27 fevereiro 2006
A propósito do termo do mandato presidencial, uma nota sobre processo criminal e intervenção política
A propósito do fim do exercício do presidente Jorge Sampaio, Guilherme da Fonseca analisou criticamente a actuação presidencial, nomeadamente, por força dos «episódios do chamado “Envelope 9”» e do «silêncio [...] acerca do “assalto” à redacção de um jornal diário».
Sem desenvolver o tema parece-me que a existência de um elemento comum aos dois eventos, e consequente conexão, não deve iludir uma autonomia jurídico-política entre os mesmos. Pelo que o quadro para uma intervenção presidencial altera-se radicalmente por força disso mesmo.
Se o pedido de esclarecimentos do Presidente da República, tal como a audição na Assembleia da República, decorre da dimensão política do cargo de Procurador-Geral da República (entenda-se ou não que a interrupção do mandato deste corresponde a um «impeachment», a uma ordinária decisão política ou a uma categoria intermédia), já a abertura e desenvolvimento de um concreto processo crime é (deve ser) marcado pelos estritos fins do processo penal. E aí é fundamental preservar a autonomia do sistema judiciário incompatível com ordens, instruções ou solicitações do poder político, competindo o controlo jurídico-constitucional em última instância ao Tribunal Constitucional.
Já a percepção, claramente maioritária na opinião publicada, de que as buscas ao jornal 24 horas e à residência de um jornalista mais não são do que «rusgas» ou «assaltos» violadores do segredo de jornalista e da liberdade de informação suscita outros problemas. O que se me apresenta como perturbador não é sequer a generalização de tais juízos críticos sobre um processo concreto ou determinados actores judiciários conhecidos do público e que estão nas más graças de quem opina, mas o pressuposto de base de que os magistrados intervenientes (que a maioria dos comentadores, tal como este «blogger», desconhece quem sejam) actuam de forma ilegal, violadora da Constituição, movidos por estrito desejo de vingança ou intimidação. O que tem subjacente um juízo global sobre a organização judiciária e seus agentes.
E aqui parece-me que é difícil deixar de pensar que este clima pode ter um considerável potencial intimidatório não dos visados pelas intervenções judiciárias mas das autoridades judiciárias (com paralelismo com o que se passará noutras paragens, mas com a agravante de se operar num Estado de instituições particularmente desprestigiadas). Ou, noutro tom, se felizmente as magistraturas não beneficiam de uma autoritária presunção de infalibilidade (embora continue a parecer-me que é importante definir também em abstracto e não à luz das estritas conveniências imediatas os limites das «verdades processuais»), a generalização de um princípio de desconfiança é muito problemático para o Estado de direito. E se é esse o ponto a que se chegou (ou a onde se quer chegar) é importante começar a pensar numa alternativa (a este modelo e/ou a estes agentes) em termos de sistema constitucional, pois um vazio judiciário de certo que não é desejável para uma réstea de interesse público.
Sem desenvolver o tema parece-me que a existência de um elemento comum aos dois eventos, e consequente conexão, não deve iludir uma autonomia jurídico-política entre os mesmos. Pelo que o quadro para uma intervenção presidencial altera-se radicalmente por força disso mesmo.
Se o pedido de esclarecimentos do Presidente da República, tal como a audição na Assembleia da República, decorre da dimensão política do cargo de Procurador-Geral da República (entenda-se ou não que a interrupção do mandato deste corresponde a um «impeachment», a uma ordinária decisão política ou a uma categoria intermédia), já a abertura e desenvolvimento de um concreto processo crime é (deve ser) marcado pelos estritos fins do processo penal. E aí é fundamental preservar a autonomia do sistema judiciário incompatível com ordens, instruções ou solicitações do poder político, competindo o controlo jurídico-constitucional em última instância ao Tribunal Constitucional.
Já a percepção, claramente maioritária na opinião publicada, de que as buscas ao jornal 24 horas e à residência de um jornalista mais não são do que «rusgas» ou «assaltos» violadores do segredo de jornalista e da liberdade de informação suscita outros problemas. O que se me apresenta como perturbador não é sequer a generalização de tais juízos críticos sobre um processo concreto ou determinados actores judiciários conhecidos do público e que estão nas más graças de quem opina, mas o pressuposto de base de que os magistrados intervenientes (que a maioria dos comentadores, tal como este «blogger», desconhece quem sejam) actuam de forma ilegal, violadora da Constituição, movidos por estrito desejo de vingança ou intimidação. O que tem subjacente um juízo global sobre a organização judiciária e seus agentes.
E aqui parece-me que é difícil deixar de pensar que este clima pode ter um considerável potencial intimidatório não dos visados pelas intervenções judiciárias mas das autoridades judiciárias (com paralelismo com o que se passará noutras paragens, mas com a agravante de se operar num Estado de instituições particularmente desprestigiadas). Ou, noutro tom, se felizmente as magistraturas não beneficiam de uma autoritária presunção de infalibilidade (embora continue a parecer-me que é importante definir também em abstracto e não à luz das estritas conveniências imediatas os limites das «verdades processuais»), a generalização de um princípio de desconfiança é muito problemático para o Estado de direito. E se é esse o ponto a que se chegou (ou a onde se quer chegar) é importante começar a pensar numa alternativa (a este modelo e/ou a estes agentes) em termos de sistema constitucional, pois um vazio judiciário de certo que não é desejável para uma réstea de interesse público.
O mandato presidencial de Jorge Sampaio terá sido marcado por uma tentativa de acção (independentemente da avaliação que se faça sobre o mérito da mesma) ainda no quadro procedimental da Constituição, o que obviamente colide com perspectivas mais substancialistas (sejam de esquerda ou de direita), que não se acomodam a tais limitações formais e que não lhe perdoam tal «estrangeirismo» tão pouco adaptado às «nossas tradições».
A cruzada contra «bloggers» anónimos
Na blogosfera nacional parece estar em curso uma campanha contra anónimos e pseudónimos liderada pelo cruzado «Antes Morto Que Verde». Dado o previsível sucesso da operação em terras de Portugal contra os infiéis aos seus mandamentos seria importante que o líder de tal feito (bem como os seus corajosos seguidores) passe também a dedicar alguma atenção ao exterior (as cruzadas devem ser universalistas) e dê um mergulho, chapão ou espadeirada no «padrinho» dos «bloggers» anónimos em terras do Tio Sam (até porque tal padrinho tem uma aliança, de certo ímpia, com uma jurista «blogger» anónima, protagonista de uma estória exemplar à luz dos cânones dos nossos puros, já que tal litigante entretanto deixou o seu emprego na grande maçã podre).
Paula Rego
O lobo mau e o capuchinho vermelho
Era uma vez… 4500 (ou serão 1500 ?!) escolas que vão acabar!
E pronto: já está.
Acaba aqui este conto se for verdade o que dizem por aí.
Claro que, escolas abertas com poucos alunos não fazem sentido, nem são economicamente viáveis, nem úteis para o país. É até uma questão de bom senso.
Mas, fechar sem garantir alternativas adequadas (escolas bem equipadas, com ensino de qualidade, com transporte escolar sem pneus carecas, etc.), também não pode ser…quando também é preciso combater o abandono escolar precoce!
Quem as paga, claro, já se sabe que são os estudantes do Portugal profundo… onde poucos km demoram séculos a percorrer e onde tudo é ainda difícil e complicado!
Essa mania das grandezas dos portugueses (que não passa mesmo de uma mania) “explica” tanto o bom como o mau. Por isso, quando se fala em fechar escolas, abre-se a boca até pelo menos 1.500! (versão do Diário de Notícias de 24/2/2006, sexta feira passada). Se for verdade até custa a acreditar. Algo vai mal no país das estratégias…
Que dizer de tudo isto? Apesar de grandes e boas ideias a verdade é que os nossos horizontes sempre foram limitados e circunscritos. Resta citar artigos, que guardam sonhos…
Segundo o artigo 29 nº 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, o acesso à educação, direito fundamental da criança, deve ser garantido pelos Estados Partes, visando: «a)- promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas na medida das suas potencialidades; b)- inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c)- inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua; d)- preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com as pessoas de origem indígena; e)- promover o respeito da criança pelo meio ambiente».
Em Portugal, o direito à educação é reconhecido constitucionalmente, incumbindo ao Estado (artigo 73 nº 2 CRP) promover «(...) a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva».
A política de juventude deverá ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade (art. 70 nº 2 CRP).
Ou seja, desde há uns anos que o Estado Português se comprometeu a adoptar políticas sociais que protejam os menores, designadamente, através do reconhecimento do direito à educação, sempre com a preocupação da protecção do desenvolvimento da personalidade do jovem.
Porém, no Parecer do Comité das Regiões sobre a «Proposta de decisão do PE e do Conselho que estabelece um programa de acção integrado no domínio da aprendizagem ao longo da vida», adoptado na 58ª reunião plenária de 23 e 24/2/2005, alerta-se que «de acordo com os valores do Eurotast (2001), uma média de 19,6% dos jovens da UE entre os 18 e os 24 anos não estão envolvidos em educação ou formação contínua, e 20% a 30% dos finalistas do ensino secundário não prosseguem a sua educação ou formação, seja profissional seja geral».
E, como é salientado em "Educação e formação para 2010", Relatório intercalar conjunto do Conselho e da Comissão sobre a realização do programa de trabalho pormenorizado relativo ao seguimento dos objectivos dos sistemas de ensino e formação na Europa: «em alguns países, a percentagem de abandono escolar precoce tem vindo a baixar regularmente desde o princípio dos anos 90. É o caso, por exemplo, da Grécia, da França e do Luxemburgo. Na Dinamarca e em Portugal, no entanto, a tendência de redução observada no início dos anos 90 inverteu-se a partir de meados desta mesma década, pelo que a taxa de abandono escolar está próxima da do início dos anos 90».
Qual é a moral a retirar? O melhor é mesmo (baralhando contos…) “cruzar” o lobo mau com a branca de neve… a ver se aparecem os 7 anões … ou então, perante a “autoridade do Estado-pai” (também a despropósito), recordar a “Branca de Neve a engolir a maça envenenada”…
E pronto: já está.
Acaba aqui este conto se for verdade o que dizem por aí.
Claro que, escolas abertas com poucos alunos não fazem sentido, nem são economicamente viáveis, nem úteis para o país. É até uma questão de bom senso.
Mas, fechar sem garantir alternativas adequadas (escolas bem equipadas, com ensino de qualidade, com transporte escolar sem pneus carecas, etc.), também não pode ser…quando também é preciso combater o abandono escolar precoce!
Quem as paga, claro, já se sabe que são os estudantes do Portugal profundo… onde poucos km demoram séculos a percorrer e onde tudo é ainda difícil e complicado!
Essa mania das grandezas dos portugueses (que não passa mesmo de uma mania) “explica” tanto o bom como o mau. Por isso, quando se fala em fechar escolas, abre-se a boca até pelo menos 1.500! (versão do Diário de Notícias de 24/2/2006, sexta feira passada). Se for verdade até custa a acreditar. Algo vai mal no país das estratégias…
Que dizer de tudo isto? Apesar de grandes e boas ideias a verdade é que os nossos horizontes sempre foram limitados e circunscritos. Resta citar artigos, que guardam sonhos…
Segundo o artigo 29 nº 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, o acesso à educação, direito fundamental da criança, deve ser garantido pelos Estados Partes, visando: «a)- promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas na medida das suas potencialidades; b)- inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c)- inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua; d)- preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com as pessoas de origem indígena; e)- promover o respeito da criança pelo meio ambiente».
Em Portugal, o direito à educação é reconhecido constitucionalmente, incumbindo ao Estado (artigo 73 nº 2 CRP) promover «(...) a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva».
A política de juventude deverá ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade (art. 70 nº 2 CRP).
Ou seja, desde há uns anos que o Estado Português se comprometeu a adoptar políticas sociais que protejam os menores, designadamente, através do reconhecimento do direito à educação, sempre com a preocupação da protecção do desenvolvimento da personalidade do jovem.
Porém, no Parecer do Comité das Regiões sobre a «Proposta de decisão do PE e do Conselho que estabelece um programa de acção integrado no domínio da aprendizagem ao longo da vida», adoptado na 58ª reunião plenária de 23 e 24/2/2005, alerta-se que «de acordo com os valores do Eurotast (2001), uma média de 19,6% dos jovens da UE entre os 18 e os 24 anos não estão envolvidos em educação ou formação contínua, e 20% a 30% dos finalistas do ensino secundário não prosseguem a sua educação ou formação, seja profissional seja geral».
E, como é salientado em "Educação e formação para 2010", Relatório intercalar conjunto do Conselho e da Comissão sobre a realização do programa de trabalho pormenorizado relativo ao seguimento dos objectivos dos sistemas de ensino e formação na Europa: «em alguns países, a percentagem de abandono escolar precoce tem vindo a baixar regularmente desde o princípio dos anos 90. É o caso, por exemplo, da Grécia, da França e do Luxemburgo. Na Dinamarca e em Portugal, no entanto, a tendência de redução observada no início dos anos 90 inverteu-se a partir de meados desta mesma década, pelo que a taxa de abandono escolar está próxima da do início dos anos 90».
Qual é a moral a retirar? O melhor é mesmo (baralhando contos…) “cruzar” o lobo mau com a branca de neve… a ver se aparecem os 7 anões … ou então, perante a “autoridade do Estado-pai” (também a despropósito), recordar a “Branca de Neve a engolir a maça envenenada”…
25 fevereiro 2006
Nem tudo o que parece é…ainda Frida Kahlo
Quando referi, neste blogue, a exposição de Frida Kahlo pretendi fazer dois tipos de exercícios:
- o primeiro (que se prende com a minha ignorância informática…) era a experiência (autodidacta) de escrever um texto acompanhado de uma imagem;
- o segundo era apenas chamar à atenção para um acontecimento cultural (que para meros ”leigos” - como eu que gostam de ver pintura - é sempre uma atracção apesar das possíveis apreciações subjectivas, fundamentadas ou não, que cada um é livre de fazer) relativo a uma exposição que passara pela Tate Modern (aí mais ampla do que a que vem para o CCB) e pela Fundacíon Caixa Galicia (Santiago de Compostela).
E, quando escolhi reproduzir aquele quadro em concreto, pensei em duas coisas:
- por um lado a sua relação com o tema da violência familiar (certamente uma matéria interessante para qualquer jurista);
- e, por outro, lembrei-me “cínica” e criticamente (com todos os meus defeitos e limitações, próprios da natureza humana…por isso talvez «estupidamente») que algumas decisões judiciais (com todo o respeito que lhes é devido) até podiam ser acompanhados graficamente de algumas ilustrações. Claro que, perante aquele quadro, salvaguardando as devidas distâncias, de imediato me veio à memória o publicitado Ac. do STJ de 27/5/2004 (CJ STJ 2004, II, 204 ss., que também pode ser consultado em www.dgsi.pt), nomeadamente, quanto a algumas considerações feitas a nível da medida concreta da pena (simplificadamente, só para identificar o caso em questão, faria a referência: “violação de deveres conjugais versus desconfianças de fidelidade”).
Porém, para não correr o risco de poder estar a sugerir qualquer tipo de interpretação ou leitura (omitindo estas «cogitações»), socorri-me do livro que indiquei (Kahlo, Andrea Kettenmann, Taschen, Público, 2004, p. 39), onde colhi a informação objectiva que coloquei no posted em questão (depois que cada um fizesse o seu trabalho e lê-se o quadro como entendesse).
No entanto - não obstante procurar não incutir «ideias formadas» a quem quer que fosse, pretendendo tão só transmitir objectivamente o acontecimento (pensando eu que talvez este fosse um começo para podermos passar a ver grandes exposições em Portugal…) - no posted abaixo deste foi feita uma interpretação de uma leitura que eu não fiz, nem pretendi fazer.
- o primeiro (que se prende com a minha ignorância informática…) era a experiência (autodidacta) de escrever um texto acompanhado de uma imagem;
- o segundo era apenas chamar à atenção para um acontecimento cultural (que para meros ”leigos” - como eu que gostam de ver pintura - é sempre uma atracção apesar das possíveis apreciações subjectivas, fundamentadas ou não, que cada um é livre de fazer) relativo a uma exposição que passara pela Tate Modern (aí mais ampla do que a que vem para o CCB) e pela Fundacíon Caixa Galicia (Santiago de Compostela).
E, quando escolhi reproduzir aquele quadro em concreto, pensei em duas coisas:
- por um lado a sua relação com o tema da violência familiar (certamente uma matéria interessante para qualquer jurista);
- e, por outro, lembrei-me “cínica” e criticamente (com todos os meus defeitos e limitações, próprios da natureza humana…por isso talvez «estupidamente») que algumas decisões judiciais (com todo o respeito que lhes é devido) até podiam ser acompanhados graficamente de algumas ilustrações. Claro que, perante aquele quadro, salvaguardando as devidas distâncias, de imediato me veio à memória o publicitado Ac. do STJ de 27/5/2004 (CJ STJ 2004, II, 204 ss., que também pode ser consultado em www.dgsi.pt), nomeadamente, quanto a algumas considerações feitas a nível da medida concreta da pena (simplificadamente, só para identificar o caso em questão, faria a referência: “violação de deveres conjugais versus desconfianças de fidelidade”).
Porém, para não correr o risco de poder estar a sugerir qualquer tipo de interpretação ou leitura (omitindo estas «cogitações»), socorri-me do livro que indiquei (Kahlo, Andrea Kettenmann, Taschen, Público, 2004, p. 39), onde colhi a informação objectiva que coloquei no posted em questão (depois que cada um fizesse o seu trabalho e lê-se o quadro como entendesse).
No entanto - não obstante procurar não incutir «ideias formadas» a quem quer que fosse, pretendendo tão só transmitir objectivamente o acontecimento (pensando eu que talvez este fosse um começo para podermos passar a ver grandes exposições em Portugal…) - no posted abaixo deste foi feita uma interpretação de uma leitura que eu não fiz, nem pretendi fazer.
Daí esta minha resposta, pedindo desde já desculpa por esta irreverência…
De qualquer forma, agradeço a leitura feita e… quanto a “sobressaltos feministas”, aproveito para recordar o também célebre acórdão conhecido pelo «macho ibérico», que hoje em dia, no mesmo tom cínico e crítico, faria acompanhar da publicidade da Galp energia relativa à «miúda do gás»….
De qualquer forma, agradeço a leitura feita e… quanto a “sobressaltos feministas”, aproveito para recordar o também célebre acórdão conhecido pelo «macho ibérico», que hoje em dia, no mesmo tom cínico e crítico, faria acompanhar da publicidade da Galp energia relativa à «miúda do gás»….
