalidade, à sua candidatura a mais um mandato presidencial é paradigmático da atitude dos EUA e do "Ocidente" em geral para com o mundo muçulmano.
Prega-se a democracia, a secularização, os direitos humanos. Mas quando surgem movimentos políticos e sociais internos que defendem esses valores, o "Ocidente" entra em pânico, porque teme que esses movimentos possam contrariar os sagrados "interesses" ocidentais, e portanto a defesa destes é considerada mais fácil de conseguir apoiando caciques e ditadores, ainda que à custa dos tais "valores".
O movimnto dos advogados paquistaneses tem sido completamente ignorado, se não mesmo hostilizado pelos EUA, que querem manter a todo o custo Musharraf no poder, porque é ele quem melhor defende os interesses dos EUA (não relevando, para o caso, os interesses dos paquistaneses).
O enfraquecimento das forças seculares e progressistas nos países muçulmanos conduziu, nos últimos trinta anos, à transferência das esperanças populares para o fundamentalismo islâmico. Toda a gente o sabe. Mas o "Ocidente" teima na política suicida de apoiar estes tiranetes, desacreditados nos países que governam.
Será de espantar que esta perversa política venha agravar as tensões entre o "Ocidente" e os muçulmanos?

 

Raça e rigor

Não acho que Cavaco Silva acredite na matriz rácica da nação portuguesa. Aquele "Dia da Raça" foi apenas uma gaffe infeliz (persistência no subconsciente dos slogans do antigamente?), particularmente infeliz porque ocorrida numa jornada que os saudosistas da outra senhora têm tendência para aproveitar na medida do possível.
Mas o principal está nisto: se o PR vem pedir no mesmo dia rigor a todos os portugueses, não podem estes deixar de ter um menor grau de exigência sobre o rigor do PR. Rigor nas declarações e nas atitudes é um dever para todos (a começar por "cima"!).

08 junho 2008

 

Futebol e cultura

Estamos em plena euforia futebolística com o Euro em marcha. Confesso que tenho uma certa indiferença pelo futebol, mas, ao ler no Suplemento “Babelia” do “El Pais” do passado dia 31 de Maio uma excelente crónica do excelente cronista Vicente Verdú (El culto al fútbol), fiquei a pensar que tenho que rever os meus conceitos.
O futebol será, então, uma manifestação típica da cultura do nosso tempo. Essa cultura opõe-se à cultura do livro, que foi o fundamento da nossa formação intelectual. A cultura hoje imperante é a cultura do audiovisual, que é uma cultura que Vicente Verdú chama “de superfície”, num sentido, creio, simultaneamente realista e metafórico. Por um lado, é uma cultura “de superfície”, fazendo apelo à sua forma de recepção: o ecrã, a tela, o panorama; por outro, é uma cultura de “superfície”, porque não se produz em intensidade e profundidade, mas em extensão e captação superficial. Enquanto que a cultura tradicional, do livro, implica concentração, aprofundamento, silêncio, esforço da atenção e vontade de decifração, a cultura do audiovisual é impacto, movimento, ruído, implicando mobilidade, extroversão, alargamento do campo de visão, extensão sensorial e instantaneidade.
A cultura do livro é uma cultura em franca decadência e é em nome dessa cultura que preconceituosamente os “cultos” do antigamente rejeitam o futebol, como expressão de incultura. Todavia, o futebol é uma das expressões mais salientes da cultura imperante no nosso tempo – “ a cultura pop democratizada e generalizada na sociedade do espectáculo”.
Não sei porquê, mas lembrei-me, através das considerações de Verdú, que é autor de um importante livro sobre futebol, El fútbol, mitos, ritos y símbolos (Alianza Editorial, 1981), da contaminação de várias áreas do conhecimento e da cultura tradicionais por este tipo de cultura. O mais característico é o que diz respeito à imprensa escrita, hoje completamente dominada pelas formas da “cultura de superfície”. Não foi por acaso que um jornalista meu amigo me disse há tempos que o fundamental num título de jornal era começar por “dar um soco no estômago do leitor”.

