31 maio 2007
Necrologia
Noticiou o Diário da República do passado dia 4 deste mês a extinção da Unidade de Missão para a Reforma Penal. A ilustre extinta não deixa descendentes e terá passado quase despercebido o infausto sucesso. Não haverá sequer missa do 30º dia. Porém, deixou a defunta um património considerável, cuja valia real, no entanto, está por determinar com rigor. Não se sabe se alguém se habilitará à herança, que pode vir a tornar-se pesada para quem assumir o encargo.
Esta incerteza não é suficiente para afectar a memória da distinta desaparecida. Paz à sua alma!
Esta incerteza não é suficiente para afectar a memória da distinta desaparecida. Paz à sua alma!
Little Britain.
Não, não se trata da televisão da Nigéria. Trata-se da estação de televisão pública polaca, aqui mesmo, na União Europeia. Depois do teletubbie Tinky Winky ter sido, desta vez, apanhado nas malhas da “renovação moral”, calhou agora à série britânica sofrer na pele a crescente e descarada fúria censória do Governo polaco, fortemente empenhado em combater a propaganda homossexual, em nome da luta contra a “discriminação da família normal”, já manifestada, aliás, no anúncio de proibição de discussão do tema nas escolas.
Para além de algumas reacções institucionais (com o conveniente q. b. de inocuidade), já se ficou a saber, segundo o Público, que a próxima presidência da União é do entendimento de que ninguém tem que dar lições de moral a ninguém no campo dos direitos humanos.
Nada mau para um pomposo, mas absolutamente inconsequente, ano europeu da igualdade de oportunidade para todos.
Para além de algumas reacções institucionais (com o conveniente q. b. de inocuidade), já se ficou a saber, segundo o Público, que a próxima presidência da União é do entendimento de que ninguém tem que dar lições de moral a ninguém no campo dos direitos humanos.
Nada mau para um pomposo, mas absolutamente inconsequente, ano europeu da igualdade de oportunidade para todos.
Debates par(a)lamentares
Há algo de errado nestes debates mensais na AR.
O Governo deveria ir à AR prestar contas das suas políticas, pois é a AR que fiscaliza a acção do Governo, e não vice-versa.
Acontece, porém, que o Regulamento da AR tem uma leitura oposta. Os debates mensais, ocasião de eleição para o exercício dessa função fiscalizadora, são colocados sob o completo domínio do executivo: é o Governo que escolhe o "tema" (como se tivesse que haver necessariamente um tema pré-escolhido), é o Governo que abre o debate, é o Governo que o fecha; e é o Governo que tem a parte de leão no tempo disponível para o debate.
Os debates mensais tornaram-se, assim, não um fórum de fiscalização política, mas um palco mediático privilegiado para a promoção/publicidade das decisões governamentais. Os deputados, na sua casa, fazem a figura de parentes pobres, menos, claro, os da maioria, os parentes ricos, que se desmultiplicam em loas e mesuras às sábias medidas e decisões dos governantes.
(Passados uns anos, os papéis invertem-se, os parentes pobres passam a ricos, os ricos a pobres, embora alguns fiquem sempre pobres, mas essa é outra história).
A governamentalização do parlamento é porventura um perigo inevitável quando existem maiorias absolutas. Mas, precisamente por isso, devem existir mecanismos institucionais para combater esse perigo. Este regulamento dos debates mensais da nossa AR manifestamente não favorece esse combate.
O Governo deveria ir à AR prestar contas das suas políticas, pois é a AR que fiscaliza a acção do Governo, e não vice-versa.
Acontece, porém, que o Regulamento da AR tem uma leitura oposta. Os debates mensais, ocasião de eleição para o exercício dessa função fiscalizadora, são colocados sob o completo domínio do executivo: é o Governo que escolhe o "tema" (como se tivesse que haver necessariamente um tema pré-escolhido), é o Governo que abre o debate, é o Governo que o fecha; e é o Governo que tem a parte de leão no tempo disponível para o debate.
Os debates mensais tornaram-se, assim, não um fórum de fiscalização política, mas um palco mediático privilegiado para a promoção/publicidade das decisões governamentais. Os deputados, na sua casa, fazem a figura de parentes pobres, menos, claro, os da maioria, os parentes ricos, que se desmultiplicam em loas e mesuras às sábias medidas e decisões dos governantes.
(Passados uns anos, os papéis invertem-se, os parentes pobres passam a ricos, os ricos a pobres, embora alguns fiquem sempre pobres, mas essa é outra história).
A governamentalização do parlamento é porventura um perigo inevitável quando existem maiorias absolutas. Mas, precisamente por isso, devem existir mecanismos institucionais para combater esse perigo. Este regulamento dos debates mensais da nossa AR manifestamente não favorece esse combate.
As Novas Bruxas de Salem
Les nouvelles sorcières de Salem: Leçons d`Outreau (2006), de Antoine Garapon e Denis Salas, dois dos mais reputados magistrados franceses, é um pequena e pertinente obra que, traçando um paralelo entre a arrepiante caça às bruxas ocorrida no fim do século XVII, no Massachusetts, e a actual histeria em torno do fenómeno pedófilo, deveria ser lida e objecto de reflexão por muitos dos que se vão pronunciando levianamente sobre certas decisões judiciais. A vozearia em curso a propósito de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que atenuou uma pena aplicada a um autor de um crime sexual praticado sobre um menor é bem demonstrativa, pelo modo desinformado, emotivo, incendiário e sensacionalista como se manifestou (e manifesta) de que já existe entre nós um caldo cultural em ponto de rebuçado para uma radical (e, em todo caso, já com manifestações, aqui e acolá) alteração do paradigma de política criminal, em especial no que respeita as certas franjas do fenómeno criminal, com proeminência, à semelhança do que sucede em outras latitudes, para o abuso sexual de crianças.
Afirmações como “juízes atenuam pedofilia” ou “quando a pedofilia é menos grave”, não traduzem mera ignorância de que a lei fixa limites penais mínimos e máximos para a punição de determinado comportamento e de que a função do juiz é a de, mediando entre a lei os factos da vida, individualizar a pena em função da gravidade daqueles, da personalidade do agente do seu grau de culpa e das exigências de prevenção. Elas traduzem uma atitude de princípio, que é a de que para pedófilos só o máximo previsto na lei (esta já de si branda: venha a castração, a prisão perpétua e, porque não, a pena de morte!) é adequado, de que para estes não vale uma ideia de justiça, que só se pode afirmar na comparação e na relação. Perigosamente, muito perigosamente, para estes não vale o predicado da dignidade humana (sei bem o que me pode valer esta afirmação…), essa ignominiosa invenção kantiana. Tenho por tão acertado o que acabei de dizer que pergunto: e se a decisão em causa – esta ou outra em caso análogo, não importa – fosse a de agravar a sanção? Será que neste caso já estes novos torquemadas em potência deixariam de sublimar o valor da máxima personalização e individualização da operação da medida da pena que é, por rectas contas, punctum crucis de qualquer sistema de justiça penal digno desse nome? A pergunta, como se intui, é de mera retórica. E, também ainda, afirmações como aquela de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”, postulando um juiz asséptico, não carregam um estranho sabor bafiento – mas nos tempos que correm cada vez mais arejado – de retorno a um positivismo legalista em que o juiz se reduz “à boca que reproduz as palavras da lei”?
Pois bem, dizia eu acima que esse estado de coisas, este ambiente, é já propício a outras aventuras político-criminais pouco recomendáveis – e, em todo o caso, estranhas à nossa tradição humanista – que desprezam o legado iluminista (o valor da dignidade humana, da proporcionalidade, só para citar alguns) e enfileiram, de entre o mais, num consequencialismo sem concessões. Penso, claro está, de entre o muito que podia dizer, na redução da margem de apreciação dos juízes, que em alguns países tomou a forma de sentencing guidelines, com cominação de molduras penais muito estreitas para os crimes e, sobre isto, com a vinculação daqueles, na interpretação dos instrumentos normativos, aos policy statements e aos “comentários oficiais” das guidelines (aqui já ecoa nos nossos ouvidos a acima aludida afirmação de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”); a substituição da ideia de individualização, personalização e proporcionalidade na tarefa de determinação da pena, orientada, por sua vez, aquela ideia, por um ideal de reabilitação, pela da neutralização fáctica do delinquente, também aqui numa espécie de regresso ao passado, à solução de pura e simples inocuização de cunho positivista (do positivismo criminológico) – lembremo-nos do que disse ir implícito em afirmações com a atrás transcrita de que os “juízes atenuam pedofilia”; a extraordinária permeabilidade dos legisladores às contingências de certos casos concretos cuja dramaticidade, já de si susceptível de tocar qualquer alma que não seja empedernida, é infinitamente ampliada pelos media, adoptando, dizia, os legisladores, um modo de legiferar errático (veja-se a lei de política criminal, que vai a reboque da espuma de cada dia em matéria de prioridades de investigação) e, não raro, demagógico (é o caso das políticas name and shame em matéria de crimes sexuais sobre menores, que entre nós já conheceram um sucedâneo envergonhado com a publicitação da identidade dos contribuintes devedores); a deriva inquisitória em matéria processual penal, mesmo onde não é sancionada pela lei; etc.
Todas estas são, ainda, para nós, ao menos nas suas formas mais explícitas e mais eriçadas, orientações de politica criminal relativamente remotas. Mas espicaçado por uma comunicação social sensacionalista e acriticamente aberta a tudo o que é novo só porque é novo (e, sobretudo, estrangeiro), o cidadão comum, com queixas legítimas sobre o sistema de justiça, começa a baixar perigosamente as defesas que o mantinham alerta em relação a derivas autoritárias (para dizer o menos). E sendo assim não me admiraria que soluções como as apontadas – ainda que filtradas pela nossa proverbial brandura – estejam mais próximas do que o que supomos. Não sei em que “ismo” elas se podem classificar. E não são taxonómicos os meus cuidados. O que sei é que elas são susceptíveis de minar em muito as conquistas árduas que fazem de Portugal, por enquanto, um Estado de Direito.