23 fevereiro 2006
A propósito de Frida Kahlo
A propósito de Frida Khalo, vi a exposição da sua pequena mostra de pintura em Santiago de Compostela (a mesma que vem agora para o Centro Cultural de Belém), nas férias de Natal. As expectativas eram imensas em relação a esta pintora rodeada de uma aura quase mítica, não só por ter sido a companheira desse outro não menos mítico pintor que dá pelo nome de Diego de Rivera, o qual manteve relações privilegiadas com o papa do surrealismo – André Breton -, o amigo mexicano de Trotsky, que, com outros amigos, proporcionou a este o exílio em Coyocan, onde viria a ser assassinado pelo comunista espanhol Ramon Mercader, com auxílio de outro pintor mexicano também comunista – Sisneros - às ordens de Estaline, crime esse que foi efabulado por Jorge Semprum na «Segunda Morte de Ramon Mercader» , mas também pela originalidade da sua pintura, influenciada pelo onirismo e pelo insólito das associações de imagens característicos do surrealismo, mas confesso que me soube a pouco. De resto, essa foi a decepção de quase todos os que acorreram a Santiago de Compostela. Mas vale a pena ver, isso vale. De entre os quadros expostos, um dos mais impressivos é o que foi reproduzido neste blogue pela Dr.ª Carmo: aquele que representa uma mulher assassinada no leito, horrorosamente golpeada e ensanguentada, tendo ao lado, de pé, o seu assassino, que ostenta um sorriso sádico e sustenta numa das mãos uma faca de carniceiro. Mas sendo um dos quadros de carácter narrativo mais explícito, suscita leituras mais ideológicas ou mais psicológicas, consoante os gostos. A Dr.ª Carmo forneceu uma leitura de carácter mais ideológico, por onde perpassa um sobressalto feminista: o homem que mata a mulher por ciúme e que no tribunal alega: «Mas foram só uns quantos golpes!». A narrativa que eu li quando vi a exposição fala de outra maneira: Frida Kahlo, fortemente tomada de ciúmes por Diego de Rivera ter ido para a cama com a sua irmã (a relação deles foi sempre muito fora das convenções) , vingou-se, pintando o amante com traços particularmente sádicos, de que o riso satânico e o facalhão são expressões chocantes, e a mulher crivada de feridas e banhada em sangue.
Mas, afinal, que interesse têm estas leituras? Só o de serem meras leituras. Uma obra de arte não se refere a nada de exterior a ela.
Mas, afinal, que interesse têm estas leituras? Só o de serem meras leituras. Uma obra de arte não se refere a nada de exterior a ela.
O PRESIDENTE JORGE SAMPAIO E A SAIDA PELA PORTA DO FUNDO…
O Presidente da República Jorge Sampaio está de saída do Palácio de Belém, mas estes últimos tempos do segundo mandato não o favoreceram. Pelo contrário, e infelizmente, as iniciativas que tomou ou os casos em que se envolveu, certamente para marcar a saída da Presidência da República, trouxeram-lhe alguns amargos de boca, que a comunicação social tem registado.
Foi a presidência aberta nos concelhos do interior do País, que ainda não tinha visitado, trazendo à baila a população de Canas de Senhorim, que é manifestamente hostil ao Presidente Jorge Sampaio. A visita teve, pois, de excluir aquela localidade, para evitar dissabores. E está ainda por saber ao certo, ou não ficou bem explicitado, a verdadeira razão da oposição da Presidente à elevação de Canas de Senhorim a concelho, quando, nos seus 2 mandatos, houve tantas localidades do País que mudaram de estatuto (porquê tanta embirração com Canas de Senhorim?).
Depois, a última visita, a decorrer ainda, ao estrangeiro, com a escolha de Timor, onde há problemas internos com uma crise militar, envolvendo desobediência de alguns quadros militares. Por causa dessa situação houve alterações no programa da visita e fica por saber se a presença no território do Presidente Jorge Sampaio deixará ou não sequelas no desenvolvimento dessa crise.
Lamentável é também a iniciativa presidencial de espalhar condecorações e medalhas a torto e a direito, às vezes até de forma clandestina, escolhendo nomes que nada dizem ao País. Da vulgarização desse acto, que deveria ser excepcional e raro, vai resultar que é preciso muito tempo para recuperar a sua real dignidade.
Por último, os episódios do chamado “Envelope 9”, relacionado com o Processo da Casa Pia, em que o Presidente Jorge Sampaio manifestou tanto interesse em ver resolvidos com urgência, mas o tempo vai passando e tudo está por esclarecer, devendo ser esta uma das heranças do próximo Presidente da República.
Isto sem esquecer o silêncio do Presidente Jorge Sampaio acerca do “assalto” à redacção de um jornal diário, tomando as autoridades a posse de materiais de trabalho dos jornalistas, quando a CRP é tão clara quanto à protecção da independência e do sigilo profissionais dos jornalistas (art. 38º, nº 2, b)).
Com tudo isto apetece concluir que o Presidente Jorge Sampaio vai sair do Palácio de Belém pela porta do fundo…
Foi a presidência aberta nos concelhos do interior do País, que ainda não tinha visitado, trazendo à baila a população de Canas de Senhorim, que é manifestamente hostil ao Presidente Jorge Sampaio. A visita teve, pois, de excluir aquela localidade, para evitar dissabores. E está ainda por saber ao certo, ou não ficou bem explicitado, a verdadeira razão da oposição da Presidente à elevação de Canas de Senhorim a concelho, quando, nos seus 2 mandatos, houve tantas localidades do País que mudaram de estatuto (porquê tanta embirração com Canas de Senhorim?).
Depois, a última visita, a decorrer ainda, ao estrangeiro, com a escolha de Timor, onde há problemas internos com uma crise militar, envolvendo desobediência de alguns quadros militares. Por causa dessa situação houve alterações no programa da visita e fica por saber se a presença no território do Presidente Jorge Sampaio deixará ou não sequelas no desenvolvimento dessa crise.
Lamentável é também a iniciativa presidencial de espalhar condecorações e medalhas a torto e a direito, às vezes até de forma clandestina, escolhendo nomes que nada dizem ao País. Da vulgarização desse acto, que deveria ser excepcional e raro, vai resultar que é preciso muito tempo para recuperar a sua real dignidade.
Por último, os episódios do chamado “Envelope 9”, relacionado com o Processo da Casa Pia, em que o Presidente Jorge Sampaio manifestou tanto interesse em ver resolvidos com urgência, mas o tempo vai passando e tudo está por esclarecer, devendo ser esta uma das heranças do próximo Presidente da República.
Isto sem esquecer o silêncio do Presidente Jorge Sampaio acerca do “assalto” à redacção de um jornal diário, tomando as autoridades a posse de materiais de trabalho dos jornalistas, quando a CRP é tão clara quanto à protecção da independência e do sigilo profissionais dos jornalistas (art. 38º, nº 2, b)).
Com tudo isto apetece concluir que o Presidente Jorge Sampaio vai sair do Palácio de Belém pela porta do fundo…
A tortura em perspectiva
A divulgação de um comunicado da Human Rights Watch sobre os prisioneiros mortos em prisões do Iraque e do Afeganistão administradas pelos EUA permitiu a um antigo "conselheiro jurídico" da Casa Branca (um tal David Rivkin) um comentário muito significativo. Disse ele que é preciso pôr os números em perspectiva. E acrescentou: «Se dez pessoas foram torturadas até à morte em mais de 100 000 detidos, trata-se de uma média melhor do que a das duas guerras mundiais e da maioria dos sistemas penais civis.»
Portanto, vistas as coisas desta perspectiva, não há motivo para alaridos: a tortura só será criticável a partir de certo montante de vítimas.
Com conselheiros jurídicos assim, compreende-se como vai o direito na Casa Branca.
Portanto, vistas as coisas desta perspectiva, não há motivo para alaridos: a tortura só será criticável a partir de certo montante de vítimas.
Com conselheiros jurídicos assim, compreende-se como vai o direito na Casa Branca.
Combate ao negacionismo e legitimidade democrática
Agradeço o contributo do Artur Costa para o combate ao negacionismo. Como estamos em época de reforma penal, há que alertar quem de direito para a necessidade de reformulação do tipo penal já existente, manifestamente insuficiente, face às persistentes arremetidas de negacionistas teimosos e irrecuperáveis (sim, porque isso da recuperação dos delinquentes, como se sabe, é uma treta).
Particularmente feliz parece-me a ideia de criar uma entidade específica para determinar a lista de factos históricos incontestáveis cuja negação será punida. Assim se salvaria o princípio da legalidade (ele que tem passado tantos maus bocados, coitado). Mas essa Entidade teria que ser necessariamente escolhida pela Assembleia da República. Só assim teria legitimidade democrática. Quem, afinal, pode dizer o que é a verdade senão os eleitos pelo povo?
Particularmente feliz parece-me a ideia de criar uma entidade específica para determinar a lista de factos históricos incontestáveis cuja negação será punida. Assim se salvaria o princípio da legalidade (ele que tem passado tantos maus bocados, coitado). Mas essa Entidade teria que ser necessariamente escolhida pela Assembleia da República. Só assim teria legitimidade democrática. Quem, afinal, pode dizer o que é a verdade senão os eleitos pelo povo?
O negacionismo entre nós
O negacionismo afinal já é punido pela lei portuguesa. Quem mo lembra é o nosso companheiro de blogue João Paulo Rodrigues. Com efeito, o art. 240º, nº 2, b), parte final, do Código Penal, pune em certas condições a «negação de crimes de guerra ou contra a Paz e a Humanidade». Quais são em concreto os crimes que não podem ser negados não o diz a lei, que se fica por aquele enunciado indeterminado, a fazer alguma mossa no princípio da legalidade. Mas esse princípio já está habituado a um tratamento pouco carinhoso por parte do legislador.
Aqui fica, pois, o aviso deste vosso amigo. Antes de resolverem negar, pensem bem, procurem listas de crimes daquele tipo (consultem a Internet, enciclopédias, o Guiness, talvez a página do Ministério da Justiça), o maior número possível, pois podem estar incompletas. Cuidadinho na língua, é o que se recomenda.
Aqui fica, pois, o aviso deste vosso amigo. Antes de resolverem negar, pensem bem, procurem listas de crimes daquele tipo (consultem a Internet, enciclopédias, o Guiness, talvez a página do Ministério da Justiça), o maior número possível, pois podem estar incompletas. Cuidadinho na língua, é o que se recomenda.
21 fevereiro 2006
Contributo para o negacionismo
Para responder ao apelo de Maia Costa, faço a seguinte proposta: em vez de se estar a puxar pela cabeça para arranjar factos históricos devidamente comprovados cuja veracidade incontestável mereça a tutela do direito penal, até porque haveria sempre alguns que escapariam à memória e à capacidade inventiva do mais pintado, deveria criar-se uma Comissão (mais uma) devidamente representativa (em termos democráticos, claro) que estabelecesse periodicamente os factos que não poderiam ser negados por nenhum indígena, sob pena de prática de crime.
Essa Comissão poderia ser constituída por representantes eleitos pelo Parlamento, por membros indigitados pelos restantes órgãos de soberania e talvez por pessoas credenciadas indicadas pelos Conselhos Científicos das Universidades, tudo em proporção a estabelecer pela lei. Poder-se-lhe-ia chamar Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis.
Acrescentar-se-ia um artigo (mais um) ao Código Penal, mais ou menos do seguinte teor:
Quem negar publicamente, de viva voz, ou por escrito, imagem ou outro qualquer meio de expressão um facto histórico de veracidade devidamente comprovada pela Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis será condenado a uma pena de 2 a 8 anos de prisão.
Parágrafo Único: o crime é imprescritível e não admite retratação.
Essa Comissão poderia ser constituída por representantes eleitos pelo Parlamento, por membros indigitados pelos restantes órgãos de soberania e talvez por pessoas credenciadas indicadas pelos Conselhos Científicos das Universidades, tudo em proporção a estabelecer pela lei. Poder-se-lhe-ia chamar Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis.
Acrescentar-se-ia um artigo (mais um) ao Código Penal, mais ou menos do seguinte teor:
Quem negar publicamente, de viva voz, ou por escrito, imagem ou outro qualquer meio de expressão um facto histórico de veracidade devidamente comprovada pela Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis será condenado a uma pena de 2 a 8 anos de prisão.
Parágrafo Único: o crime é imprescritível e não admite retratação.
Negacionistas de todo o mundo, tremei!
Em diversos países europeus existe um crime curioso: o de negacionismo. Pratica o crime quem negar verdades históricas incontestáveis, como o Holocausto. Não se pense que falamos de países de duvidoso cariz democrático, pois é o que se passa na Alemanha, em França, e na Áustria. Ainda ontem na Áustria foi condenado um negacionista em pena de prisão, por, já lá vão 16 anos, ter negado precisamente o Holocausto.
Em Portugal, o negacionismo não é punido. Mas como estamos em época de reforma penal, aqui se deixam, para o caso de se pretender punir tão odiosa conduta, algumas sugestões criminalizadoras. Assim, poderia/deveria ser proibida e punida a negação dos seguintes factos incontestáveis que fazem parte do nosso património histórico inalienável: milagre de Ourique; milagre das rosas de D. Isabel; génio estratégico de Nuno Álavares Pereira; eficácia anti-castelhana da Padeira de Aljubarrota; superioridade moral da colonização portuguesa sobre as dos outros países europeus; patriotismo de D. Carlos e anti-patriotismo dos regicidas; carácter criminoso do "caso Camarate".
É evidente que é uma lista muito curta. Aceitam-se sugestões para aditamentos.
Em Portugal, o negacionismo não é punido. Mas como estamos em época de reforma penal, aqui se deixam, para o caso de se pretender punir tão odiosa conduta, algumas sugestões criminalizadoras. Assim, poderia/deveria ser proibida e punida a negação dos seguintes factos incontestáveis que fazem parte do nosso património histórico inalienável: milagre de Ourique; milagre das rosas de D. Isabel; génio estratégico de Nuno Álavares Pereira; eficácia anti-castelhana da Padeira de Aljubarrota; superioridade moral da colonização portuguesa sobre as dos outros países europeus; patriotismo de D. Carlos e anti-patriotismo dos regicidas; carácter criminoso do "caso Camarate".
É evidente que é uma lista muito curta. Aceitam-se sugestões para aditamentos.
20 fevereiro 2006
NEVES RIBEIRO
Abro aqui um parêntesis para homenagear a memória de Neves Ribeiro, um bom jurista, um bom juiz, vice-presidente do STJ, e sobretudo um homem com uma grande sensibilidade humana, a irradiar a franqueza e a simplicidade das origens - as suas, situadas numa aldeia perto da Lousã, e as de todo o ser humano autêntico.
Minudências.Colegialidade e duplo grau de jurisidição em matéria de facto no processo penal
Uma discussão em aberto ?
1. - A revisão do CPP de 1998 veio admitir o recurso da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto para o Tribunal da Relação, como forma de assegurar, com maior amplitude, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, implicando a obrigatoriedade de documentação das declarações orais prestadas perante o tribunal colectivo (tal como se previa já para o tribunal singular), as quais deverão ser transcritas dos suportes áudio para papel, na medida em que tal seja necessário para a decisão do recurso.
Não obstante o grande alcance e relevância prática desta alteração, a discussão foi escassa e terão mesmo permanecido dúvidas sobre a efectividade da alteração legislativa, que explicarão a oposição de julgados sobre a mera recorribilidade da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto, que deu origem ao Acórdão para Fixação de Jurisprudência (A.F.J.) nº 10/2005 de 20 de Outubro, e sobre a responsabilidade pela transcrição das declarações orais, decidida pelo AFJ nº 2/2003 de 16.01 no sentido de que a mesma incumbe ao tribunal.
Quanto aos fundamentos e vantagens do duplo grau de jurisdição em matéria de facto quando o tribunal que decide em 1ª instância é o tribunal colectivo, o mínimo que se poderá dizer é que não se encontra demonstrada a sua necessidade e adequação aos problemas a que pretenderá dar resposta, tal como não se mostram ultrapassados os inconvenientes que boa parte da doutrina (e não só) aponta ao alargamento da sindicância da matéria de facto: “O segundo julgamento goza de piores condições que o primeiro” (F. Dias), “ A repetição integral da prova perante o tribunal de recurso seria inconcretizável” para além de haver razões “… para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral ( Cunha Rodrigues) para além de “ ser na verdade uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já em segunda mão” (Ac TC 322/93. A leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo – para além de se tornar pouco menos que insuportável – acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação (A.F.J. nº 10/2005).
1. - A revisão do CPP de 1998 veio admitir o recurso da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto para o Tribunal da Relação, como forma de assegurar, com maior amplitude, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, implicando a obrigatoriedade de documentação das declarações orais prestadas perante o tribunal colectivo (tal como se previa já para o tribunal singular), as quais deverão ser transcritas dos suportes áudio para papel, na medida em que tal seja necessário para a decisão do recurso.
Não obstante o grande alcance e relevância prática desta alteração, a discussão foi escassa e terão mesmo permanecido dúvidas sobre a efectividade da alteração legislativa, que explicarão a oposição de julgados sobre a mera recorribilidade da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto, que deu origem ao Acórdão para Fixação de Jurisprudência (A.F.J.) nº 10/2005 de 20 de Outubro, e sobre a responsabilidade pela transcrição das declarações orais, decidida pelo AFJ nº 2/2003 de 16.01 no sentido de que a mesma incumbe ao tribunal.
Quanto aos fundamentos e vantagens do duplo grau de jurisdição em matéria de facto quando o tribunal que decide em 1ª instância é o tribunal colectivo, o mínimo que se poderá dizer é que não se encontra demonstrada a sua necessidade e adequação aos problemas a que pretenderá dar resposta, tal como não se mostram ultrapassados os inconvenientes que boa parte da doutrina (e não só) aponta ao alargamento da sindicância da matéria de facto: “O segundo julgamento goza de piores condições que o primeiro” (F. Dias), “ A repetição integral da prova perante o tribunal de recurso seria inconcretizável” para além de haver razões “… para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral ( Cunha Rodrigues) para além de “ ser na verdade uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já em segunda mão” (Ac TC 322/93. A leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo – para além de se tornar pouco menos que insuportável – acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação (A.F.J. nº 10/2005).
Recentemente – em acção de formação permanente de magistrados que decorreu no CEJ – também Maria João Antunes e Anabela Rodrigues manifestaram as suas reservas à solução actual, lembrando, entre outros aspectos, os problemas de constitucionalidade que a solução actual pode suscitar, mercê da desigualdade de regimes entre o recurso de decisão do tribunal colectivo e de decisão do tribunal do júri, de que continua a poder recorrer-se apenas em matéria de direito para o STJ (per saltum), o qual apenas poderá sindicar a decisão de facto nos termos – tradicionais entre nós – do modelo de Revista alargada que, aliás, o Tribunal Constitucional sempre considerou suficiente para se ter por respeitado o princípio do duplo grau de jurisdição, o qual veio mesmo a ser expressamente inscrito na CRP com a revisão de 1997.
2. - Se são bem conhecidas estas e outras objecções à reapreciação da matéria de facto em 2º grau de jurisdição, o mesmo não pode dizer-se da sua refutação ou, em todo o caso, das razões que – não obstante elas – terão imposto o seu alargamento às decisões do tribunal colectivo.
A este respeito, diz-nos Germano Marques da Silva que “ Da ponderação a que a Comisso de Revisão procedeu resultou-lhe a convicção de que era aspiração generalizada dos meios jurídicos a possibilidade do registo da prova produzida na audiência de julgamento e que esse desejo está intimamente relacionado com a quebra de confiança na qualidade da justiça administrada em primeira instância”, não permitindo ainda a actual organização judiciária que os tribunais colectivos adquirissem o prestígio que é pressuposto do regime de recursos [então]vigente, não sendo previsível que o adquira a médio prazo. Rematava o Prof. Germano, depois de reafirmar a sua fé nos jovens, que, ainda assim, “… não é ainda fácil fazer crer a velho que a juíza de soquetes ou o juiz de calções têm a experiência e a prudência quanto baste para julgarem os seus actos e decidirem sobre a sua liberdade, sobretudo nos casos mais graves”.
