31 janeiro 2006

 

«Influências que se movem, sectarismo, medievalismo», «amiguismo» - problemas da cultura

“Influências que se movem, sectarismo, medievalismo. Textos que se escrevem em função dos favores, críticas que se cozinham como benesses e mesuras a amigos e colegas de trabalho (é assim que se formam as clientelas, alguma dúvida?).”

Esta é uma das frases mais marcantes na polémica levantada pelo, para mim, indispensável (pelo menos desde que aí li uma entrevista inolvidável a Luis Pacheco) Esplanar, e, com o sentido de oportunidade de JPP, retomada no Abrupto. O subscrever de tais considerações não implica que se considere que essa é uma pequena ponta de um véu nacional (embora muitas vezes a mais hilariante, vejam-se algumas críticas literárias do Jornal das Letras), já que tal frase tem apenas a ver com a crítica literária ou de uma forma geral com a produção cultural.
Não tem qualquer relação com o que se passa no nosso país noutras áreas, e muito menos com o funcionamento de quaisquer órgãos de soberania... aí as coisas são a sério num país que já é pós-moderno, pós-industrial e certamente absorveu ao nível dos elementos basilares do Estado de direito um dos fundamentos que distingue as sociedades modernas das pré-modernas, a diferenciação social, pelo que as questões constitucionais não são em caso algum confundíveis com «coisas de amigos».
Até por que, de certo, está interiorizada a importância da diferenciação social enquanto factor de liberdade individual, pois numa sociedade indiferenciada as pessoas relacionam-se entre si transportando todas as suas posições na vida (por exemplo pai de família, membro de um corpo profissional, simpatizante ou militante de um partido, elemento daquela asssociação, etc, etc) com a consequência de que cada um sabe do outro e pode aplicar esse conhecimento para influenciá-lo.

PS- Este postal também não tem qualquer relação com o postal anterior nem com o PS do mesmo.

 

Política criminal: uma dita lei-quadro foi aprovada, e agora?

Depois da aprovação em plenário da «Lei-Quadro da Política Criminal», apresentada como matricial, impõe-se uma mais aguda atenção crítica sobre as diversas vertentes da definição e execução da política criminal e responsabilidades envolvidas mesmo que relativas a «minudências» como as aqui tratadas...
Para rematar a chaga dos meus postais anteriores à aprovação, algumas notas finais sobre o cenário (jurídico) pós lei-quadro:

- Como já se destacou aqui, no plano jurídico-constitucional e funcional-institucional na nossa ordem jurídica não existe (não pode existir) autonomia dos órgãos de polícia criminal, o que é preciso determinar é a medida e âmbito da sua dependência relativamente ao Governo, por um lado, e relativamente às autoridades judiciárias (em particular ao Ministério Público), por outro.
Um modelo em que quem tem de vir prestar contas sobre a investigação criminal é o Ministério Público, reservando-se os relatórios governamentais «à prevenção criminal e à execução de penas», exige que se acentue e efective a dependência funcional dos órgãos de polícia criminal relativamente ao órgão constitucional que vai ter de assumir no parlamento e perante a comunidade a responsabilidade pela investigação criminal - e, por seu turno, esta entidade tem a obrigação de assumir (e dar notícia de) todos os entorses sofridos na tripla vertente da acção penal, sua preparação, exercício e sustentação.

- A dimensão política da acção penal e o alargamento da sua fronteira tem tudo a ver com a competência dos tribunais judiciais, com o quadro da sua intervenção, mesmo que se reconheça que «Não assumindo força obrigatória geral, a resolução sobre objectivos, prioridades e orientações de política criminal não põe em causa, de forma directa ou indirecta, a independência dos tribunais, decorrente do princípio da separação e interdependência de poderes, e a sua exclusiva subordinação à lei». Pois como também aí se refere os institutos de diversão «dependem sempre da iniciativa das autoridades judiciárias e requerem uma avaliação casuística, embora sujeita a critérios gerais (para respeitar o princípio da igualdade), sobre o exercício do poder punitivo».
Agora é insofismável que por esta via, ainda que de forma indirecta (se se preferir essa formulação retórica), fixa-se um quadro competência ou legítima intervenção judicial, já que o controlo das funções do Ministério Público que em termos epistemológicos não obedecem a uma matriz judiciária mas a uma motivação política (expressa nas resoluções), deverá ser efectivado por órgãos democraticamente legitimados e não por órgãos judiciais (no caso através dos relatórios à Assembleia da República).
Concretizando, se forem legítimas as resoluções parlamentares (mesmo que incorrectas nas suas opções) não é legítima a recusa judicial relativamente às iniciativas ou decisões do MP, fundada na divergência sobre a bondade das resoluções que lhes estão na base (que não podem ser sindicadas judicialmente na sua dimensão política).