Afirmações como “juízes atenuam pedofilia” ou “quando a pedofilia é menos grave”, não traduzem mera ignorância de que a lei fixa limites penais mínimos e máximos para a punição de determinado comportamento e de que a função do juiz é a de, mediando entre a lei os factos da vida, individualizar a pena em função da gravidade daqueles, da personalidade do agente do seu grau de culpa e das exigências de prevenção. Elas traduzem uma atitude de princípio, que é a de que para pedófilos só o máximo previsto na lei (esta já de si branda: venha a castração, a prisão perpétua e, porque não, a pena de morte!) é adequado, de que para estes não vale uma ideia de justiça, que só se pode afirmar na comparação e na relação. Perigosamente, muito perigosamente, para estes não vale o predicado da dignidade humana (sei bem o que me pode valer esta afirmação…), essa ignominiosa invenção kantiana. Tenho por tão acertado o que acabei de dizer que pergunto: e se a decisão em causa – esta ou outra em caso análogo, não importa – fosse a de agravar a sanção? Será que neste caso já estes novos torquemadas em potência deixariam de sublimar o valor da máxima personalização e individualização da operação da medida da pena que é, por rectas contas, punctum crucis de qualquer sistema de justiça penal digno desse nome? A pergunta, como se intui, é de mera retórica. E, também ainda, afirmações como aquela de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”, postulando um juiz asséptico, não carregam um estranho sabor bafiento – mas nos tempos que correm cada vez mais arejado – de retorno a um positivismo legalista em que o juiz se reduz “à boca que reproduz as palavras da lei”?
Pois bem, dizia eu acima que esse estado de coisas, este ambiente, é já propício a outras aventuras político-criminais pouco recomendáveis – e, em todo o caso, estranhas à nossa tradição humanista – que desprezam o legado iluminista (o valor da dignidade humana, da proporcionalidade, só para citar alguns) e enfileiram, de entre o mais, num consequencialismo sem concessões. Penso, claro está, de entre o muito que podia dizer, na redução da margem de apreciação dos juízes, que em alguns países tomou a forma de sentencing guidelines, com cominação de molduras penais muito estreitas para os crimes e, sobre isto, com a vinculação daqueles, na interpretação dos instrumentos normativos, aos policy statements e aos “comentários oficiais” das guidelines (aqui já ecoa nos nossos ouvidos a acima aludida afirmação de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”); a substituição da ideia de individualização, personalização e proporcionalidade na tarefa de determinação da pena, orientada, por sua vez, aquela ideia, por um ideal de reabilitação, pela da neutralização fáctica do delinquente, também aqui numa espécie de regresso ao passado, à solução de pura e simples inocuização de cunho positivista (do positivismo criminológico) – lembremo-nos do que disse ir implícito em afirmações com a atrás transcrita de que os “juízes atenuam pedofilia”; a extraordinária permeabilidade dos legisladores às contingências de certos casos concretos cuja dramaticidade, já de si susceptível de tocar qualquer alma que não seja empedernida, é infinitamente ampliada pelos media, adoptando, dizia, os legisladores, um modo de legiferar errático (veja-se a lei de política criminal, que vai a reboque da espuma de cada dia em matéria de prioridades de investigação) e, não raro, demagógico (é o caso das políticas name and shame em matéria de crimes sexuais sobre menores, que entre nós já conheceram um sucedâneo envergonhado com a publicitação da identidade dos contribuintes devedores); a deriva inquisitória em matéria processual penal, mesmo onde não é sancionada pela lei; etc.
Todas estas são, ainda, para nós, ao menos nas suas formas mais explícitas e mais eriçadas, orientações de politica criminal relativamente remotas. Mas espicaçado por uma comunicação social sensacionalista e acriticamente aberta a tudo o que é novo só porque é novo (e, sobretudo, estrangeiro), o cidadão comum, com queixas legítimas sobre o sistema de justiça, começa a baixar perigosamente as defesas que o mantinham alerta em relação a derivas autoritárias (para dizer o menos). E sendo assim não me admiraria que soluções como as apontadas – ainda que filtradas pela nossa proverbial brandura – estejam mais próximas do que o que supomos. Não sei em que “ismo” elas se podem classificar. E não são taxonómicos os meus cuidados. O que sei é que elas são susceptíveis de minar em muito as conquistas árduas que fazem de Portugal, por enquanto, um Estado de Direito.
30 maio 2007
Caça aos pedófilos
Nos últimos anos a pedofilia foi erigida numa das grandes preocupações nacionais e internacionais e os pedófilos juntaram-se aos terroristas e aos traficantes de drogas como novo contingente de inimigos da humanidade, novos rostos de Satanás, passada que está a guerra fria e os inimigos de então, agora domesticados.
A legislação penal endureceu, quer pelo agravamento das penas, quer pelo próprio alargamento do conceito de "criança" (que vai até ao final dos 13 anos), e também das previsões penais, que abrangem a mera detenção de materiais pornográficos, desde que destinados a serem exibidos a crianças. A investigação destes crimes torna-se prioritária (a nova LPC dispõe). E a acção dos tribunais requer-se drástrica, intransigente, impiedosa.
Porque, se assim não for, aí está a comunicação social vigilante, nova consciência moral da comunidade, a apontar o dedo em riste aos juízes complacentes, convocando a justa ira popular contra aqueles senhores.
O puritanismo latente (ou talvez mesmo patente) nessa campanha, que quer fazer de pré-adolescentes (se não mesmo adolescentes) seres virginais anteriores ao pecado original, é tão bafiento que enoja.
Aliás, é absolutamente contraditório com a "pedagogia" negativa que a TV (sobretudo esta) faz sobre as crianças, não só na publicidade, como na programação geral, extremamente agressiva para a sua formação, nomeadamente para a educação sexual (facto tão geralmente reconhecido como escamoteado).
Mas há pior: dá-se a voz a comentadores (ir) responsáveis que reclamam exaltados as "penas máximas" (?) para os pedófilos e inclusivamente a castração dos ditos. Ora isto, meus senhores, é, sem tirar nem pôr, a promoção de ideias fascistas. Terão consciência disso? Não sei se será pior a consciência ou a inconsciência...
A legislação penal endureceu, quer pelo agravamento das penas, quer pelo próprio alargamento do conceito de "criança" (que vai até ao final dos 13 anos), e também das previsões penais, que abrangem a mera detenção de materiais pornográficos, desde que destinados a serem exibidos a crianças. A investigação destes crimes torna-se prioritária (a nova LPC dispõe). E a acção dos tribunais requer-se drástrica, intransigente, impiedosa.
Porque, se assim não for, aí está a comunicação social vigilante, nova consciência moral da comunidade, a apontar o dedo em riste aos juízes complacentes, convocando a justa ira popular contra aqueles senhores.
O puritanismo latente (ou talvez mesmo patente) nessa campanha, que quer fazer de pré-adolescentes (se não mesmo adolescentes) seres virginais anteriores ao pecado original, é tão bafiento que enoja.
Aliás, é absolutamente contraditório com a "pedagogia" negativa que a TV (sobretudo esta) faz sobre as crianças, não só na publicidade, como na programação geral, extremamente agressiva para a sua formação, nomeadamente para a educação sexual (facto tão geralmente reconhecido como escamoteado).
Mas há pior: dá-se a voz a comentadores (ir) responsáveis que reclamam exaltados as "penas máximas" (?) para os pedófilos e inclusivamente a castração dos ditos. Ora isto, meus senhores, é, sem tirar nem pôr, a promoção de ideias fascistas. Terão consciência disso? Não sei se será pior a consciência ou a inconsciência...
Magistrados e Media
Está na moda comentar decisões judiciais. Ainda bem, a democracia agradece. O que já é mais questionável é que alguns dos comentadores de plantão, porventura os mais ácidos e solícitos, provenham das magistraturas, com claras perdas ao nível da independência ou da autonomia, conforme os casos. E não me refiro à mera observação de circunstância sobre ponto acessório da decisão, à questão de fundo claramente desenquadrada do caso concreto ou à opinião fundamentada em revista técnico-científica da especialidade. Refiro-me à crítica directa, na comunicação social, ao teor da decisão, à prestação dos julgadores – coisa que se não fosse vedada por lei, como é, devia ser evitada por elementares considerações de ética profissional. A introdução que esta espécie de híbridos de repórter e magistrado fazem é sempre a mesma, cientes que estão, apesar de tudo, que, ainda que não o queiram, têm a sua liberdade de expressão limitada por estatuto: “Não comento decisões judiciais, mas…”, e lá vão comentando e atirando uma ou outra farpinha. Ultimamente, desponta uma modalidade mais refinada, limitada ainda, que é da comentar a decisão no quadro de associações e outras pessoas colectivas que têm a particularidade de ser constituídas, exclusivamente, por magistrados. Como se a alteridade daquelas fosse uma dirimente da responsabilidade pessoal destes. Seja como for, a qualidade profissional desses comentadores exigiria, ao menos, por uma questão de pudor, que se dessem ao cuidado, maçador ainda, de ler o que criticam (e, já agora, se não fosse pedir demais, recolher informação elementar sobre o tema em discussão). Assim, iam-se os anéis mas ao menos ficavam os dedos.