Damião da Cunha, ao analisar criteriosamente as principais questões colocadas pelo novo sistema de recursos (RPCC 1998/2), afirmava que “ … a consagração de um efectivo recurso em matéria de facto parece corresponder a uma reivindicação mais ou menos persistente na prática e, em certo sentido, revelador de «algum mal-estar» quanto à administração da justiça penal”, que teria subjacente a ideia de que a “qualidade das decisões de 1ª instância parece merecer censura ”.
Terá, sido, pois a partir deste tipo de razões – que já vi apelidadas de sociológicas ou histórico-sociológicas – geradoras de preocupações cuja seriedade não está em causa, mas que não podem deixar de reputar-se algo difusas, quer na sua delimitação quer, sobretudo, na sua origem e consistência, que o legislador de 1998 avançou afoitamente no caminho do alargamento da sindicância da decisão de 1ª instância em matéria, solução que – independentemente da aparente motivação pragmática – não deixará de ter o seu referente ideológico em autores como Cavaleiro de Ferreira (entre nós), mais próximos de uma concepção burocrática de justiça e de um princípio de autoridade hierárquica, que de soluções de colegialidade, com o que têm de manifestação do princípio democrático ( maxime quanto ao tribunal do júri).
2. - Se são bem conhecidas estas e outras objecções à reapreciação da matéria de facto em 2º grau de jurisdição, o mesmo não pode dizer-se da sua refutação ou, em todo o caso, das razões que – não obstante elas – terão imposto o seu alargamento às decisões do tribunal colectivo.
A este respeito, diz-nos Germano Marques da Silva que “ Da ponderação a que a Comisso de Revisão procedeu resultou-lhe a convicção de que era aspiração generalizada dos meios jurídicos a possibilidade do registo da prova produzida na audiência de julgamento e que esse desejo está intimamente relacionado com a quebra de confiança na qualidade da justiça administrada em primeira instância”, não permitindo ainda a actual organização judiciária que os tribunais colectivos adquirissem o prestígio que é pressuposto do regime de recursos [então]vigente, não sendo previsível que o adquira a médio prazo. Rematava o Prof. Germano, depois de reafirmar a sua fé nos jovens, que, ainda assim, “… não é ainda fácil fazer crer a velho que a juíza de soquetes ou o juiz de calções têm a experiência e a prudência quanto baste para julgarem os seus actos e decidirem sobre a sua liberdade, sobretudo nos casos mais graves”.
Damião da Cunha, ao analisar criteriosamente as principais questões colocadas pelo novo sistema de recursos (RPCC 1998/2), afirmava que “ … a consagração de um efectivo recurso em matéria de facto parece corresponder a uma reivindicação mais ou menos persistente na prática e, em certo sentido, revelador de «algum mal-estar» quanto à administração da justiça penal”, que teria subjacente a ideia de que a “qualidade das decisões de 1ª instância parece merecer censura ”.
Terá, sido, pois a partir deste tipo de razões – que já vi apelidadas de sociológicas ou histórico-sociológicas – geradoras de preocupações cuja seriedade não está em causa, mas que não podem deixar de reputar-se algo difusas, quer na sua delimitação quer, sobretudo, na sua origem e consistência, que o legislador de 1998 avançou afoitamente no caminho do alargamento da sindicância da decisão de 1ª instância em matéria, solução que – independentemente da aparente motivação pragmática – não deixará de ter o seu referente ideológico em autores como Cavaleiro de Ferreira (entre nós), mais próximos de uma concepção burocrática de justiça e de um princípio de autoridade hierárquica, que de soluções de colegialidade, com o que têm de manifestação do princípio democrático ( maxime quanto ao tribunal do júri).
3. - Em todo o caso, sempre se impunha ( ou impõe ?) a ponderação dos prós e contras da solução hoje vigente e das que no caminho já aberto poderão seguir-se-lhe. Ponderação que - para além da pela refutação das objecções opostas ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto - não poderá deixar de passar pela demonstração da adequação da alteração legislativa à resolução dos problemas que a terão motivado, ficando as dúvidas a tal respeito bem ilustradas com o comentário de Damião da Cunha, que (no aludido texto de 1998) logo questionou se o remédio para a doença não deveria ser encontrado no processo de 1ª instância em vez do recurso, pois acreditar que é num juízo posterior, baseado numa análise parcial e documental ou mediata de prova produzida noutro local, que se pode precatar as deficiências do juízo de 1ª instância, é aspecto que suscita fundadas dúvidas; a uma decisão injusta apenas se segue outra que não garante melhor justiça, o que está em perfeita consonância com a ideia (igualmente não refutada) de que a qualidade da administração da justiça penal se «mede» nas decisões de primeira instância.
4. - Mas será que as omissões verificadas na discussão e fundamentação da alteração legislativa, não estão ultrapassadas por mais de seis anos de reforma ? - A prática demonstrou, afinal, a excelência e superioridade da solução de 1998, ou confirmaram-se antes os prognósticos dos que previam que não iríamos ter melhores decisões, mas antes decisões bem mais demoradas ? E que dizer da confiança dos cidadãos na justiça ? – Todos os que efectivamente se preocupam com tais minudências, podem dizer – sem corar – que as coisas estão melhores com o novo sistema e que tudo vai melhorar de vez com as alterações que se anunciam, umas, e que se adivinham, outras? - A extensão do regime de recurso da decisão do tribunal colectivo ao tribunal do júri (não obstante o fundamento politico da sua consagração constitucional), o fim das transcrições e a audição de toda a prova pelos tribunais da Relação (coisa breve) e - quem sabe se já, ou apenas na próxima reforma - a extensão do carácter facultativo do júri ao tribunal colectivo (apesar de tudo, mais coerente com um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto), arrastando a sua morte lenta em processo penal, à imagem do que sucedeu no processo civil, onde é hoje residual a sua intervenção.
Fuga para a frente, como parece indiciar-se, ou tempo – ainda - de discutir as questões estruturais ?
4. - Mas será que as omissões verificadas na discussão e fundamentação da alteração legislativa, não estão ultrapassadas por mais de seis anos de reforma ? - A prática demonstrou, afinal, a excelência e superioridade da solução de 1998, ou confirmaram-se antes os prognósticos dos que previam que não iríamos ter melhores decisões, mas antes decisões bem mais demoradas ? E que dizer da confiança dos cidadãos na justiça ? – Todos os que efectivamente se preocupam com tais minudências, podem dizer – sem corar – que as coisas estão melhores com o novo sistema e que tudo vai melhorar de vez com as alterações que se anunciam, umas, e que se adivinham, outras? - A extensão do regime de recurso da decisão do tribunal colectivo ao tribunal do júri (não obstante o fundamento politico da sua consagração constitucional), o fim das transcrições e a audição de toda a prova pelos tribunais da Relação (coisa breve) e - quem sabe se já, ou apenas na próxima reforma - a extensão do carácter facultativo do júri ao tribunal colectivo (apesar de tudo, mais coerente com um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto), arrastando a sua morte lenta em processo penal, à imagem do que sucedeu no processo civil, onde é hoje residual a sua intervenção.
Fuga para a frente, como parece indiciar-se, ou tempo – ainda - de discutir as questões estruturais ?
A religião e a liberdade de expressão
Ainda mais duas ou três coisas com pretexto nas caricaturas de Maomé:
1 - As caricaturas que eu conheço não ofendem os muçulmanos em geral nem o islamismo, como às vezes se tem afirmado. O que elas atingem é uma certa utilização da religião e do profeta Maomé para fins terroristas. Não é a essência dessa religião que é satirizada, mas uma certa concepção dela que desemboca numa das formas mais odiosas do fanatismo religioso. Será que os muçulmanos em geral professam essa forma de fanatismo? O que me levou a opor-me às caricaturas foi a conjuntura internacional que atravessamos. Tendo em vista esse contexto, o meio utilizado e a própria finalidade que presidiu à sua publicação, elas pareceram-me uma provocação gratuita.
2 - Não se pode argumentar com o facto de ser um interdito para os muçulmanos a representação icónica do profeta. E depois? Os que não professam essa religião estão obrigados a respeitar esse interdito? Digo: os que não professam essa religião, independentemente de serem árabes ou europeus, ou deste ou daquele canto do mundo Se é preciso respeitar as crenças de quem é crente e, dentro das crenças, as diferenças de cada uma delas, também é preciso tolerar as convicções de quem não é crente e não acredita na divindade, nem em dogmas, nem se deixa tocar por símbolos religiosos e, por isso, não se sente obrigado a respeitá-los, podendo exprimir o que sente e pensa por qualquer meio de expressão, incluindo a caricatura e a sátira. Isto não significa que não se respeite as crenças dos crentes, que têm de ser livres não só para exercerem o seu culto e afirmarem as suas convicções e desenvolverem o seu apostolado, como também para criticarem e manifestarem a sua indignação em relação àqueles que põem em causa aquilo em que acreditam. O que não podem é exigir o silenciamento dos «infiéis». Aliás, quantas vezes tem sucedido que as críticas mais virulentas e as sátiras mais mordazes a determinados aspectos de uma religião ou as reacções mais iconoclastas procedem exactamente de espíritos religiosos, mas que não se conformam com a irracionalidade mais absurda que há em todas as religiões?
3 - Não se pode limitar a liberdade de expressão a pretexto de um interdito relativamente ao sagrado, seja qual for a forma que ela revista, isto ao contrário do que parecia defender há tempos Eduardo Prado Coelho numa das suas crónicas habituais no «Público». A nossa cultura e a nossa civilização encontram também aí o seu fundamento. Basta lembrar entre muitos outros, Voltaire, Sade, Lautréamont, muitos surrealistas, quer nas artes plásticas, quer na literatura, Guerra Junqueiro, isto para só falar em alguns clássicos europeus que eu, nos meus limitados horizontes culturais, conheço melhor. Foi graças à ousadia de muitos desses que se progrediu alguma coisa no caminho de uma secularização que encontra o seu correlativo numa cada vez maior afirmação da autonomia humana e nos correspondentes direitos humanos, quando não no caminho da humanização das religiões. A própria liberdade de expressão foi uma conquista à esfera do sagrado, o «sagrado violento», para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo («Acreditar Em Acreditar»), que inclui Cristo no número dos secularizadores, considerando que «talvez o próprio Voltaire seja um efeito positivo da cristianização (autêntica) da humanidade e não um blasfemo inimigo de Cristo».
E por que é que o sagrado só há-de compaginar-se com a sisudez, o temor reverencial e a veneração, quando a mesma divindade que nos criou à sua imagem e semelhança, segundo uma perspectiva teológica, nos deu esta imensa faculdade de riso, de humor e de irreverência? Não será isso tributário do tal «sagrado violento»?
4 - Os sentimentos religiosos não podem fundar indiscriminadamente uma limitação da liberdade de expressão, sobretudo com o pretexto de ofensa a sentimentos difusos de uma comunidade. Será preciso lembrar os perigos que isso acarreta e buscar exemplos antigos e recentes (dos nossos dias) que tornam palpáveis esses perigos? Então relativamente à obra de arte, que constitui um universo autónomo de significações, não deverá o princípio da livre criatividade e de uma auto-referencialidade específica prevalecer sobre quaisquer outros princípios e considerações?
1 - As caricaturas que eu conheço não ofendem os muçulmanos em geral nem o islamismo, como às vezes se tem afirmado. O que elas atingem é uma certa utilização da religião e do profeta Maomé para fins terroristas. Não é a essência dessa religião que é satirizada, mas uma certa concepção dela que desemboca numa das formas mais odiosas do fanatismo religioso. Será que os muçulmanos em geral professam essa forma de fanatismo? O que me levou a opor-me às caricaturas foi a conjuntura internacional que atravessamos. Tendo em vista esse contexto, o meio utilizado e a própria finalidade que presidiu à sua publicação, elas pareceram-me uma provocação gratuita.
2 - Não se pode argumentar com o facto de ser um interdito para os muçulmanos a representação icónica do profeta. E depois? Os que não professam essa religião estão obrigados a respeitar esse interdito? Digo: os que não professam essa religião, independentemente de serem árabes ou europeus, ou deste ou daquele canto do mundo Se é preciso respeitar as crenças de quem é crente e, dentro das crenças, as diferenças de cada uma delas, também é preciso tolerar as convicções de quem não é crente e não acredita na divindade, nem em dogmas, nem se deixa tocar por símbolos religiosos e, por isso, não se sente obrigado a respeitá-los, podendo exprimir o que sente e pensa por qualquer meio de expressão, incluindo a caricatura e a sátira. Isto não significa que não se respeite as crenças dos crentes, que têm de ser livres não só para exercerem o seu culto e afirmarem as suas convicções e desenvolverem o seu apostolado, como também para criticarem e manifestarem a sua indignação em relação àqueles que põem em causa aquilo em que acreditam. O que não podem é exigir o silenciamento dos «infiéis». Aliás, quantas vezes tem sucedido que as críticas mais virulentas e as sátiras mais mordazes a determinados aspectos de uma religião ou as reacções mais iconoclastas procedem exactamente de espíritos religiosos, mas que não se conformam com a irracionalidade mais absurda que há em todas as religiões?
3 - Não se pode limitar a liberdade de expressão a pretexto de um interdito relativamente ao sagrado, seja qual for a forma que ela revista, isto ao contrário do que parecia defender há tempos Eduardo Prado Coelho numa das suas crónicas habituais no «Público». A nossa cultura e a nossa civilização encontram também aí o seu fundamento. Basta lembrar entre muitos outros, Voltaire, Sade, Lautréamont, muitos surrealistas, quer nas artes plásticas, quer na literatura, Guerra Junqueiro, isto para só falar em alguns clássicos europeus que eu, nos meus limitados horizontes culturais, conheço melhor. Foi graças à ousadia de muitos desses que se progrediu alguma coisa no caminho de uma secularização que encontra o seu correlativo numa cada vez maior afirmação da autonomia humana e nos correspondentes direitos humanos, quando não no caminho da humanização das religiões. A própria liberdade de expressão foi uma conquista à esfera do sagrado, o «sagrado violento», para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo («Acreditar Em Acreditar»), que inclui Cristo no número dos secularizadores, considerando que «talvez o próprio Voltaire seja um efeito positivo da cristianização (autêntica) da humanidade e não um blasfemo inimigo de Cristo».
E por que é que o sagrado só há-de compaginar-se com a sisudez, o temor reverencial e a veneração, quando a mesma divindade que nos criou à sua imagem e semelhança, segundo uma perspectiva teológica, nos deu esta imensa faculdade de riso, de humor e de irreverência? Não será isso tributário do tal «sagrado violento»?
4 - Os sentimentos religiosos não podem fundar indiscriminadamente uma limitação da liberdade de expressão, sobretudo com o pretexto de ofensa a sentimentos difusos de uma comunidade. Será preciso lembrar os perigos que isso acarreta e buscar exemplos antigos e recentes (dos nossos dias) que tornam palpáveis esses perigos? Então relativamente à obra de arte, que constitui um universo autónomo de significações, não deverá o princípio da livre criatividade e de uma auto-referencialidade específica prevalecer sobre quaisquer outros princípios e considerações?
O agressor, a política e a utilização da história
Desde que há uns dias li o postal do Maia Costa quem é o agressor?, que tenho vontade de o comentar, a propósito, essencialmente, de uma linha de leitura que me parece subjacente à polémica que determinou esse postal e que persiste nele, a legitimação das acções políticas de hoje centrada no passado (quase todos os totalitarismos se fundaram na resposta a agravos anteriores, de preferência uns mais e outros menos distantes, estribados em certas leituras da história).
Ainda não tive tempo (eufemismo de conseguir) para alinhavar umas linhas mínimas sobre o tema, mas, entretanto, li uma referência de Filipe Nunes Vicente que me parece muito pertinente, em que se referem algumas das bases canónicas sobre as histórias destas agressões (partindo dos textos). Fico-me, por ora, por essa nota.
Ainda não tive tempo (eufemismo de conseguir) para alinhavar umas linhas mínimas sobre o tema, mas, entretanto, li uma referência de Filipe Nunes Vicente que me parece muito pertinente, em que se referem algumas das bases canónicas sobre as histórias destas agressões (partindo dos textos). Fico-me, por ora, por essa nota.
19 fevereiro 2006
Kahlo

A não perder a exposição temporária FRIDA KAHLO Vida e Obra no CCB, de 24 de Fevereiro a 21 de Maio de 2006.
São apresentadas 26 obras e uma colecção de fotografias e objectos pessoais da pintora que viveu entre 1907-1954. A imagem junta corresponde ao quadro “unos cuantos piquetitos!”, de 1935, feito após a leitura de uma notícia de jornal sobre uma mulher assassinada por ciúme, tendo em julgamento o marido (assassino) justificado os seus actos perante o juiz dizendo “mas foram apenas uns quantos golpes” (cf. Kahlo, Andrea Kettenmann, Taschen, Público, 2004, p. 39).
18 fevereiro 2006
Georgette e a antropóloga
Achei curioso que, depois de ter dado à estampa uma carta de uma tal Georgette tecendo considerações sobre a prostituição e a sua vida profissional como prostituta, a revista «Visão» do passado dia 22 de Fevereiro, tivesse publicado uma entrevista da antropóloga Ana Lopes, que concluiu a sua tese de doutoramento na University College of London e criou um sindicato internacional de profissionais do sexo, na qual há alguma coincidência entre os pontos de vista expressos naquela carta e os daquela antropóloga, contribuindo para desmanchar algumas ideias feitas sobre o assunto. Uma tal coincidência, salvo em pequenos aspectos de pormenor, prova uma «sensibilidade» comum ao problema entre a Georgette e a antropóloga, que, declarando-se feminista, rejeita todavia as teses das «chamadas feministas abolicionistas, que têm tendência moralista para achar que a prostituição não é um trabalho, mas um problema social», como afirma. Conhecer-se-ão ambas?
Eis alguns passos da entrevista:
«P - O objectivo do Sindicato é a legalização ou é descriminalização de toda a actividade?
R - A descriminalização. A ideia é que o trabalhador do sexo não é diferente de qualquer outro. Tudo o que é problemático já é previsto e punido por lei: o tráfico, o rapto, a violação, a violência, o sexo com menores. Tudo isto já está na lei geral. Não é preciso criar um corpo de lei especial para esta indústria. As leis especiais só fazem com que a indústria seja ainda mais estigmatizada e as pessoas mais discriminadas. O problema é que os direitos destes trabalhadores não estão assegurados e as suas condições de trabalho não são fiscalizadas.
(…)
P - Não será legítimo considerar a descriminalização um incentivo?
R - A indústria do sexo está no seu melhor. Está sempre em expansão, por muito profunda que seja a crise. É uma questão de imaginação e esse é o limite. As pessoas vão sempre inventando novas formas de agir. Seria verdade se, pela opressão ou pela repressão legal, a indústria não crescesse tanto. Mas quanto mais escondida e ilegal, mais ela cresce.
(…)
P - Já existem prostitutas licenciadas?
