28 outubro 2008
A crise do capitalismo
A seguir à implosão da União Soviética e à queda do Muro de Berlim, o capitalismo entrou numa fase de euforia sem limites, como se, finalmente, tivessem desaparecido todos os entraves à sua pretensão de domínio como “ordem natural” da economia. A retracção dos direitos fundamentais, nomeadamente dos direitos dos trabalhadores, consequente a tal desabamento, restituiu-lhe o velho rosto e o velho espírito de ganância. Em certos aspectos, regressou-se a uma espécie de “acumulação primitiva do capital”, não no sentido histórico em que Marx falou dele, mas no sentido metafórico, em que “primitivo” corresponde a “selvagem”: intensificação do ritmo de trabalho, diminuição de salários e perda de regalias, desemprego em massa, deslocalizações de multinacionais, que se mudam para mercados onde os trabalhadores não têm quaisquer direitos e trabalham a baixo custo, deslocalização dos próprios trabalhadores, exploração infame da mão de obra imigrante, quase reduzia à escravidão, enfim, liquidação do sistema de segurança social.
Ao mesmo tempo, o sistema financeiro começou a ganhar predomínio num espaço globalizado e a distanciar-se da economia real, assentando em bases fictícias, em que os jogos dos especuladores da bolsa, acicatados por um ânimo de lucro puxado até limites de alto risco, com incentivos irrealistas e remunerações principescas dos principais operadores do sistema, passaram a constituir uma espécie de roleta de casino. Foi assim que, por uma audaciosa engenharia, como agora se diz, se transformaram créditos sem garantia nenhuma de pagamento em títulos financeiros, estes títulos foram depois vendidos por bancos a sociedades de investimento, disseminando-os pelo mundo inteiro para diluírem o risco e com uma cotação elevada conferida por agências de notação, que estimavam esse risco por baixo, graças à referida disseminação. As companhias de seguros entraram nesse jogo perigoso, garantindo as perdas que pudessem ocorrer aos seus segurados (os detentores daqueles títulos) através de uma sistema complexo de transferência ou intercâmbio de riscos entre diversos sectores económicos e diversos países (os denominados credit defaullt swaps). Não sei se este mecanismo é exactamente como o descrevo, a partir de uma leitura atenta e interessada de numerosos artigos que fui coligindo de jornais e revistas. O que sei é que, graças a este autêntico “jogo de pocker”, como lhe chamou um articulista no mensário Le Monde Diplomatique, tudo acabou por ruir, falências de bancos arrastando a de seguradoras na principal sede do capitalismo financeiro – a Wall Street - e logo contaminando todo o mercado financeiro mundial, inundado de produtos ditos “tóxicos”. A economia real também acaba por vir de cambulhada por aí abaixo, inaugurando um persistente e doloroso período de recessão, de consequências muito funestas.
É este o panorama do capitalismo na era neoliberal. Um capitalismo que liquidou os direitos sociais fundamentais e que desregulou os mercados financeiros e o próprio sistema económico, pondo em causa a sobrevivência de milhares de trabalhadores e a estabilidade de países inteiros.
Esta crise, como sempre, não é paga pelos causadores dela, mas pelas suas vítimas. Os Estados acodem a ela de afogadilho, num intervencionismo que se cifra sobretudo na socialização dos prejuízos e na salvação do sistema (o Estado-bombeiro). Trata-se de “refundar o capitalismo” em novas bases, dizem os responsáveis imbuídos de maior preocupação ética, até porque, como escreve Miguel Gaspar na sua crónica de hoje, no “Público”, “o fim do capitalismo é um problema teórico do marxismo, não do capitalismo”. Quanto ao socialismo, foi submerso no mar das utopias.
Ao mesmo tempo, o sistema financeiro começou a ganhar predomínio num espaço globalizado e a distanciar-se da economia real, assentando em bases fictícias, em que os jogos dos especuladores da bolsa, acicatados por um ânimo de lucro puxado até limites de alto risco, com incentivos irrealistas e remunerações principescas dos principais operadores do sistema, passaram a constituir uma espécie de roleta de casino. Foi assim que, por uma audaciosa engenharia, como agora se diz, se transformaram créditos sem garantia nenhuma de pagamento em títulos financeiros, estes títulos foram depois vendidos por bancos a sociedades de investimento, disseminando-os pelo mundo inteiro para diluírem o risco e com uma cotação elevada conferida por agências de notação, que estimavam esse risco por baixo, graças à referida disseminação. As companhias de seguros entraram nesse jogo perigoso, garantindo as perdas que pudessem ocorrer aos seus segurados (os detentores daqueles títulos) através de uma sistema complexo de transferência ou intercâmbio de riscos entre diversos sectores económicos e diversos países (os denominados credit defaullt swaps). Não sei se este mecanismo é exactamente como o descrevo, a partir de uma leitura atenta e interessada de numerosos artigos que fui coligindo de jornais e revistas. O que sei é que, graças a este autêntico “jogo de pocker”, como lhe chamou um articulista no mensário Le Monde Diplomatique, tudo acabou por ruir, falências de bancos arrastando a de seguradoras na principal sede do capitalismo financeiro – a Wall Street - e logo contaminando todo o mercado financeiro mundial, inundado de produtos ditos “tóxicos”. A economia real também acaba por vir de cambulhada por aí abaixo, inaugurando um persistente e doloroso período de recessão, de consequências muito funestas.
É este o panorama do capitalismo na era neoliberal. Um capitalismo que liquidou os direitos sociais fundamentais e que desregulou os mercados financeiros e o próprio sistema económico, pondo em causa a sobrevivência de milhares de trabalhadores e a estabilidade de países inteiros.
Esta crise, como sempre, não é paga pelos causadores dela, mas pelas suas vítimas. Os Estados acodem a ela de afogadilho, num intervencionismo que se cifra sobretudo na socialização dos prejuízos e na salvação do sistema (o Estado-bombeiro). Trata-se de “refundar o capitalismo” em novas bases, dizem os responsáveis imbuídos de maior preocupação ética, até porque, como escreve Miguel Gaspar na sua crónica de hoje, no “Público”, “o fim do capitalismo é um problema teórico do marxismo, não do capitalismo”. Quanto ao socialismo, foi submerso no mar das utopias.
22 outubro 2008
Ainda as leis de política criminal
Continuo a embirrar com o inócuo e atabalhoado artigo 12.º da Lei que Define os Objectivos, Prioridades e Orientações de Política Criminal para o Biénio de 2007-2009 (L 51/2007, 31/8)[1]. Se se reparar ali pune-se no artigo 11.º o que o legislador, também sem critério, chamou de “pequena criminalidade”. Se bem que a esmagadora dos crimes ali enumerados sejam puníveis com pena não superior a 3 anos de prisão, há pelo menos dois que são punidos com penas que montam, ou podem montar, a 5 anos (cheque sem provisão e tráfico de menor gravidade). Se uma leitura da norma fundada do ponto de vista teleológico deveria levar à conclusão que aquele crime de cheque sem provisão é tão só o punível com pena até 3 anos de prisão e que o tráfico ali previsto é tão só punível com pena até 2 anos de prisão (assim é que ela faria sentido como um todo e em conexão com a respectiva epígrafe), nem por não se interpretá-la assim logra qualquer sentido útil o citado artigo 12.º, que remete para esse artigo 11.º.
Diz que para essa “pequena criminalidade” (que em caso algum ultrapassa 5 anos de prisão), se aplica – sem sinalização de quaisquer precedências (como já disse em postal anterior) e de modo em absoluto atrabiliário – arquivamento caso de dispensa de pena, suspensão provisória do processo, julgamento pelo tribunal singular ao abrigo do n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, processo sumário ao abrigo do n.º 2 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, processo abreviado, processo sumaríssimo e mediação penal.
De fora – tomara que não fosse assim! – fica apenas o julgamento pelo tribunal colectivo, reservado, como se sabe, em geral, para os crimes, puníveis com pena superior a 5 anos de prisão. Tudo o resto se aplica; isto é tudo aquilo que sempre se aplicou! Só que agora será aplicado, ao que parece, em absoluto desatino! Para uma norma que se pretende de orientação de política criminal, dirigida aos magistrados do MP, não está mal…. Apenas é de esperar que, por força da sua olímpica vacuidade e da notória desarrumação da sua lógica interna, a desorientação de quem tenha por fardo aplicá-la se multiplique por 70x7. Ou pior ainda: que fique tudo na mesma.
[1] Lei que, por mero lapso, nos meus postais sobre a “admiração teutónica” confundi no seu nomen com a LQPC. Isso, segundo creio, em nada afectou o conteúdo deles.
21 outubro 2008
Memória e processo penal
Debate-se, na vizinha Espanha, o facto do Fiscal chefe da Audiência Nacional, Javier Zaragoza, ter recorrido da decisão do Juiz Baltasar Garzón sobre a pretensão deste último em investigar criminalmente os crimes cometidos durante a Guerra Civil. Na longa argumentação – pode ver-se em www.elpais.es – sustentada quer na ausência de crimes contra a humanidade no Código Penal Espanhol de 1932, quer no facto de ter existido uma Lei de Amnistia em 1977 que terá feito extinguir o procedimento criminal por tais factos, quer na ocorrência há muito da morte dos intervenientes, a Fiscalia assume que a pretensão da investigação põe em causa as mais elementares regras do processo penal não sendo compatível com uma Constituição democrática.