- Na nota justificativa da proposta de lei-quadro da política criminal referiu-se, a dado passo, que «não há legislação a alterar ou revogar, embora se admita que a experiência resultante da aplicação das futuras resoluções da política criminal possa vir a suscitar a necessidade de adaptação do Estatuto do Ministério Público [...]». Este é um tema que urge reavaliar em face da Lei-Quadro, em momento prévio à «experiência» da sua aplicação, e muito para além da lei-quadro pois o estatuto constitucional do Ministério Público (que logicamente não se deve por alterar d euma lei que diz ser a melhor via para a respectiva concretização) adequa-se a outros modelos normativos de funcionamento e organização (aliás a lei de 1998 introduziu alterações irrelevantes em termos em termos de gestão de recursos humanos que são o núcleo da magistratura do MP).
Quanto à lei-quadro, é importante ter presente (o que não parece acontecer) a distinção das responsabilidades políticas do procurador-geral da República (enquanto elemento cimeiro da estrutura funcional) e do Conselho Superior do Ministério Público (órgão colegial que tem as competências de gestão e organização), pelo que o primeiro apenas tem de prestar contas na medida dos seus poderes não tem de prestar contas por aquilo que o Conselho decide, em processos em que, eventualmente, até foi vencido (para não falar da indispensável autonomia funcional dos magistrados que decidem nos processos).


PS- Este comentário é ainda de ordem jurídica, o que não obsta a que se considere que existem sinais muito mais importantes do que as leis produzidas, ou dito de outra forma expressões reveladoras (pela pessoa dos seus autores ou pela recepção que têm em certos meios) de uma determinada cultura, relativamente à política criminal ou, pelo menos, às relações entre política e crime. Vejam-se as recentes iniciativas de Jorge Coelho, e do agora popular Duarte Lima, sendo certo que os aplausos a este último não são beliscados por aqueles que se preocupam com minudências como o José da GLQL e o Eduardo Dâmaso - aliás será certamente uma coincidência que dois dos deputados que se destacaram no júbilo tumultuoso, Ana Drago e Ricardo Rodrigues, tivessem na sexta-feira anterior o seu momento de maior destaque jurídico, numa audição parlamentar a um sr. procurador-geral da República sobre um processo judicial que anteriormente tinha gerado outro júbilo não menos tumultuoso, na mesma Casa (então de satisfação com uma decisão judicial... concreta).

Aditamento a PS- o deputado Ricardo Rodrigues teve no mesmo curto período de tempo um outro momento de grande destaque jurídico, na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Eurominas (embora aqui com uma preocupação maior na celeridade processual do que a revelada no procedimento de audição que decorreu na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).

 

Direito penal v. clientela da prostituição

O “pecado” e a “imoralidade”, dois aliados inseparáveis, sempre foram associados à sexualidade exercida fora das regras socialmente permitidas, tendo justificado ao longo de séculos uma sagrada, rigorosa e máxima (hoje podemos dizer «irracional») tutela penal.

Porém, como se reconhece hoje em dia, a missão do direito penal é proteger, de forma fragmentária, o bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual, isto é, proteger este específico bem jurídico pessoal apenas dos ataques mais graves, intoleráveis e perigosos.

Estando em causa o «desenvolvimento da vida sexual» do menor, compreende-se a criação de um tipo legal que puna o cliente da prostituição de menores, tal como sucede, por exemplo, em Espanha, Dinamarca, Itália ou França (ver, aliás, artigo 2-c) ii) da Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho, de 22/12/2003, JO L 13 de 20/1/2004, pp. 0044-0048).

Mas, no que toca à sexualidade dos adultos (no pleno gozo de todas as suas capacidades), a intervenção do direito penal só se justifica quando, de forma grave e intolerável (v.g. situações de coacção), for posta em causa a liberdade sexual, enquanto valor eminentemente pessoal e não enquanto valor transpessoal (o que se protege é o indivíduo e não a sociedade e as suas valorações).

Ou seja, a opção pela criação de um tipo legal que puna o cliente da prostituição de maiores é incompatível com a moderna concepção do direito penal num Estado de direito material, democrático e laico, orientado pelo pluralismo, pela tolerância e pelo seu carácter liberal.
Terá de ser através de meios não penais (v.g. políticas educativas, económicas, sociais e de emprego que permitam reduzir a pobreza e a exclusão social, promovendo os direitos humanos) que o Estado deverá combater dramas sociais que a todos preocupam.