R - Muitas. Tenho colegas no sindicato que completaram cursos, mestrados e até doutoramentos. Há um grupo que começou a pensar: toda a gente quer estudar a prostituição e a indústria do sexo em geral, mas quem sabe mais disto, afinal, somos nós, temos de começar a fazer a nossa própria investigação.
P - E essas estão na profissão porquê?
R - Há o preconceito de que só se vai para a prostituição quando se não tem nada. Essas provam que isso não é verdade. São pessoas com muitas outras opções, mas escolhem estar nesta indústria. Porque é rentável, porque é flexível, porque podem ser independentes
P - Por gosto?
R - Sim, quer dizer, por gosto, na medida em que qualquer trabalho pode dar gosto.
P - Isso ofende as puritanas?
R - Penso que sim. O sexo não é nada do outro mundo, não é nada de sujo, não é nada de criminoso, portanto, qual é o problema? Na minha sociedade ideal, as pessoas não teriam de fazer nada por dinheiro. Mas, na sociedade capitalista, temos de trabalhar e de vender alguma parte do nosso corpo, quer nos dediquemos ao trabalho manual quer ao intelectual.
P - Não acha que há uma diferença de ordem moral entre vender o corpo e a força de trabalho?
R - Não. Não acho. Mas há uma grande diferença entre vender o corpo e vender armas… Aliás, não gosto nada da expressão «vender o corpo». Porque a pessoa, depois de uma transacção sexual, continua a ser dona do seu corpo. Vende um serviço, como quem vende a voz … Há imensas pessoas que vendem o corpo: actores, modelos … São tão bem vistos, têm um estatuto tão alto na sociedade e não fazem mais que vender o corpo.
P - A prostituição ainda é só uma profissão de mulheres?
R - Não, principalmente no Reino Unido, onde o número de homens e de «transgeners» é enorme. Não se pode já falar de uma indústria de mulheres.
P - Existem prostitutos de rua?
R - Já houve mais. Com a Internet, os telemóveis e a liberalização dos «media gay», que favoreceu a publicitação dos seus serviços, o número dos que trabalhavam na rua diminuiu.
P - E já há mulheres à procura de sexo?
R - Cada vez mais. Continuam a não ser tantas como os homens, porque existe também um estigma. Quando as mulheres podem aceder anonimamente a serviços sexuais ou através da Internet, essa procura existe. Mas quando isso implica fazer a coisa num local público… A alternativa é o turismo sexual: a mulher vai para um país que não conhece e aí sente-se à vontade. Não há nada de diferente na natureza masculina ou feminina em relação ao sexo. O que existe é preconceito de séculos, segundo o qual a mulher não é uma pessoa independente, que possa procurar o seu prazer sexual e que paga para o desfrutar.»
Eis alguns passos da entrevista:
«P - O objectivo do Sindicato é a legalização ou é descriminalização de toda a actividade?
R - A descriminalização. A ideia é que o trabalhador do sexo não é diferente de qualquer outro. Tudo o que é problemático já é previsto e punido por lei: o tráfico, o rapto, a violação, a violência, o sexo com menores. Tudo isto já está na lei geral. Não é preciso criar um corpo de lei especial para esta indústria. As leis especiais só fazem com que a indústria seja ainda mais estigmatizada e as pessoas mais discriminadas. O problema é que os direitos destes trabalhadores não estão assegurados e as suas condições de trabalho não são fiscalizadas.
(…)
P - Não será legítimo considerar a descriminalização um incentivo?
R - A indústria do sexo está no seu melhor. Está sempre em expansão, por muito profunda que seja a crise. É uma questão de imaginação e esse é o limite. As pessoas vão sempre inventando novas formas de agir. Seria verdade se, pela opressão ou pela repressão legal, a indústria não crescesse tanto. Mas quanto mais escondida e ilegal, mais ela cresce.
(…)
P - Já existem prostitutas licenciadas?
R - Muitas. Tenho colegas no sindicato que completaram cursos, mestrados e até doutoramentos. Há um grupo que começou a pensar: toda a gente quer estudar a prostituição e a indústria do sexo em geral, mas quem sabe mais disto, afinal, somos nós, temos de começar a fazer a nossa própria investigação.
P - E essas estão na profissão porquê?
R - Há o preconceito de que só se vai para a prostituição quando se não tem nada. Essas provam que isso não é verdade. São pessoas com muitas outras opções, mas escolhem estar nesta indústria. Porque é rentável, porque é flexível, porque podem ser independentes
P - Por gosto?
R - Sim, quer dizer, por gosto, na medida em que qualquer trabalho pode dar gosto.
P - Isso ofende as puritanas?
R - Penso que sim. O sexo não é nada do outro mundo, não é nada de sujo, não é nada de criminoso, portanto, qual é o problema? Na minha sociedade ideal, as pessoas não teriam de fazer nada por dinheiro. Mas, na sociedade capitalista, temos de trabalhar e de vender alguma parte do nosso corpo, quer nos dediquemos ao trabalho manual quer ao intelectual.
P - Não acha que há uma diferença de ordem moral entre vender o corpo e a força de trabalho?
R - Não. Não acho. Mas há uma grande diferença entre vender o corpo e vender armas… Aliás, não gosto nada da expressão «vender o corpo». Porque a pessoa, depois de uma transacção sexual, continua a ser dona do seu corpo. Vende um serviço, como quem vende a voz … Há imensas pessoas que vendem o corpo: actores, modelos … São tão bem vistos, têm um estatuto tão alto na sociedade e não fazem mais que vender o corpo.
P - A prostituição ainda é só uma profissão de mulheres?
R - Não, principalmente no Reino Unido, onde o número de homens e de «transgeners» é enorme. Não se pode já falar de uma indústria de mulheres.
P - Existem prostitutos de rua?
R - Já houve mais. Com a Internet, os telemóveis e a liberalização dos «media gay», que favoreceu a publicitação dos seus serviços, o número dos que trabalhavam na rua diminuiu.
P - E já há mulheres à procura de sexo?
R - Cada vez mais. Continuam a não ser tantas como os homens, porque existe também um estigma. Quando as mulheres podem aceder anonimamente a serviços sexuais ou através da Internet, essa procura existe. Mas quando isso implica fazer a coisa num local público… A alternativa é o turismo sexual: a mulher vai para um país que não conhece e aí sente-se à vontade. Não há nada de diferente na natureza masculina ou feminina em relação ao sexo. O que existe é preconceito de séculos, segundo o qual a mulher não é uma pessoa independente, que possa procurar o seu prazer sexual e que paga para o desfrutar.»
17 fevereiro 2006
A propósito de crucifixos (6)
(Eclectismo)
Esta questão da “laicidade” do Estado, de que venho falando, não será à primeira vista das mais importantes, daquelas nas quais se mostrará absolutamente essencial à saúde da vida democrática estabelecer com clareza e precisão quais serão os limites da actuação dos cidadãos e dos poderes públicos e os vectores que deverão orientar a vida em sociedade. O problema é que este “eclectismo”, tão português, não se confina de modo algum às normas em matéria de relações do Estado com as Igrejas – permeando, pelo contrário, quase todas as áreas fundamentais à regulamentação da nossa vida pública e daquilo que queremos ser e atingir enquanto povo.
O problema é que, seja ou não o “inevitável” fruto de realidades há muito diagnosticadas, tais como a dum alegado carácter “compromissório” da nossa actual Constituição ou a da falta dum “processo dialéctico” de consolidação constitucional, como aquele que terá ocorrido em França (à custa de muita violência, diga-se), este “eclectismo” constitucional não me parece tornar de modo algum as nossas normas fundamentais e o sistema(?) que elas constituirão melhores do que qualquer outro, ao contrário do que muita gente terá pensado (e até dito e escrito). O facto de termos à escolha, inclusive para aplicação “alternativa”, muitos e “bons” princípios constitucionais (expressos na Constituição ou decorrentes de regras nela ou noutros âmbitos formuladas), não me parece constituir qualquer verdadeira riqueza – por muito que, dum ponto de vista individual, possa ser usado para confortar diferentes sensibilidades quanto ao bem fundado duma projecção das suas mundividências pessoais no sistema constitucional vigente.
Pelo contrário, esta situação só tornará ainda mais difícil chegar ao direito, ao verdadeiro direito – aquele que deverá ser efectivamente aplicado, doa a quem doer, pelo qual os cidadãos deverão estar prontos a lutar e ao qual é “culposo” resistir (tal como o diz a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789, a respeito da “lei”). E é esta questão que me parece essencial, numa verdadeira democracia.
Com efeito, para nós juristas, uma tal situação de indefinição e de eventual falta de coerência e de legibilidade das normas fundamentais até pode ter aspectos positivos, por boas e por más razões. Das más não vale a pena falar aqui; quanto às boas razões, pode sempre alegar-se que uma profusão de regras e de princípios provenientes de orientações díspares e contraditórias (ou simplesmente diluídas na sua força original, ou adaptadas, para permitir a resposta a situações específicas), constitui uma verdadeira riqueza, na altura em que se deva proceder à efectiva resolução dum problema de índole constitucional. Isto porque, naturalmente, será assim facilitada, ou mesmo de todo possibilitada, a obtenção da solução mais justa para o caso concreto em apreciação.
Ora, quanto a esta concepção do direito ou da justiça como visando garantir a obtenção da solução mais justa, objectivamente justa, no âmbito dum caso concreto, muito haveria a dizer, desde logo em termos filosóficos – não apenas tendo em conta os óbvios contornos metafísicos da questão e os problemas que isso desde logo suscita, como por parecer óbvio que esta formulação só será consensualmente aceite enquanto não nos pusermos a discutir o que será afinal a Justiça, incluindo naquele caso, ou enquanto não nos interrogarmos para que servirá então a miríade de normas jurídicas que o legislador publica como se quisesse vê-las efectiva e consistentemente aplicadas (para não falar na questão da “segurança jurídica”, cuja conciliação com uma concepção do direito como esta sempre me pareceu muito problemática).
Não se pode, naturalmente, tratar aqui destas questões, nem será isso o mais importante. O importante é que me parece que, sem necessidade de grandes elaborações teóricas, uma tal concepção acerca da “riqueza” conceptual da nossa Constituição material é não só pouco realista, em termos práticos (um verdadeiro “luxo”, que não sei como poderemos suportar realmente), como sobretudo de todo inadequada a qualquer ideia de “democracia” que eu seja capaz de compreender.
(continua)
16 fevereiro 2006
Adultério necessário
Quatro reputados constitucionalistas foram ouvidos pelo Público sobre a eventual inconstitucionalidade do art. 1577º do CC, que só admite o casamento entre pessoas de sexo diferente. Já aqui tomei posição sobre o tema e agora só me interessa comentar as opiniões subscritas pelos ditos professores.
Não espanta a posição de Jorge Miranda, contrária à admissão do casamento homossexual, coerente com a sua mundividência, expressa também na sua oposição à despenalização da IVG. Já aqui expliquei que é abusiva a ligação entre filiação e casamento, abusiva e tributária de uma concepção muito conservadora do mundo nesse aspecto, claramente desfasada do nosso tempo.
O que verdadeiramente me supreendeu foram as opiniões de Vital Moreira, quase coincidentes com as de Paulo Rangel. Ambos defenderam que o art. 1577º não é inconstitucional e fazem-no com base numa interpretação de tipo subjectivista (o legislador constitucional não estava a pensar no casamento homossexual quando fala em casamento!), completamente desadequada em matéria de direito constitucional, como acentuou Pedro Bacelar («temos de interpretar a Constituição aos olhos do mundo de hoje e não à luz do que o legislador pensou no passado»).
Inaceitável é também a posição de Paulo Rangel quando admite que poderia haver, quando muito, uma inconstitucionalidade por omissão (não prever a lei o casamento homossexual). Mas a inconstitucionalidade do art. 1577º não é por omissão: é por acção, por apenas admitir o casamento entre pessoas de sexo diferente; é na exclusão do casamento entre pessoas do mesmo sexo que reside a discriminação. Essa exclusão poderá ser remediada pelo legislador ordinário com legislação paralela para as pessoas do mesmo sexo. Mas, se ou enquanto tal não suceder, a norma vigente estabelece de facto uma discriminação em razão da orientação sexual e daí a sua inconstitucionalidade.
Ora, é isso precisamente que Vital Moreira e Paulo Rangel negam em uníssono, com o argumento brilhante de que «os homossexuais podem casar-se, desde que com pessoas de sexo diferente». Uma nota excepcional de humor negro, digna da antologia de André Breton! Efectivamente os homossexuais não estão impedidos de casar-se com pessoas de sexo diferente. Só que, caso o façam, das duas uma: ou renunciam à sua orientação sexual, o que parece não ser legalmente exigível (embora muita gente gostasse que sim) ou cometem necessariamente adultério quando quiserem praticar relações sexuais. Quid juris?
Não espanta a posição de Jorge Miranda, contrária à admissão do casamento homossexual, coerente com a sua mundividência, expressa também na sua oposição à despenalização da IVG. Já aqui expliquei que é abusiva a ligação entre filiação e casamento, abusiva e tributária de uma concepção muito conservadora do mundo nesse aspecto, claramente desfasada do nosso tempo.
O que verdadeiramente me supreendeu foram as opiniões de Vital Moreira, quase coincidentes com as de Paulo Rangel. Ambos defenderam que o art. 1577º não é inconstitucional e fazem-no com base numa interpretação de tipo subjectivista (o legislador constitucional não estava a pensar no casamento homossexual quando fala em casamento!), completamente desadequada em matéria de direito constitucional, como acentuou Pedro Bacelar («temos de interpretar a Constituição aos olhos do mundo de hoje e não à luz do que o legislador pensou no passado»).
Inaceitável é também a posição de Paulo Rangel quando admite que poderia haver, quando muito, uma inconstitucionalidade por omissão (não prever a lei o casamento homossexual). Mas a inconstitucionalidade do art. 1577º não é por omissão: é por acção, por apenas admitir o casamento entre pessoas de sexo diferente; é na exclusão do casamento entre pessoas do mesmo sexo que reside a discriminação. Essa exclusão poderá ser remediada pelo legislador ordinário com legislação paralela para as pessoas do mesmo sexo. Mas, se ou enquanto tal não suceder, a norma vigente estabelece de facto uma discriminação em razão da orientação sexual e daí a sua inconstitucionalidade.
Ora, é isso precisamente que Vital Moreira e Paulo Rangel negam em uníssono, com o argumento brilhante de que «os homossexuais podem casar-se, desde que com pessoas de sexo diferente». Uma nota excepcional de humor negro, digna da antologia de André Breton! Efectivamente os homossexuais não estão impedidos de casar-se com pessoas de sexo diferente. Só que, caso o façam, das duas uma: ou renunciam à sua orientação sexual, o que parece não ser legalmente exigível (embora muita gente gostasse que sim) ou cometem necessariamente adultério quando quiserem praticar relações sexuais. Quid juris?
15 fevereiro 2006
Quem é o agressor?
A fogosa comentarista Teresa de Sousa, reputada "atlantista", insurgiu-se contra o MNE por este ter dito, aquando da cerimónia de doutoramento honoris causa de Aga Khan na Universidade de Évora, que, no confronto Ocidente-Islão, temos sido nós os maiores agressores, o que a jornalista qualifica imediatamente de "terceiro-mundismo" (há tanto tempo que não se ouvia isto!) e de "antiamericanismo" (evidentemente).
No entanto, aquela afirmação limita-se a reconhecer uma realidade histórica indesmentível. Não é preciso ir às Cruzadas, nem ao colonialismo, que apanhou nas suas garras quase todos os países islâmicos, de Marrocos à Indonésia. As "intervenções" ocidentais adquiriram maior intensidade com o fim do Império Otomano (e a subsequente partilha dos despojos entre a Inglaterra e a França) e muito particularmente depois da 2ª Guerra Mundial, quando aos agressores tradicionais se juntou um novo parceiro (e que parceiro!): os EUA. E foi nessa época que se abriu uma ferida profunda que não tem cessado de agravar-se - a criação do Estado de Israel, que se destinava a recompensar os judeus pela perseguição nazi, recompensa que foi paga afinal pelos palestinianos, escorraçados de grande parte do seu território e depois colonizados e oprimidos no que restava dele, sempre com o apoio directo e militante dos EUA e do "Ocidente" em geral. Tudo isto a par de intervenções militares (Líbano, Afeganistão, Iraque) ou de golpes militares fomentados do exterior ou da manipulação política interna, mediante o apoio a ditaduras e regimes feudais ou, em contraste, o fomento da queda de regimes nacionalistas e laicos. Tudo por causa do cheiro do petróleo, como se sabe. Muito, muito mais se poderia acrescentar.
Por isso, as manifestações islâmicas, cujas imagens mais "fanáticas" as TV's ocidentais não se cansam de passar, têm de ser compreendidas neste contexto global.
No entanto, aquela afirmação limita-se a reconhecer uma realidade histórica indesmentível. Não é preciso ir às Cruzadas, nem ao colonialismo, que apanhou nas suas garras quase todos os países islâmicos, de Marrocos à Indonésia. As "intervenções" ocidentais adquiriram maior intensidade com o fim do Império Otomano (e a subsequente partilha dos despojos entre a Inglaterra e a França) e muito particularmente depois da 2ª Guerra Mundial, quando aos agressores tradicionais se juntou um novo parceiro (e que parceiro!): os EUA. E foi nessa época que se abriu uma ferida profunda que não tem cessado de agravar-se - a criação do Estado de Israel, que se destinava a recompensar os judeus pela perseguição nazi, recompensa que foi paga afinal pelos palestinianos, escorraçados de grande parte do seu território e depois colonizados e oprimidos no que restava dele, sempre com o apoio directo e militante dos EUA e do "Ocidente" em geral. Tudo isto a par de intervenções militares (Líbano, Afeganistão, Iraque) ou de golpes militares fomentados do exterior ou da manipulação política interna, mediante o apoio a ditaduras e regimes feudais ou, em contraste, o fomento da queda de regimes nacionalistas e laicos. Tudo por causa do cheiro do petróleo, como se sabe. Muito, muito mais se poderia acrescentar.
Por isso, as manifestações islâmicas, cujas imagens mais "fanáticas" as TV's ocidentais não se cansam de passar, têm de ser compreendidas neste contexto global.
Fogo amigo
No decorrer de uma caçada, Dick Cheney, o vice-presidente dos EUA, confundiu um amigo com uma codorniz e baleou o amigo. É o chamado "fogo amigo". Com caçadores assim, não há perigo para as espécies cinegéticas. O perigo maior é para os amigos e aliados deste caçador incompetente.
14 fevereiro 2006
Terrorismo ocidental?
Artigo 10.º (Liberdade de expressão) da CEDH
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
No caso İ.A. c. Turquie, decisão de 13/9/2005 (em que o requerente - um editor que publicara um livro que fora considerado como uma blasfémia para o islamismo - invocava que a sua condenação penal atentava contra o seu direito à liberdade de expressão), o TEDH, não obstante continuar a reconhecer que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática”, invocou o disposto no art. 10 nº 2 da Convenção, chamando à atenção que, “no contexto das crenças religiosas pode legitimamente figurar a obrigação de evitar expressões que são gratuitamente ofensivas para outrem e que são profanadoras”.