 

Factos e argumentos

Duzentas mil pessoas numa manifestação contra uma medida governativa é um facto e contra factos não há argumentos. Pode-se considerar os factos relevantes ou irrelevantes, mas esse julgamento diz muito da nossa idiossincrasia e do nosso sistema de valores.

06 junho 2008

 

Um candidato meio negro

Tem sido saudado como "histórica" a candidatura de um negro à presidêndia dos EUA.
Mas há um pequeno exagero: é que Obama só é meio negro, a outra metade é branca.
E agora, para ter sucesso, tem que convencer os americanos que a metade negra é tão branca como a metade branca.
Ele já começou a tentar: já jurou fidelidade total a Israel e prometeu usar todos os meios (todos) para impedir o Irão de ter armas nucleares.
É um bom princípio para se tornar um candidato respeitável. Mas muitos mais esforços terá que fazer.
E estará sempre em esvantagem: é que MacCain já é branco, não precisa de convencer os americanos da sua fidelidade à "América".

 

Números e argumentos

Para o PM, 200.000 pessoas na rua em protesto contra a reforma do Código do Trabalho não é um facto relevante, pois o que importa são os "argumentos".
Mas, a partir de certo montante, os números não se tornam, só por si, em argumentos?

04 junho 2008

 

A Favor do Tribunal da Boa-Hora

Segue texto elaborado, com o título em epígrafe, pelo Luís Eloy:
Ninguém de bom senso será contra a criação do campus justiça, concentrando em si toda uma série de equipamentos judiciários dispersos pela cidade de Lisboa.
No entanto, considero lamentável a eventual saída da Boa-Hora da órbita dos tribunais, falando-se na sua transformação num hotel de charme.
De facto, trata-se de um edificio ligado umbilicalmente à nossa história judiciária dos últimos cento e cinquenta anos, onde se realizaram julgamentos marcantes e bem conhecidos de todos.
Veja-se a interacção com a cidade do impressivo relato do célebre julgamento de Vieira de Castro:
“Inicia-se o julgamento do uxorida no Tribunal da Boa-Hora.
Parece que toda a cidade aflui, em alvoroço, ao Tribunal. No largo fronteiro os cegos vendilhões lamuriam e gritam os seus folhetos com a narração do crime. A sala das audiências do Pretório, aboletado em soturno mosteiro crúzio, embora avantajada não comporta a têrça do acervo de gentes que afluem ao anfiteatro, na freima de gozar o espectáculo” in Grandes dramas judiciários, Porto, Primeiro de Janeiro, 1944, pp. 249/250.
Sem questionar a necessidade de melhoramentos no espaço em causa, não será possível mantê-lo na órbita dos Tribunais, por exemplo, instalando nesse local a alargada Relação de Lisboa?
Como cidadão considero que o previsto destino desse espaço constitui uma perda irreparável para o nosso património judiciário e para a nossa memória histórica v.g. a célebre sala dos plenários.
Como cidadão, lamento profundamente a anunciada morte do Tribunal da Boa-Hora e a incapacidade da nossa sociedade civil de se mobilizar para causas como esta.
E que as habitualmente afadigadas associações sindicais de magistrados e até a Ordem dos Advogados estejam, desta vez, silenciosas.


Luís Eloy Azevedo

 

Breves

1.
Decididamente, estamos em plena era socialista das quotas. Depois das quotas das mulheres, fala-se das quotas para atribuição de notas aos professores e aos funcionários públicos em geral. Não pode haver mais do que X notas de “excelente”, Y de “muitos bons” Z de “bons”, e por aí fora. Isto é o que se chama boa gestão do património das capacidades humanas. Também a ASAE parece que estabeleceu quotas para processos por contra-ordenação, número de condenações, número de apreensões, etc. Um dos nossos mais altos responsáveis também já disse em tempos que o sucesso das investigações criminais dependia da taxa (isto é, da quota) de acusações e das condenações a que elas davam lugar. Assim, o avanço da nossa sociedade parece residir na quotização generalizada.