28 maio 2007
A lei casual de política criminal
A lei de política criminal faz lembrar um desses transportes públicos onde cabe sempre mais um que apareça pelo caminho. Metem-se lá uns quantos crimes de investigação prioritária, mas, dando-se o caso de um crime não previsto aparecer badalado na comunicação social e adquirir o estatuto social de crime grave, também esse passa a ter a dignidade suficiente para entrar na carruagem. Os responsáveis batem com a mão na testa e reconsideram ponderosamente: “Ora cá está mais este! Como é que não nos lembrámos deste?” Grita-se alarmadamente para o motorista: “Senhor motorista, pare aí. Meta mais este passageiro, se faz favor. É um caso de urgência”. E assim é que agora entra o professor agredido pelo aluno, mais adiante, entra a criança raptada, e a seguir logo se verá. É só uma questão de dar um empurrãozinho nos que já estão dentro, abrir mais um espaçozinho e deixar entrar todos os prioritários que forem aparecendo. Uma questão de boa vontade e de solidariedade passageira.
27 maio 2007
mulheres que lêem são perigosas
«Ler é um acto de isolamento amigável. Quando estamos a ler, procuramos tornar-nos inantigiveis. Talvez fosse isso que interessou os pintores durante muito tempo no retrato dos leitores: mostrar pessoas num estado da mais profunda intimidade não destinada a outros».
Escreve-se nm magnífico livro sobre livros, mulheres leitoras e pintura.
«Mulheres que lêem são perigosas», de Stefan Bolmann, da Quetzal.
Escreve-se nm magnífico livro sobre livros, mulheres leitoras e pintura.
«Mulheres que lêem são perigosas», de Stefan Bolmann, da Quetzal.
26 maio 2007
O discurso político
Uma das minhas formas de ociosidade é adejar pelas estantes. Foi assim que a minha mão filou um livro antiquíssimo de Roger Vailland – "Drôle de Jeu". Roger Vailland: um dos mitos de certa boémia culta coimbrã. Quem lê hoje o autor de "Esquisse Pour Un Portrait Du Vrai Libertin?" O engraçado é que, ao folhear o livro, encontrei dentro uma ficha com uma anotação. Como tinha ali ido parar essa ficha? Sempre gostei de tomar apontamentos em papéis, fichas, cadernos. E ali estava aquela, aparentemente sem explicação para lá estar. É o que tem esta busca indefinida pelo labirinto das estantes. De repente, deparam-se coisas surpreendentes. A ficha tinha um título: “Discurso Político” e reproduzia um trecho de Roland Barthes, do seu livro "Roland Barthes Por Roland Barthes" (Edições 70). Fui a outra estante, já esquecido de Vailland, e pus-me a ler a passagem anotada.
Barthes fala de si na terceira pessoa como ser de linguagem (“O seu lugar (o seu meio) é a linguagem…”) E mostra que o que o opõe ao “político” (aqui no sentido de esfera de acção) é precisamente uma questão de linguagem. Diz ele: “De boa vontade seria sujeito, mas não falador político (falador: aquele que despeja o seu discurso, o narra e ao mesmo tempo o notifica, o assinala). E é por não conseguir desprender o real político do seu discurso geral, repetido, que o político lhe está vedado”.
E continua:
“O discurso político não é o único que se repete, se generaliza e se fatiga: logo que se verifica em qualquer lado uma mutação do discurso, logo se lhe segue uma vulgata e o seu cortejo esgotante de frases imóveis. Se este fenómeno comum lhe parece especialmente intolerável no caso do discurso político, é porque a repetição toma aqui o aspecto dum "cúmulo": uma vez que o político se tem por ciência fundamental do real, dotamo-la fantasmaticamente com um derradeiro poder: o de dominar a linguagem, reduzindo toda a tagarelice ao seu resíduo de real. Como então tolerar sem mágoa que o político enfileire também nas linguagens e se torne tagarelice?”
Pois bem. Citei e fico a pensar. Tantas vezes dou comigo a dizer-me interiormente que o discurso político é o mais decepcionante de todos os discursos. Será então o Barthes a falar pelo meu subconsciente? O certo é que é mesmo uma questão de linguagem, também de estética, que me opõe, na maioria das vezes, ao discurso político (o do falante político). Um tédio, uma sensação de vazio ou de cansaço, ou talvez melhor: de cassete. A cassete é comum a todos os discursos políticos. A tal tagarelice. Às vezes é uma completa decepção vermos pessoas inteligentes, que conhecemos, a falarem na sua qualidade de políticos. Não dizem nada que não seja medido, previsível, calculado e saturado de estereótipos (excluo, talvez, Alberto João Jardim, cuja capacidade de nos surpreender, no seu estilo “pimba”, é infindável). No fim, aquela sensação de vazio, de tempo perdido. Não quer dizer que não haja, a esse nível, quem seja capaz de instituir aquilo que Barthes chama um novo "modo de discursividade". Mas são muito raros esses casos e não se encontram propriamente nos protagonistas da política.
Barthes fala de si na terceira pessoa como ser de linguagem (“O seu lugar (o seu meio) é a linguagem…”) E mostra que o que o opõe ao “político” (aqui no sentido de esfera de acção) é precisamente uma questão de linguagem. Diz ele: “De boa vontade seria sujeito, mas não falador político (falador: aquele que despeja o seu discurso, o narra e ao mesmo tempo o notifica, o assinala). E é por não conseguir desprender o real político do seu discurso geral, repetido, que o político lhe está vedado”.
E continua:
“O discurso político não é o único que se repete, se generaliza e se fatiga: logo que se verifica em qualquer lado uma mutação do discurso, logo se lhe segue uma vulgata e o seu cortejo esgotante de frases imóveis. Se este fenómeno comum lhe parece especialmente intolerável no caso do discurso político, é porque a repetição toma aqui o aspecto dum "cúmulo": uma vez que o político se tem por ciência fundamental do real, dotamo-la fantasmaticamente com um derradeiro poder: o de dominar a linguagem, reduzindo toda a tagarelice ao seu resíduo de real. Como então tolerar sem mágoa que o político enfileire também nas linguagens e se torne tagarelice?”
Pois bem. Citei e fico a pensar. Tantas vezes dou comigo a dizer-me interiormente que o discurso político é o mais decepcionante de todos os discursos. Será então o Barthes a falar pelo meu subconsciente? O certo é que é mesmo uma questão de linguagem, também de estética, que me opõe, na maioria das vezes, ao discurso político (o do falante político). Um tédio, uma sensação de vazio ou de cansaço, ou talvez melhor: de cassete. A cassete é comum a todos os discursos políticos. A tal tagarelice. Às vezes é uma completa decepção vermos pessoas inteligentes, que conhecemos, a falarem na sua qualidade de políticos. Não dizem nada que não seja medido, previsível, calculado e saturado de estereótipos (excluo, talvez, Alberto João Jardim, cuja capacidade de nos surpreender, no seu estilo “pimba”, é infindável). No fim, aquela sensação de vazio, de tempo perdido. Não quer dizer que não haja, a esse nível, quem seja capaz de instituir aquilo que Barthes chama um novo "modo de discursividade". Mas são muito raros esses casos e não se encontram propriamente nos protagonistas da política.
23 maio 2007
Tanto zelo, não!
Não sei o que é que terá levado a governadora civil de Lisboa a marcar as eleições intercalares para a Câmara de Lisboa para o próximo dia 1 de Julho: se a vontade de repor com toda a urgência a normalidade no governo autárquico, de que Vital Moreira traçou ontem, nas páginas do “Público”, um retrato demolidor, mas certeiro, se o afã partidário de desenvencilhar o candidato escolhido por Sócrates de concorrentes incómodos (aquilo que alguém designou de “ganhar as eleições na secretaria”), se ambas as coisas. O certo é que o Tribunal Constitucional veio pôr um freio nessa ansiedade, anulando a data designada e propondo outra, que conciliasse a urgência com a necessidade de garantir o direito de participação política a todos os que quisessem concorrer às eleições. Não se esperava outra coisa de um tribunal, que tendo uma componente política, como se tem dito, é capaz de ser independente, e defender os valores do Estado de direito democrático.
Também não sei o que é que terá levado a directora-geral da Direcção Regional do Norte a suspender um professor de inglês por ter, ao que se diz, chalaceado em privado, num gabinete, com a licenciatura do primeiro-ministro. As personalidades públicas e, nomeadamente, os membros do governo sempre foram alvo de crítica, de considerações jocosas, de piadas, de ditos chocarreiros, de anedotas e de fantasias que os metem a ridículo. Isto é: nas sociedades democráticas, onde a liberdade de expressão não é apenas um emblema constitucional. Mesmo no tempo de Salazar, as piadas e as anedotas circulavam, ao menos em privado. É certo que as paredes tinham ouvidos, e toda a gente temia as propriedades auriculares das paredes, das cadeiras onde nos sentávamos, das mesas onde tomávamos café, dos vizinhos que fincavam cotovelos ao nosso lado. Mas já estamos a caminhar para aí? Ou será a tal “democracia claustrofóbica” de que falou Paulo Rangel a tramar as suas sob a forma de zelo funcional? É certo que a pessoa em causa não era uma pessoa qualquer, mas um professor de inglês ao serviço da referida Direcção Regional. Porém, como salienta o jornalista José Vítor Malheiros, num artigo justíssimamente indignado, também publicado no “Público” de ontem, a chalaça do professor foi em privado. E, sendo assim, é caso para perguntar se atitudes destas não favorecem o regresso ao país do respeitinho e do culto do chefe. É certo que o chefe é o primeiro-ministro, mas é só o primeiro-ministro, não o Senhor Professor Doutor Presidente do Conselho, de tão sinistras ressonâncias.