Perante o conflito entre “por um lado, o direito do requerente de comunicar ao público as suas ideias sobre a doutrina religiosa e, por outro lado, o direito de outras pessoas ao respeito da sua liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, o TEDH acabou por concluir que, no caso, a publicação daquele livro (romance) representava “não só uma opinião provocadora mas um ataque injurioso contra a pessoa do profeta do Islão”.
Assim, naquele caso concreto, considerou a actuação do Estado Turco justificada, sendo a condenação (em pena de multa, após “conversão” de pena de prisão cumulativa) proporcionada aos fins visados, havendo uma “necessidade social imperiosa” a impor uma protecção contra os ataques ofensivos de questões consideradas como sagradas para os muçulmanos.
Mas, na “opinião dissidente” dos Juízes vencidos, houve violação do disposto no art. 10 da Convenção.
Além de defenderem uma concepção da liberdade de expressão tal como exposta no caso Handyside c. Reino Unido de 7/12/1976, chamaram à atenção de que não se pode condenar todo um livro e sancionar o seu editor isolando algumas frases, ainda que injuriosas e (…) que “ninguém é obrigado a comprar ou a ler um romance”; acrescentam que “uma sociedade democrática não é uma sociedade teocrática”, havendo que ter cuidado com o chilling effect da condenação penal, “próprio para dissuadir os editores de publicar livros que não são estritamente conformistas ou «politicamente (ou religiosamente) correctos»” (risco perigoso de auto-censura…).
Ver, ainda, os citados casos Otto-Preminger-Institut et Wingrove (decisões de 20/9/1994 e de 25/11/1996), em que “as «vítimas» eram a “população cristã”.
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
No caso İ.A. c. Turquie, decisão de 13/9/2005 (em que o requerente - um editor que publicara um livro que fora considerado como uma blasfémia para o islamismo - invocava que a sua condenação penal atentava contra o seu direito à liberdade de expressão), o TEDH, não obstante continuar a reconhecer que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática”, invocou o disposto no art. 10 nº 2 da Convenção, chamando à atenção que, “no contexto das crenças religiosas pode legitimamente figurar a obrigação de evitar expressões que são gratuitamente ofensivas para outrem e que são profanadoras”.
Perante o conflito entre “por um lado, o direito do requerente de comunicar ao público as suas ideias sobre a doutrina religiosa e, por outro lado, o direito de outras pessoas ao respeito da sua liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, o TEDH acabou por concluir que, no caso, a publicação daquele livro (romance) representava “não só uma opinião provocadora mas um ataque injurioso contra a pessoa do profeta do Islão”.
Assim, naquele caso concreto, considerou a actuação do Estado Turco justificada, sendo a condenação (em pena de multa, após “conversão” de pena de prisão cumulativa) proporcionada aos fins visados, havendo uma “necessidade social imperiosa” a impor uma protecção contra os ataques ofensivos de questões consideradas como sagradas para os muçulmanos.
Mas, na “opinião dissidente” dos Juízes vencidos, houve violação do disposto no art. 10 da Convenção.
Além de defenderem uma concepção da liberdade de expressão tal como exposta no caso Handyside c. Reino Unido de 7/12/1976, chamaram à atenção de que não se pode condenar todo um livro e sancionar o seu editor isolando algumas frases, ainda que injuriosas e (…) que “ninguém é obrigado a comprar ou a ler um romance”; acrescentam que “uma sociedade democrática não é uma sociedade teocrática”, havendo que ter cuidado com o chilling effect da condenação penal, “próprio para dissuadir os editores de publicar livros que não são estritamente conformistas ou «politicamente (ou religiosamente) correctos»” (risco perigoso de auto-censura…).
Ver, ainda, os citados casos Otto-Preminger-Institut et Wingrove (decisões de 20/9/1994 e de 25/11/1996), em que “as «vítimas» eram a “população cristã”.
Pois bem.
Recuperando as famosas caricaturas, temos de perguntar:
Será preciso voltar a “censura”? Será falta da «abençoada» sensatez que desculpabiliza?
Será preciso voltar a “censura”? Será falta da «abençoada» sensatez que desculpabiliza?
Ou será ainda exercício da liberdade de expressão?
A vida já é tão espartilhada que, qualquer dia, se deixarmos de ser razoáveis (optando por punir, punir, punir tudo o que não for «socialmente adequado»…), passaremos a ver fantasmas ou terroristas (institucionais e não institucionais) por todo o lado … ou, então, viveremos «Presidiariamente» (nome do quadro do Álvaro Lapa, de 2005, publicado neste site mais abaixo)!
A vida já é tão espartilhada que, qualquer dia, se deixarmos de ser razoáveis (optando por punir, punir, punir tudo o que não for «socialmente adequado»…), passaremos a ver fantasmas ou terroristas (institucionais e não institucionais) por todo o lado … ou, então, viveremos «Presidiariamente» (nome do quadro do Álvaro Lapa, de 2005, publicado neste site mais abaixo)!
13 fevereiro 2006
CONFLITO DE CIVILIZAÇÕES?
Relativamente a um tema que já suscitou outras intervenções no Sine Die, o Pedro Vaz Patto enviou mais um contributo, que agradeço vivamente e que tenho o maior gosto em publicar:
A propósito da recente publicação de caricaturas de Maomé e das reacções de indignação que se seguiram, tem-se levantado de novo a questão do conflito de civilizações. Há mesmo quem tenha dito que estamos perante o exemplo acabado de que este conflito está aí e a ele não se pode escapar. Uma perspectiva assustadora, que faz temer a repetição de situações como esta nas nossas sociedades, onde estão cada vez mais presentes pessoas de religião muçulmana.
Penso, no entanto, que, a este propósito, antes de falar em conflito de civilizações, importa clarificar princípios que se apresentam, às vezes superficialmente, como característicos de cada das civilizações em confronto. Um deles é o da liberdade de expressão e o seu estatuto nas sociedades democráticas. O outro é o da relação entre Islão e violência.
A liberdade de expressão, estrutural numa sociedade livre e democrática, não pode ser absoluta, ao contrário do que se tem dito e do que poderia decorrer de uma concepção individualista e associal da liberdade. Não há liberdades absolutas. A liberdade de expressão há-de compatibilizar-se com as outras liberdades e outros valores constitucionais. A liberdade de cada um há-de compatibilizar-se com a liberdade dos outros.
E também não é verdade que nas nossas sociedades nada exista de sagrado, nada exista digno de um respeito que se imponha à liberdade de criação e de sátira, que nelas nada exista que não possa ser objecto de troça e de escárnio. Um inquérito publicado recentemente (a 9 de Fevereiro) pelo jornal francês La Croix revelava que para uma clara maioria dos franceses não é admissível a sátira que fere sentimentos religiosos, ou, por exemplo, a dignidade de pessoas com deficiência ou de determinada raça.
A liberdade de expressão não impede a tipificação dos crimes de difamação e de injúrias, que atingem o direito à honra e a dignidade dos visados. Também não impede a punição de crimes contra o respeito devido aos símbolos nacionais ou contra o respeito devido aos mortos. Não é obviamente aceitável o desrespeito para com as vítimas do Holocausto, ou de outros massacres ou graves atentados contra os direitos humanos que a História regista.
E também são puníveis, na nossa e noutras legislações penais, atentados contra os sentimentos religiosos. O artigo 252º do Código Penal português pune o ultraje a acto de culto religioso e o artigo 251º do mesmo diploma pune o ultraje por motivo de crença religiosa. Saliente-se que este último artigo pune a ofensa ou escárnio em razão de crença ou função religiosa apenas quando tal se verifique de «forma adequada a perturbar a paz pública». Parece-me criticável esta exigência, pois o respeito pelos sentimentos religiosos de outrem justifica, por si só, a punição e não deveria fazer-se a distinção entre os casos que podem afectar a paz pública (como é, inequivocamente, aquele a que estamos a assistir) e os que não a afectam, porventura porque dizem respeito a uma comunidade religiosa pacífica ou de reduzida expressão numérica. No caso em apreço, as expressões de solidariedade de vários responsáveis políticos para com os muçulmanos ofendidos nos seus sentimentos deveria ter sido anterior, e não posterior, às manifestações de violência e de perturbação da paz pública. Também se criticou o primeiro-ministro espanhol, que exprimiu essa solidariedade num comunicado conjunto com o primeiro-ministro turco, por nunca ter exprimido uma solidariedade semelhante com os católicos atingidos por ultrajes não menos graves ocorridos recentemente em Espanha.
Está em jogo, também aqui, a dignidade das pessoas feridas nos seus sentimentos religiosos (já não, como sucedeu no passado, a defesa da religião, ou de uma religião tida por verdadeira). E, porventura, feridas ainda mais do que o seriam se fosse atingida a sua honra pessoal, ou a honra dos seus familiares mais queridos. E está em jogo, também, a própria liberdade religiosa dessas pessoas. Afirma-se na “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou no credo”, adoptada pela O.N.U. em 1981, que «a religião e o credo constituem, para aquele que os professe, um dos elementos fundamentais da sua concepção de vida e (…) devem ser integralmente respeitados e garantidos».
Dir-se-á que por esta via se pode anular a própria liberdade de expressão, pois haverá sempre alguém que se sinta ofendido com uma qualquer expressão negativa a respeito da religião, ou de uma religião. Mas não é assim. Há critérios objectivos que, tal como permitem distinguir a crítica de comportamentos (que poderá ser admissível e saudável numa sociedade democrática) da ofensa que atinge a própria pessoa, enquanto tal, na sua dignidade, também permitem distinguir a expressão argumentativa de discordância, no âmbito do debate de ideias, em relação a uma qualquer religião (ou a todas), da invectiva ultrajante que fere, ridiculariza ou humilha. Há que distinguir a crítica, típica de sociedades tolerantes, da ofensa e do ultraje, que são uma clara expressão de intolerância.
Podem, pois, os muçulmanos reclamar o respeito que lhes é devido nas sociedades livres e democráticas. Terão de fazê-lo, porém, na observância do quadro legal dessas sociedades, que separa o Estado e a sociedade civil (por isso, não pode um Estado ser responsabilizado pelo que é publicado num jornal), assim como separa o poder executivo e o poder judicial (sendo que é só a este que cabe dirimir este tipo de conflitos). E, sobretudo, que não permitem que a religião possa ser pretexto para manifestações de violência.
Como cristão, não posso deixar de exprimir esta minha convicção: certamente Deus será mais ofendido quando o Seu nome é utilizado para justificar o ódio e a violência do que quando é visado por uma caricatura ultrajante e de mau gosto. Como tem salientado o Papa Bento XVI, é um grave abuso (uma verdadeira blasfémia) usar o nome de Deus, que é Amor (Deus caritas est – foi o título escolhido por este Papa para a sua primeira encíclica), para justificar o ódio, a vingança e a violência. Também a maior parte dos muçulmanos («o verdadeiro Islão» a que se referiu várias vezes João Paulo II) associa Deus à misericórdia, e não ao ódio. Por isso, é compreensível que os muçulmanos se sintam indignados com caricaturas que associam Maomé ao terrorismo. Mas quem exprime essa indignação através da violência cai numa evidente contradição.
Para evitar que, a partir de situações como esta, se desencadeie um conflito de civilizações, devem as sociedades democráticas ocidentais atender aos limites da liberdade de expressão e ao respeito devido aos sentimentos religiosos das pessoas. Mas, por outro lado, devem os responsáveis muçulmanos afirmar com vigor que é abusivo invocar o Islão como justificação para a violência.
Pedro Vaz Patto
Penso, no entanto, que, a este propósito, antes de falar em conflito de civilizações, importa clarificar princípios que se apresentam, às vezes superficialmente, como característicos de cada das civilizações em confronto. Um deles é o da liberdade de expressão e o seu estatuto nas sociedades democráticas. O outro é o da relação entre Islão e violência.
A liberdade de expressão, estrutural numa sociedade livre e democrática, não pode ser absoluta, ao contrário do que se tem dito e do que poderia decorrer de uma concepção individualista e associal da liberdade. Não há liberdades absolutas. A liberdade de expressão há-de compatibilizar-se com as outras liberdades e outros valores constitucionais. A liberdade de cada um há-de compatibilizar-se com a liberdade dos outros.
E também não é verdade que nas nossas sociedades nada exista de sagrado, nada exista digno de um respeito que se imponha à liberdade de criação e de sátira, que nelas nada exista que não possa ser objecto de troça e de escárnio. Um inquérito publicado recentemente (a 9 de Fevereiro) pelo jornal francês La Croix revelava que para uma clara maioria dos franceses não é admissível a sátira que fere sentimentos religiosos, ou, por exemplo, a dignidade de pessoas com deficiência ou de determinada raça.
A liberdade de expressão não impede a tipificação dos crimes de difamação e de injúrias, que atingem o direito à honra e a dignidade dos visados. Também não impede a punição de crimes contra o respeito devido aos símbolos nacionais ou contra o respeito devido aos mortos. Não é obviamente aceitável o desrespeito para com as vítimas do Holocausto, ou de outros massacres ou graves atentados contra os direitos humanos que a História regista.
E também são puníveis, na nossa e noutras legislações penais, atentados contra os sentimentos religiosos. O artigo 252º do Código Penal português pune o ultraje a acto de culto religioso e o artigo 251º do mesmo diploma pune o ultraje por motivo de crença religiosa. Saliente-se que este último artigo pune a ofensa ou escárnio em razão de crença ou função religiosa apenas quando tal se verifique de «forma adequada a perturbar a paz pública». Parece-me criticável esta exigência, pois o respeito pelos sentimentos religiosos de outrem justifica, por si só, a punição e não deveria fazer-se a distinção entre os casos que podem afectar a paz pública (como é, inequivocamente, aquele a que estamos a assistir) e os que não a afectam, porventura porque dizem respeito a uma comunidade religiosa pacífica ou de reduzida expressão numérica. No caso em apreço, as expressões de solidariedade de vários responsáveis políticos para com os muçulmanos ofendidos nos seus sentimentos deveria ter sido anterior, e não posterior, às manifestações de violência e de perturbação da paz pública. Também se criticou o primeiro-ministro espanhol, que exprimiu essa solidariedade num comunicado conjunto com o primeiro-ministro turco, por nunca ter exprimido uma solidariedade semelhante com os católicos atingidos por ultrajes não menos graves ocorridos recentemente em Espanha.
Está em jogo, também aqui, a dignidade das pessoas feridas nos seus sentimentos religiosos (já não, como sucedeu no passado, a defesa da religião, ou de uma religião tida por verdadeira). E, porventura, feridas ainda mais do que o seriam se fosse atingida a sua honra pessoal, ou a honra dos seus familiares mais queridos. E está em jogo, também, a própria liberdade religiosa dessas pessoas. Afirma-se na “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou no credo”, adoptada pela O.N.U. em 1981, que «a religião e o credo constituem, para aquele que os professe, um dos elementos fundamentais da sua concepção de vida e (…) devem ser integralmente respeitados e garantidos».
Dir-se-á que por esta via se pode anular a própria liberdade de expressão, pois haverá sempre alguém que se sinta ofendido com uma qualquer expressão negativa a respeito da religião, ou de uma religião. Mas não é assim. Há critérios objectivos que, tal como permitem distinguir a crítica de comportamentos (que poderá ser admissível e saudável numa sociedade democrática) da ofensa que atinge a própria pessoa, enquanto tal, na sua dignidade, também permitem distinguir a expressão argumentativa de discordância, no âmbito do debate de ideias, em relação a uma qualquer religião (ou a todas), da invectiva ultrajante que fere, ridiculariza ou humilha. Há que distinguir a crítica, típica de sociedades tolerantes, da ofensa e do ultraje, que são uma clara expressão de intolerância.
Podem, pois, os muçulmanos reclamar o respeito que lhes é devido nas sociedades livres e democráticas. Terão de fazê-lo, porém, na observância do quadro legal dessas sociedades, que separa o Estado e a sociedade civil (por isso, não pode um Estado ser responsabilizado pelo que é publicado num jornal), assim como separa o poder executivo e o poder judicial (sendo que é só a este que cabe dirimir este tipo de conflitos). E, sobretudo, que não permitem que a religião possa ser pretexto para manifestações de violência.
Como cristão, não posso deixar de exprimir esta minha convicção: certamente Deus será mais ofendido quando o Seu nome é utilizado para justificar o ódio e a violência do que quando é visado por uma caricatura ultrajante e de mau gosto. Como tem salientado o Papa Bento XVI, é um grave abuso (uma verdadeira blasfémia) usar o nome de Deus, que é Amor (Deus caritas est – foi o título escolhido por este Papa para a sua primeira encíclica), para justificar o ódio, a vingança e a violência. Também a maior parte dos muçulmanos («o verdadeiro Islão» a que se referiu várias vezes João Paulo II) associa Deus à misericórdia, e não ao ódio. Por isso, é compreensível que os muçulmanos se sintam indignados com caricaturas que associam Maomé ao terrorismo. Mas quem exprime essa indignação através da violência cai numa evidente contradição.
Para evitar que, a partir de situações como esta, se desencadeie um conflito de civilizações, devem as sociedades democráticas ocidentais atender aos limites da liberdade de expressão e ao respeito devido aos sentimentos religiosos das pessoas. Mas, por outro lado, devem os responsáveis muçulmanos afirmar com vigor que é abusivo invocar o Islão como justificação para a violência.
Pedro Vaz Patto
Guerra imediata contra o Irão
O conhecido cronista Luís Salgado de Matos acaba de declarar guerra ao Irão. E já disse como vai ser: cirúrgica, sobre os centros nucleares, não nuclear e sem mortos (sem danos colaterais, portanto). Delegou a guerra na NATO. (Não sabemos se esta organização foi ouvida.)
Deus nos proteja contra certos pregadores. Deus lhes dê juízo.
Deus nos proteja contra certos pregadores. Deus lhes dê juízo.
Ainda as caricaturas dinamarquesas
Já me pronunciei anteriormente sobre este tema, nos dias 3 e 7 deste mês. Poderei resumir a minha posição assim: a reacção "fundamentalista" dos muçulmanos não é de natureza religiosa ou "civilizacional", mas política; não é dirigida contra a(s) liberdade(s) ou a democracia, mas sim contra o modo como o "Ocidente" tem intervindo no mundo muçulmano e especialmente no mundo árabe (e especialmente na Palestina e ultimamente no Iraque).
Posto isto, considero que é inegável que as caricaturas têm um sentido ofensivo (ao associar a religião muçulmana ao terrorismo), mas que, por outro lado, dada a restrita difusão do jornal onde foram inicialmente publicadas, nunca teriam repercussão significativa se não tivessem recebido o efeito multiplicador provocado pela sua "denúncia" junto dos países muçulmanos. Este é um caso em que é o ofendido que difunde e multiplica a ofensa. Mas também é evidente que o momento político que se vive no Médio Oriente, nomeadamente, não é para gracinhas e qualquer equívoco pode funcionar como rastilho. O mundo árabe, em especial, sente-se profundamente ferido. E acontece que a Dinamarca participa na ocupação do Iraque e que também militares dinamarqueses praticaram "abusos" contra prisioneiros, reconhecidos e punidos recentemente em tribunais dinamarqueses.