O Estado não pode, na falta de execução de políticas sociais, enveredar pela via da criminalização excessiva.

Como diz Lüttger (cit. por Costa Andrade, “Direito Penal e modernas técnicas biomédicas”, RDE, XII, 1986, p. 102), «o direito penal tem de deixar de valer como instância moral do cidadão ou de representar qualquer mínimo ético».


30 janeiro 2006

 

Pinochet e Al Capone: almas gémeas

Muitas são de facto as afinidades entre estas duas personalidades. Vejamos. Ambas mataram muita gente (Pinochet matou mais). Ambas ganharam fortunas ilicitamente (Pinochet ganhou mais). Ambas beneficiaram de impunidade relativamente aos crimes de sangue. Al Capone acabou por ser condenado por crime fiscal; Pinochet arrisca-se a ter o mesmo destino.
Há uma diferença: não consta que Al Capone tenha posto a família a "sacar".

 

Simetrias

O Hamás ganhou as eleições com maioria absolut(íssim)a. São legítimos representantes do povo palestiniano.
No entanto, os EUA e Israel recusam-no como "interlocutor".
Algumas dúvidas: Quem tem legitimidade para escolher os representantes palestinianos - o "interlocutor" ou o povo palestiniano? Devem os palestinianos votar tantas vezes até que "acertem" nos representantes "certos" do ponto de vista dos outros? Poderão os palestinianos recusar como interlocutor o governo que vier a ser escolhido pelos israelitas nas próximas eleições? Poderiam ter recusado Sharon quando foi eleito e trazia as credenciais dos massacres de Beirute e outros actos de idêntico calibre?
Não há aqui um problema de simetria?

29 janeiro 2006

 

O caso d'Outreau

Em França, o político e o judiciário estão (uma vez mais) em colisão.
O mundo mediático parece exultar e, ampliando o fragor político, que começou pelo Presidente, clama por justiça: neste caso, em registo próximo do discurso populista, pela justiça dos inocentes, gente modesta apanhada num turbilhão sem muito esclarecimento; a absolvição, se resolve processualmente quase tudo, pode não servir materialmente de grande coisa.
O sector político aproveitou o ambiente emocional gerado e a oportunidade, mediática e de opinião, para aparentes “ajustes de contas” com o sistema.
Novidade a exigir reflexão e a determinar alguma perturbação nos necessários equilíbrios institucionais das democracias consolidadas: está instalada e em audições uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar sobre o “desastre judiciário” em que foi transformado o caso d’Outreau.
No pelourinho, amarrado e “cuisiné”, o juiz de instrução (“à la française”) Fabrice Burgaud (que foi já ouvido durante todo um dia pela Inspecção-Geral dos Serviços Judiciários, e será ouvido na comissão parlamentar no dia 8 de Fevereiro), transformado, de um momento para o outro, de “herói” da magistratura no “symbole honni d’une justice qui se trompe et brise des innocents”, nas palavras do “Nouvel Observateur” de 19-25 de Janeiro (o tema está retomado e ampliado no número desta semana).
A fronda política e mediática tem sido impressionante.
Declarações inflamadas sobre os horrores da justiça (a ponto de o próprio ministro da Justiça ter tentado pôr alguma água na fervura), debates nas televisões dando voz em directo às vítimas (os inocentes) de Outreau.
Tudo em drama real, e com muito “share”, às costas de um juiz de instrução – que, de resto, no decurso do processo, viu confirmadas pelas instâncias superiores todas as suas decisões e a maior parte das prisões preventivas que ordenou, e que, alguns dias antes da audiência, colhia louvores pela instrução que dirigiu.
E anatematizando com o nefando horror da “reacção corporativa” qualquer tentativa de contraditório.
No entanto, em tudo quanto tenho acompanhado do caso, com o interesse de simples observador com o distanciamento crítico e a possível atenção a outras realidades para além da nossa, não tenho dado conta de referências a factores elementares que (por estratégia?; por interesses?) todos parecem desconsiderar: a fluidez, por vezes inescapável, dos elementos com que o juiz trabalhou e que o levaram a seguir por onde seguiu. No caso, o “récit” de alguns intervenientes e, especialmente, as declarações de uma testemunha que muito falou (Myriam Badaoui) e que, por fim, na audiência, tudo desdisse.
E este seria o elemento central que deveria fazer mexer consciências tão perturbadas e que é esquecido no tsunami político e mediático contra a justiça.
E também – por prevenção – verificar que revolução mais ou menos de veludo ou de silêncio quase anestesiante parece estar a caminho (noutras paragens, mas bem próximas) para permitir, sem discussão, que uma comissão parlamentar, quebrando todos os equilíbrios da separação de poderes, investigue sobre a actuação e as decisões de instituições judiciais num caso concreto.