Também não sei o que é que terá levado a directora-geral da Direcção Regional do Norte a suspender um professor de inglês por ter, ao que se diz, chalaceado em privado, num gabinete, com a licenciatura do primeiro-ministro. As personalidades públicas e, nomeadamente, os membros do governo sempre foram alvo de crítica, de considerações jocosas, de piadas, de ditos chocarreiros, de anedotas e de fantasias que os metem a ridículo. Isto é: nas sociedades democráticas, onde a liberdade de expressão não é apenas um emblema constitucional. Mesmo no tempo de Salazar, as piadas e as anedotas circulavam, ao menos em privado. É certo que as paredes tinham ouvidos, e toda a gente temia as propriedades auriculares das paredes, das cadeiras onde nos sentávamos, das mesas onde tomávamos café, dos vizinhos que fincavam cotovelos ao nosso lado. Mas já estamos a caminhar para aí? Ou será a tal “democracia claustrofóbica” de que falou Paulo Rangel a tramar as suas sob a forma de zelo funcional? É certo que a pessoa em causa não era uma pessoa qualquer, mas um professor de inglês ao serviço da referida Direcção Regional. Porém, como salienta o jornalista José Vítor Malheiros, num artigo justíssimamente indignado, também publicado no “Público” de ontem, a chalaça do professor foi em privado. E, sendo assim, é caso para perguntar se atitudes destas não favorecem o regresso ao país do respeitinho e do culto do chefe. É certo que o chefe é o primeiro-ministro, mas é só o primeiro-ministro, não o Senhor Professor Doutor Presidente do Conselho, de tão sinistras ressonâncias.
22 maio 2007
Cidadania participativa
A Governadora Civil de Lisboa tem sido uma revelação.
Primeiro marcou as eleições autárquicas em Lisboa para o dia 1 de Julho, apesar de alertada de que essa decisão poderia ser ilegal. Não se importou, porque essa era a data que inviabilizava a candidatura de Helena Roseta, uma candidatura não partidária, rival da candidatura do seu ex-chefe António Costa.
Chumbada a sua decisão pelo TC (terá faltado o voto do agora MAI?), teve de marcar nova data, mas está de "consciência tranquila", agora como quando marcou o dia 1. Admirável consciência ("Ah, ter a tua alegre inconsciência,/e a consciência disso!", dizia Pessoa da pobre ceifeira).
Por último, compareceu na apresentação pública de uma candidatura, a de António Costa (que surpresa!), mas fê-lo "como cidadã".
Uma cidadã aliás muito participativa em todo o processo.
Primeiro marcou as eleições autárquicas em Lisboa para o dia 1 de Julho, apesar de alertada de que essa decisão poderia ser ilegal. Não se importou, porque essa era a data que inviabilizava a candidatura de Helena Roseta, uma candidatura não partidária, rival da candidatura do seu ex-chefe António Costa.
Chumbada a sua decisão pelo TC (terá faltado o voto do agora MAI?), teve de marcar nova data, mas está de "consciência tranquila", agora como quando marcou o dia 1. Admirável consciência ("Ah, ter a tua alegre inconsciência,/e a consciência disso!", dizia Pessoa da pobre ceifeira).
Por último, compareceu na apresentação pública de uma candidatura, a de António Costa (que surpresa!), mas fê-lo "como cidadã".
Uma cidadã aliás muito participativa em todo o processo.
A DREN, o zelo e uma certa cultura
Em Setembro do ano passado a propósito de uma intervenção musculada de uma responsável da DREN em prol dos valores supremos indicados pelas suas chefias comentei «que ninguém pense que se trata de uma ilegalidade, cuja ameaça devia ser sancionada, quando os dislates são em nome de boas causas não passam de pequenos excessos. Aliás, quando um pequenote ou uma pequenota, revelando uma determinada visão da ordem jurídica, tem «certas saídas», no fundo para agradar aos mais velhos, em que até mostra uma certa vitalidade, não se deve ser demasiado áspero, pode ser má política de... educação (o excesso de zelo nunca deve ser excessivamente sancionado pois a palmadita podia ser mal interpretada).»
Pelos vistos assim terá sido, os sub-chefes da DREN não terão sido desincentivados no seu zelo incondicional, permitindo-se que o organismo continue a ser um espelho evidente (pensarão os mais cultivados dos seus educadores, por vezes demasiado evidente) de uma certa cultura, devidamente identificada na síntese doutrinária da sub-chefe que dirige a DREN: «Os funcionários públicos, que prestam serviços públicos, têm de estar acima de muitas coisas. O sr. primeiro-ministro é o primeiro-ministro de Portugal» ou, trocando por miúdos, o funcionários que prestam serviço têm de estar abaixo de muitas coisas, o chefe é o chefe e eu cá estou para zelar pela manutenção desta ordem, no fundo o serviço que tenho de prestar enquanto sub-chefe. E aqui já foi recordado o importante recado ou prevenção geral: «atenção, que os "os olhos e ouvidos do rei" estão em todo o lado».
21 maio 2007
A meta-televisão
Ontem ou anteontem, já não sei, um jornalista italiano explicou muito bem o que se passou no caso Madeleine (Maddie, para os mais enternecidos): é a meta-televisão a funcionar. Ou seja, a televisão que pega numa notícia não para informar, mas para se alimentar a si própria, numa voragem irresistível.
A meta-televisão comanda a agenda mediática, afeiçoa a realidade, faz do mundo um cenário pintado com as cores, fortes ou suaves, escuras ou luminosas, que a produção programa.
E, por detrás do cenário, o real tende cada vez mais a reflecti-lo.
A meta-televisão comanda a agenda mediática, afeiçoa a realidade, faz do mundo um cenário pintado com as cores, fortes ou suaves, escuras ou luminosas, que a produção programa.
E, por detrás do cenário, o real tende cada vez mais a reflecti-lo.
A brincadeira
A história do professor da Direcção regional de Educação do Norte que foi suspenso por ter dito uma piada sobre a famosa licenciatura de Sócrates fez-me lembrar irresistivelmente "A Brincadeira", o primeiro e o melhor romance da "fase checa" de Milan Kundera.
Se não leram, façam favor de o fazer, porque não vou contar o enredo. Chamo a atenção para o que é estruturalmente comum aos dois casos: um clima de delação e intolerância que não admite uma graçola, uma piada, um comentário jocoso sobre os governantes, sobre o poder.
E atenção, que os "os olhos e ouvidos do rei" estão em todo o lado.
Se não leram, façam favor de o fazer, porque não vou contar o enredo. Chamo a atenção para o que é estruturalmente comum aos dois casos: um clima de delação e intolerância que não admite uma graçola, uma piada, um comentário jocoso sobre os governantes, sobre o poder.
E atenção, que os "os olhos e ouvidos do rei" estão em todo o lado.
Constitucionalmente fazendo de conta
Sendo certo que, como qualquer decisão política, a escolha de Rui Pereira, recém empossado juiz do Tribunal Constitucional (TC), para novo ministro da Administração Interna pode merecer críticas em várias das suas vertentes, divirjo da ideia, aparentemente maioritária, e aqui defendida por Maia Costa de que o aceitar de tal nomeação constitui uma injúria ao TC.
Com efeito, Rui Pereira não foi obviamente convidado para ministro do interior por ser juiz do TC, apresenta um currículo anterior que o habilita para o efeito e se, ao que parece, prefere ser ministro a juiz constitucional «é a vida...».
O sistema português parece compreender de forma articulada o reconhecimento da dimensão política das escolhas para o órgão de cúpula do sistema de fiscalização de constitucionalidade com a pretendida salvaguarda da independência e imparcialidade dos membros do tribunal depois de empossados. Nessa medida o abandono de um juiz do tribunal logo no início do respectivo mandato parece-me muito menos grave para a imagem e prestígio da instituição do que outros eventos que correspondem a uma «tradição» (embora nunca claramente assumida pelos protagonistas) recentemente reafirmada, sobre aspectos relevantes do próprio funcionamento do TC(1).
Estou concretamente a pensar na hipótese de relativamente ao exercício de atribuições dos juízes do tribunal, a cooptação de alguns elementos e as eleições do presidente e do vice-presidente, existirem directivas prévias e externas que em regra são aceites(2). Mesmo que não seja assim e afinal o que é relatado há muitos anos corresponder a uma falsidade associada a uma extraordinária conjugação de coincidências era de exigir, no mínimo, um desmentido inequívoco até à data inaudível. Pode-se provavelmente dizer, com bons argumentos, que a designação do presidente e dos juízes do TC tem demasiado relevo político para poder ser deixada para os respectivos elementos, o problema é que se assim for as regras estatutárias têm de corresponder a essa concepção e o que se apresenta inaceitável é que as normas sejam para «fazer de conta» e o TC participe nesse, ou em qualquer outro, «fazer de conta».
Já quanto aos constrangimentos derivados da aceitação do cargo, decerto que existem boas razões para, tal como acontece com outros cargos com um relevo bem menor, limitar drasticamente as hipóteses de renúncia e fixar um período de nojo para o futuro desempenho de cargos políticos, mas então (especialmente numa república tão dada à regulamentação) tal deve ser expressamente consagrado. Aliás neste e noutros pontos muito haveria a aprender com outras «tradições», tão distintas da nossa, de escrutínio e responsabilidade pública.
(1) A eventual lesão ao TC (ou à justiça constitucional portuguesa) que poderá decorrer de quem venha a ser escolhido para ocupar a vaga aberta já será outra estória, mas aí preferiria não me pronunciar sobre hipóteses ainda por confirmar.
Já quanto aos constrangimentos derivados da aceitação do cargo, decerto que existem boas razões para, tal como acontece com outros cargos com um relevo bem menor, limitar drasticamente as hipóteses de renúncia e fixar um período de nojo para o futuro desempenho de cargos políticos, mas então (especialmente numa república tão dada à regulamentação) tal deve ser expressamente consagrado. Aliás neste e noutros pontos muito haveria a aprender com outras «tradições», tão distintas da nossa, de escrutínio e responsabilidade pública.
(1) A eventual lesão ao TC (ou à justiça constitucional portuguesa) que poderá decorrer de quem venha a ser escolhido para ocupar a vaga aberta já será outra estória, mas aí preferiria não me pronunciar sobre hipóteses ainda por confirmar.