Desconstruindo toda a argumentação jurídica em que se sustenta Baltazar Garzón, a Fiscalia afirma, no entanto que a reparação moral das vítimas e seus familiares deve ser efectuadas através da Lei da Memória Histórica e não pela aplicação do Direito penal, que tem outras funções.
Trata-se de um debate «fortíssimo» que terá seguimento na Sala Penal da Audiência Nacional e provavelmente o seu epílogo no Supremo Tribunal que importará seguir.
A decisão da Fiscalia não deixa de suscitar várias questões relevantes que vão para além do próprio «caso espanhol» e que ao longo dos anos têm sido debatidas sem grande «fervor» em Portugal – relevante excepção constitui o número 25 da Sub Júdice de Junho de 2003 organizado por António de Araújo e Luís Eloy de Azevedo sobre «Justiça e Memória».
Como «julgar» o passado? Será o direito penal a «ferramenta» adequada a esse «julgamento»? Não teremos o direito de saber a verdade sobre factos ocorridos no passado, quando estiveram em causa comportamentos passíveis de configurarem crimes graves, mesmo que à face dos cânones legais contemporâneos esteja extinta a responsabilidade penal dos responsáveis? Que fronteiras entre a verdade histórica e a verdade judicial? E a reparação das vítimas?
Desconstruindo toda a argumentação jurídica em que se sustenta Baltazar Garzón, a Fiscalia afirma, no entanto que a reparação moral das vítimas e seus familiares deve ser efectuadas através da Lei da Memória Histórica e não pela aplicação do Direito penal, que tem outras funções.
Trata-se de um debate «fortíssimo» que terá seguimento na Sala Penal da Audiência Nacional e provavelmente o seu epílogo no Supremo Tribunal que importará seguir.
A decisão da Fiscalia não deixa de suscitar várias questões relevantes que vão para além do próprio «caso espanhol» e que ao longo dos anos têm sido debatidas sem grande «fervor» em Portugal – relevante excepção constitui o número 25 da Sub Júdice de Junho de 2003 organizado por António de Araújo e Luís Eloy de Azevedo sobre «Justiça e Memória».
Como «julgar» o passado? Será o direito penal a «ferramenta» adequada a esse «julgamento»? Não teremos o direito de saber a verdade sobre factos ocorridos no passado, quando estiveram em causa comportamentos passíveis de configurarem crimes graves, mesmo que à face dos cânones legais contemporâneos esteja extinta a responsabilidade penal dos responsáveis? Que fronteiras entre a verdade histórica e a verdade judicial? E a reparação das vítimas?
20 outubro 2008
Regular, é preciso!
À mínima intervenção da ERC, logo um coro de vozes se ergue na comunicação social contra a regulação do Estado no sector, que traduziria uma ingerência ilegítima do Estado na actividade privada, pondo mesmo em risco a liberdade de imprensa, vozes essas que simultaneamente juram o seu empenhamento em incentivar e submeter-se à auto-regulação.
A este propósito, direi o seguinte:
1. A "auto-regulação" é uma pura ilusão nos tempos que correm, que são de concorrência desenfreada, sobretudo na TV, na caça às audiências, ou seja, à publicidade, ou seja, ao dinheiro.
2. Significativo é que sejam sempre os grandes patrões (e os seus directores) que se insurjam tão indignadamente contra a regulação, pois eles têm a seu cargo naturalmente a defesa dos seus interesses económicos, mas não a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, que cabe ao Estado.
3. Hoje, os grandes perigos para a liberdade de imprensa provêm do poder económico (que tem nas suas mãos todos os órgãos de comunicação social, com excepção da RDP e da RTP), não havendo já, como outrora, órgãos verdadeiramente independentes desse poder, dados os enormes encargos financeiros que a fundação de um jornal (para não dizer um canal de TV) implica.
4. A regulação do Estado não põe em causa a liberdade de imprensa, antes visa garanti-la, pois é precisamente para isso que existe - vide o art. 39º da Constituição.
A este propósito, direi o seguinte:
1. A "auto-regulação" é uma pura ilusão nos tempos que correm, que são de concorrência desenfreada, sobretudo na TV, na caça às audiências, ou seja, à publicidade, ou seja, ao dinheiro.
2. Significativo é que sejam sempre os grandes patrões (e os seus directores) que se insurjam tão indignadamente contra a regulação, pois eles têm a seu cargo naturalmente a defesa dos seus interesses económicos, mas não a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, que cabe ao Estado.
3. Hoje, os grandes perigos para a liberdade de imprensa provêm do poder económico (que tem nas suas mãos todos os órgãos de comunicação social, com excepção da RDP e da RTP), não havendo já, como outrora, órgãos verdadeiramente independentes desse poder, dados os enormes encargos financeiros que a fundação de um jornal (para não dizer um canal de TV) implica.
4. A regulação do Estado não põe em causa a liberdade de imprensa, antes visa garanti-la, pois é precisamente para isso que existe - vide o art. 39º da Constituição.
15 outubro 2008
Crítica?
«E a lei de política criminal que impõe ao MP que adopte preferencialmente a aplicação de uma medida de coacção diversa da prisão preventiva? E aquela medida surrealista que proibe o juiz, em inquérito, de aplicar a prisão preventiva se não for requerida pelo MP?»
14 outubro 2008
Os lugares da memória
A propósito deste post, o Luís Eloy, já habitual colaborador do Sine Die, enviou-me, com o título em epígrafe, o texto que passo a publicar:
A propósito do revoltado texto do Dr. Maia Costa sobre a alienação do Forte de Peniche (que não me parece substancialmente muito diferente da do Tribunal da Boa-Hora) gostava de contar uma história atribuída ao General de Gaulle.
Na época em que não se mostrava nada de sensível na televisão francesa sem pedir autorização ao Eliseu, o presidente da ORTF foi ter com o presidente de Gaulle para lhe pedir autorização para passar o filme Le Chagrin et la Pitié de Marcel Ophuls que mostrava uma certa realidade da França no seu período sombrio. Disse aquele: «Meu General, este filme é formidável, era importante mostrá-lo às 20h30 aos telespectadores para verem o que foi a França sob Vichy, a sua realidade, a sua complexidade, a colaboração, os compromissos, …». «Não, nem pensar!» respondeu de Gaulle. O presidente da ORTF teria então dito «Mas meu General, no entanto é tudo verdade!» e de Gaulle replicou «Não se reconstrói uma nação com verdades, reconstrói-se uma nação com mitos».
Se apagarmos os lugares da memória, se não os defendermos, o futuro ficará mais aberto à ideia que não houve presos políticos, que não houve julgamentos políticos. Será certamente mais fácil organizar o esquecimento e mais difícil para todos os que pensam que as nações não se reconstroem com mitos e sobre mitos mas enfrentando a verdade. Pode ser hoje lucrativa a venda destes lugares mas amanhã talvez nos fique a todos muito caro.
Luís Eloy Azevedo
A propósito do revoltado texto do Dr. Maia Costa sobre a alienação do Forte de Peniche (que não me parece substancialmente muito diferente da do Tribunal da Boa-Hora) gostava de contar uma história atribuída ao General de Gaulle.
Na época em que não se mostrava nada de sensível na televisão francesa sem pedir autorização ao Eliseu, o presidente da ORTF foi ter com o presidente de Gaulle para lhe pedir autorização para passar o filme Le Chagrin et la Pitié de Marcel Ophuls que mostrava uma certa realidade da França no seu período sombrio. Disse aquele: «Meu General, este filme é formidável, era importante mostrá-lo às 20h30 aos telespectadores para verem o que foi a França sob Vichy, a sua realidade, a sua complexidade, a colaboração, os compromissos, …». «Não, nem pensar!» respondeu de Gaulle. O presidente da ORTF teria então dito «Mas meu General, no entanto é tudo verdade!» e de Gaulle replicou «Não se reconstrói uma nação com verdades, reconstrói-se uma nação com mitos».
Se apagarmos os lugares da memória, se não os defendermos, o futuro ficará mais aberto à ideia que não houve presos políticos, que não houve julgamentos políticos. Será certamente mais fácil organizar o esquecimento e mais difícil para todos os que pensam que as nações não se reconstroem com mitos e sobre mitos mas enfrentando a verdade. Pode ser hoje lucrativa a venda destes lugares mas amanhã talvez nos fique a todos muito caro.
Luís Eloy Azevedo
O meu encontro com Herberto Hélder
A propósito do lançamento do último livro de HH, lembrei-me de relatar aqui o meu (não) encontro com ele.
Foi há cerca de dez anos, uma manhã na linha de Cascais, vinha eu de Oeiras para Lisboa. Sentei-me e verifiquei que, sentado no outro lado do corredor, mas de frente para mim, estava um indivíduo a ler o "Photomaton & Vox". Anotei mentalmente o facto e abri o meu livrinho, como habitualmente, e mergulhei na leitura. Mas, passados poucos minutos, apercebi-me, com espanto e alguma indignação, de que o tal indivíduo tinha pousado o livro sobre o joelho e, com uma esferográfica Bic, riscava e emendava resolutamente o texto. Quem teria tal desplante? Quem maltratava assim o livro? Olhei então para a cara do tipo e logo identifiquei o poeta, ele próprio (porque, embora mais velho, não estava muito diferente da única fotografia que conheço dele). Continuei a espreitar sorrateiramente a sua faina, que ele não interrompeu antes de chegar ao Cais do Sodré. Aí fechou a esferográfica e o livro e confundiu-se com a multidão que saía da estação.