2.
Parece que a Constituição se designa de “lei fundamental”, porque há muito fundamentalismo à volta da sua interpretação e cada vez mais fundamentalismo nas posições de certos constitucionalistas.

3.
No Parlamento, numa altura de discussão acesa entre Louçã, do Bloco de Esquerda, e o primeiro ministro, por causa do Código de Trabalho, Alberto Martins, a dada altura, numa embrulhada de adjectivos, referiu-se à “linguagem imagética animalesca” do dirigente bloquista. Logo outro dirigente bloquista, Luís Fazenda, ripostou com uma edificante tirada filosófica: “Numa concepção ontológica, animal é todo aquele que tem animação, e nesse sentido o senhor deputado é tão animal como nós”. Ora toma! Talvez por isso, por esse nosso pendor ontológico pelos animais, é que vai por aí um grande surto de jardins zoológicos. Para além do velho Jardim Zoológico de Lisboa, criou-se há anos o Jardim Zoológico da Maia, para que as gentes do Norte pudessem também desfrutar de um recinto onde macacos, chimpanzés, leões, o indispensável elefante e outras espécies de grande e pequeno porte, se exibem, em pungente compressão espacial, à curiosidade imagética animalesca dos indígenas cá do sítio. E, recentemente, para não ficar atrás da Maia, abriu-se (segundo me dizem) um outro jardim zoológico lá para os lados de Gaia, isto é a sul do Douro. Por este andar, não haverá autarquia que não tenha o seu merecido jardim zoológico, nem político que não goste de exibir a sua animação, ontologicamente falando.

4.
Portugal está na cauda dos países que têm o maior fosso entre ricos e pobres. São poucos os que têm muito e muitos os que têm pouco ou mesmo nada. As desigualdades, que era suposto serem aplanadas com a democracia nascida do “25 de Abril” (a democracia simplesmente e não já a democracia social) têm vindo a aumentar.
Confrontado com essa realidade, Sócrates disse que ela se referia ao ano 2004, ou seja, aos últimos tempos de governação do PSD/CDS e que representava a sentença de condenação desse governo, com trânsito em julgado. O problema é que o fosso persiste e, por isso, Mário Soares, com a veneranda autoridade que se lhe reconhece, apelou a um recurso extraordinário de revisão de sentença, para que o PS e os seus responsáveis façam “uma reflexão profunda sobre as questões que hoje nos afligem mais: a pobreza; as desigualdades sociais; o descontentamento das classes médias e as questões prioritárias com elas relacionadas, como: a saúde, a educação, o desemprego, a previdência social, o trabalho”. E lembrou que “urge, igualmente, fortalecer o Estado, para os tempos que aí vêm e não entregar a riqueza aos privados”. Se assim não for, sentenciou Soares que “o PCP e o Bloco de Esquerda – e os seus líderes – continuarão a subir nas sondagens”. Ele lá sabe do que fala e voltou a dizer que “Quem vos avisa vosso amigo é.”

01 junho 2008

 

machismo...

"Las mujeres han sido esenciales en la construcción y defensa de los derechos y las libertades a lo largo de la historia. A pesar de ello, gran parte de nuestras sociedades no ha reconocido el papel histórico de las mujeres y no ha garantizado sus derechos."
Este é o teor do ponto I do preâmbulo da Lei 5/2008, de 24/4, sobre o direito das mulheres a erradicar a violência machista...
Lembrei-me disso quando li o comentário feito aqui no blogue sobre a "revista às tropas" da Ministra espanhola: de facto até isso está longe de acontecer em Portugal...

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