Mais duas notas marginais. A primeira para a manifestação de "solidariedade" junto da embaixada dinamarquesa em Lisboa. A Dinamarca é um país estimável a muitos títulos, mas não certamente por ser "mais rico, mais protestante e mais alto" que Portugal!!! (Ou seria uma tentativa de humor? Mas o humor sem piada é lastimável). A segunda é igualmente para lamentar o rudimentar nível de análise a que desceu o filósofo Fernando Gil. Segundo ele, as manifestações contra as caricaturas mostram que o mundo muçulmano entrou "oficialmente" em guerra contra o Ocidente!!! Penso que até Bush já consegue análises mais elaboradas do mundo de hoje...
Posto isto, considero que é inegável que as caricaturas têm um sentido ofensivo (ao associar a religião muçulmana ao terrorismo), mas que, por outro lado, dada a restrita difusão do jornal onde foram inicialmente publicadas, nunca teriam repercussão significativa se não tivessem recebido o efeito multiplicador provocado pela sua "denúncia" junto dos países muçulmanos. Este é um caso em que é o ofendido que difunde e multiplica a ofensa. Mas também é evidente que o momento político que se vive no Médio Oriente, nomeadamente, não é para gracinhas e qualquer equívoco pode funcionar como rastilho. O mundo árabe, em especial, sente-se profundamente ferido. E acontece que a Dinamarca participa na ocupação do Iraque e que também militares dinamarqueses praticaram "abusos" contra prisioneiros, reconhecidos e punidos recentemente em tribunais dinamarqueses.
Mais duas notas marginais. A primeira para a manifestação de "solidariedade" junto da embaixada dinamarquesa em Lisboa. A Dinamarca é um país estimável a muitos títulos, mas não certamente por ser "mais rico, mais protestante e mais alto" que Portugal!!! (Ou seria uma tentativa de humor? Mas o humor sem piada é lastimável). A segunda é igualmente para lamentar o rudimentar nível de análise a que desceu o filósofo Fernando Gil. Segundo ele, as manifestações contra as caricaturas mostram que o mundo muçulmano entrou "oficialmente" em guerra contra o Ocidente!!! Penso que até Bush já consegue análises mais elaboradas do mundo de hoje...
Um homem virtuoso
Levanta-se cedo e deita-se muito antes da meia-noite. Sai logo de manhãzinha para o trabalho e (sempre que pode) leva os filhos para o colégio. Chega a casa, depois de um estafante dia de trabalho, entre as 19,30 e as 20 horas e raramente volta a sair. O resto do tempo é para a família, assim como os fins de semana. Não janta, come alguma coisa de duas em duas horas. Senhor de um bom coração, não tem inimigos. É modesto, ponderado, gosta de ouvir os outros e de tratá-los com respeito. Não se mete em política.
E este homem simples é simplesmente o herdeiro do homem mais rico de Portugal. Mas, note-se, tal como ao pai, pouco lhe interessa a riqueza: a sua ambição é criar valor e muito pouco usufruir os frutos da riqueza criada. Ao ponto de, quando vai gozar férias na neve, partilhar a mesma casa com amigos, e este ano vai trocar a Suíça por França por causa do preço. (Para quem quiser saber mais pormenores, veja o Público de 12 passado, pp. 36-37.)
Este homem não é apenas virtuoso, é quase um santo. Por isso é rico. Por isso merece ser rico.
E nós, os pobres, os remediados, os medianamente abastados, que nos levantamos tarde, que quase nunca levamos os filhos à escola (muito menos ao "colégio"), que nos empanturramos ao almoço e ainda queremos jantar, que gostamos de sair à noite e aos fins de semana, que até temos alguns inimigos (certamente por causa do "coração"), que às vezes até nos irritamos com os outros, em especial os familiares, que gostamos de política, como haveríamos de ter direito a férias na neve (aliás perigosas para os plebeus, como sabemos)?! A riqueza é para os virtuosos. A nós, os pecadores, resta-nos a inveja, esse mal nacional diagnosticado por José Gil. Invejamos os ricos, mas não sabemos ser virtuosos como eles, não queremos assumir uma vida de sacrifícios e renúncias como eles levam. Qual a admiração que os deuses (no plural, para não ferir susceptibilidades entre eles) se ponham do lado dos ricos?
E este homem simples é simplesmente o herdeiro do homem mais rico de Portugal. Mas, note-se, tal como ao pai, pouco lhe interessa a riqueza: a sua ambição é criar valor e muito pouco usufruir os frutos da riqueza criada. Ao ponto de, quando vai gozar férias na neve, partilhar a mesma casa com amigos, e este ano vai trocar a Suíça por França por causa do preço. (Para quem quiser saber mais pormenores, veja o Público de 12 passado, pp. 36-37.)
Este homem não é apenas virtuoso, é quase um santo. Por isso é rico. Por isso merece ser rico.
E nós, os pobres, os remediados, os medianamente abastados, que nos levantamos tarde, que quase nunca levamos os filhos à escola (muito menos ao "colégio"), que nos empanturramos ao almoço e ainda queremos jantar, que gostamos de sair à noite e aos fins de semana, que até temos alguns inimigos (certamente por causa do "coração"), que às vezes até nos irritamos com os outros, em especial os familiares, que gostamos de política, como haveríamos de ter direito a férias na neve (aliás perigosas para os plebeus, como sabemos)?! A riqueza é para os virtuosos. A nós, os pecadores, resta-nos a inveja, esse mal nacional diagnosticado por José Gil. Invejamos os ricos, mas não sabemos ser virtuosos como eles, não queremos assumir uma vida de sacrifícios e renúncias como eles levam. Qual a admiração que os deuses (no plural, para não ferir susceptibilidades entre eles) se ponham do lado dos ricos?
Circulação entre a política e os negócios
Manuela Ferreira Leite vai entrar para a administração do Banco Santander de Negócios, onde vai encontrar outras figuras ilustres da vida política, ex-governantes: António Vitorino, Eurico de Melo, António Borges (este, ainda aspirante a governante), Elias da Costa. Outros ex-ministros e ex-secretários de Estado estão noutros grupos financeiros.
No tempo do antigamente era vulgar os ministros, ao deixarem de o ser, passarem a administradores de bancos e grandes empresas. A (maledicente) oposição criticava (baixinho, claro) essa circulação, falando de "promiscuidade" entre a governação da coisa pública e a gestão do capital privado.
Enganava-se, porém: esse movimento existe tanto em ditadura como em democracia - está inscrito na ordem natural das coisas.
No tempo do antigamente era vulgar os ministros, ao deixarem de o ser, passarem a administradores de bancos e grandes empresas. A (maledicente) oposição criticava (baixinho, claro) essa circulação, falando de "promiscuidade" entre a governação da coisa pública e a gestão do capital privado.
Enganava-se, porém: esse movimento existe tanto em ditadura como em democracia - está inscrito na ordem natural das coisas.
Álvaro Lapa
11 fevereiro 2006
A sagrada liberdade de expressão
Escrevi um artigo no JN sobre a liberdade de expressão, a propósito das mundializadas caricaturas dinamarquesas. Escrevi contra a corrente (uma certa corrente) e com a intenção de também provocar. Mas depois quase me arrependi. Escrever é arriscar uma opinião na flutuação das águas e, justamente por isso, Augusto Abelaira titulava as suas saudosas crónicas de «Escrever na Água». No próprio dia em que mandei a crónica para o JN, fui no comboio para Lisboa com o meu amigo Manuel António Pina, que tinha escrito sobre o tema em sentido oposto ao meu. Debatemos o assunto e chegámos à conclusão que estávamos de acordo quanto ao essencial, mas divergíamos na forma. De qualquer maneira, se pudesse retirar o escrito, tinha-o feito. No dia seguinte – dia da publicação do artigo – nem quis olhar para o jornal. Sucede que ontem, sexta-feira, li no «Público» a opinião de Saramago, a convergir com a minha. Ao lado, porém, vinha a opinião do filósofo Fernando Gil, em sentido diametralmente oposto. A conclusão a tirar é a seguinte: o tema da liberdade de expressão converteu-se, afinal, num tema fracturante, mesmo deste lado do mundo. E o que é que não é fracturante nos dias que correm, em que deixaram de se verificar os alinhamentos nítidos em relação a questões fundamentais e não fundamentais, com frequência se deparando posições de pessoas à esquerda ou à direita que nos surpreendem?
O texto da minha crónica era o seguinte:
«A liberdade de expressão é um valor fundamental. Tão fundamental, que às vezes ela é defendida de uma forma fundamentalista. Tendo sido duramente conquistada ao espaço do sagrado em nome da autonomia humana, frequentemente se tem visto entronizá-la no espaço do sagrado. Tornou-se, por isso, um valor indiscutível, uma espécie de dogma de carácter laico. Não é por acaso que tão correntemente se adjectiva a liberdade de expressão de «sagrada» - a «sagrada liberdade de expressão». Se com isso se pretende acentuar o carácter fundamental da liberdade de expressão, quer como direito ou liberdade que está na base de quase todos os outros direitos, liberdades e garantias, quer ainda como direito que faz parte daquele núcleo de direitos impostergáveis do indivíduo ou do cidadão, certo é que, muitas vezes, se descamba para a sua defesa como valor indiscutível, dogmático e sacralizado. A liberdade de expressão não se discute e ponto final. É assim que se tem processado uma grande parte da discussão travada em torno das caricaturas de Maomé. Dessa forma, opõe-se uma espécie de fundamentalismo a outro fundamentalismo, um de carácter laico e outro, religioso. Ora, a liberdade de expressão claro que é fundamental, mas não se impõe como um absoluto. O que está em causa é o seu uso concreto em face de outros valores. E se a liberdade de expressão pode exercer-se sobre todo e qualquer objecto, aí residindo provavelmente o seu absoluto, é preciso ponderar na prática o seu uso e a forma do seu uso, ou seja, ver em que circunstâncias é que ela vai ser exercida, a finalidade que se pretende obter e o modo e o meio que se vão usar para atingir esse fim, porque tudo isso é relevante. Não se trata de pura cedência, como às vezes se ouve; trata-se de ponderação».
A opinião de Saramago é a seguinte:
«Que algumas manifestações tenham sido organizadas não deve surpreender-nos, porque já se sabe como é fácil. E também não me surpreendeu a violência com que se deram. O que me apanhou mesmo desprevenido foi a irresponsabilidade do autor ou dos autores dos desenhos. Alguns opinam que a liberdade de expressão é um direito absoluto, o único direito absoluto que existe, enquanto todos os outros são relativos. A realidade crua impõe limites. Imaginemos que o desenhador dinamarquês, em vez de fazer um desenho a ridicularizar Maomé, faz um dizendo que o director do jornal é um imbecil. Seria muito corajoso, mas no dia seguinte estaria provavelmente na rua. Autocensura? Não se trataria de autocensura, mas de usar o senso comum. Numa situação como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que há em redor destes temas, o senso comum ditar-nos-ia o que fazer. Alguém verdadeiramente responsável que tivesse consciência de que um desenho pode ser como lançar gasolina sobre o fogo, guardá-lo-ia para melhor ocasião.»
É o autor do «Evangelho Sobre Jesus Cristo», um livro que um Secretário de Estado queria mandar para a fogueira e que, na realidade pôs no índex, quem assim fala. Não que a opinião de Saramago deva ser sobrevalorizada, mas de qualquer maneira a sua opinião ilustra o que comecei por dizer: hoje não há praticamente tema nenhum que seja indiscutível e que congregue no mesmo barco pessoas aparentemente da mesma família. Há no entanto uma posição que se me assemelha clara: a liberdade de expressão não deve ser limitada para além dos limites que a lei e a Constituição impõem para salvaguarda de outros direitos fundamentais. Nomeadamente, não deve ser limitada pela pressuposta intocabilidade de símbolos ou dogmas religiosos ou por uma espécie de interdito relativamente ao sagrado. Nem tão pouco por uma pressuposta ofensa de sentimentos religiosos de quem quer que seja. Neste campo, o que há a salvaguardar é a liberdade de culto e de crença, e temos de reconhecer que as caricaturas, por muito inoportunas e de mau gosto que sejam, não lesam esses direitos. O problema é outro. Se a pintora Paula Rego, por exemplo, fizesse nesta altura uma série de quadros, no seu conhecido estilo, em que satirizasse pesadamente o profeta Maomé e a relação da religião com as «guerras santas», isso não seria certamente contestável, a não ser provavelmente com critérios estéticos. Fazer caricaturas num jornal, como as que foram feitas, num momento destes, tem um sentido diferente e acho que não pode ser defendido da mesma maneira.
O texto da minha crónica era o seguinte:
«A liberdade de expressão é um valor fundamental. Tão fundamental, que às vezes ela é defendida de uma forma fundamentalista. Tendo sido duramente conquistada ao espaço do sagrado em nome da autonomia humana, frequentemente se tem visto entronizá-la no espaço do sagrado. Tornou-se, por isso, um valor indiscutível, uma espécie de dogma de carácter laico. Não é por acaso que tão correntemente se adjectiva a liberdade de expressão de «sagrada» - a «sagrada liberdade de expressão». Se com isso se pretende acentuar o carácter fundamental da liberdade de expressão, quer como direito ou liberdade que está na base de quase todos os outros direitos, liberdades e garantias, quer ainda como direito que faz parte daquele núcleo de direitos impostergáveis do indivíduo ou do cidadão, certo é que, muitas vezes, se descamba para a sua defesa como valor indiscutível, dogmático e sacralizado. A liberdade de expressão não se discute e ponto final. É assim que se tem processado uma grande parte da discussão travada em torno das caricaturas de Maomé. Dessa forma, opõe-se uma espécie de fundamentalismo a outro fundamentalismo, um de carácter laico e outro, religioso. Ora, a liberdade de expressão claro que é fundamental, mas não se impõe como um absoluto. O que está em causa é o seu uso concreto em face de outros valores. E se a liberdade de expressão pode exercer-se sobre todo e qualquer objecto, aí residindo provavelmente o seu absoluto, é preciso ponderar na prática o seu uso e a forma do seu uso, ou seja, ver em que circunstâncias é que ela vai ser exercida, a finalidade que se pretende obter e o modo e o meio que se vão usar para atingir esse fim, porque tudo isso é relevante. Não se trata de pura cedência, como às vezes se ouve; trata-se de ponderação».
A opinião de Saramago é a seguinte:
«Que algumas manifestações tenham sido organizadas não deve surpreender-nos, porque já se sabe como é fácil. E também não me surpreendeu a violência com que se deram. O que me apanhou mesmo desprevenido foi a irresponsabilidade do autor ou dos autores dos desenhos. Alguns opinam que a liberdade de expressão é um direito absoluto, o único direito absoluto que existe, enquanto todos os outros são relativos. A realidade crua impõe limites. Imaginemos que o desenhador dinamarquês, em vez de fazer um desenho a ridicularizar Maomé, faz um dizendo que o director do jornal é um imbecil. Seria muito corajoso, mas no dia seguinte estaria provavelmente na rua. Autocensura? Não se trataria de autocensura, mas de usar o senso comum. Numa situação como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que há em redor destes temas, o senso comum ditar-nos-ia o que fazer. Alguém verdadeiramente responsável que tivesse consciência de que um desenho pode ser como lançar gasolina sobre o fogo, guardá-lo-ia para melhor ocasião.»
É o autor do «Evangelho Sobre Jesus Cristo», um livro que um Secretário de Estado queria mandar para a fogueira e que, na realidade pôs no índex, quem assim fala. Não que a opinião de Saramago deva ser sobrevalorizada, mas de qualquer maneira a sua opinião ilustra o que comecei por dizer: hoje não há praticamente tema nenhum que seja indiscutível e que congregue no mesmo barco pessoas aparentemente da mesma família. Há no entanto uma posição que se me assemelha clara: a liberdade de expressão não deve ser limitada para além dos limites que a lei e a Constituição impõem para salvaguarda de outros direitos fundamentais. Nomeadamente, não deve ser limitada pela pressuposta intocabilidade de símbolos ou dogmas religiosos ou por uma espécie de interdito relativamente ao sagrado. Nem tão pouco por uma pressuposta ofensa de sentimentos religiosos de quem quer que seja. Neste campo, o que há a salvaguardar é a liberdade de culto e de crença, e temos de reconhecer que as caricaturas, por muito inoportunas e de mau gosto que sejam, não lesam esses direitos. O problema é outro. Se a pintora Paula Rego, por exemplo, fizesse nesta altura uma série de quadros, no seu conhecido estilo, em que satirizasse pesadamente o profeta Maomé e a relação da religião com as «guerras santas», isso não seria certamente contestável, a não ser provavelmente com critérios estéticos. Fazer caricaturas num jornal, como as que foram feitas, num momento destes, tem um sentido diferente e acho que não pode ser defendido da mesma maneira.
09 fevereiro 2006
Portugal e a licenciosidade
Circunstâncias particulares impediram-me nos últimos dias de acompanhar a comunicação social e a blogosfera portuguesas, até que ontem à noite tive oportunidade de passar uma vista de olhos pelos jornais e aí li um texto imputado a Sua Excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.
Hoje, só ao fim da tarde, pude tentar a confirmação no sítio do ministério dos negócios estrangeiros, onde encontrei a declaração do sr. Ministro «sobre a crise dos cartoons». Constatei então que constitui um texto cuja síntese e riqueza geram um desafio hermenêutico para o intérprete, em particular para o jurista já que lá se fala de direitos, em particular da «liberdade de expressão», da «liberdade religiosa» e dos limites da primeira.
Este postal é apenas uma confissão ou um pedido de ajuda, pois em nenhum dos vários segmentos em que se revelou necessária interpretação consegui chegar a uma resposta.
Hoje, só ao fim da tarde, pude tentar a confirmação no sítio do ministério dos negócios estrangeiros, onde encontrei a declaração do sr. Ministro «sobre a crise dos cartoons». Constatei então que constitui um texto cuja síntese e riqueza geram um desafio hermenêutico para o intérprete, em particular para o jurista já que lá se fala de direitos, em particular da «liberdade de expressão», da «liberdade religiosa» e dos limites da primeira.
Este postal é apenas uma confissão ou um pedido de ajuda, pois em nenhum dos vários segmentos em que se revelou necessária interpretação consegui chegar a uma resposta.
Desde logo fui incapaz de deslindar a quem imputar a declaração:
Se ao Estado português pois a declaração inicia-se por «Portugal lamenta...» (e na afirmativa, avaliar se nesta matéria existiu concertação de órgãos de soberania, nomeadamente com a Presidência da República)
Se ao executivo (realmente não parece que deva ser sua excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a expressar as posições do Presidente da República)
Se a Sua Excelência o sr. Ministro de Estado e dos Negócios estrangeiros que assina o texto?
Se ao sr. professor doutor de direito já que no texto se encerram vários elementos retóricos de uma lição?
Se ao dramaturgo que também é, dado o tom dramático (e até parece que esse autor reconhecido, para gáudio colectivo, pode, a breve prazo, ser um dos «autores nacionais» representados no Dª Maria)?
Se o historiador marcado pelo exemplo da personagem que o fascina, um tal de D. Afonso Henriques que se destacou pelo exemplo de ecumenismo respeitoso do islamismo e que não suportava quaisquer abusos que fossem perpetrados contra os muçulmanos pelas hordas do norte da Europa?
Nem sequer consegui perceber quem seriam os destinatários:
Serão os portugueses que ficam assim a saber a distinção entre liberdade e licenciosidade (o texto até está escrito na língua de Camões)?