Assim trabalhava HH na revisão de "Photomaton & Vox"... Com convicção e displicência simultâneas, em cima do joelho, afinal. Mais valia não o ter visto...
Seguramente que ele não escreve sempre, nem normalmente, daquela forma! Mas foi assim que eu o (não) conheci.
Foi há cerca de dez anos, uma manhã na linha de Cascais, vinha eu de Oeiras para Lisboa. Sentei-me e verifiquei que, sentado no outro lado do corredor, mas de frente para mim, estava um indivíduo a ler o "Photomaton & Vox". Anotei mentalmente o facto e abri o meu livrinho, como habitualmente, e mergulhei na leitura. Mas, passados poucos minutos, apercebi-me, com espanto e alguma indignação, de que o tal indivíduo tinha pousado o livro sobre o joelho e, com uma esferográfica Bic, riscava e emendava resolutamente o texto. Quem teria tal desplante? Quem maltratava assim o livro? Olhei então para a cara do tipo e logo identifiquei o poeta, ele próprio (porque, embora mais velho, não estava muito diferente da única fotografia que conheço dele). Continuei a espreitar sorrateiramente a sua faina, que ele não interrompeu antes de chegar ao Cais do Sodré. Aí fechou a esferográfica e o livro e confundiu-se com a multidão que saía da estação.
Assim trabalhava HH na revisão de "Photomaton & Vox"... Com convicção e displicência simultâneas, em cima do joelho, afinal. Mais valia não o ter visto...
Seguramente que ele não escreve sempre, nem normalmente, daquela forma! Mas foi assim que eu o (não) conheci.
13 outubro 2008
Casamento e outros contratos - juridicismos
No debate sobre a alteração dos pressupostos legais do casamento (ou eliminação de alguns limites), em particular alargamento a uniões de duas pessoas do mesmo sexo, constata-se que a presença, em força, dos juristas não contribuiu para a clarificação, no plano jurídico-politico, sobre as hipóteses / alternativas que se apresentam (independentemente das posições de partida e chegada) que não são (não devem ser) apenas o casamento e a união de facto, mas também outros eventuais contratos relativos à vida em comum (normalmente denominados de uniões civis). Aspecto que aliás também deveria estar presente na própria discussão do regime do casamento, ainda recentemente ocorrida, ainda que sem alteração dos seus pressupostos jurídicos relativos à união de duas pessoas de sexo diferente.
A colocação da união civil como outro tipo contratual possível, eventualmente com variantes ou subtipos, exige que se aborde os direitos e deveres associados ao casamento que devem ser (segundo as diferentes correntes) para aí transpostos (não devendo haver, a priori, fixação de limites, em particular quanto às uniões civis em que os envolvidos não possam contratar um casamento*).
Se em Portugal o debate compreendesse uma mais clara assunção dos termos das alternativas disponíveis (em abstracto), poderia ser que cá, como noutros sítios (em particular os EUA), a discussão do ponto específico do alargamento do casamento a uniões de duas pessoas do mesmo sexo, passasse a ter como objecto o que se apresenta como o problema central, muitas vezes iludido, a dimensão histórica, cultural, simbólica e semântica do casamento e o significado e impacto sociais da ampliação.
Por outro lado, a regulação legal de outros tipos contratuais, uniões civis, com efeitos jurídicos, nomeadamente, ao nivel sucessório, fiscal e social, deveria levar a que se questionasse em novos moldes, face à ampliação das alternativas contratuais, o carácter fundado da prescrição de efeitos jurídicos à união de facto, enquanto factor de condicionamento estatal da liberdade individual, em que os envolvidos optaram por não se vincular contratualmente, ou, pelo menos, não chegam a acordo quanto à celebração de um contrato.
* O problema da adopção parece-me que em caso algum (independentemente das posições sobre o casamento) deve ser associado ao do casamento, mas manter-se autónomo sendo o centro das ponderações o interesse do adoptado.
Etiquetas: casamento
12 outubro 2008
Peniche e a memória
A protecção da memória, nomeadamente em relação a factos ou lugares ocorridos em momentos históricos cujo conhecimento ainda está muito envolvido pela emoção de quem neles participou, por isso sujeito a um especial «devido respeito», não parece fazer parte das grandes opções do poderes – sejam eles quais forem.
A memória só os parece preocupar quando estão em causa os «grandes feitos».
A questão do Forte de Peniche enquadra-se, provavelmente, em mais uma política de investimentos concretizadora de alguma parceria público-privada, para um local com uma vista soberba sobre o mar. That’s economy, stupid!
A memória só os parece preocupar quando estão em causa os «grandes feitos».
A questão do Forte de Peniche enquadra-se, provavelmente, em mais uma política de investimentos concretizadora de alguma parceria público-privada, para um local com uma vista soberba sobre o mar. That’s economy, stupid!
Etiquetas: memória
Uma pousada no forte de Peniche?
Esta ideia não é apenas peregrina, é pura e simplesmente revoltante.
Que o lugar onde tantos portugueses passaram sofrimentos indizíveis por lutarem contra a ditadura passe a ser local aprazível de fruição e lazer é um insulto a esses resistentes e à própria democracia.
É claro que é preciso financiar a recuperação e manutenção do edifício. Mas não à custa do sacrifício do indeclinável dever de perpetuar a memória. E Peniche é precisamente um dos lugares em que o cumprimento desse dever é mais intenso.
Embora salvaguardando as devidas proporções, alguém já propôs que fosse instalado em Auschwitz um campo de férias, ainda que com o louvável objectivo de financiar a conservação do campo de concentração?
Não é, mutatis mutandis, o que se propõe aqui e agora para o forte de Peniche?
Que o lugar onde tantos portugueses passaram sofrimentos indizíveis por lutarem contra a ditadura passe a ser local aprazível de fruição e lazer é um insulto a esses resistentes e à própria democracia.
É claro que é preciso financiar a recuperação e manutenção do edifício. Mas não à custa do sacrifício do indeclinável dever de perpetuar a memória. E Peniche é precisamente um dos lugares em que o cumprimento desse dever é mais intenso.
Embora salvaguardando as devidas proporções, alguém já propôs que fosse instalado em Auschwitz um campo de férias, ainda que com o louvável objectivo de financiar a conservação do campo de concentração?
Não é, mutatis mutandis, o que se propõe aqui e agora para o forte de Peniche?
11 outubro 2008
O Prémio Nobel da Paz
A lista de candidatos ao Prémio Nobel da Paz deste ano era simplesmente tenebrosa: eram quase todos inimigos jurados da Paz.
Acabou por ganhar um que parece, à primeira vista, menos mau. Menos mau do que a maioria.
Mas, vendo bem, ele ganhou sobretudo pela sua "obra" no Kosovo. Ou seja, onde não conseguiu uma solução pacífica, onde não foi medianeiro isento, onde foi, simplesmente, o porta-voz do ultimato da NATO e da legitimação da intervenção armada.
No Kosovo, não houve quaisquer dúvidas quanto ao significado da decisão da Academia Norueguesa: as bandeiras do "país" e dos EUA (que também é bandeira do Kosovo) saíram logo à rua.
Acabou por ganhar um que parece, à primeira vista, menos mau. Menos mau do que a maioria.
Mas, vendo bem, ele ganhou sobretudo pela sua "obra" no Kosovo. Ou seja, onde não conseguiu uma solução pacífica, onde não foi medianeiro isento, onde foi, simplesmente, o porta-voz do ultimato da NATO e da legitimação da intervenção armada.
No Kosovo, não houve quaisquer dúvidas quanto ao significado da decisão da Academia Norueguesa: as bandeiras do "país" e dos EUA (que também é bandeira do Kosovo) saíram logo à rua.
La vérité c'est moi
Aqui há trezentos e tal anos Luis XIV, do alto da sua soberba, proclamou: "L´Etat c'est moi."
Nos dias que correm há quem não lhe queira ficar atrás e tente mesmo ultrapassá-lo: "La vérité c'est moi". A verdade, esse privilégio divino, desce à terra e encarna num ser humano.
Os deuses não tratam os humanos com igualdade!
Nos dias que correm há quem não lhe queira ficar atrás e tente mesmo ultrapassá-lo: "La vérité c'est moi". A verdade, esse privilégio divino, desce à terra e encarna num ser humano.
Os deuses não tratam os humanos com igualdade!
09 outubro 2008
Modelos sociais
Os argumentos contra o casamento homossexual começam a passar as fronteiras do ridículo. O futuro da sociedade ficará em perigo, por falta de "reposição geracional" (que expressão tão saborosa!), como apocalipticamente augura Rita Lobo Xavier? O casamento heterossexual é o "modelo social" único, como quer a mesma senhora?
Então, não é verdade que os homossexuais nunca contribuirão para a dita "reposição", quer lhes permitam que se casem, quer não?
Devem ser ostracizados por isso? Então e os solteiros? E os inférteis? E os casados sem filhos, por opção?
Há algum perigo de o casamento homossexual poder rivalizar, como "modelo social", com o casamento heterossexual? Vai haver mais homossexuais só por lhes ser permitido casar?
Aliás, há "modelos sociais" em democracia? O cidadão casado é melhor do que o solteiro? O cidadão com filhos é melhor do que o sem prole? O cidadão com dois filhos é melhor (por fazer uma melhor "reposição geracional") do que aquele que só tem um?
Tanta obsessão pelo "casal reprodutor" (expressão que roça a obscenidade) esquece que o ser humano é precisamente aquele que conseguiu separar o afecto da reprodução, que erigiu o amor como fim em si.