 

As últimas eleições presidenciais

Das eleições do passado Domingo, retiro pessoalmente estas conclusões:
1 - A necessidade sentida, muitas vezes de modo difuso, pelo eleitorado (inclusive de esquerda) de criar um contrapeso à dominância de um partido que obteve uma maioria absoluta e cujos perigos de descambar para o autoritarismo se têm feito sentir em diversos sectores. Cavaco apareceu como o homem capaz de estabelecer esse equilíbrio, para além do seu perfil de homem austero, sério, rigoroso, exemplarmente cultivado durante a campanha, em que contrastou de quase todos os outros candidatos, que fizeram uma campanha pela negativa e frequentemente agressiva. Soares, nisso, ultrapassou todas as marcas, perdendo o seu autoproclamado “fair play”. Acresce o perfil técnico do candidato, a sobrelevar em termos de importância as questões ideológicas, num tempo em que os problemas a resolver são de ordem tão imperativamente material e imediata, que não parecem ter coloração ideológica. Assim é que, confrontado com a designada «política de direita» do governo no próprio dia das eleições, o ministro Correia de Campos respondeu que a política do governo não era de direita nem de esquerda, mas nacional.
2 - O fim de um ciclo político na vida portuguesa, ainda muito marcado por uma geração que vinha das profundidades espessas da ditadura, que transportava consigo a memória das lutas antifascistas, dos terríveis anos da Segunda Guerra Mundial, das experiências do MUD e das querelas entre o socialismo real e o socialismo democrático e que se impôs a seguir ao «25 de Abril» através de um árduo combate, quase degenerando numa guerra civil, com o triunfo e a institucionalização daquele modelo de democracia que, se meteu o socialismo «na gaveta», veio a revelar-se historicamente como inafastável nos seus fundamentos e princípios estruturantes. Soares era (e é) a encarnação dessa memória e desse combate vitorioso que os textos recentemente publicados por Eduardo Lourenço evocam com um misto de nostalgia e de exaltação heróica, porventura deixando transparecer essa ideia de fim de um ciclo. Sendo simultaneamente protagonista e símbolo desses tempos, Soares sempre se apresentou em público com os direitos que esse estatuto reclamava, como se lhe bastasse fazer um sinal para toda a gente se render à majestade do gesto e curvar-se perante a carga simbólica que ele transportava e o património vivo que ele era e é ainda.
Porém, desta vez, nenhuma vaga de fundo correspondeu à majestade do gesto, assim como não lhe valeram outros brasões, como o de ser ele o homem da cultura que se contrapunha ao homem da economia, desamparado este de todos os valores culturais. Mas esse homem tinha, por sinal, como mandatário nacional, uma das figuras mais relevantes da ciência médica e dessa mesma cultura que Soares queria reclamar para si em exclusivo. E Alegre, vindo também da ditadura e da resistência antifascista, mas pertencente a outra geração, mais próxima das crises académicas dos anos 60, poeta, com a musicalidade da sua poesia de resistência a vibrar ainda na memória afectiva de muitos dos que engrossaram as fileiras da sua rebeldia, palmou-lhe uma grossa fatia dos artistas e intelectuais que ele gostaria de ter, como noutros tempos, a seu lado. Habituado a ser rei (embora republicano, socialista e laico), o reino fugiu-lhe, inclusive o do partido de que foi o pai fundador, e com isso, a rebeldia manifestada não foi só a de Alegre, mas a de muitos militantes e simpatizantes desse partido e, de um modo geral, do eleitorado de Esquerda. A realidade mudou.
3 - O começo do declínio do monopólio dos partidos no exercício da actividade política, ao menos no que diz respeito à eleição do presidente da República, cuja matriz constitucional não assenta nos partidos, mas de que estes nunca abriram mão. Um dos erros crassos de Soares foi ter pensado que os aparelhos partidários eram indispensáveis, quer para o lançamento do candidato, quer para o êxito da candidatura, menosprezando sobranceiramente a candidatura de Alegre exactamente por não ter apoio partidário e colando-se excessivamente ao directório do PS. O resultado viu-se. Não só Alegre o bateu por largos pontos, como Cavaco, distanciando-se prudentemente dos partidos, se alçou ao primeiro lugar. Até nisso se manifestou o desejo do eleitorado de ver na presidência alguém que representasse ou pelo menos aparentasse uma atitude de equidistância e de equilíbrio em relação ao excessivo poder que os partidos, também eles tomados de descrédito e em crise, têm na vida política portuguesa.