(2) Refira-se que o alegado incumprimento da «tradição» recentemente ocorrido foi acompanhada de informações tranquilizadoras de que haveria uma outra «tradição» que exigiria um período de tempo antes de determinada ascensão e que daqui quatro anos e meio tudo poderiam retomar a «normalidade» (estando reunidas as «condições» para as «tradições» se cumprirem).
Etiquetas: Justiça Constitucional; Nomeações
18 maio 2007
Rachida Dati
Um nome a fixar. Ministra da Justiça do novo governo de França. Uma «self made man». Nascida em França de mãe argelina (que não sabia ler nem escrever, segundo a biografia) e de pai operário, subiu a pulso entre várias actividades profissionais que desempenhou. Diplomada pela «École National de la Magistrature» em 1999, optou a partir de 2002 pela política, como conselheira de Sarkozy.
Um dos primeiros actos oficiais foi deslocar-se a um centro de detenção para jovens nos arredores de Paris para, «por si mesma», se dar conta das actividades dos agentes da administração penitenciária e das condições de detenção dos menores.
A propósito: a taxa de detidos nas prisões em França aumentou 19%, desde 2002.
Um dos primeiros actos oficiais foi deslocar-se a um centro de detenção para jovens nos arredores de Paris para, «por si mesma», se dar conta das actividades dos agentes da administração penitenciária e das condições de detenção dos menores.
A propósito: a taxa de detidos nas prisões em França aumentou 19%, desde 2002.
Vontade de ser ministro
Que um ministro, aliás o nº 2 do Governo, descubra uma súbita, irreprimível e inadiável vocação autárquica é algo bizarro, mas caberá aos lisboetas, os destinatários da oferta de serviços do ex-ministro, avaliar. Em todo o caso, dir-se-á que parece que falta gente ao partido governamental, apesar de aparentemente ter gente com fartura.
Isso pouco importa, porém.
Agora, que um recém-designado juiz do TConstitucional, que mal ainda aquecera a cadeira do seu gabinete (onde deveria permanecer 9 longos anos) salte para ministro, isso é de todo intolerável. É uma autêntica injúria ao TC!
É conhecido o irrequietismo do novo ministro, mas, ao tomar posse do cargo de juiz do TC, celebrou um compromisso que não podia deixar de honrar.
Ser juiz do TC não pode ser um intervalo entre dois cargos de confiança política, ou um posto de espera enquanto não vem melhor. É, antes, um compromisso ético e democrático que não se compadece com juízos conjunturais de conveniência, pessoal e/ou político-partidária.
Este episódio põe na agenda (não põe, eu sei, mas deveria pôr!) o processo de designação dos juízes do TC. Não que eu proponha a modificação da forma de recrutamento, evidentemente. Mas entendo que os candidatos devem ser mais fortemente sindicados, devem ser submetidos a uma audição parlamentar pública, e formular um compromisso de honra de exercício imtegral do cargo.
Para que não haja mais juízes saltitantes. Para que o TC tenha juízes à altura das altas responsabilidades que lhe cabem no sistema político-constitucional.
Há muitos anos, ainda no tempo da outra senhora, Fernando Luso Soares escreveu um livro jocoso, muito ao estilo de "O Conde de Abranhos", intitulado "Vontade de ser ministro". Esses eram os tempos da ditadura, bem sei.
Agora, era preciso um "aggiornamento" democrático. Porque a ânsia de ser ministro continua a ser avassaladora.
Isso pouco importa, porém.
Agora, que um recém-designado juiz do TConstitucional, que mal ainda aquecera a cadeira do seu gabinete (onde deveria permanecer 9 longos anos) salte para ministro, isso é de todo intolerável. É uma autêntica injúria ao TC!
É conhecido o irrequietismo do novo ministro, mas, ao tomar posse do cargo de juiz do TC, celebrou um compromisso que não podia deixar de honrar.
Ser juiz do TC não pode ser um intervalo entre dois cargos de confiança política, ou um posto de espera enquanto não vem melhor. É, antes, um compromisso ético e democrático que não se compadece com juízos conjunturais de conveniência, pessoal e/ou político-partidária.
Este episódio põe na agenda (não põe, eu sei, mas deveria pôr!) o processo de designação dos juízes do TC. Não que eu proponha a modificação da forma de recrutamento, evidentemente. Mas entendo que os candidatos devem ser mais fortemente sindicados, devem ser submetidos a uma audição parlamentar pública, e formular um compromisso de honra de exercício imtegral do cargo.
Para que não haja mais juízes saltitantes. Para que o TC tenha juízes à altura das altas responsabilidades que lhe cabem no sistema político-constitucional.
Há muitos anos, ainda no tempo da outra senhora, Fernando Luso Soares escreveu um livro jocoso, muito ao estilo de "O Conde de Abranhos", intitulado "Vontade de ser ministro". Esses eram os tempos da ditadura, bem sei.
Agora, era preciso um "aggiornamento" democrático. Porque a ânsia de ser ministro continua a ser avassaladora.
Uma lança na Irlanda
É mais difícil do que uma lança em África, quando se trata de IVG. Mas foi o que aconteceu agora.
Não que tenha havido qualquer alteração na férrea legislação anti-aborto. Mas foi permitido, por um tribunal, à adolescente grávida que pretendia abortar que viajasse até Inglaterra para aí pôr termo a uma gravidez marcada pela malformação (melhor, pela inviabilidade!) do feto, situação que a lei irlandesa não contempla.
Parece incrível, mas o Estado irlandês opôs-se a esta viagem, e também inicialmente o hospital onde a adolescente estava internada (e que mais parecia um convento do que um hospital público!). É que não estava em causa qualquer acto a praticar no sagrado território irlandês... mas autorizar alguém a sair para praticar um crime, sim, mas em território alheio e sacrílego.
O juiz, porém, foi prudente, no bom sentido da palavra. Foi razoável, humano, justo.
E salvou-se, apesar de tudo, a honra do convento. O território irlandês continua imune ao pecado da IVG.
Mas uma pequena lança ficou lá espetada.
Não que tenha havido qualquer alteração na férrea legislação anti-aborto. Mas foi permitido, por um tribunal, à adolescente grávida que pretendia abortar que viajasse até Inglaterra para aí pôr termo a uma gravidez marcada pela malformação (melhor, pela inviabilidade!) do feto, situação que a lei irlandesa não contempla.
Parece incrível, mas o Estado irlandês opôs-se a esta viagem, e também inicialmente o hospital onde a adolescente estava internada (e que mais parecia um convento do que um hospital público!). É que não estava em causa qualquer acto a praticar no sagrado território irlandês... mas autorizar alguém a sair para praticar um crime, sim, mas em território alheio e sacrílego.
O juiz, porém, foi prudente, no bom sentido da palavra. Foi razoável, humano, justo.
E salvou-se, apesar de tudo, a honra do convento. O território irlandês continua imune ao pecado da IVG.
Mas uma pequena lança ficou lá espetada.
Para a história da produção legislativa
Uma dúvida muito pertinente aqui. E, já agora, será que alguém tem tempo para confrontar os estatutos do pessoal de carreira das várias inspecções-gerais, nomeadamente da Inspecção-Geral de Educação? Para além de, possivelmente, ter interesse, aferir os currículos dos elementos mais activos no curioso processo legislativo descrito no parecer nº 53/96 do conselho consultivo da PGR.
15 maio 2007
A propósito do tal comentador do caso Madeleine
Ainda bem que se fala da intervenção televisiva de Barra da Costa a propósito do caso Madeleine. Por sinal, assisti à sua “prestação” (palavra que gosto muito de usar entre aspas). Não gostei nada. Fiquei até indignado. Um nítido aproveitamento dos “media” para projecções individuais, com subentendidos (ou mesmo insinuações explícitas) de se estar no segredo dos deuses, jogadas de mestre que puxa um trunfo de última hora ou que tira da cartola um coelho vistoso que nenhum caçador tinha enxergado e, sobretudo, alusões, a meu ver inadmissíveis, a particularidades da vida íntima dos pais da Madeleine, também para mostrar ao grande público o conhecimento de uma singularidade surpreendente.
14 maio 2007
Notas desenquadradas, sobre televisão, comentadores e cientismos nacionais
O José da Grande Loja do Queijo Limiano a propósito de uma intervenção televisiva de um Barra da Costa (a que não assisti mas que ontem me foi relatada em termos muitos semelhantes aos do postal citado), constata com pertinência «O modo como estes indivíduos ganham acesso aos media, para relatar estranhezas desconhecidas do grande público, apresentadas como mistérios de lendas, são uma evidência em como a grande informação, em Portugal tem ainda um longo, longo caminho a percorrer, para atingir a credibilidade geral.»
Receio, contudo que o problema nacional vá bastante mais além e que o «longo, longo caminho a percorrer» não seja só da «grande informação».
Uma das cautelas essenciais na discussão numa sociedade aberta, muito dificultada quando em concreto se apresenta desdiferenciada, é a destrinça de planos, evitando juízos pré-concebidos sobre o trabalho de alguém por força das suas opções ideológicas e, o que vai sendo cada vez mais determinante, do personagem mediático que também encarna. De qualquer modo no caso deste Barra justiça deve ser feita, pois as suas opiniões televisivas não deslustram os respectivos galões científicos que pude, enquanto leigo, constatar em alguns textos fundamentais, alguns dos quais publicados na respeitável Revista Portuguesa de Ciência Criminal (publicação quadrimestral de referência na área do direito penal e, que já vai no ano 16º, fascículo 3).