No fundo, é o Eros, enquanto energia sem destinação, energia pura que a si própria se destina e nela se consuma e se consome, que é repudiado por estes zeladores da moral pública.
Então, não é verdade que os homossexuais nunca contribuirão para a dita "reposição", quer lhes permitam que se casem, quer não?
Devem ser ostracizados por isso? Então e os solteiros? E os inférteis? E os casados sem filhos, por opção?
Há algum perigo de o casamento homossexual poder rivalizar, como "modelo social", com o casamento heterossexual? Vai haver mais homossexuais só por lhes ser permitido casar?
Aliás, há "modelos sociais" em democracia? O cidadão casado é melhor do que o solteiro? O cidadão com filhos é melhor do que o sem prole? O cidadão com dois filhos é melhor (por fazer uma melhor "reposição geracional") do que aquele que só tem um?
Tanta obsessão pelo "casal reprodutor" (expressão que roça a obscenidade) esquece que o ser humano é precisamente aquele que conseguiu separar o afecto da reprodução, que erigiu o amor como fim em si.
No fundo, é o Eros, enquanto energia sem destinação, energia pura que a si própria se destina e nela se consuma e se consome, que é repudiado por estes zeladores da moral pública.
08 outubro 2008
Ainda (e sempre) os voos de e para Guantánamo
Um relatório do Ministério da Defesa espanhol refere que a base das Lajes foi utilizada pelo menos uma vez como escala de um voo transportando um preso de Guantánamo para o Cairo.
Mas o ministro Amado não se deixa impressionar por informações deste tipo, que o deixam enfastiado ou mesmo irritado. Ele acha que há problemas mais importantes!
Na opinião deste ministro, a eventual colaboração portuguesa na prática de crimes contra a humanidade é coisa de somenos importância.
Mas o ministro Amado não se deixa impressionar por informações deste tipo, que o deixam enfastiado ou mesmo irritado. Ele acha que há problemas mais importantes!
Na opinião deste ministro, a eventual colaboração portuguesa na prática de crimes contra a humanidade é coisa de somenos importância.
Kosovo: pressões irreversíveis
Cometi aqui há poucos dias um erro lamentável, ao dizer que o Governo português resistiu vinte e tal dias a decidir reconhecer o Kosovo como independente. É que, na realidade, essa resistência foi de quase oito meses, o que é obra! Mas enfim, Portugal não fugiu à "irreversabilidade" de seguir a tendência largamente maioritária da UE...
Mas, esclareceu o ministro Amado, não haja confusões: a decisão nada tem a ver com "pressões internacionais", que isso Portugal não admite a quem quer que seja!
Mas a posição oficial portuguesa tem um aspecto muito curioso: ao mesmo tempo que reconhece a independência daquele território, apoia o pedido da Sérvia endereçado ao Tribunal Internacional de Justiça para apreciar a legalidade da declaração unilateral de independência.
E a pergunta é: então Portugal tem ou não dúvidas sobre a legalidade de tal declaração? Porque, se as tem, não pode reconhecer a independência; se as não tem, não pode apoiar o pedido da Sérvia. Ou será que existe uma "terceira via"?
Mas, esclareceu o ministro Amado, não haja confusões: a decisão nada tem a ver com "pressões internacionais", que isso Portugal não admite a quem quer que seja!
Mas a posição oficial portuguesa tem um aspecto muito curioso: ao mesmo tempo que reconhece a independência daquele território, apoia o pedido da Sérvia endereçado ao Tribunal Internacional de Justiça para apreciar a legalidade da declaração unilateral de independência.
E a pergunta é: então Portugal tem ou não dúvidas sobre a legalidade de tal declaração? Porque, se as tem, não pode reconhecer a independência; se as não tem, não pode apoiar o pedido da Sérvia. Ou será que existe uma "terceira via"?
07 outubro 2008
A redescoberta da banalidade
A entrevista concedida por Maria José Morgado e Saldanha Sanches e que veio ontem na “Pública” é interessante, não propriamente pelo que eles dizem de si, que releva de um certo imaginário (de uma certa representação imaginária que eles fazem de si próprios), como sempre sucede quando falamos de nós próprios, mas pelo que revelam de uma época. Uma época em que a Revolução era uma mística, “uma coisa missionária, quase religiosa”, com um corpo doutrinário dogmático, cujo desvio tinha como consequência ser renegado (excomungado) e, portanto, um credo (que “não se explica,” - MJM) pelo qual se aceitava ser mártir (“A única forma eficaz de combater o regime era aceitar com quase alegria, com entusiasmo, os sacrifícios, a cadeia” – S.S.), implicando uma forma de vida ascética (“éramos muito frugais, vestíamos muito modestamente” – MJM). Não admira, assim, que desmoronado o dogma com a crise ou a queda (no seu sentido simbólico, religioso e político), esvaída a fé e surgida a descrença, os protagonistas dessa época revolucionária tivessem ficado vacinados (“Fiquei vacinada”, diz MJM).
É curioso constatar que pessoas que viveram tão intensamente essa fé revolucionária, à qual se entregaram com tanta paixão religiosa, tenham feito dessa época das suas vidas uma época a esquecer, a proscrever (ou melhor: uma espécie de não-tempo), o que nem será exactamente o caso de MJM e SS. Zita Seabra, por exemplo, foi retomar o fio da sua vida justamente no ponto em que o tinha quebrado com o encetamento da vida militante, passando a viver e casando com o namorado do tempo do liceu. Também do ponto de vista colectivo, a Rússia quis apagar da História esse tempo revolucionário, retomando simbolicamente o seu curso no tempo antes da Revolução, o tempo dos czares, agora reabilitados, vivenciando essa época pré-revolucionária de uma forma revivalista.
No caso de MJM e S.S., para voltarmos à experiência individual, a redescoberta pós-revolucionária incidiu sobre o “gosto da banalidade”, assim mesmo assumido (voltar à ideia de ter um fim-de-semana, almoçar e jantar com a família, ir ao cinema. (“É o mundo da banalidade” – MJM; “É o mundo com o heroísmo doméstico de pagar a casa, as contas" – S.S.).
É curioso constatar que pessoas que viveram tão intensamente essa fé revolucionária, à qual se entregaram com tanta paixão religiosa, tenham feito dessa época das suas vidas uma época a esquecer, a proscrever (ou melhor: uma espécie de não-tempo), o que nem será exactamente o caso de MJM e SS. Zita Seabra, por exemplo, foi retomar o fio da sua vida justamente no ponto em que o tinha quebrado com o encetamento da vida militante, passando a viver e casando com o namorado do tempo do liceu. Também do ponto de vista colectivo, a Rússia quis apagar da História esse tempo revolucionário, retomando simbolicamente o seu curso no tempo antes da Revolução, o tempo dos czares, agora reabilitados, vivenciando essa época pré-revolucionária de uma forma revivalista.
No caso de MJM e S.S., para voltarmos à experiência individual, a redescoberta pós-revolucionária incidiu sobre o “gosto da banalidade”, assim mesmo assumido (voltar à ideia de ter um fim-de-semana, almoçar e jantar com a família, ir ao cinema. (“É o mundo da banalidade” – MJM; “É o mundo com o heroísmo doméstico de pagar a casa, as contas" – S.S.).
05 outubro 2008
Crimes, estrangeiros, prisões e estados de alma.
Recorrentemente a questão do nexo causal entre crime e estrangeiros sobe ao palco do discurso político, nem sempre pelas melhores razões. O discurso maniqueísta e assente em pressupostos não racionalmente demonstrados imputando aos estrangeiros a causa de muitos «males» a que são alheios é difícil de desmontar na opinião pública. É fácil, aliás, agitar as bandeiras de um nacionalismo perigoso
Daí que seja de reconhecer o carácter sério – e corajoso – das declarações do Director dos Serviços e Fronteiras ao Expresso de 4 de Outubro quando, à pergunta sobre se «os imigrantes estão na origem do recente da criminalidade» responde inequivocamente, «não há nenhum dado objectivo que comprove tal relação». O mesmo responsável – que conhece bem a questão da emigração e dos estrangeiros – é claríssimo no comentário que faz às declarações do secretário geral do Gabinete Coordenador de Segurança que terá afirmado que «os estrangeiros são cada vez mais responsáveis pelo aumento da criminalidade em Portugal»: «é uma mensagem errada», refere o Director dos Serviços e Fronteiras!
[Em 2006 a taxa de cidadãos estrangeiros nas prisões portuguesas (preventivos e condenados) era de 20,2% (dados da DGSP e do Conselho da Europa). A título de exemplo, veja-se a situação em alguns países da Europa, no mesmo ano: Itália 32,3%, Holanda, 32,7%, Bélgica, 41%, França, 19,8%, Alemanha, 26,8%, Grécia, 58,4%, Espanha, 31,2% (Fonte: Statistique Penal du Conseil de l’Europe, SPACE I, 2006).
No terceiro trimestre de 2008 encontravam-se presos nas prisões portuguesas 2240 cidadãos estrangeiros entre os 11008 reclusos, ou seja cerca de 20,3%].
A política criminal deveria sustentar-se mais em estatísticas do que em estados de alma.