Será a imprensa já que o texto vem na entrada relativa a «informações à imprensa»,
O mundo? Já que é o titular da pasta dos negócios estrangeiros que comunica de forma segura e clara logo no primeiro parágrafo que «Portugal lamenta e discorda da publicação».
As vítimas? Os muçulmanos atingidos, em especial aqueles cujo sofrimento é mais intenso sempre revivido quando na sua leitura diária compulsam a imprensa europeia e por força dessa dor se manifestam contra a violação da sua «liberdade religiosa»;
Os agressores? Os dinamarqueses, em particular o autor do cartoon, o jornal que o publica e o Estado dinamarquês que não só deixa que o mesmo seja publicado como, pelo menos até à elaboração da citada declaração, deixou impunes os autores da heresia;
A própria natureza do texto escapou-me:
Será um texto jurídico e normativo? Sobre «o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que se professa»; ou
Teológico? Pois lá esclarece-se, em tom dogmático, que «Para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da sua Mãe, a Virgem Maria», «Para os muçulmanos um dos principais símbolos é a figura do Profeta Maomé»; e «as três religiões monoteístas (cristã, muçulmana e hebraica) descendem todas do mesmo profeta, Abraão»; ou
Histórico? «O que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável»; ou uma simples
Crítica de jornal, onde se «lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas»?
E em face de tantas lacunas gnoseológicas fui totalmente incapaz de atingir a teleologia da declaração:
Desde logo, por força das dúvidas relativas ao declarante e destinatários:
Por ex. se o autor for o dramaturgo será que está a fazer teatro? E se for o historiador? será que tem algum interesse em escrever história sobre a causa da «guerra das religiões» ou apenas dar o testemunho de uma estória exemplar? Mas mesmo que seja o subscritor (apenas numa ou na sua pluralidade de vestes não só de professor e jurista, mas também ministro, dramaturgo, historiador, activista política e crítico de arte) quem serão os destinatários e porquê: Os muçulmanos que estão indignados, pretendendo-se um discurso do tipo «ouçam bem quem ‘lamenta e discorda’», e acha que a vossa «liberdade religiosa» foi atingida, e que quem o fez e aceitou tal publicação é um... é um... é um... é um licencioso (eventualmente esse até será uma boa palavra de luta para aqueles cuja liberdade foi atingida, ainda que de uma forma caricatural, para ser utilizada nos seus ajuntamentos pacíficos (tipo, «dinamarqueses seus licenciosos»). Oh não será isso, sua excelência que tem uma reconhecida coragem (demonstrada em vários episódios que por vezes são esquecidos), não está propriamente preocupado com as vítimas dos licenciosos que viram atingida a sua liberdade religiosa mas com os bárbaros agressores da liberdade religiosa, os licenciosos dinamarqueses.
No fundo quer o texto seja atribuído à pessoa de quem o assina ou a Portugal em nome de quem é escrito: existe uma confluência de variações possíveis; sou(mos) europeu(s) mas não licencioso(s), discordo(amos) da publicação daqueles cartoons, etc, etc
E se o destinatário for a imprensa? O texto é uma orientação política para a análise da oficialmente designada «crise dos cartoons»? Ou uma advertência para futuro sobre a «discordância» quanto à «publicação» de certos cartoons e textos, e sobre a delimitação da liberdade. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas...
A falha de interpretação é tão plena que confesso que nem sequer interiorizei verdadeiramente a norma moral que tão generosamente me é oferecida «A liberdade sem limites não é liberdade, mas licenciosidade», pois se este não fosse um «blog decente» , e debalde o esforço de adequação do intérprete à seriedade do interpretado, se calhar não resistiria a, numa atitude algo licenciosa, concluir que talvez a declaração de S. Excelência o Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros não passe de um texto de ... reduzido interesse!
Se ao Estado português pois a declaração inicia-se por «Portugal lamenta...» (e na afirmativa, avaliar se nesta matéria existiu concertação de órgãos de soberania, nomeadamente com a Presidência da República)
Se ao executivo (realmente não parece que deva ser sua excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a expressar as posições do Presidente da República)
Se a Sua Excelência o sr. Ministro de Estado e dos Negócios estrangeiros que assina o texto?
Se ao sr. professor doutor de direito já que no texto se encerram vários elementos retóricos de uma lição?
Se ao dramaturgo que também é, dado o tom dramático (e até parece que esse autor reconhecido, para gáudio colectivo, pode, a breve prazo, ser um dos «autores nacionais» representados no Dª Maria)?
Se o historiador marcado pelo exemplo da personagem que o fascina, um tal de D. Afonso Henriques que se destacou pelo exemplo de ecumenismo respeitoso do islamismo e que não suportava quaisquer abusos que fossem perpetrados contra os muçulmanos pelas hordas do norte da Europa?
Nem sequer consegui perceber quem seriam os destinatários:
Serão os portugueses que ficam assim a saber a distinção entre liberdade e licenciosidade (o texto até está escrito na língua de Camões)?
Será a imprensa já que o texto vem na entrada relativa a «informações à imprensa»,
O mundo? Já que é o titular da pasta dos negócios estrangeiros que comunica de forma segura e clara logo no primeiro parágrafo que «Portugal lamenta e discorda da publicação».
As vítimas? Os muçulmanos atingidos, em especial aqueles cujo sofrimento é mais intenso sempre revivido quando na sua leitura diária compulsam a imprensa europeia e por força dessa dor se manifestam contra a violação da sua «liberdade religiosa»;
Os agressores? Os dinamarqueses, em particular o autor do cartoon, o jornal que o publica e o Estado dinamarquês que não só deixa que o mesmo seja publicado como, pelo menos até à elaboração da citada declaração, deixou impunes os autores da heresia;
A própria natureza do texto escapou-me:
Será um texto jurídico e normativo? Sobre «o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que se professa»; ou
Teológico? Pois lá esclarece-se, em tom dogmático, que «Para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da sua Mãe, a Virgem Maria», «Para os muçulmanos um dos principais símbolos é a figura do Profeta Maomé»; e «as três religiões monoteístas (cristã, muçulmana e hebraica) descendem todas do mesmo profeta, Abraão»; ou
Histórico? «O que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável»; ou uma simples
Crítica de jornal, onde se «lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas»?
E em face de tantas lacunas gnoseológicas fui totalmente incapaz de atingir a teleologia da declaração:
Desde logo, por força das dúvidas relativas ao declarante e destinatários:
Por ex. se o autor for o dramaturgo será que está a fazer teatro? E se for o historiador? será que tem algum interesse em escrever história sobre a causa da «guerra das religiões» ou apenas dar o testemunho de uma estória exemplar? Mas mesmo que seja o subscritor (apenas numa ou na sua pluralidade de vestes não só de professor e jurista, mas também ministro, dramaturgo, historiador, activista política e crítico de arte) quem serão os destinatários e porquê: Os muçulmanos que estão indignados, pretendendo-se um discurso do tipo «ouçam bem quem ‘lamenta e discorda’», e acha que a vossa «liberdade religiosa» foi atingida, e que quem o fez e aceitou tal publicação é um... é um... é um... é um licencioso (eventualmente esse até será uma boa palavra de luta para aqueles cuja liberdade foi atingida, ainda que de uma forma caricatural, para ser utilizada nos seus ajuntamentos pacíficos (tipo, «dinamarqueses seus licenciosos»). Oh não será isso, sua excelência que tem uma reconhecida coragem (demonstrada em vários episódios que por vezes são esquecidos), não está propriamente preocupado com as vítimas dos licenciosos que viram atingida a sua liberdade religiosa mas com os bárbaros agressores da liberdade religiosa, os licenciosos dinamarqueses.
No fundo quer o texto seja atribuído à pessoa de quem o assina ou a Portugal em nome de quem é escrito: existe uma confluência de variações possíveis; sou(mos) europeu(s) mas não licencioso(s), discordo(amos) da publicação daqueles cartoons, etc, etc
E se o destinatário for a imprensa? O texto é uma orientação política para a análise da oficialmente designada «crise dos cartoons»? Ou uma advertência para futuro sobre a «discordância» quanto à «publicação» de certos cartoons e textos, e sobre a delimitação da liberdade. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas...
A falha de interpretação é tão plena que confesso que nem sequer interiorizei verdadeiramente a norma moral que tão generosamente me é oferecida «A liberdade sem limites não é liberdade, mas licenciosidade», pois se este não fosse um «blog decente» , e debalde o esforço de adequação do intérprete à seriedade do interpretado, se calhar não resistiria a, numa atitude algo licenciosa, concluir que talvez a declaração de S. Excelência o Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros não passe de um texto de ... reduzido interesse!
A Vergonha dos E.U.A……….
Quando há dias ouvimos na TV o líder cubano Fidel Castro referir-se em termos depreciativos ao Presidente dos E.U.A. G. W. Bush, até apetece dar-lhe razão, face às múltiplas situações negativas em que nestes últimos tempos se tem envolvido aquela grande nação norte-americana. A última conhecida decorre do registo feito em relatório do Conselho da Europa acerca do sequestro, verdadeiro sequestro, de presumidos “terroristas” levado a cabo por serviços da CIA, sujeitando-os a maus-tratos e a torturas. Deter cidadãos em países-terceiros, transferi-los em transporte aéreo para locais desconhecidos, para os encarcerar, maltratar e torturar, a fim de colher informações através dos interrogatórios – havendo de tudo isso indícios fortes, de acordo com o referido relatório – é fazer corar de vergonha o povo dos E.U.A.
Depois, é a realidade terrível de Guantanamo, nas barbas de Cuba, que dura há vários anos, onde “vegetam” centenas de prisioneiros de várias nacionalidades, ditos “prisioneiros de guerra”, segundo a linguagem das autoridades Norte-Americanas, sujeitando-os a humilhações, sem qualquer controlo judicial da detenção e sem julgamento, por tempo indeterminado, é outra vergonha que faz corar de vergonha os E.U.A.
Por último, e sem mencionar os vários actos de guerra em que por todo o mundo as autoridades políticas e militares dos E.U.A. se envolveram há vários anos, a pretexto de “guerras preventivas”, como que globalizando o belicismo, há a situação recentemente anunciada nos E.U.A., e que se pretende aí implantar, da intercepção e gravação das escutas telefónicas, sem mandado judicial, com o fundamento de perigo eventual de actos de terrorismo que poderão surgir no seu território, e é também mais um ponto vergonhoso para aquele país.
Ainda bem que estamos na velha Europa e neste Portugal, cuja CRP proclama as garantias de defesa em processo criminal (art. 32º), as garantias da pessoa privada da liberdade (art. 27º), a proibição da tortura e maus tratos (art. 25º, nº 2 e 32º, nº 8), a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações (art. 34º, nº 6) e da abusiva intromissão nas telecomunicações (artº 32º, nº 8).
Estarão estas garantias fundamentais do cidadão expressas na Lei Fundamental e suas emendas dos E.U.A.?
Em tudo isto, porém, a Europa não está inocente, pois o silêncio cúmplice face aos E.U.A. compromete a defesa daquelas garantias fundamentais do cidadão. É preciso, por isso, que, dia a dia, todos nós, europeus, gritemos bem alto a indignação e a revolta perante aqueles que se arrogam ser “donos do mundo” e continuam a beneficiar de uma impunidade iníqua.
Depois, é a realidade terrível de Guantanamo, nas barbas de Cuba, que dura há vários anos, onde “vegetam” centenas de prisioneiros de várias nacionalidades, ditos “prisioneiros de guerra”, segundo a linguagem das autoridades Norte-Americanas, sujeitando-os a humilhações, sem qualquer controlo judicial da detenção e sem julgamento, por tempo indeterminado, é outra vergonha que faz corar de vergonha os E.U.A.
Por último, e sem mencionar os vários actos de guerra em que por todo o mundo as autoridades políticas e militares dos E.U.A. se envolveram há vários anos, a pretexto de “guerras preventivas”, como que globalizando o belicismo, há a situação recentemente anunciada nos E.U.A., e que se pretende aí implantar, da intercepção e gravação das escutas telefónicas, sem mandado judicial, com o fundamento de perigo eventual de actos de terrorismo que poderão surgir no seu território, e é também mais um ponto vergonhoso para aquele país.
Ainda bem que estamos na velha Europa e neste Portugal, cuja CRP proclama as garantias de defesa em processo criminal (art. 32º), as garantias da pessoa privada da liberdade (art. 27º), a proibição da tortura e maus tratos (art. 25º, nº 2 e 32º, nº 8), a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações (art. 34º, nº 6) e da abusiva intromissão nas telecomunicações (artº 32º, nº 8).
Estarão estas garantias fundamentais do cidadão expressas na Lei Fundamental e suas emendas dos E.U.A.?
Em tudo isto, porém, a Europa não está inocente, pois o silêncio cúmplice face aos E.U.A. compromete a defesa daquelas garantias fundamentais do cidadão. É preciso, por isso, que, dia a dia, todos nós, europeus, gritemos bem alto a indignação e a revolta perante aqueles que se arrogam ser “donos do mundo” e continuam a beneficiar de uma impunidade iníqua.
Os Juízes, os Direitos Fundamentais e os Ditos Privilégios (Terceira e Última Abordagem)
Os juízes suportam as restrições e incompatibilidades apontadas nas anteriores abordagens, mas persiste o hábito da sociedade em falar nos “privilégios” de que eles supostamente gozam. Esquecem todos que há ainda outras limitações estatutárias, à sombra do art. 216º, nº 5, CRP, que também afrontam Direitos Fundamentais consagrados na CRP.
Assim, o dever de reserva estabelecido no art. 12º do EMJ, que se estende a “declarações ou comentários sobre processos” (e fica a dúvida se são só os processos pendentes ou aqueles já definitivamente julgados e arquivados) e a matérias cobertas pelo “segredo de justiça ou pelo segredo profissional”. Traduzindo tudo isto um silêncio absoluto sobre a vida profissional dos juízes, é um espaço alargado sobre a limitação da liberdade de expressão, que é uma garantia fundamental consagrada no art. 37º, nº 1, CRP e é um esteio de uma sociedade democrática, que “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. E briga ainda com o direito de informar, que é conatural à liberdade de expressão e o próprio art. 12º, nº 2 do EMJ, ressalva expressamente.
Depois, a limitação decorrente do domicílio necessário imposto no art. 8º, do EMJ – na sede do Tribunal ou, quando muito, “em qualquer ponto da circunscrição judicial”, desde que não haja inconveniente para o exercício de funções –, o que restringe o direito de deslocação garantido no art. 44º, nº 1, CRP, que implica também o direito dos cidadãos de se “fixarem livremente em qualquer parte do território nacional”. Num país, como o nosso, tão pequeno, e hoje com fáceis vias de comunicação e ofertas de transportes públicos, impor a um juiz que resida numa localidade que não oferece perspectivas de vida social cómoda e de bem-estar cultural e educacional, é uma violência constitucionalmente inadmissível. O que pode relevar é que o juiz garanta o adequado exercício de funções e seja chamado à responsabilidade disciplinar, se o não fizer, resida ou não na sede do tribunal.
Com este quadro de restrições, incompatibilidades e limitações estatutárias a que me venho referindo nestas peças do blog e que certamente não é esgotante, fica a pergunta: que “privilégios”, afinal, disfrutam os juízes na sua vivência social?
Assim, o dever de reserva estabelecido no art. 12º do EMJ, que se estende a “declarações ou comentários sobre processos” (e fica a dúvida se são só os processos pendentes ou aqueles já definitivamente julgados e arquivados) e a matérias cobertas pelo “segredo de justiça ou pelo segredo profissional”. Traduzindo tudo isto um silêncio absoluto sobre a vida profissional dos juízes, é um espaço alargado sobre a limitação da liberdade de expressão, que é uma garantia fundamental consagrada no art. 37º, nº 1, CRP e é um esteio de uma sociedade democrática, que “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. E briga ainda com o direito de informar, que é conatural à liberdade de expressão e o próprio art. 12º, nº 2 do EMJ, ressalva expressamente.
Depois, a limitação decorrente do domicílio necessário imposto no art. 8º, do EMJ – na sede do Tribunal ou, quando muito, “em qualquer ponto da circunscrição judicial”, desde que não haja inconveniente para o exercício de funções –, o que restringe o direito de deslocação garantido no art. 44º, nº 1, CRP, que implica também o direito dos cidadãos de se “fixarem livremente em qualquer parte do território nacional”. Num país, como o nosso, tão pequeno, e hoje com fáceis vias de comunicação e ofertas de transportes públicos, impor a um juiz que resida numa localidade que não oferece perspectivas de vida social cómoda e de bem-estar cultural e educacional, é uma violência constitucionalmente inadmissível. O que pode relevar é que o juiz garanta o adequado exercício de funções e seja chamado à responsabilidade disciplinar, se o não fizer, resida ou não na sede do tribunal.
Com este quadro de restrições, incompatibilidades e limitações estatutárias a que me venho referindo nestas peças do blog e que certamente não é esgotante, fica a pergunta: que “privilégios”, afinal, disfrutam os juízes na sua vivência social?
08 fevereiro 2006
A propósito de crucifixos (5)
(Ambiguidades)
Mas se, como ia dizendo na minha anterior intervenção, mesmo os maiores apoiantes duma leitura “laicista” da actual regulamentação constitucional em matéria de religião não se veriam verdadeiramente como continuadores dos republicanos, não julgando por isso essencial à construção da democracia a resolução de qualquer “questão religiosa” (que, entre nós, apenas podia ser postulada por razões ideológicas), porque ficou na Constituição um texto susceptível de ser interpretado como impondo um “laicismo” à francesa (embora passível também, admitamo-lo, de outras leituras)? Ou seja, porque foi cuidadosamente afastado da Constituição qualquer tipo de referência à especificidade da nossa história em matéria das relações entre o Estado e a Igreja (Católica, no caso), em termos capazes de gerar a ideia de que a existência desta, como a das outras Igrejas, será matéria de todo irrelevante para o Estado – algo que realmente, pelo menos na Europa “latina”, só poderá aproximar-nos da solução francesa?
Paradoxalmente, talvez, precisamente por a “questão religiosa” não ser sentida como verdadeiramente importante – muito ao contrário do que, ingenuamente, poderíamos supor que seria característico das matérias dignas de tratamento constitucional. Ou seja, para a “esquerda”, na esteira dos velhos republicanos, a consagração duma orientação aparentemente “laicista” ficaria sempre bem, até como mais um florão do carácter inegavelmente avançado e progressista da nossa Constituição e duma superação definitiva da “noite fascista” – ainda que se soubesse que a única questão social e politicamente relevante na área das relações com a Igreja Católica era a do divórcio (já resolvida), e se devesse suspeitar que, quanto ao resto, as coisas iriam ficar mais ou menos como no tempo do Estado Novo, uma vez que ninguém estaria verdadeiramente interessado em impor medidas “anticlericais” (tais como uma revogação pura e simples do regime concordatário vigente). Para os mais “conservadores” (e até para os católicos, mais ou menos progressistas), também este “laicismo” estritamente verbal (ou tão só aparente) nenhuma real importância teria – como, aliás, se confirmou subsequentemente na prática, inclusive em questões de grande importância para os defensores ideológicos da “República laica”.