Um exemplo que pode ser ressaltado é um artigo sob o título modesto, «Coordenadas históricas, formas e problemas actuais da criminologia» em que Barra revela a sua espessura como sociólogo, e não só, aliás é o próprio que esclarece que a ocupação de 31 páginas com um tema tão restrito se justifica na medida em que vai proporcionar aos seus leitores a «tripla perspectiva: do intelectual, do investigador e do cidadão anónimo»! (R.P.C.C., ano 10, fasc. 1º, 2000, p. 112) - e verdade seja dita que se seguem várias pérolas reveladoras do intelectual, do investigador e do cidadão anónimo, que, entretanto, já terá deixado de o ser.
Este Barra representará assim algo mais do que os meros comentadores de tipo futeboleiro (que existem sobre todas as áreas com interesse mediático). Com efeito, se noutros países as publicações de carácter científico são o espelho do escrutínio de subsistemas essenciais ao todo social e, no fundo o quadro da prática intelectual que aí se desenvolve – e os mecanismos existentes, em particular a avaliação «cega» (desconhecendo a identidade do autor do texto) a que os textos têm de se submeter antes da sua publicação devem ser vistos na sua dimensão funcional -, a ausência generalizada de mecanismos de controlo sobre os trabalhos publicados, eventualmente associada às enormes dificuldades para a sua implementação (até por défice de avaliadores), constitui também um indicador nada despiciendo sobre o panorama cultural e científico dos países que deles carecem ou que se dão a tais luxos.
Etiquetas: ciência, comentadores, Criminologia, televisão
13 maio 2007
Austin mini (ano 2006)
É interessante ver (comparando ou não com a nossa realidade...), no Journal Officiel de la Republique Française, de 11/5/2007, a declaração da situação patrimonial de M. Nicolas Sarkozy (feita pelo próprio em 17/3/2007)!
11 maio 2007
Envelope findo ou anatomia de um gato que pariu um rato
Quando foi publicada a resolução que instituiu a «comissão eventual de inquérito parlamentar ao processamento, disponibilização e divulgação de registos de chamadas telefónicas protegidos pela obrigação de confidencialidade» tive oportunidade de referir que «lendo a Resolução da Assembleia da República nº 56/2006 pode constatar-se que a sua previsão é muito abrangente e genérica, visando um “inquérito parlamentar ao processamento, disponibilização e divulgação de registos de chamadas telefónicas protegidos pela obrigação de confidencialidade”. A República deve aguardar serena e atenta a metodologia adoptada e os esclarecedores resultados de tão ampla tarefa».
Hoje, ao ler o relatório final da Comissão e confrontando-o com a resolução instituidora constatei que a «ampla tarefa» indagatória da comissão se terá cingido a umas «disquetes» que, embora referidas, não eram identificadas na resolução, um gato inicialmente escondido?
O objectivo final identificado no título e enunciado no nº 1 da resolução, nem sequer é mencionado no relatório final (decerto por razões de economia já que o texto é de apenas 62 páginas) e quando no nº 2 da resolução se menciona «designadamente» afinal queria significar-se «exclusivamente», e também quanto às alíneas o que aparecia no texto da resolução como um «Processo “fantasma” que ao cair sobre a alínea d) ainda pairou nas duas últimas alíneas (e) e f))» e me levou a questionar se seria «algo de “que toda a gente sabe o nome” “mas ninguém se atreve a nomear”? », domina o relatório final onde, acabou por se assumir que o processo n.º 1718/02.9 JDLSB constitui «o caso objecto desta comissão» (p. 59) - pelo que o nome da comissão terá sido algo exagerado já que, afinal, tratou-se apenas da comissão eventual de inquérito parlamentar ao envelope 9 do anexo V do processo n.º 1718/02.9 JDLSB.
O tratamento do caso, contudo, em nada se pareceu com o de um processo judiciário já que depois do relatório e, para evitar confusões, desenvolveu-se a parte B, com o título « Matéria de facto e de direito» (pp. 28 a 60) aí se inserindo a conclusão.
Aliás, qual seria o motivo para a Assembleia da República se interessar por uma questão incipiente como o «processamento, disponibilização e divulgação de registos de chamadas telefónicas protegidos pela obrigação de confidencialidade», quando tinha a oportunidade de, com a sua superior autoridade, poder concluir que, num processo concreto relativamente à apensação de uma disquete, «se verificou alguma “desatenção” e “esquecimento”, conforme os depoimentos prestados pelo Ex-Procurador-Geral da República, Souto Moura e o Sr. Procurador João Guerra, à semelhança do já anteriormente afirmado no relatório da PGR, na sequência da reportagem do “24 horas”, de 13 de Janeiro de 2006 [*]».
Aliás, qual seria o motivo para a Assembleia da República se interessar por uma questão incipiente como o «processamento, disponibilização e divulgação de registos de chamadas telefónicas protegidos pela obrigação de confidencialidade», quando tinha a oportunidade de, com a sua superior autoridade, poder concluir que, num processo concreto relativamente à apensação de uma disquete, «se verificou alguma “desatenção” e “esquecimento”, conforme os depoimentos prestados pelo Ex-Procurador-Geral da República, Souto Moura e o Sr. Procurador João Guerra, à semelhança do já anteriormente afirmado no relatório da PGR, na sequência da reportagem do “24 horas”, de 13 de Janeiro de 2006 [*]».
A dúvida que mantive centra-se no motivo que levou a comissão a nem sequer referir no relatório final a ««ampla tarefa» para que foi mandatada, cingindo-se ao que aconteceu num processo penal concreto... terá sido fruto de uma «desatenção» da comissão ou o texto da resolução não passava de uma «ficção»?
[*] Parece que, decerto em virtude de uma pequena desatenção, o que se refere como «relatório da PGR» será o despacho final da fase de inquérito de um processo penal concreto.
Etiquetas: fiscalização; inquérito parlamentar, fiscalização; inquérito parlamentar; envelope 9
10 maio 2007
Ainda o caso Madeleine
O repórter actualmente destacado pela RTP em Londres – Esteves Martins – reportou o sentimento das autoridades policiais inglesas a propósito do caso Madeleine. Segundo a informação transmitida, a nossa polícia actuou sem a celeridade devida nestes casos e demonstrando pouca eficiência. Em suma: a nossa polícia “não presta” (termo usado pelo repórter).
É evidente que este sentimento tem de ser encarado com as devidas reservas, eivado como pode estar por uma compreensível sensibilidade especial em relação a um crime tão chocante praticado sobre uma compatriota de quem proclama tal sentimento e por uma possível e acaso subsistente “superioridade” britânica em relação a um país periférico, tradicional e oficialmente seu aliado, sobretudo para as vantagens conseguidas à sombra disso. Todavia, sem prejuízo de me parecer injusta tal apreciação neste caso, serão, porventura, de rever, numa época em que a criminalidade internacional e global aproveita as nossas fragilidades, os esquemas de trabalho da nossa polícia (e não me refiro especificamente à PJ, cujos progressos técnicos e dedicação ao serviço não ponho em causa, mas às várias entidades policiais e sua articulação) e sobretudo os meios materiais postos à sua disposição, que têm sido, como se sabe, objecto de frequente contestação.
Uma outra questão é a do relacionamento da polícia com a comunicação social. Vários polícias britânicos que aqui afluíram puseram em causa a deficiência de informação, contrapondo o que se passa no Reino Unido, em que a Polícia desenvolve estratégias mais abertas de relacionamento com os “media”. Ora, é um facto que a nossa Polícia é demasiado avara nas informações que dá, porque me parece ter uma concepção muito limitada e restritiva do que pode ser transmitido à comunicação social. Sendo o segredo de justiça muito apertado entre nós, gerou-se, para além disso, uma mentalidade muito tacanha e timorata a tal respeito, que se traduz numa inibição praticamente total de informação e esclarecimento. Não sei se foi esta a situação no caso presente – porque havia aqui interesses da vítima a acautelar de forma muito intensa, para além de possíveis estratégias da PJ para controlar a informação em proveito da investigação – mas é isto que se verifica de modo geral.
É evidente que este sentimento tem de ser encarado com as devidas reservas, eivado como pode estar por uma compreensível sensibilidade especial em relação a um crime tão chocante praticado sobre uma compatriota de quem proclama tal sentimento e por uma possível e acaso subsistente “superioridade” britânica em relação a um país periférico, tradicional e oficialmente seu aliado, sobretudo para as vantagens conseguidas à sombra disso. Todavia, sem prejuízo de me parecer injusta tal apreciação neste caso, serão, porventura, de rever, numa época em que a criminalidade internacional e global aproveita as nossas fragilidades, os esquemas de trabalho da nossa polícia (e não me refiro especificamente à PJ, cujos progressos técnicos e dedicação ao serviço não ponho em causa, mas às várias entidades policiais e sua articulação) e sobretudo os meios materiais postos à sua disposição, que têm sido, como se sabe, objecto de frequente contestação.
Uma outra questão é a do relacionamento da polícia com a comunicação social. Vários polícias britânicos que aqui afluíram puseram em causa a deficiência de informação, contrapondo o que se passa no Reino Unido, em que a Polícia desenvolve estratégias mais abertas de relacionamento com os “media”. Ora, é um facto que a nossa Polícia é demasiado avara nas informações que dá, porque me parece ter uma concepção muito limitada e restritiva do que pode ser transmitido à comunicação social. Sendo o segredo de justiça muito apertado entre nós, gerou-se, para além disso, uma mentalidade muito tacanha e timorata a tal respeito, que se traduz numa inibição praticamente total de informação e esclarecimento. Não sei se foi esta a situação no caso presente – porque havia aqui interesses da vítima a acautelar de forma muito intensa, para além de possíveis estratégias da PJ para controlar a informação em proveito da investigação – mas é isto que se verifica de modo geral.