Daí que seja de reconhecer o carácter sério – e corajoso – das declarações do Director dos Serviços e Fronteiras ao Expresso de 4 de Outubro quando, à pergunta sobre se «os imigrantes estão na origem do recente da criminalidade» responde inequivocamente, «não há nenhum dado objectivo que comprove tal relação». O mesmo responsável – que conhece bem a questão da emigração e dos estrangeiros – é claríssimo no comentário que faz às declarações do secretário geral do Gabinete Coordenador de Segurança que terá afirmado que «os estrangeiros são cada vez mais responsáveis pelo aumento da criminalidade em Portugal»: «é uma mensagem errada», refere o Director dos Serviços e Fronteiras!
[Em 2006 a taxa de cidadãos estrangeiros nas prisões portuguesas (preventivos e condenados) era de 20,2% (dados da DGSP e do Conselho da Europa). A título de exemplo, veja-se a situação em alguns países da Europa, no mesmo ano: Itália 32,3%, Holanda, 32,7%, Bélgica, 41%, França, 19,8%, Alemanha, 26,8%, Grécia, 58,4%, Espanha, 31,2% (Fonte: Statistique Penal du Conseil de l’Europe, SPACE I, 2006).
No terceiro trimestre de 2008 encontravam-se presos nas prisões portuguesas 2240 cidadãos estrangeiros entre os 11008 reclusos, ou seja cerca de 20,3%].
A política criminal deveria sustentar-se mais em estatísticas do que em estados de alma.
A morte do "mensageiro"
Já que estamos em maré de citar filósofos, citemos Eduardo Lourenço, que agora, por ocasião dos seus 85 anos, vai ser objecto de um seminário na Fundação Gulbenkian, promovido pelo Centro Nacional de Cultura. Citemos um dos livros de que eu gosto mais – O Esplendor do Caos – e, dos textos que o compõem, um dos que melhor põe a nu (podíamos falar de descontrução, para usarmos o célebre conceito de Derrida) o sistema comunicacional actual, especialmente o da televisão:
«Simbolicamente, em matéria de informação, vivemos sob um regime de absoluto bombardeamento informativo, numa espécie de vigília contínua, sem termos a possibilidade, por assim dizer, de fecharmos os olhos. Assim, o que parece urgente é escapar a esse fluxo, descobrir um refúgio, em suma, defender «o direito a não ser informado». Ou, com maior dose de provocação, o direito ao silêncio. (…) Existir é comunicar, comunicar é inscrever-se, mesmo numa breve fracção de segundo, num espaço audiovisual, conceito, aliás, já quase arcaico, pois melhor é reduzi-lo à sua essência puramente imagética. Existir é ter imagem, mas mais ainda é ter o poder de difundir as mil imagens que decompõem e sintetizam a nossa imagem, concebida como um videoclip permanente. A “nossa imagem” não é aqui o equivalente do nosso retrato (…) Nesse capítulo, não há diferença alguma entre a venda da imagem de um político, de uma star ou de um mero mortal e a venda da “imagem” de qualquer produto da alta tecnologia, o último modelo Mercedes ou o mais recente Macintosh. A própria existência da imagem – ao simples nível “informativo”, como as imagens da guerra da Bósnia ou de catástrofes naturais – está subdeterminada pela sua causa final (…), quer dizer pelo critério único e universal da rentabilidade mediática. O fluxo das imagens que nos cerca, nos invade ou nos é proposto tem uma lógica interna que, seriamente falando, não pertence à esfera da comunicação (…), mas a uma esfera autónoma, em que a mensagem inscrita na imagem não tem outro destinatário além do próprio emissor dela (…) O destinatário aparente do fluxo comunicativo que tem como suporte a imagem, com o estatuto que adquiriu enquanto imagem televisiva é o público (…), mas o destinatário ideal é o próprio sistema televisivo. A televisão trabalha para a televisão. (…) A sua condição ideal será a condição angélica (aos olhos do espectador consumidor das suas imagens-espectáculos ou espectáculos-imagens), em suma, de uma transparência tal que nem por sombras lembre ao pseudodestinatário que a caixa mágica não funciona senão para o interior de si mesma».
«Simbolicamente, em matéria de informação, vivemos sob um regime de absoluto bombardeamento informativo, numa espécie de vigília contínua, sem termos a possibilidade, por assim dizer, de fecharmos os olhos. Assim, o que parece urgente é escapar a esse fluxo, descobrir um refúgio, em suma, defender «o direito a não ser informado». Ou, com maior dose de provocação, o direito ao silêncio. (…) Existir é comunicar, comunicar é inscrever-se, mesmo numa breve fracção de segundo, num espaço audiovisual, conceito, aliás, já quase arcaico, pois melhor é reduzi-lo à sua essência puramente imagética. Existir é ter imagem, mas mais ainda é ter o poder de difundir as mil imagens que decompõem e sintetizam a nossa imagem, concebida como um videoclip permanente. A “nossa imagem” não é aqui o equivalente do nosso retrato (…) Nesse capítulo, não há diferença alguma entre a venda da imagem de um político, de uma star ou de um mero mortal e a venda da “imagem” de qualquer produto da alta tecnologia, o último modelo Mercedes ou o mais recente Macintosh. A própria existência da imagem – ao simples nível “informativo”, como as imagens da guerra da Bósnia ou de catástrofes naturais – está subdeterminada pela sua causa final (…), quer dizer pelo critério único e universal da rentabilidade mediática. O fluxo das imagens que nos cerca, nos invade ou nos é proposto tem uma lógica interna que, seriamente falando, não pertence à esfera da comunicação (…), mas a uma esfera autónoma, em que a mensagem inscrita na imagem não tem outro destinatário além do próprio emissor dela (…) O destinatário aparente do fluxo comunicativo que tem como suporte a imagem, com o estatuto que adquiriu enquanto imagem televisiva é o público (…), mas o destinatário ideal é o próprio sistema televisivo. A televisão trabalha para a televisão. (…) A sua condição ideal será a condição angélica (aos olhos do espectador consumidor das suas imagens-espectáculos ou espectáculos-imagens), em suma, de uma transparência tal que nem por sombras lembre ao pseudodestinatário que a caixa mágica não funciona senão para o interior de si mesma».
Portugal Hoje - O Medo de Existir
O autor de Portugal Hoje – O Medo de Existir – o filósofo José Gil, prossegue nas suas análises sobre o que designa de não-inscrição «como o factor mais importante para o que podemos chamar a estagnação da democracia em Portugal» (p. 43 da ob cit.). Num artigo assinado na revista Visão do passado dia 2 de Outubro – “A domesticação da sociedade” – a propósito do grupo dos professores, que toma como emblemático, e das suas lutas e da forma como o governo lhes tem respondido, «ausentando-se da contenda, tornando-se ausente», pendurando o adversário «num limbo irreal», volta a falar de «técnica de não-inscrição» Diz: «Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não-acção, uma acção não performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestatário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava (é o avesso, no plano da acção, do enunciado performativo de Austin: um acto que é um discurso). Resultado: o professor volta à escola, encontra a mesma realidade, mas sofre um embate muito maior. É essa a força da realidade. É essa a realidade única. E é preciso ser realista. Assim começa a interiorização da obediência (e, um dia, do amor à servidão)».
O artigo termina com palavras terríveis:
«No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz, «a desactivação da acção». É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica politica, à maneira de certos processos psicóticos».
Provavelmente, desde o “25 de Abril”, nunca se escreveram palavras tão duras a respeito de governantes em exercício.
O artigo termina com palavras terríveis:
«No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz, «a desactivação da acção». É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica politica, à maneira de certos processos psicóticos».
Provavelmente, desde o “25 de Abril”, nunca se escreveram palavras tão duras a respeito de governantes em exercício.
E para que não se julgue que tudo o que vem da Alemanha é bom...
Em Março passado o Tribunal Constitucional alemão considerou conforme a Constituição a incriminação do incesto. Votou vencido o, até há cerca de 2 meses, vice-presidente do Tribunal, o famoso penalista liberal, W. Hassemer. O tema era há muito debatido na doutrina germânica, em geral e por razões ao que se julga óbvias (inexistência de bem jurídico protegido), contra a dita incriminação.
03 outubro 2008
Às armas, às armas
A alteração à lei das armas, em conjunto com as propostas legislativas do PSD e do PCP (meu Deus, do PCP também!) em matéria de prisão preventiva, não falando já da do CDS, como alegada resposta à onda de criminalidade e ao crescente sentimento de insegurança a população, constitui a prova provada de que nos tempos que correm a política criminal é feita pela televisão, como disse há alguns anos com argúcia e propriedade Figueiredo Dias.
Para que serve a Lei de Política Criminal, laboriosamente discutida na AR, estabelecer que a prisão preventiva deve ser evitada (em cumprimento do art. 28º da Constituição), para que serve o CPP (também em homenagem ao mesmo preceito constitucional) restringir a prisão preventiva à média e grande criminalidade?
Para que serve o voto dos nossos representantes?
Acima deles está um poder mais forte, desvinculado de qualquer forma de responsabilização democrática, que deslegitima as leis, e a própria Constituição, ao serviço de estratégias obscuras, mas que apostam no populismo irracionalista e nos sentimentos mais primários para subverter princípios civilizacionais e conquistas democráticas tão importantes, como as que se reportam à liberdade e aos direitos fundamentais.
Esta cedência do PS/Governo e de quase todos os partidos representados na AR à campanha da insegurança promovida pela comunicação social constitui, não tenho dúvida, uma derrota da democracia.
Para que serve a Lei de Política Criminal, laboriosamente discutida na AR, estabelecer que a prisão preventiva deve ser evitada (em cumprimento do art. 28º da Constituição), para que serve o CPP (também em homenagem ao mesmo preceito constitucional) restringir a prisão preventiva à média e grande criminalidade?