28 janeiro 2006

 

A abertura do ano judicial

A sessão solene de abertura do ano judicial¸ cerimónia que a lei manda celebrar¸ deve ser vista e aproveitada como um acontecimento marcante da vida da instituição judicial.
O acto não pode ser menorizado nem acantonado no espaço das rotinas ou das festividades formais ordenadas pelo calendário.
As instituições vivem e manifestam-se também através dos seus momentos rituais¸ pela dimensão real e simbólica da projecção externa¸ física e visível¸ e do enquadramento auto-referencial de reencontro interno.
É (deve ser e tem sido) um acto com forte conteúdo real dando relevante dimensão material à oportunidade simbólica do ritual.
Aliás¸ cerimónias de abertura são celebradas por instituições judiciais dos vários Estados e pelas instâncias internacionais.
A cerimónia serve¸ pois¸ a instituição¸ com a solenidade do acto e na presença dos restantes poderes do Estado ao nível mais elevado dos cerimoniais protocolares do Estado¸ e projecta-se como o espaço e o momento de afirmação e de encontro da instituição judicial com os cidadãos.
Neste acto¸ através dos seus responsáveis¸ a instituição tem a oportunidade de cumprir o dever de apresentar¸ com visibilidade¸ aos cidadãos (e na mediação institucional com os restantes poderes) a acção geral da justiça¸ as suas dificuldades¸ as perspectivas¸ num discurso simultaneamente de reflexão e de projecção no futuro.
Por fim¸ as palavras do Presidente da República¸ como supremo Magistrado e garante do funcionamento das instituições democráticas¸ têm constituído sempre um momento de contribuição para uma serena reflexão sobre o presente e o futuro.
A cerimónia¸ devidamente compreendida na sua dimensão real e simbólica¸ tem de ser valorizada¸ sem complexos¸ como momento ritual único e verdadeiramente importante para o corpus da instituição.

 

Um discurso do PR para ler e meditar

O discurso do PR na cerimónia de abertura do ano judicial, presumivelmente a última intervenção de Jorge Sampaio sobre a justiça, merece, pela sua inegável importância, sublinhada logo pela adesão que suscitou nos presentes, uma reflexão. E uma primeira reflexão aqui quero deixar.
Tirando a questão do "mapa judiciário", que não é uma questão menor, e em que me parece que o discurso erradamente sobrepõe uma lógica de racionalidade de gestão a uma perspectiva de proximidade da justiça aos cidadãos (que é um valor essencial!), creio que o PR alinhou uma série de considerações não só pertinentes, como lapidares, e a merecerem meditação pelos diversos destinatários (porque eles são efectivamente diversos: Governo, grupos parlamentares, magistrados, advogados, funcionários judiciais, jornalistas...).
Dentre a multiplicidade de questões por ele abordadas, quero salientar as que se seguem. A começar pela questão responsabilidade/independência dos juízes. Muito claro ficou a necessidade de respeito da parte dos juízes, e magistrados em geral, pelos direitos fundamentais, pela protecção dos direitos de todos os intervenientes no processo. Mas simultaneamente o PR frisou que a responsabilidade dos juízes assenta necessariamente no dolo, sob pena de lesão da sua independência de julgar. Uma clarificação muito importante esta!
Quanto às escutas telefónicas, insistiu na conveniência em que só sejam admissíveis num catálogo restrito de crimes, estejam sempre sob controlo efectivo do juiz de instrução e que seja proibido recorrer a elas fora de um inquérito criminal. E advertiu ainda contra a «tentação» de criar uma instituição exterior ao sistema judicial para controlar a legalidade das escutas. Estamos aqui no âmago desta questão central para o processo penal e para a democracia. As escutas telefónicas são necessárias, mas o princípio da proporcionalidade impõe que elas sejam limitadas ao mínimo essencial para salvaguarda de valores fundamentais. Daí que se imponha o tal "catálogo restrito de crimes". Mas sempre se dirá aqui que não podem ficar excluídos desse catálogo precisamente aqueles crimes altamente danosos para o Estado e para a comunidade que assentam no acordo entre sujeitos activo e passivo, dissimulando e dificultando ao máximo a descoberta do facto criminoso (caso da corrupção, obviamente!).
O controlo efectivo do juiz de instrução é também absolutamente essencial, embora aqui deva eu acrescentar que esse controlo se deve limitar ao controlo da legalidade e não ao controolo do material a seleccionar para o inquérito, tarefa que deve caber ao MP, enquanto dominus do inquérito.
A defesa da proibição de escutas fora de um inquérito, agora que há quem proponha publicamente a sua extensão às actividades de "informação" (SIS), é também muito oportuna.
E também de evidente oportunidade é a contestação da eventual entrega do controlo da legalidade das escutas a uma entidade externa (solução que parece ter largas "simpatias" na AR!). Criar um tal mecanismo seria, sem qualquer dúvida, um atentado ao princípio da separação de poderes e consequentemente uma rotunda inconstitucionalidade!
O PR terminou preconizando, para a resolução dos problemas da justiça, um acordo entre todos os responsáveis, políticos e judiciários, o que não pode deixar de ser visto como uma "recomendação" ao Governo... E, mesmo a terminar, indicou como itens obrtigatórios desse acordo a independência dos juízes, a autonomia do MP («elementos essenciais da nossa democracia», sic) e o «adequado controlo das polícias de investigação criminal».
Muitos, muitos "recados" para o legislador! E também para os magistrados e os outros destinatários, que o devem meditar. É um discurso a revisitar com vagar.