09 maio 2007
Caçadores de crimes
Afinal, também ouvi no telejornal de ontem (o que significa que, contrariamente ao costume, os telejornais andam a martelar a mesma ideia há vários dias) que havia quem opinasse que o caso da criança desaparecida no Algarve podia configurar um crime de abandono. E lá veio um jurista com o dedo ameaçador apontado ao art. 138.º do Código Penal, segundo o qual:
Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa: a)expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se, ou b) abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir, é punido com a pena de 1 a 5 anos, agravada para 2 a 5 anos, se o agente for ascendente da vítima, e para 2 a 8 anos, se tiver resultado ofensa física grave, e ainda para 3 a 10 anos, se tiver resultado a morte.
Depois, esse jurista desmultiplicou-se em laboriosas explicações sobre o dolo. O problema era saber se tinha ou não existido dolo, ao menos sob a forma eventual, o qual exige a representação como possível do resultado, conformando-se o agente com essa possibilidade, ou, segundo o mesmo jurista, tendo a obrigação de prever esse resultado.
Para além de alguma confusão conceitual nesta explicação, a questão é simplesmente terrífica. Há juristas que estão sempre à cata de um crime para qualquer situação. O direito penal, para eles, não passaria de uma teia medonha onde o mais pacífico cidadão poderia inadevertidamente, no dia-a-dia, ser apanhado no seu caprichoso emaranhado. Imagine-se estes pobres pais a terem de responder por um crime de abandono da infeliz Madeleine, porque a não vigiaram ininterruptamente durante as 24 horas do dia. Por um crime? Por três crimes, visto que foram três as crianças que eles abandonaram à sua sorte, sem defesa, expondo-as ao perigo de vida, embora só uma delas tivesse sido raptada.
É verdade que, se calhar, os pais da Madeleine agiram com alguma imprevidência. Mas crime de abandono? Oh caçadores de crimes! Um pouco mais de contenção, sobretudo diante das câmaras.
Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa: a)expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se, ou b) abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir, é punido com a pena de 1 a 5 anos, agravada para 2 a 5 anos, se o agente for ascendente da vítima, e para 2 a 8 anos, se tiver resultado ofensa física grave, e ainda para 3 a 10 anos, se tiver resultado a morte.
Depois, esse jurista desmultiplicou-se em laboriosas explicações sobre o dolo. O problema era saber se tinha ou não existido dolo, ao menos sob a forma eventual, o qual exige a representação como possível do resultado, conformando-se o agente com essa possibilidade, ou, segundo o mesmo jurista, tendo a obrigação de prever esse resultado.
Para além de alguma confusão conceitual nesta explicação, a questão é simplesmente terrífica. Há juristas que estão sempre à cata de um crime para qualquer situação. O direito penal, para eles, não passaria de uma teia medonha onde o mais pacífico cidadão poderia inadevertidamente, no dia-a-dia, ser apanhado no seu caprichoso emaranhado. Imagine-se estes pobres pais a terem de responder por um crime de abandono da infeliz Madeleine, porque a não vigiaram ininterruptamente durante as 24 horas do dia. Por um crime? Por três crimes, visto que foram três as crianças que eles abandonaram à sua sorte, sem defesa, expondo-as ao perigo de vida, embora só uma delas tivesse sido raptada.
É verdade que, se calhar, os pais da Madeleine agiram com alguma imprevidência. Mas crime de abandono? Oh caçadores de crimes! Um pouco mais de contenção, sobretudo diante das câmaras.
Aeroportos, decisões e ordens
Atendendo ao importante sublinhado de Vital Moreira no sentido de que, «um aeroporto é uma obra demasiado importante para ser decidida por engenheiros...» , poderá perguntar-se se o ministro dos aeroportos, que publicamente enfatiza a sua legitimidade decisória com base no facto de ser engenheiro inscrito na Ordem dos ditos, vê a sua posição em risco?
De certo que a lição admite a resposta negativa, podendo sem perigo de desordem argumentativa reconhecer-se que o ministro, apesar de ser engenheiro, pode continuar a proferir decisões sobre o futuro aeroporto enquanto continuar sob as ordens do sr. primeiro-ministro – embora, em face da lição ínsita ao postal citado, talvez seja mais saudável deixar de invocar que é engenheiro, ainda por cima inscrito na Ordem.
07 maio 2007
Aprendendo com os telejornais
Há já uns tempos que não assistia mais do que alguns minutos aos telejornais. Hoje beneficiei do privilégio do espectador atento e depois de ficar a saber que Cuba é «o único Estado laico» da América latina, um especialista esclareceu que a «negligência grosseira é crime» e, consequentemente, os pais da criança desaparecida no Algarve podem ser responsabilizados (embora muito antropológico lá admitisse que era necessário ponderar diferença culturais e a maior protecção dos infantes na cultura nacional por comparação com a maior parte dos países europeus), para passados alguns minutos um mais aperaltado e muito jurista informar que os mesmos poderiam ser acusados pelo «crime público de abandono», especificando, com a segurança dos sabedores, que mesmo que tivessem tido algumas cautelas a verdade é que tinham «colocado em perigo» a filha. A escolha do mais admirável nestes sapientes é definitivamente difícil: a ciência ou o pudor.
A superioridade moral dos combatentes americanos
Uma sondagem realizada pelo exército americano apurou que mais de 1/3 dos respectivos soldados no Iraque acreditam que a tortura deve ser permitida, percentagem que sobe se for para obter informações para salvar a vida de um companheiro.
Menos de metade achavam que os não combatentes (iraquianos, obviamente) devem ser tratados com dignidade e respeito.
Questionados sobre se já tinham maltratado civis, 10% responderam que sim.
A tarefa de construção da democracia no Iraque está em boas mãos.
Menos de metade achavam que os não combatentes (iraquianos, obviamente) devem ser tratados com dignidade e respeito.
Questionados sobre se já tinham maltratado civis, 10% responderam que sim.
A tarefa de construção da democracia no Iraque está em boas mãos.
Dramas irlandeses
Noticiaram os jornais que uma jovem irlandesa de 17 anos, estando grávida, ao saber que o feto sofre de acefalia (o que o torna inviável), quis abortar, aliás com a concordância da mãe.
Mas, ai!, a lei irlandesa é das antigas e só permite a IVG em caso de risco para a vida da mãe!
Quis então a rapariga, sempre com o apoio da mãe, ir abortar a Inglaterra (o chamado "turismo abortivo" que, para os guardiães da moral oficial, salva ao menos a honra do convento).
Mas também não a deixaram, pois está sob os cuidados (eufemismo feroz!) do serviço nacional de saúde.
Recorreu então ao tribunal. Aguardemos a decisão. Esperemos que, ao menos, seja célere.
Mas, ai!, a lei irlandesa é das antigas e só permite a IVG em caso de risco para a vida da mãe!
Quis então a rapariga, sempre com o apoio da mãe, ir abortar a Inglaterra (o chamado "turismo abortivo" que, para os guardiães da moral oficial, salva ao menos a honra do convento).
Mas também não a deixaram, pois está sob os cuidados (eufemismo feroz!) do serviço nacional de saúde.
Recorreu então ao tribunal. Aguardemos a decisão. Esperemos que, ao menos, seja célere.
06 maio 2007
Francisco Tomás y Valiente
Só no fim do mês de Abril último o facínora que assassinou, há 11 anos, um dos mais prestigiados juristas espanhóis foi sujeito a julgamento. Arrogante e prepotente, o etarra Bienzobas enfrentou o tribunal e os familiares de Francisco Tomás y Valiente sempre com um sorriso nos lábios.
Na altura em que foi friamente abatido, no seu gabinete da Faculdade de Direito da Universidade Autónoma de Madrid, Francisco Tomás y Valiente era Catedrático daquela instituição e Presidente do Tribunal Constitucional Espanhol. Deixou vasta obra de que destaco – apenas por gosto pessoal pela temática penal – El Derecho Penal de la Monarquia Absoluta (siglos XVI, XVII y XVIII), Tecnos, 1969, e La Tortura Judicial en España, Ariel, 1973. Um episódio relativo à publicação desta última obra - ela mesma entendida uma certa provocação ao regime - atesta bem a coragem do autor nos tempos que corriam. Segundo Introdução à edição que possuo (Editorial Crítica, Barcelona, 2000), o título referido foi escolhido pelo autor logo para a primeira edição, mas a censura não deixou que assim fosse. Condição para a publicação foi que fosse suprimida a palavra “judicial” e que se acrescentasse, como subtítulo, “Estudios históricos”. E assim foi, sem que Tomás y Valiente se sentisse especialmente preocupado: “Durante las últimas (nadie asegurava, sin embargo, que lo fueran) décadas del franquismo era frequente la estratégia de hablar sobre determinados temas no en presente de indicativo, lo cual era imposible, sino com relación a tiempos pasados. El escritor confiaba en que el lector sabría entenderlo, porque uno y outro eran cómplices que intercambiabam guiños y decifraban claves, por lo demás, muy poco cabalísticas”.
02 maio 2007
O 1.º de Maio
Ontem foi o 1.º de Maio, dia dos trabalhadores. Mas que trabalhadores?, interrogo-me. Dizem que as classes sociais sofreram uma grande recomposição, que já não há trabalhadores propriamente ditos, ao menos no sentido de uma classe social que luta pelos seus direitos contra uma ordem social estruturada na exploração da força de trabalho. E assim como não há trabalhadores explorados, também não existe uma classe social exploradora. O que há é empregadores e empregados, sendo que os ditos trabalhadores deixaram de sonhar (ou de lutar) pela sua emancipação, emburguesados como estão nas suas aspirações e estilos de vida.
Aliás, os direitos adquiridos estão em franco retrocesso. Os direitos adquiridos significam a estabilidade, a segurança, a rigidez, o conformismo – tudo valores bolorentos de épocas recuadas que se opõem ao progresso. E não há direitos a conquistar duradouramente, numa sociedade que tem de ser estruturada no risco, na insegurança, na instabilidade permanente, na mobilidade total, desde que esse risco, essa insegurança, essa instabilidade e essa mobilidade não ponham em causa, evidentemente, os necessários pressupostos da ordem e da paz social, numa comunidade de homens livres.