Para que serve o voto dos nossos representantes?
Acima deles está um poder mais forte, desvinculado de qualquer forma de responsabilização democrática, que deslegitima as leis, e a própria Constituição, ao serviço de estratégias obscuras, mas que apostam no populismo irracionalista e nos sentimentos mais primários para subverter princípios civilizacionais e conquistas democráticas tão importantes, como as que se reportam à liberdade e aos direitos fundamentais.
Esta cedência do PS/Governo e de quase todos os partidos representados na AR à campanha da insegurança promovida pela comunicação social constitui, não tenho dúvida, uma derrota da democracia.
Kosovo: rendição portuguesa
Ao fim de vinte e tal dias de resistência às pressões, Portugal rendeu-se e vai reconhecer um "país" denominado Kosovo. Foi uma resistência heróica.
Mas o heroismo também cansa. Sempre é melhor o realismo, a subserviência.
Mas o heroismo também cansa. Sempre é melhor o realismo, a subserviência.
O odor corporal dos juízes
Vem já atrasado este meu comentário, mas talvez valha ainda a pena fazê-lo.
No passado dia 21 de Setembro publicava o "Público" uma notícia, à largura de quatro colunas e à cabeça da página dedicada ao noticiário nacional, intitulada "Juiz sancionado por maltratar funcionários e obrigá-los a suportar o seu odor corporal".
Chamou-me a atenção a notícia, pelo seu destaque e pela gravidade da conduta imputada ao dito magistrado. Quem será? Será que o conheço? Que também eu já tive de suportar o seu odor corporal?
Afinal, logo pelas primeiras linhas da notícia fica-se a saber que o caso ocorreu em Espanha e o odor do tal juiz ainda não chegou a Portugal. Aliás, acrescenta-se que em Portugal não há conhecimento de queixas "do género".
Portanto, não se percebe lá muito bem por que é que a notícia vem inserida no noticiário nacional. São certamente os assim chamados "critérios jornalísticos"...
(De qualquer forma quero aqui afirmar que conheço diversos juízes espanhóis e todos eles têm um odor perfeitamente suportável.)
No passado dia 21 de Setembro publicava o "Público" uma notícia, à largura de quatro colunas e à cabeça da página dedicada ao noticiário nacional, intitulada "Juiz sancionado por maltratar funcionários e obrigá-los a suportar o seu odor corporal".
Chamou-me a atenção a notícia, pelo seu destaque e pela gravidade da conduta imputada ao dito magistrado. Quem será? Será que o conheço? Que também eu já tive de suportar o seu odor corporal?
Afinal, logo pelas primeiras linhas da notícia fica-se a saber que o caso ocorreu em Espanha e o odor do tal juiz ainda não chegou a Portugal. Aliás, acrescenta-se que em Portugal não há conhecimento de queixas "do género".
Portanto, não se percebe lá muito bem por que é que a notícia vem inserida no noticiário nacional. São certamente os assim chamados "critérios jornalísticos"...
(De qualquer forma quero aqui afirmar que conheço diversos juízes espanhóis e todos eles têm um odor perfeitamente suportável.)
Admiração teutónica II
Quanto terminei o meu último postal com a referência a um “erro” do legislador (ao fim e ao cabo o erro de acreditar demasiado nos agentes do sistema, o erro de acreditar numa pronta e inequívoca adesão às intenções legislativas), não pude deixar de pensar no que se passa em sistemas penais tão radicalmente distintos do nosso, como é o caso do norte-americano. Neste, todos assumem que o sistema penal assenta, como alguém já disse, num “mar de discricionariedade”: discricionariedade da polícia, discricionariedade do “Ministério Público”, enfim, discricionariedade judicial. Sendo esse o grande problema daquele sistema, como o demonstrou definitivamente Samuel Walker num dos mais importantes livros sobre o tema (Taming the System – The Control of Discretion in Criminal Justice, 1950-1990, 1993), o grande esforço de académicos e legisladores, nas últimas décadas, foi o de urdir mecanismos que ponham um travão àquele estado de coisas, que possibilitem a contenção do fenómeno em limites toleráveis. Fazem-no, assumindo abertamente que ele existe – como existe e é, até, por razões de tradição e estrutura, conatural ao sistema.
Entre nós o pressuposto, em si mesmo correcto, é o contrário: o sistema não assenta sobre uma ideia de oportunidade ou menos ainda de discricionariedade. É um sistema de legalidade formal. O problema surge, porque parece ter-se assumido, agora erradamente, que a mera vigência de um tal princípio legal e constitucionalmente plasmado, preclude sem mais as derivas discricionárias reais, a que todo o sistema de legalidade está também sujeito. É um tique muito lusitano esse de supor que se faz uma lei e fica logo tudo resolvido. Ao contrário da política norte-americana, a nossa é, neste particular, uma espécie de “política criminal da avestruz”: diz-se que a lei obriga, suponhamos, o MP a promover a suspensão provisória do processo, verificados os seus pressupostos (por exemplo, ter sido um jovem com 16 anos, sem antecedentes criminais “apanhado” a conduzir sem carta a mota do irmão mais velho), e … pronto, dá-se de barato que cada magistrado o fará, sem mais. É aqui que o edifício se mostra construído sobre alicerces de papel. Porque desconhece as reais motivações dos operadores judiciários (p. ex., olvida-se que um requerimento daquela natureza não raro é mais trabalhoso de que acusação), esquece-se que a própria estruturação do trabalho deles é, de ordinário, pouco propícia a actuações estritamente conformes à lei (a forma de organização do trabalho do MP, em algumas circunscrições, de modo a que o magistrado que acusa não está presente em audiência é, se bem me entendem, um desincentivo à promoção de soluções de diversão processual), etc.
Não é por acaso, que boa parte da Revisão de 2007, por muitas críticas que mereça (e merecerá algumas, contundentes, como é o caso do regime do segredo de justiça, que como se sabe começa a “estalar” sob o “fardo” da Constituição), não merecerá aquela de não ter ensaiado conter, através de uma regulamentação (redundante, é certo, mas) minuciosa, certas derivas discricionárias reais em algumas áreas da aplicação da lei e que o Tribunal Constitucional topicamente pôs, como todos sabemos, a nú. Mas estas tentativas foram, ainda assim, segundo creio, frustres e, de resto, demasiado marcadas pelas “preocupações políticas do momento”. A forma como se deixou intocada a virtualmente insindicável, do ponto de vista judicial, decisão do MP de não fazer uso dos mecanismos de diversão processual, quando a lei (não se esqueça: a lei; porque o sistema é de legalidade formal) manifestamente o impõe no caso concreto é, quanto a mim, incompreensível e, a mais disso, grave. Grave, porque todos sabem ou deviam saber que a saúde de um sistema penal – para mais num país de recursos limitados – joga-se mais no tratamento da pequena e média criminalidade e, sobretudo, da criminalidade de massas do que na grande criminalidade. Só com o tratamento adequado, eficaz e célere daquela se podem reunir os meios necessários ao combate da última. É óbvio que as soluções são delicadas, pois têm como limite a autonomia do Ministério Público. Mas isso não quer dizer que não valha a pena tentar (algumas “soluções” concretas para o tópico que aqui nos ocupa poderiam ser discutidas, se o tema despertar debate).
A solução aportada pela Lei Quadro da Política Criminal é outra quanto a mim perfeitamente inconsequente. E não me referido já à bizarria de os juízes ficarem (ao menos enquanto destinatários imediatos dela) de fora (diz que é por causa da independência…; note-se o absurdo: independência em face da Lei!). E nem a imprecisões técnicas e desarmonias com a última Revisão do CPP, da autoria do mesmo legislador. Destas destaco apenas a referência a orientações sobre a pequena criminalidade (ali entendida como aquela cominada com pena não superior a 3 anos de prisão), sobre o tratamento da qual a Procuradoria-Geral da República emite directivas e instruções genéricas para aplicação de mecanismos de diversão processual, deixando de fora a média criminalidade (hoje entendida, em geral, como aquela cominada com pena não superior a 5 anos de prisão) – precisamente a franja do fenómeno criminal que, de modo inovador, igualmente em 2007 (!), pelo mesmo legislador, veio a ser abrangida pelas formas especiais de processo e pela suspensão provisória do processo! Mas, como disse, não é a isso que me referia. Referia-me, antes ao facto de aquelas directivas serem, neste particular (isto é, no que tange ao tratamento da pequena criminalidade, que já se viu que a LQPC se esqueceu da média criminalidade), absolutamente vagas, inócuas e inconsequentes (sobre elas gastam-se 5 linhas, em II-1-1.1.), remetendo na prática, uma vez mais, para as flutuações de humor de cada magistrado concreto, renunciando-se uma vez mais ao indispensável, legal e constitucionalmente imposto, controlo da actuação do MP.