 

A verdade é a verdade da maioria?

O caso Eurominas (um caso que se antevia muito minado) parece confirmar que os inquéritos parlamentares continuam norteados por um critério de verdade assaz volátil. Aguardemos o relatório final para ver quantas verdades ficam estabelecidas.

27 janeiro 2006

 

Caça ao homem

Os homens caçam-se?
Quem poderá duvidar? Sempre que a polícia procura ou persegue um criminoso de maneira mais espectacular, logo salta para as letras gordas dos jornais (e para as legendas dos telejornais) a expressão «caça ao homem».
Tão vulgarizada está a expressão que já (quase) nem estranhamos, já (quase) não nos indignamos perante uma tal monstruosidade, denunciadora do valor que tem actualmente na nossa sociedade a dignidade humana.

 

Mais uma vitória de Bush

Bush acumula êxitos no Médio Oriente: no Iraque é o que se sabe, no Irão foi eleito recentemente um presidente ultra-ultra-ultra- nacionalista/fundamentalista, na Palestina ganhou agora o Hamás.
Brilhante, não é verdade? Confirmação de uma estratégia notável, de uma sagacidade impressionante de toda uma equipa de trabalho!
Até onde os (nos) levará uma tal capacidade de compreensão do sentimento profundo dos povos, das subtilezas da diversidade cultural, de análise da realidade, em suma?
Quanto tempo levarão os norte-americanos a compreender o abismo para que os (nos) encaminham?

25 janeiro 2006

 

Política criminal: só mais duas notas

No seguimento de vários textos de reflexão aqui publicados referentes ao projecto governamental de lei-quadro de política criminal, gostaria de encerrar provisoriamente esse tema com duas breves notas.
A primeira é para reafirmar aquilo que parece evidente e consensual, mas sempre valerá a pena realçar (dentro do princípio quod abundat non nocet): a nova legislação é de todo incompatível com qualquer autonomia dos órgãos de polícia criminal, devendo ser revogado o nº 6 do art. 2º da Lei de Investigação Criminal (Lei nº 21/2000, de 10-8); a não ser expressamente revogado, deverá entender-se como tacitamente revogado.
A segunda nota é a seguinte: o PGR afirmou ontem na AR, com todas as letras, que o projecto legislativo não é uma lei de política criminal, mas sim uma lei para circunscrever a actuação do MP. À noite, no noticiário da TVI veio a confirmação, pela boca de M. Sousa Tavares, conhecido adversário da autonomia do MP. Este bem informado comentador explicou o verdadeiro sentido do projecto: é um primeiro passo para acabar com a autonomia do MP. (Outros passos se seguirão, portanto.) Por que é que não explicaram logo assim e andam com tantos rodeios?

24 janeiro 2006

 

Legalizar a prostituição?

O Pedro Vaz Patto volta a participar na discussão de um tema que já foi aqui tratado, com o envio de um texto que tenho o maior gosto em publicar:

A questão da legalização da prostituição está «em cima da mesa». Sem querer, de modo algum, pôr em causa a boa fé de quem pensa o contrário, a primeira observação que me ocorre é que uma proposta como esta nada tem de “progressista”. A prostituição é uma prática velha como o mundo. A sua legalização não representa qualquer progresso, mas antes a capitulação conformista diante de uma realidade que se tem por inevitável, como se fosse uma fatalidade classificar as pessoas (e as mulheres em particular) como de primeira e segunda categoria quanto à tutela da sua dignidade. Quando se fala na prostituição como algo de inevitável ou um “mal necessário”, pensa-se sempre nas filhas dos outros, que serão as filhas dos outros, e não as nossas, a fornecer a “matéria-prima” de uma actividade “empresarial” que se pretende equiparar a qualquer outra. Parece que se desistiu, definitivamente, de mudar o mundo…
Diz-se que a legalização da prostituição é a melhor forma de combater a prostituição forçada, a prostituição infantil e a violência exercida sobre quem exerce tal actividade, e também de tutelar a saúde e os direitos dessas pessoas (menos merecedoras de atenção são as razões de quem invoca, a este propósito, os interesses fiscais do Estado).
Opinião completamente diferente têm associações que trabalham “no terreno” e se dedicam ao apoio e reinserção social das vítimas da prostituição, como, por exemplo, a associação internacional Coalition Against Trafficking in Women (
www.catwinternational.org), as associações italianas IROKO, presidida pela investigadora nigeriana Esohe Aghatise, e Comunidade João XXIII, presidida pelo Pe. Oreste Benzi (www.apg23.org) e a associação portuguesa “O Ninho” (ver a entrevista da sua presidente, Inês Fontinha, no Público de 10 de Janeiro de 2006).
Em alternativa a essa opção, essas e outras associações aplaudem a política do Governo sueco, que se baseia em pressupostos radicalmente diferentes. Para este, a prostituição é sempre uma forma de violência sobre as mulheres e não é uma fatalidade. Desde 1999, a legislação sueca pune quem explora a actividade de prostituição de outrem e (o que é inovador) também o cliente, ao mesmo tempo que prevê formas de incentivo à reinserção social das pessoas que se prostituem, estas descriminalizadas e encaradas como vítimas. De acordo com o balanço efectuado pela ministra responsável pelo sector (ver
www.prostitutionresearch.com), nos primeiros três anos posteriores à entrada em vigor da lei, o número de mulheres que se dedicam à prostituição reduziu-se em mais de um terço e a procura dessa actividade reduziu-se em cerca de três quartos. Em comparação, a actividade cresceu nos outros países escandinavos, que seguem políticas diferentes. As investigações policiais revelam que os traficantes, porque vêm diminuídos os seus lucros em resultado da diminuição da procura, preferem ter outros países como destino. A lei recolhe o apoio da maioria (cerca de oitenta por cento) da população e, em particular, de associações de apoio às mulheres vítimas da prostituição e de mulheres que abandonaram a prostituição.
Esta experiência revela que não há apenas a alternativa entre a prostituição clandestina e a legal. Não são apenas estas (não podem ser) as alternativas que o Estado deve oferecer às vítimas da prostituição.
Há razões lógicas, confirmadas por estudos (ver
www.prostitutionresearch.com e www.catwinternational.org), que demonstram que a legalização da prostituição não é um caminho para resolver nenhum dos problemas normalmente invocados para a justificar.
Não é uma forma de combater ou limitar a prostituição forçada. É óbvio que esta se combate mais facilmente quando qualquer forma de exploração da prostituição é perseguida criminalmente do que quando, a coberto de uma pretensa mas frequentemente simulada (o que se compreende num contexto de grande carência socio-económica) voluntariedade, dessa perseguição podem ser excluídas algumas formas dessa exploração. A legalização, como é óbvio, dá aos “empresários” que exploram pessoas nessa situação de carência (e que são a grande maioria) uma outra segurança e protecção. E nessas situações de carência não é de esperar que sejam as mulheres a denunciar as pressões de que são vítimas ou a desmascarar a pretensa voluntariedade. Também esta pretensa (e frequentemente simulada) voluntariedade pode levar a que as instituições oficiais considerem desnecessária a protecção dessas mulheres. Nos países onde a prostituição foi legalizada, a esmagadora maioria das mulheres que se prostituem continua a ser proveniente dos países pobres do Terceiro Mundo ou da Europa de Leste, que facilmente poderão ser consideradas vítimas do tráfico.
Com a legalização, a prostituição aumenta significativamente. Na Holanda, os rendimentos respectivos correspondem a cinco por cento do rendimento nacional. Esse aumento também se dá na prostituição clandestina. Uma das razões para tal tem a ver com a vontade de evitar o controlo e a perda do anonimato que a legalização acarreta (as mulheres prostitutas não querem perder o anonimato, porque esperam poder um dia mudar de vida, sem que permaneçam quaisquer vestígios do seu passado).
Como também tem sido demonstrado por vários estudos, a violência física e psicológica é algo de intrínseco à prostituição, seja ela legal ou clandestina.
Os perigos para a saúde pública (em particular, no que se refere à difusão da sida) que decorrem da prática da prostituição só desaparecem verdadeiramente quando se abandona a sua prática, não quando esta é legalizada ou promovida. Os controlos sanitários que se efectuam quando a prostituição é legalizada incidem sobre a mulher que se prostitui, não sobre o cliente, visam mais a protecção deste do que a daquela, visam impedir o contágio deste por aquela, e não o contrário. Por outro lado, as pressões do “mercado” (legal ou ilegal) levam muitas vezes a mulher a aceitar a prática de relações sexuais sem o uso do preservativo (que, de qualquer modo, nunca é eficaz a cem por cento) a troco de uma maior remuneração, ou sob a ameaça de violência.
A favor da legalização da prostituição, invoca-se a autonomia pessoal e a liberdade de escolha. No entanto, é na dignidade da pessoa (em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se funda a República Portuguesa) que assenta a tutela da sua liberdade e, por isso, o consentimento do próprio nunca pode servir para legitimar atentados a essa dignidade. Não é admissível a escravatura, mesmo que consentida, como nunca o é o trabalho em condições desumanas. A dignidade da pessoa humana, na célebre visão kantiana, impede que esta seja tratada (pelos outros ou por ela mesma) como meio e não como fim em si própria. A prostituição é certamente dos exemplos mais nítidos de redução da pessoa a objecto ou instrumento.
Por outro lado, é uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excepcionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa actividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Há inquéritos que revelam que cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem escolheriam outras alternativas se estas lhes fossem proporcionadas. Ao Estado deve ser pedido que proporcione essas alternativas, e não que se demita de o fazer através da legalização da prostituição.