Hoje, todos estão no mesmo barco, trabalhadores de uma forma ou de outra, seja como empregados, seja como empregadores. Todos têm o seu papel, numa sociedade globalizada, de voraz competição internacional, dominada pelo risco e pela mudança. Claro que há os desempregados, os imigrantes, os excluídos, mas até esses servem, afinal, para mostrar, por contraponto, o luxo da invocação de direitos. Ao pé desses, os que gozam de alguns direitos e benefícios são uns felizardos ou uns privilegiados. Portanto, agora, não se trata de conquistar, nem sequer de conservar direitos, mas de abdicar deles. Por isso, o 1.º de Maio não faz sentido.
Há anos atrás e, entre nós, nos primeiros anos a seguir ao “25 de Abril”, havia a tendência para incluir no grupo dos trabalhadores vastas camadas sociais, que iam desde os genuínos operários (o proletariado urbano e rural) aos camponeses e aos trabalhadores mais variados da função pública, desde o mais modesto oficial ao professor universitário. Eram todos trabalhadores que tinham o direito de reivindicar melhores condições de vida contra a classe que tinha o domínio económico e de cuja dominação emanava o poder político, que também oprimia, mesmo em sociedades democráticas. Até os magistrados tinham pacificamente o seu direito à organização sindical, com o correlativo direito à greve, defendido por teóricos progressistas, que hoje pregam o contrário.
Agora, passou-se para o pólo oposto. Não só os sindicatos operários perderam toda a legitimidade, pela razão de que não há verdadeiramente operários no sentido clássico do termo (os velhos operários explorados por uma classe capitalista), como também as outras camadas de trabalhadores, nomeadamente os funcionários públicos, são classes ou grupos privilegiados e não verdadeiros trabalhadores, cujas reivindicações e greves se tornaram odiosas, sendo os seus sindicatos meras organizações de defesa de privilégios e, por isso, corporações a abater.
Onde estão, pois, nesta perspectiva do moderno progressismo, os trabalhadores do 1.º de Maio? O próprio primeiro de Maio justificar-se-á como dia feriado?
Aliás, os direitos adquiridos estão em franco retrocesso. Os direitos adquiridos significam a estabilidade, a segurança, a rigidez, o conformismo – tudo valores bolorentos de épocas recuadas que se opõem ao progresso. E não há direitos a conquistar duradouramente, numa sociedade que tem de ser estruturada no risco, na insegurança, na instabilidade permanente, na mobilidade total, desde que esse risco, essa insegurança, essa instabilidade e essa mobilidade não ponham em causa, evidentemente, os necessários pressupostos da ordem e da paz social, numa comunidade de homens livres.
Hoje, todos estão no mesmo barco, trabalhadores de uma forma ou de outra, seja como empregados, seja como empregadores. Todos têm o seu papel, numa sociedade globalizada, de voraz competição internacional, dominada pelo risco e pela mudança. Claro que há os desempregados, os imigrantes, os excluídos, mas até esses servem, afinal, para mostrar, por contraponto, o luxo da invocação de direitos. Ao pé desses, os que gozam de alguns direitos e benefícios são uns felizardos ou uns privilegiados. Portanto, agora, não se trata de conquistar, nem sequer de conservar direitos, mas de abdicar deles. Por isso, o 1.º de Maio não faz sentido.
Há anos atrás e, entre nós, nos primeiros anos a seguir ao “25 de Abril”, havia a tendência para incluir no grupo dos trabalhadores vastas camadas sociais, que iam desde os genuínos operários (o proletariado urbano e rural) aos camponeses e aos trabalhadores mais variados da função pública, desde o mais modesto oficial ao professor universitário. Eram todos trabalhadores que tinham o direito de reivindicar melhores condições de vida contra a classe que tinha o domínio económico e de cuja dominação emanava o poder político, que também oprimia, mesmo em sociedades democráticas. Até os magistrados tinham pacificamente o seu direito à organização sindical, com o correlativo direito à greve, defendido por teóricos progressistas, que hoje pregam o contrário.
Agora, passou-se para o pólo oposto. Não só os sindicatos operários perderam toda a legitimidade, pela razão de que não há verdadeiramente operários no sentido clássico do termo (os velhos operários explorados por uma classe capitalista), como também as outras camadas de trabalhadores, nomeadamente os funcionários públicos, são classes ou grupos privilegiados e não verdadeiros trabalhadores, cujas reivindicações e greves se tornaram odiosas, sendo os seus sindicatos meras organizações de defesa de privilégios e, por isso, corporações a abater.
Onde estão, pois, nesta perspectiva do moderno progressismo, os trabalhadores do 1.º de Maio? O próprio primeiro de Maio justificar-se-á como dia feriado?
Queixa de especial valor
A abundantíssima informação divulgada na imprensa sobre as "perplexidades" que o título académico adquirido pelo PM na Universidade Independente suscitava, com vasta cópia de pormenores, qual deles mais picante, não impressionou o PGR, que publicamente e por mais de uma vez recusou a abertura de um inquérito ao assunto.
Eis, porém, que subitamente, depois de receber algumas queixas anónimas e outra assinada, esta subscrita pelo advogado José Maria Martins, mudou de ideias e resolver determinar uma investigação ao caso.
Sabendo-se que as queixas anónimas são de reduzida credibilidade, então só pode ter sido a queixa daquele conhecido advogado a fazer mudar de opinião o PGR. Informações de peso terá transmitido. E desconhecidas inteiramente da comunicação social, o que é realmente notável.
Eis, porém, que subitamente, depois de receber algumas queixas anónimas e outra assinada, esta subscrita pelo advogado José Maria Martins, mudou de ideias e resolver determinar uma investigação ao caso.
Sabendo-se que as queixas anónimas são de reduzida credibilidade, então só pode ter sido a queixa daquele conhecido advogado a fazer mudar de opinião o PGR. Informações de peso terá transmitido. E desconhecidas inteiramente da comunicação social, o que é realmente notável.
A verdade parlamentar
Sabemos como a verdade parlamentar é uma certa forma de ficção, geralmente de má qualidade. Tão má que todos os partidosa políticos concordaram em que era necessária uma nova lei para os inquéritos parlamentares, entretanto aprovada.
O debate final sobre o envelope mais famoso de Portugal (o "Envelope 9") confirmou toda a pior prática de muitos anos. O partido governamental tinha uma verdade. A oposição outra. A especificidade da situação, esta vez, é que um partido da oposição alinhou acirradamente com o partido do Governo do princípio ao fim. Coincidências, certamente.
Para o futuro vai reger uma nova lei de inquéritos parlamentares. A lei é melhor. Veremos como será a prática.
O debate final sobre o envelope mais famoso de Portugal (o "Envelope 9") confirmou toda a pior prática de muitos anos. O partido governamental tinha uma verdade. A oposição outra. A especificidade da situação, esta vez, é que um partido da oposição alinhou acirradamente com o partido do Governo do princípio ao fim. Coincidências, certamente.
Para o futuro vai reger uma nova lei de inquéritos parlamentares. A lei é melhor. Veremos como será a prática.
Primeyra tisoura para cortar unhas, chama-se Vigia
“Baldado seria o trabalho, que tomey em descobrir tantos males da nossa Republica, se os deixasse sem remédio; e o melhor, que ha para achaques de unhas, não ha duvida que he huma boa tisoura, que as corte: e porque saõ muitas, as que aqui se nos offerecem, offereço três tisouras, que me parece bastaráõ para as cortar todas. Digo pois que a primeira tisoura se chama Vigia; porque he grande remédio para escapar de ladroens, vigiallos bem. Ladraõ vigiado he conhecido; e em se vendo descuberto, encolhe as unhas. Esta vigia corre por conta dos Reys, que devem mandar ás suas Justiças, que naõ durmaõ: muito dormem as Justiças de Lisboa, e á sua imitaçaõ as de todo o Reyno. Já não ha huma vara, que ronde de noite, nem quem cace hum milhafre; e porisso as unhas andaõ taõ soltas.” (...) "Estes saõ os olhos, com que V. Magestade vencerá aos Argos, e venecerá aos linces. Onde ha muitos, sempre ha furtos; porque os ladroens saõ em toda a parte mais que muitos: e como as couzas por muitas lhes vem á maõ, as unhas naõ lhes perdoaõ; mas onde ha bons olheiros, naõ se furta tanto. Seja esta a primeira tisoura, que aguentará muitos furtos, ainda que naõ diminua muito os ladroens, porque os que o saõ por natureza: Naturam expellunt forcae."
Arte de Furtar (1652)
Arte de Furtar (1652)
01 maio 2007
1º de Maio
Dou a palavra a Jorge de Sena:
UMA SEPULTURA EM LONDRES
No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis,
dos civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. — Eu quero ver publicadas
as suas obras completas — diz-lhe o discípulo.
-Também eu — responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura — Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e rescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite — creiam — a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu — ó Spártacus —
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?
1962
UMA SEPULTURA EM LONDRES
No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis,
dos civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. — Eu quero ver publicadas
as suas obras completas — diz-lhe o discípulo.
-Também eu — responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura — Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e rescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite — creiam — a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu — ó Spártacus —
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?
1962
Príncipe Harry: ir ou não ir, eis a questão
Parece que já não vai para o Iraque defender as cores da sua equipa.
É uma importante baixa na estratégia global. Ele até pondera bater com a porta e deixar o Exército.
Mas poderá o Exército britânico sobreviver sem ele?
É uma importante baixa na estratégia global. Ele até pondera bater com a porta e deixar o Exército.
Mas poderá o Exército britânico sobreviver sem ele?
1º de Maio de 2003
O mínimo que se pode dizer do "discurso de vitória" de Bush há quatro anos é que foi um pouco prematuro.