Ou seja, aquela LQPC anunciou, neste aspecto algo que poderia ter não desconsiderável utilidade. Ela procurou, obviamente, dar resposta ao já bastamente citado problema das derivas discricionárias reais, que há muito é estudado pela sociologia judiciária. Não obstante um modelo penal (e processual penal) de intervenção mínima, constitucionalmente sancionado (artigo 18.º da CRP), já impusesse a um intérprete minimamente atento a escolha de mecanismos de reacção penal em crescendo de gravidade (assim, com esta ordem: mediação penal, arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo, processo sumário, processo abreviado e processo comum; até neste aspecto, neste básico aspecto, a ordem de anunciação do artigo 12.º da LQPC se mostra tumultuária e arbitrária), o legislador percebeu que tinha que dar solução aos que exibissem uma coriácea renitência às “inovações legais” (inovações que remontam, as mais delas, há 21 anos…), prendendo-os à letra da lei. Pode dizer-se desde já que irá falhar, como falhou até aqui (parece que 7% é a percentagem melhor de requerimentos de aplicação de pena na forma sumaríssima; um escândalo, se se atender a que em países como a Alemanha, com pressupostos de aplicação mais apertados, um tal número monta a mais de 90%!). E irá falhar porque uma vez mais prescindiu de cogitar mecanismos judiciais (portanto, “externos”) eficazes de controlo da acção do MP no que respeita à utilização de soluções de diversão. A LQPC dispõe (artigo 17.º), e bem, que quando o juiz se recusa a acompanhar as promoções do MP conformes com a citada lei, o MP está obrigado a reclamar ou recorrer. Mas nada diz quando o MP, responsável primeiro pela positivação das directrizes político-criminais positivadas naquela lei, a não cumpre ele mesmo. E nada diz porque parte do princípio que o controlo de tal magistratura deve ser, nesta matéria, tão só um controlo interno, hierárquico. Teoricamente está certo. Mas aplica-se aqui tudo quanto disse no meu primeiro postal sobre este tema: há novamente um excessivo optimismo antropológico. Optimismo que se mostra infundado, logo em face das conhecidas directivas e instruções genéricas dimanadas da PGR. Onde se esperava a substanciação e sistematização de orientações (tal como sucede no âmbito comparado, como na Alemanha com as Regras Uniformes para o Processo Penal, na Inglaterra com as Legal Guidances ou nos EUA com os Principles of Federal Prosecution) – condição da sua efectiva vinculatividade, da sua utilidade de respaldamento dos magistrados na tomada de decisões e, sobretudo, condição de uma aplicação dos institutos em respeito do princípio da igualdade – brindaram-nos com 5 linhazitas e, outra vez e sempre, em eterno retorno, um mar de discricionariedade.
Entre nós o pressuposto, em si mesmo correcto, é o contrário: o sistema não assenta sobre uma ideia de oportunidade ou menos ainda de discricionariedade. É um sistema de legalidade formal. O problema surge, porque parece ter-se assumido, agora erradamente, que a mera vigência de um tal princípio legal e constitucionalmente plasmado, preclude sem mais as derivas discricionárias reais, a que todo o sistema de legalidade está também sujeito. É um tique muito lusitano esse de supor que se faz uma lei e fica logo tudo resolvido. Ao contrário da política norte-americana, a nossa é, neste particular, uma espécie de “política criminal da avestruz”: diz-se que a lei obriga, suponhamos, o MP a promover a suspensão provisória do processo, verificados os seus pressupostos (por exemplo, ter sido um jovem com 16 anos, sem antecedentes criminais “apanhado” a conduzir sem carta a mota do irmão mais velho), e … pronto, dá-se de barato que cada magistrado o fará, sem mais. É aqui que o edifício se mostra construído sobre alicerces de papel. Porque desconhece as reais motivações dos operadores judiciários (p. ex., olvida-se que um requerimento daquela natureza não raro é mais trabalhoso de que acusação), esquece-se que a própria estruturação do trabalho deles é, de ordinário, pouco propícia a actuações estritamente conformes à lei (a forma de organização do trabalho do MP, em algumas circunscrições, de modo a que o magistrado que acusa não está presente em audiência é, se bem me entendem, um desincentivo à promoção de soluções de diversão processual), etc.
Não é por acaso, que boa parte da Revisão de 2007, por muitas críticas que mereça (e merecerá algumas, contundentes, como é o caso do regime do segredo de justiça, que como se sabe começa a “estalar” sob o “fardo” da Constituição), não merecerá aquela de não ter ensaiado conter, através de uma regulamentação (redundante, é certo, mas) minuciosa, certas derivas discricionárias reais em algumas áreas da aplicação da lei e que o Tribunal Constitucional topicamente pôs, como todos sabemos, a nú. Mas estas tentativas foram, ainda assim, segundo creio, frustres e, de resto, demasiado marcadas pelas “preocupações políticas do momento”. A forma como se deixou intocada a virtualmente insindicável, do ponto de vista judicial, decisão do MP de não fazer uso dos mecanismos de diversão processual, quando a lei (não se esqueça: a lei; porque o sistema é de legalidade formal) manifestamente o impõe no caso concreto é, quanto a mim, incompreensível e, a mais disso, grave. Grave, porque todos sabem ou deviam saber que a saúde de um sistema penal – para mais num país de recursos limitados – joga-se mais no tratamento da pequena e média criminalidade e, sobretudo, da criminalidade de massas do que na grande criminalidade. Só com o tratamento adequado, eficaz e célere daquela se podem reunir os meios necessários ao combate da última. É óbvio que as soluções são delicadas, pois têm como limite a autonomia do Ministério Público. Mas isso não quer dizer que não valha a pena tentar (algumas “soluções” concretas para o tópico que aqui nos ocupa poderiam ser discutidas, se o tema despertar debate).
A solução aportada pela Lei Quadro da Política Criminal é outra quanto a mim perfeitamente inconsequente. E não me referido já à bizarria de os juízes ficarem (ao menos enquanto destinatários imediatos dela) de fora (diz que é por causa da independência…; note-se o absurdo: independência em face da Lei!). E nem a imprecisões técnicas e desarmonias com a última Revisão do CPP, da autoria do mesmo legislador. Destas destaco apenas a referência a orientações sobre a pequena criminalidade (ali entendida como aquela cominada com pena não superior a 3 anos de prisão), sobre o tratamento da qual a Procuradoria-Geral da República emite directivas e instruções genéricas para aplicação de mecanismos de diversão processual, deixando de fora a média criminalidade (hoje entendida, em geral, como aquela cominada com pena não superior a 5 anos de prisão) – precisamente a franja do fenómeno criminal que, de modo inovador, igualmente em 2007 (!), pelo mesmo legislador, veio a ser abrangida pelas formas especiais de processo e pela suspensão provisória do processo! Mas, como disse, não é a isso que me referia. Referia-me, antes ao facto de aquelas directivas serem, neste particular (isto é, no que tange ao tratamento da pequena criminalidade, que já se viu que a LQPC se esqueceu da média criminalidade), absolutamente vagas, inócuas e inconsequentes (sobre elas gastam-se 5 linhas, em II-1-1.1.), remetendo na prática, uma vez mais, para as flutuações de humor de cada magistrado concreto, renunciando-se uma vez mais ao indispensável, legal e constitucionalmente imposto, controlo da actuação do MP.
Ou seja, aquela LQPC anunciou, neste aspecto algo que poderia ter não desconsiderável utilidade. Ela procurou, obviamente, dar resposta ao já bastamente citado problema das derivas discricionárias reais, que há muito é estudado pela sociologia judiciária. Não obstante um modelo penal (e processual penal) de intervenção mínima, constitucionalmente sancionado (artigo 18.º da CRP), já impusesse a um intérprete minimamente atento a escolha de mecanismos de reacção penal em crescendo de gravidade (assim, com esta ordem: mediação penal, arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo, processo sumário, processo abreviado e processo comum; até neste aspecto, neste básico aspecto, a ordem de anunciação do artigo 12.º da LQPC se mostra tumultuária e arbitrária), o legislador percebeu que tinha que dar solução aos que exibissem uma coriácea renitência às “inovações legais” (inovações que remontam, as mais delas, há 21 anos…), prendendo-os à letra da lei. Pode dizer-se desde já que irá falhar, como falhou até aqui (parece que 7% é a percentagem melhor de requerimentos de aplicação de pena na forma sumaríssima; um escândalo, se se atender a que em países como a Alemanha, com pressupostos de aplicação mais apertados, um tal número monta a mais de 90%!). E irá falhar porque uma vez mais prescindiu de cogitar mecanismos judiciais (portanto, “externos”) eficazes de controlo da acção do MP no que respeita à utilização de soluções de diversão. A LQPC dispõe (artigo 17.º), e bem, que quando o juiz se recusa a acompanhar as promoções do MP conformes com a citada lei, o MP está obrigado a reclamar ou recorrer. Mas nada diz quando o MP, responsável primeiro pela positivação das directrizes político-criminais positivadas naquela lei, a não cumpre ele mesmo. E nada diz porque parte do princípio que o controlo de tal magistratura deve ser, nesta matéria, tão só um controlo interno, hierárquico. Teoricamente está certo. Mas aplica-se aqui tudo quanto disse no meu primeiro postal sobre este tema: há novamente um excessivo optimismo antropológico. Optimismo que se mostra infundado, logo em face das conhecidas directivas e instruções genéricas dimanadas da PGR. Onde se esperava a substanciação e sistematização de orientações (tal como sucede no âmbito comparado, como na Alemanha com as Regras Uniformes para o Processo Penal, na Inglaterra com as Legal Guidances ou nos EUA com os Principles of Federal Prosecution) – condição da sua efectiva vinculatividade, da sua utilidade de respaldamento dos magistrados na tomada de decisões e, sobretudo, condição de uma aplicação dos institutos em respeito do princípio da igualdade – brindaram-nos com 5 linhazitas e, outra vez e sempre, em eterno retorno, um mar de discricionariedade.