Estas considerações, que já vão decerto demasiado longas, visaram tão só tornar mais claro algo que me parece pesar de forma muito negativa na (desejável?) consolidação em Portugal duma verdadeira democracia – ou seja, a inexistência de soluções jurídicas para questões fundamentais (constitucionais), em termos que possam ser objectivamente compreendidos e aceites, ainda que sem qualquer adesão estritamente pessoal (que precisamente, em democracia, não pode ser considerada um requisito necessário, ou sequer desejável), por parte de todos os interessados em compreender o sistema jurídico-político em que se inserem, de modo a poderem agir de forma politicamente eficaz e produtiva no âmbito do mesmo (ainda que seja, precisamente, tendo em vista a modificação das características essenciais do sistema).
E esta questão da “laicidade”, ou até do “laicismo”, parece-me ser paradigmática neste aspecto – como de imediato se tornará claro caso assumamos o ponto de vista dum investigador que tente avaliar, a partir de fora, qual o “tipo” de relações entre o Estado e as religiões que vigora em Portugal. Não sabemos como poderia este hipotético investigador concluir se temos, afinal, um regime “laicista” à francesa ou o regime “concordatário”, de relações “privilegiadas” com a Igreja Católica, que será “típico” dos países europeus meridionais como a Espanha e a Itália (a Grécia é ortodoxa, conservando ainda hoje, salvo erro, esta sua religião de Estado).
O que sabemos é que, como portugueses e juristas, apenas poderíamos responder que Portugal não se integra em nenhum destes “tipos” de Estado – não porque pertença a uma terceira espécie “sui generis”, mas porque realmente se integra, ao mesmo tempo, em ambos os tipos propostos. Aliás, em bom rigor, talvez também se integre noutros tipos, tais como o germânico, de convivência pacífica ou mesmo de apoio, por parte do Estado, a todas as religiões ou orientações filosóficas dotadas dum mínimo de representatividade, sem privilégios nem discriminações de qualquer tipo – tal como o testemunhariam certas disposições da Lei de Liberdade Religiosa (muito embora as Concordatas celebradas com a Igreja Católica pudessem levar algum mal intencionado a concluir que aquela Lei será, sobretudo, a Lei das outras confissões religiosas).
Ou seja, pese embora o paradoxo e a grosseria desta conclusão, Portugal integrará simultaneamente todos os referidos “tipos” de Estado e, afinal, nenhum deles – e vive muito bem assim, já que ninguém é obrigado a facilitar a vida aos investigadores em ciências sociais.
(continua)
07 fevereiro 2006
Guerra de civilizações
Como era de esperar, as violentas manifestações no mundo islâmico contra as caricaturas de Maomé publicadas na Dinamarca foram "interpretadas" por alguns dos nossos comentadores de serviço como uma demonstração "incontestável" de uma guerra de civilizações, ou melhor, de uma guerra do islamismo contra a "verdadeira" civilização - a nossa. Os valores do islamismo, de que as manifestações de rua seriam a expressão, estariam em contradição irreconciliável com os "nossos" valores; concretamente, o desprezo pela liberdade de imprensa e a exigência de que nós a limitemos demonstraria em especial esse contraste de valores.
Este tipo de análise esquece várias coisas. Esquece que as liberdades estão em crise no "nosso Ocidente" e por culpa dos "nossos" governantes. Exemplos: Guantánamo, tortura de prisioneiros, escutas sem autorização judicial, prisões secretas, raptos na rua, detenções prolongadas sem controlo judicial, enfim toda a vasta panóplia de instrumentos de "combate ao terrorismo". Mesmo quanto à liberdade de imprensa, aparentemente intocada, lembremo-nos de que como ela foi limitada nos EUA durante a invasão do Iraque e como é sempre condicionada quando está em causa o "interesse nacional" (confundido com o interesse do executivo no poder).
A "nossa civilização" está sem grandes argumentos para contestar a "rua muçulmana".
É claro que poderemos dizer que os nossos governantes não exprimem devidamente os valores da nossa civilização. Mas quem garante que a "rua muçulmana" traduz rigorosamente os valores da civilização que invoca? Quem pode afirmar com rigor que o islamismo, enquanto "civilização", é incompatível com as liberdades?
A "rua muçulmana" que explode de raiva não exprime valores civilizacionais diferentes dos nossos; exprime e manifesta ressentimentos, frustrações, desespero e revolta por humilhações e feridas acumuladas ao longo de décadas, infligidas por colonizadores, "protectores", neocolonizadores, "civilizadores" que a ferro e fogo ali impuseram, não os "valores" que o "Ocidente" proclama, mas o domínio, o poder, a exploração dos povos e dos abundantes recursos naturais, geralmente em aliança com pequenos círculos de poderosos, tradicionais ou impostos de fora, chamados pelos "civilizadores" a partilharem o saque. Todas as tentativas de laicização e aggiornamento político no mundo árabe e muçulmano foram contrariadas ou sufocadas pelos "civilizadores", pois elas naturalmente conflituam com a exploração colonial ou semi-colonial imposta pelo "Ocidente". Afinal, quem é responsável pela falta de "tradição democrática" no mundo muçulmano?
Quanto ao "fanatismo religioso" direi o seguinte: a religião serve muitas vezes de berço, de regaço e de manto para os povos oprimidos. Os casos da Polónia e da Irlanda aí estão: o catolicismo ardente foi a bandeira de resistência nacional aos ocupantes estrangeiros. O islamismo desempenha actualmente a mesma função nos países muçulmanos e na diáspora. É neste quadro que deve ser compreendido o "fanatismo" que as imagens televisivas com tanta abundância exibem.
Este tipo de análise esquece várias coisas. Esquece que as liberdades estão em crise no "nosso Ocidente" e por culpa dos "nossos" governantes. Exemplos: Guantánamo, tortura de prisioneiros, escutas sem autorização judicial, prisões secretas, raptos na rua, detenções prolongadas sem controlo judicial, enfim toda a vasta panóplia de instrumentos de "combate ao terrorismo". Mesmo quanto à liberdade de imprensa, aparentemente intocada, lembremo-nos de que como ela foi limitada nos EUA durante a invasão do Iraque e como é sempre condicionada quando está em causa o "interesse nacional" (confundido com o interesse do executivo no poder).
A "nossa civilização" está sem grandes argumentos para contestar a "rua muçulmana".
É claro que poderemos dizer que os nossos governantes não exprimem devidamente os valores da nossa civilização. Mas quem garante que a "rua muçulmana" traduz rigorosamente os valores da civilização que invoca? Quem pode afirmar com rigor que o islamismo, enquanto "civilização", é incompatível com as liberdades?
A "rua muçulmana" que explode de raiva não exprime valores civilizacionais diferentes dos nossos; exprime e manifesta ressentimentos, frustrações, desespero e revolta por humilhações e feridas acumuladas ao longo de décadas, infligidas por colonizadores, "protectores", neocolonizadores, "civilizadores" que a ferro e fogo ali impuseram, não os "valores" que o "Ocidente" proclama, mas o domínio, o poder, a exploração dos povos e dos abundantes recursos naturais, geralmente em aliança com pequenos círculos de poderosos, tradicionais ou impostos de fora, chamados pelos "civilizadores" a partilharem o saque. Todas as tentativas de laicização e aggiornamento político no mundo árabe e muçulmano foram contrariadas ou sufocadas pelos "civilizadores", pois elas naturalmente conflituam com a exploração colonial ou semi-colonial imposta pelo "Ocidente". Afinal, quem é responsável pela falta de "tradição democrática" no mundo muçulmano?
Quanto ao "fanatismo religioso" direi o seguinte: a religião serve muitas vezes de berço, de regaço e de manto para os povos oprimidos. Os casos da Polónia e da Irlanda aí estão: o catolicismo ardente foi a bandeira de resistência nacional aos ocupantes estrangeiros. O islamismo desempenha actualmente a mesma função nos países muçulmanos e na diáspora. É neste quadro que deve ser compreendido o "fanatismo" que as imagens televisivas com tanta abundância exibem.
06 fevereiro 2006
Zelo a mais
Devo dizê-lo com toda a frontalidade: sou contra a tão (hoje) badalada "greve de zelo" nos tribunais. É um comportamento que só degrada ainda mais a imagem de magistrados e oficiais de justiça junto da população. Para nós, magistrados, o Governo não é o "nosso" patrão, nós não trabalhamos para o MJ ou para o Governo! Não temos que estar "motivados" ou "desmotivados", conforme o MJ sorria ou faça cara feia para nós. Nós não somos funcionários (mesmo os oficiais de justiça são, e eles tendem a esquecê-lo quando isso importa desvantagens, um corpo especial). Temos de assumir o nosso estatuto por inteiro. Assumir a condição de funcionários-burocratas, ainda que como forma de "luta", tem um custo demasiado alto. Quem não quer ser funcionário não veste "mangas de alpaca"! Se as veste, não se pode queixar...
Gandhi e a obesidade
Em tempos que já lá vão, a gordura, quase a obesidade, significava formosura… no feminino.
Era aquela beleza, ilustrada em pinturas célebres: mulheres gordas deitadas na relva ou, então, por ex. olhando-se deleitadamente ao espelho. Eram a delícia de um estético conceito de beleza para uma época.
Hoje já não é assim: a gordura leva rapidamente à obesidade, significando apenas doença (OMS 2005), não sendo sinónimo de riqueza, antes apontando para a pobreza (na medida em que são os mais pobres que “consomem os produtos mais baratos” com “teores de gordura e de açúcar mais elevados”). Pode contribuir para distúrbios psicossociais, isolamento social, rejeição social, discriminação no local de trabalho, dificuldades em arranjar emprego etc.
Quem ler o Jornal Oficial da União Europeia de 31/1/2006 (JO C 24, pp. 63-72) fica a conhecer o Parecer do CESE sobre a «Obesidade na Europa – papel e responsabilidades dos parceiros da sociedade civil».
Diz-se que hoje, no mundo, os dois maiores problemas nutricionais são, “por um lado, a fome que afecta 600 milhões de pessoas e, por outro, a obesidade, que atinge 310 milhões de pessoas”.
Como curiosidades salienta-se que, na Europa, “há 14 milhões de crianças com excesso de peso, das quais 3 milhões são obesas, verificando-se mais de 400.000 novos casos por ano, o que corresponde a 1 em cada 4 crianças na UE-25. 10-20% das crianças do Norte da Europa têm excesso de peso. No sul da Europa e na Irlanda, a percentagem é de 20-35%. (…) Os novos meios de comunicação social, incluindo os jogos de computador e a Internet, assumem crucial importância no que respeita aos jovens, particularmente porque a sua utilização está relacionada com o aumento da obesidade”.
Mas há mais: “Em diversos países da UE, mais de metade da população adulta tem excesso de peso, pertencendo 20-30% dos adultos à categoria dos obesos”.
E, depois, “a obesidade na meia idade aumenta o risco de demência futura. Os 6 dos 7 principais factores de risco de morte prematura estão relacionados com a forma como comemos, bebemos e nos movimentamos (o outro factor de risco é o tabaco). A obesidade é responsável por 2-7% das despesas totais dos cuidados de saúde nos países desenvolvidos”.
Esta «epidemia» pode ser combatida com diferentes abordagens, devidamente articuladas, impondo intervenções que, no parecer do CESE, devem incidir sobre o nível da educação alimentar e no incentivo da adopção de estilos de vida saudáveis, em particular no que respeita ao exercício físico.
A intenção é boa e claro que é preciso combater a obesidade, protegendo e promovendo a saúde pública.
O que sobrou para desincentivar a obesidade foi Gandhi (curiosamente citado pelo CESE):
«Se queres mudar o mundo, começa por ti»!
Quanto à política de desenvolvimento para acabar com os outros milhões que morrem de fome - o reverso da história – essa merece outra abordagem, sempre em tempo, uma vez que não está para breve o fim dessa “pandemia”.
Não podemos, contudo, deixar de lembrar a recente oferta (não aceite) a país africano de toneladas de biscoitos para cão, com sabor agradável, sob pretexto de serem altamente nutritivos para seres humanos…
Era aquela beleza, ilustrada em pinturas célebres: mulheres gordas deitadas na relva ou, então, por ex. olhando-se deleitadamente ao espelho. Eram a delícia de um estético conceito de beleza para uma época.
Hoje já não é assim: a gordura leva rapidamente à obesidade, significando apenas doença (OMS 2005), não sendo sinónimo de riqueza, antes apontando para a pobreza (na medida em que são os mais pobres que “consomem os produtos mais baratos” com “teores de gordura e de açúcar mais elevados”). Pode contribuir para distúrbios psicossociais, isolamento social, rejeição social, discriminação no local de trabalho, dificuldades em arranjar emprego etc.
Quem ler o Jornal Oficial da União Europeia de 31/1/2006 (JO C 24, pp. 63-72) fica a conhecer o Parecer do CESE sobre a «Obesidade na Europa – papel e responsabilidades dos parceiros da sociedade civil».
Diz-se que hoje, no mundo, os dois maiores problemas nutricionais são, “por um lado, a fome que afecta 600 milhões de pessoas e, por outro, a obesidade, que atinge 310 milhões de pessoas”.
Como curiosidades salienta-se que, na Europa, “há 14 milhões de crianças com excesso de peso, das quais 3 milhões são obesas, verificando-se mais de 400.000 novos casos por ano, o que corresponde a 1 em cada 4 crianças na UE-25. 10-20% das crianças do Norte da Europa têm excesso de peso. No sul da Europa e na Irlanda, a percentagem é de 20-35%. (…) Os novos meios de comunicação social, incluindo os jogos de computador e a Internet, assumem crucial importância no que respeita aos jovens, particularmente porque a sua utilização está relacionada com o aumento da obesidade”.
Mas há mais: “Em diversos países da UE, mais de metade da população adulta tem excesso de peso, pertencendo 20-30% dos adultos à categoria dos obesos”.
E, depois, “a obesidade na meia idade aumenta o risco de demência futura. Os 6 dos 7 principais factores de risco de morte prematura estão relacionados com a forma como comemos, bebemos e nos movimentamos (o outro factor de risco é o tabaco). A obesidade é responsável por 2-7% das despesas totais dos cuidados de saúde nos países desenvolvidos”.
Esta «epidemia» pode ser combatida com diferentes abordagens, devidamente articuladas, impondo intervenções que, no parecer do CESE, devem incidir sobre o nível da educação alimentar e no incentivo da adopção de estilos de vida saudáveis, em particular no que respeita ao exercício físico.
A intenção é boa e claro que é preciso combater a obesidade, protegendo e promovendo a saúde pública.
O que sobrou para desincentivar a obesidade foi Gandhi (curiosamente citado pelo CESE):
«Se queres mudar o mundo, começa por ti»!
Quanto à política de desenvolvimento para acabar com os outros milhões que morrem de fome - o reverso da história – essa merece outra abordagem, sempre em tempo, uma vez que não está para breve o fim dessa “pandemia”.
Não podemos, contudo, deixar de lembrar a recente oferta (não aceite) a país africano de toneladas de biscoitos para cão, com sabor agradável, sob pretexto de serem altamente nutritivos para seres humanos…
Match Point
Às vezes não convém mesmo saber a verdade, nem tão pouco interessa aprofundar seja o que for, sequer as relações que se vão estabelecendo e mantendo ao longo de anos.
A vida vai deslizando, rolando ao sabor de uma artificial já natural defesa, necessária no dia a dia, para evitar surpresas que subtilmente podemos chamar de desagradáveis, aborrecidas ou incómodas.
Tudo se passa com uma aparente harmonia, como se todos «ganhassem» ou «perdessem», de uma forma indefinida, quase desinteressada, sem significado, mas compensatória mesmo em mundos diferentes.
Comportamentos socialmente correctos, polidos, acessíveis a qualquer pessoa, sabiamente representados, no aparente respeito das regras do jogo de cada grupo ou classe numa sociedade sem classes. Sim, mesmo no “grande-pequeno” circulo em que cada um se move, com muita ou pouca “sorte” pode encontrar pessoas que são assim mesmo, atraídas só pela vida social a que aspiram avidamente, sempre agradáveis, que encantam, seduzem, até ocorrer aquele «clic», consoante o «gosto» e a «exigência» de cada um…
É a natureza humana. A vida boa que deslumbra… quantas vezes reduzida ao plano material que atrai irresistivelmente… quer mesmo para quem nega a materialidade, quer para quem tem a ambição desmedida.
É o fascínio pela sociedade de consumo, pela visibilidade, pelas mordomias que se interiorizam e se vendem de tal modo que se tornam imprescindíveis, havendo sempre quem esteja disposto alcançar tudo isso a qualquer preço. Então, não há sentimento que resista, a não ser aquele que convenientemente serve os próprios interesses.
Tudo o que dá prazer é aceite, vivido intensamente, até se tornar inconveniente, altura em que inevitavelmente terá de ser eliminado para que a vida siga o seu rumo sem sobressaltos.
A humanidade é assim mesmo, feita de coisas boas e de coisas más, por vezes dependendo da habilidade e da perícia do jogador, como a bola que vai e vem, que às vezes toca na rede e, momentaneamente, não sabemos em que lado cai. Mas, o “acaso” acontece, a gravidade tem o seu peso e tudo parece «encaixar» para quem quiser viver sem se preocupar em aprofundar.
Match Point pode ser assim, no seu habilidoso argumento tão sedutor. É Woody Allen no seu melhor.
A vida vai deslizando, rolando ao sabor de uma artificial já natural defesa, necessária no dia a dia, para evitar surpresas que subtilmente podemos chamar de desagradáveis, aborrecidas ou incómodas.
Tudo se passa com uma aparente harmonia, como se todos «ganhassem» ou «perdessem», de uma forma indefinida, quase desinteressada, sem significado, mas compensatória mesmo em mundos diferentes.
Comportamentos socialmente correctos, polidos, acessíveis a qualquer pessoa, sabiamente representados, no aparente respeito das regras do jogo de cada grupo ou classe numa sociedade sem classes. Sim, mesmo no “grande-pequeno” circulo em que cada um se move, com muita ou pouca “sorte” pode encontrar pessoas que são assim mesmo, atraídas só pela vida social a que aspiram avidamente, sempre agradáveis, que encantam, seduzem, até ocorrer aquele «clic», consoante o «gosto» e a «exigência» de cada um…
É a natureza humana. A vida boa que deslumbra… quantas vezes reduzida ao plano material que atrai irresistivelmente… quer mesmo para quem nega a materialidade, quer para quem tem a ambição desmedida.
É o fascínio pela sociedade de consumo, pela visibilidade, pelas mordomias que se interiorizam e se vendem de tal modo que se tornam imprescindíveis, havendo sempre quem esteja disposto alcançar tudo isso a qualquer preço. Então, não há sentimento que resista, a não ser aquele que convenientemente serve os próprios interesses.
Tudo o que dá prazer é aceite, vivido intensamente, até se tornar inconveniente, altura em que inevitavelmente terá de ser eliminado para que a vida siga o seu rumo sem sobressaltos.
A humanidade é assim mesmo, feita de coisas boas e de coisas más, por vezes dependendo da habilidade e da perícia do jogador, como a bola que vai e vem, que às vezes toca na rede e, momentaneamente, não sabemos em que lado cai. Mas, o “acaso” acontece, a gravidade tem o seu peso e tudo parece «encaixar» para quem quiser viver sem se preocupar em aprofundar.
Match Point pode ser assim, no seu habilidoso argumento tão sedutor. É Woody Allen no seu melhor.