02 outubro 2008
A propósito da alteração da lei das armas
Foi votada a lei que vem permitir a medida de coacção de prisão preventiva por detenção ilegal de arma ou em crimes cometidos com arma para obviar às dificuldades emergentes das alterações produzidas no Código de Processo Penal (CPP) relativamente à fixação de tal medida de coacção. Trata-se, evidentemente, de um remendo provocado pelo aumento da criminalidade violenta nos últimos tempos, sem produzir modificações no regime geral do C P P instituído há um ano.
A gente já sabe que isto pode ser um prelúdio para, mais tarde ou mais cedo, se introduzirem novas alterações no CPP, voltando-se a endurecer o regime no capítulo das medidas de coacção e em outras partes. Ao fim e ao cabo, Portugal tem-se balanceado irremediavelmente entre abrandamentos e endurecimentos do regime processual penal, de forma que a um regime mais repressivo, a pretexto do combate à criminalidade organizada e violenta, se sucede um regime mais liberal, com fundamento na defesa dos direitos fundamentais das pessoas. Não passamos disto.
Todavia, não sou adepto da “cruzada” em que certas figuras das magistraturas e as associações de magistrados se têm empenhado no sentido de se voltar a repor de imediato o sistema que vigorava antes ou algo de parecido com isso. O governo e a maioria parlamentar têm afirmado e reafirmado que não pretendem alterar o sistema e que o querem assim mesmo, tal como configurado pelas alterações de há um ano. Por conseguinte, o problema é claramente político. E se é político não queiramos intrometer-nos nessa instância, deixando que as coisas evoluam normalmente e que as consequências recaiam sobre quem devem recair.
Isto, todavia, não impede que os magistrados ponham os pontos nos is, quando, por equívoco, se lhes assaquem responsabilidades que não são deles.
Ps – Aproveito para dizer, a propósito da audição de magistrados sobre elaboração ou alteração de certas leis, que uma coisa é ouvi-los pelo grau de experiência que possuem e outra, bem diferente, o interesse corporativo que porventura possam querer ver reflectido em certos diplomas legais que lhes digam respeito. Há quem confunda as duas coisas.
A gente já sabe que isto pode ser um prelúdio para, mais tarde ou mais cedo, se introduzirem novas alterações no CPP, voltando-se a endurecer o regime no capítulo das medidas de coacção e em outras partes. Ao fim e ao cabo, Portugal tem-se balanceado irremediavelmente entre abrandamentos e endurecimentos do regime processual penal, de forma que a um regime mais repressivo, a pretexto do combate à criminalidade organizada e violenta, se sucede um regime mais liberal, com fundamento na defesa dos direitos fundamentais das pessoas. Não passamos disto.
Todavia, não sou adepto da “cruzada” em que certas figuras das magistraturas e as associações de magistrados se têm empenhado no sentido de se voltar a repor de imediato o sistema que vigorava antes ou algo de parecido com isso. O governo e a maioria parlamentar têm afirmado e reafirmado que não pretendem alterar o sistema e que o querem assim mesmo, tal como configurado pelas alterações de há um ano. Por conseguinte, o problema é claramente político. E se é político não queiramos intrometer-nos nessa instância, deixando que as coisas evoluam normalmente e que as consequências recaiam sobre quem devem recair.
Isto, todavia, não impede que os magistrados ponham os pontos nos is, quando, por equívoco, se lhes assaquem responsabilidades que não são deles.
Ps – Aproveito para dizer, a propósito da audição de magistrados sobre elaboração ou alteração de certas leis, que uma coisa é ouvi-los pelo grau de experiência que possuem e outra, bem diferente, o interesse corporativo que porventura possam querer ver reflectido em certos diplomas legais que lhes digam respeito. Há quem confunda as duas coisas.
A admiração teutónica I
No mês passado, durante cerca de duas semanas, fui acompanhado, no meu dia a dia de juiz, por um colega alemão, ao abrigo de um programa de troca de experiências de juízes da União Europeia. Bem impressionado com certos aspectos do funcionamento dos tribunais (essencialmente, para surpresa minha, com as condições materiais de trabalho, nomeadamente a gestão informática de processos que, disse-me, é ainda algo distante no país dele), mostrou-se estupefacto com a presença em julgamento de menores de 16 anos (alguns em notória crise aguda de pânico), sem antecedentes criminais e por condução sem habilitação legal. No país dele, disse-me, tal situação seria “impensável” e que uma tal hipótese só seria possível se a “criança” se mostrasse renitente em seguir os trilhos da lei penal por 3 ou 4 vezes. Reconhecia-se que a mera presença dela na polícia era suficiente à satisfação das necessidades preventivas que a intervenção estatal almeja, nesta matéria. E, de resto, a lei processual penal alemã está munida de soluções que permitem aligeirar a intervenção do Estado na esfera do cidadão, quando um tal aligeiramento se justifique, passando por mecanismos de puro e simples arquivamento, no caso de culpa diminuta ou ligeira do agente e de inexistência de interesse público na prossecução penal, passando pela imposição de regras de conduta e injunções até ao chamado processo por ordens penais (um parente muito próximo do nosso processo sumaríssimo).
Atrapalhado com a justificada reacção dele e confrontado com aquela inquisitorial interpelação, em jeito de quem nos supõe de algum modo uns “bárbaros”, esclareci que também em Portugal há mecanismos de diversão processual (hoc sensu), semelhantes aos germânicos, tal como o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo, aliás e em geral formando uma malha de rede aplicação bem mais larga (mais ainda desde a Revisão de 2007) do que a dos correspondentes mecanismos da lei alemã. Portanto, Portugal era, para todos os devidos efeitos legais, um país moderno, humanista e dado aos maiores cuidados, nomeadamente com a juventude.
Claro que ao explicar isto ao meu interlocutor teutónico, sabia estar a cair na maior das contradições. Pois então, se a lei era tão moderna, por que razão não era aplicada? Aqui estava, pois, o punctum crucis da questão – e era escusado explicar a um juiz de 2.ª instância a diferença entre Law in books e Law in action que Roscoe Pound tão bem sintetizara já no início do século passado! O problema, é claro, estava em que o legislador processual penal português e sobretudo o que desenhou os estatuto do Ministério Público (responsável primeiro pela concretização das orientações de política criminal plasmadas na lei e sem cuja promoção nada é possível em matéria de diversão processual), tendo arquitectado um sistema penal que a justo título se pode reivindicar de uma quase perfeição teórica, no plano comparado, esqueceu-se da proverbial rebeldia do cidadão nacional em relação à Lei. Rebeldia que, como se sabe, não aflige de modo tão agudo nem os filhos de Goethe e nem muitos outros povos. Daí que para sistemas tão parecidos, resultados tão distintos. Ou de modo mais claro: um sistema moderno não funciona quando nele interage um número não despiciendo de agentes que persiste em trabalhar, por assim dizer, à “moda antiga”. O único problema do legislador foi, por isso, o de não ter partido para a árdua tarefa de arquitectar um sistema penal assentando num módico de pessimismo antropológico. Acreditou que todos cumpririam a sua função, tal como estava indicada no livrinho. Infelizmente, em Portugal, isso é um erro.
Atrapalhado com a justificada reacção dele e confrontado com aquela inquisitorial interpelação, em jeito de quem nos supõe de algum modo uns “bárbaros”, esclareci que também em Portugal há mecanismos de diversão processual (hoc sensu), semelhantes aos germânicos, tal como o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo, aliás e em geral formando uma malha de rede aplicação bem mais larga (mais ainda desde a Revisão de 2007) do que a dos correspondentes mecanismos da lei alemã. Portanto, Portugal era, para todos os devidos efeitos legais, um país moderno, humanista e dado aos maiores cuidados, nomeadamente com a juventude.
Claro que ao explicar isto ao meu interlocutor teutónico, sabia estar a cair na maior das contradições. Pois então, se a lei era tão moderna, por que razão não era aplicada? Aqui estava, pois, o punctum crucis da questão – e era escusado explicar a um juiz de 2.ª instância a diferença entre Law in books e Law in action que Roscoe Pound tão bem sintetizara já no início do século passado! O problema, é claro, estava em que o legislador processual penal português e sobretudo o que desenhou os estatuto do Ministério Público (responsável primeiro pela concretização das orientações de política criminal plasmadas na lei e sem cuja promoção nada é possível em matéria de diversão processual), tendo arquitectado um sistema penal que a justo título se pode reivindicar de uma quase perfeição teórica, no plano comparado, esqueceu-se da proverbial rebeldia do cidadão nacional em relação à Lei. Rebeldia que, como se sabe, não aflige de modo tão agudo nem os filhos de Goethe e nem muitos outros povos. Daí que para sistemas tão parecidos, resultados tão distintos. Ou de modo mais claro: um sistema moderno não funciona quando nele interage um número não despiciendo de agentes que persiste em trabalhar, por assim dizer, à “moda antiga”. O único problema do legislador foi, por isso, o de não ter partido para a árdua tarefa de arquitectar um sistema penal assentando num módico de pessimismo antropológico. Acreditou que todos cumpririam a sua função, tal como estava indicada no livrinho. Infelizmente, em Portugal, isso é um erro.
Coisas de países sem recursos nem cultura jurídica
«De um ponto de vista económico e de eficiência, o ritual simbólico do julgamento público é dispendioso, consome tempo e em muitos aspectos é simplesmente inútil. [...] O declínio do julgamento pode ser explicado como uma de muitas emanações da tendência geral das sociedades modernas reduzirem custos e aumentar a eficiência do sistema»