Pedro Vaz Patto

23 janeiro 2006

 

AINDA E SEMPRE A HISTÓRIA DAS ESCUTAS TELEFÓNICAS…

É tema recorrente e reincidente entre os órgãos de comunicação social, e não só, actualmente até com um realce desproporcionado, o das escutas telefónicas e sua interceptação e gravação. Que é um importante meio instrutório do Processo Penal, decisivo mesmo em muitos casos de investigação de crimes graves, obstando à sua impunidade, é um dado indesmentível.

Fala-se muito, tecem-se múltiplos comentários, centrando-se tudo na actuação dos operadores da investigação criminal, em especial, o Ministério Público, mas evita-se focar o regime legal das escutas telefónicas, enunciado só com o Código de Processo Penal de 1987, e que, pelos vistos, ninguém quer fazer desaparecer das Lei. Isto é assim porque aquele regime, iluminado pelo princípio constitucional da proibição de toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo os casos previstos na Lei em matéria de Processo Criminal (art. 34º, nº 4 e 32º, nº 8, CRP), é satisfatório: faz o equilíbrio entre os direitos individuais de defesa do arguido e o jus puniendi do Estado, sabido o grau de danosidade social que sempre provoca uma tal ingerência. Ponto é que seriam sempre respeitados os direitos de terceiros, alheios àquela investigação, sobretudo quanto à manipulação de dados.

Quer o citado Código, quer o melhor entendimento que dele fazem os tribunais, e desde logo, o Tribunal Constitucional, apontam para certas ideias-chave que satisfazem a tensão dialéctica entre a pessoa e o Estado, como sejam: o estabelecimento de um regime de autorização e controlo judicial da actividade de investigação criminal, implicando o acompanhamento próximo do Juiz enquanto decorrerem as operações policiais – próximo e contínuo, com destruição do material que não interessa à investigação; a aplicação num sistema de catálogo (só para certos tipos criminais mais graves) e a conjugação com o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado.

Se assim for, tudo bem, não se podendo esquecer, a propósito, que, na prática e no terreno, não estamos livres da ingerência que a CRP proíbe, pois é tecnicamente fácil – haja em vista a alta tecnologia israelita – a interpretação e gravação das comunicações telefónicas. Apetece até concluir: não se sirvam dos telefones para conversar, mas só para curtas mensagens.


 

O Supremo Tribunal Norte-Americano e a questão do suicídio assistido: a propósito da decisão Gonzales v. Oregon de 17/01/2006

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos respeitante à chamada “Lei morrer com dignidade”, aprovada em sucessivos referendos de 1994 e 1997, pelos eleitores do Estado do Oregon, reveste-se de particular interesse, tanto pela importância intrínseca do tema, como pela circunstância de constituir um teste (o primeiro) ao novo Chief Justice (Presidente do Tribunal) John Roberts,que, recorda-se,foi nomeado no final de 2005 pelo Presidente George W. Bush em substituição do falecido William Rehnquist.

As expectativas daqueles que viam na opção Roberts uma espécie de escolha de equilíbrio e moderação, perante as obsessões jurídico-ideológicas da agenda extremista da “christian coalition”, saíram defraudadas: o Chief Justice John Roberts alinhou, sem vacilar, com a posição da ala ideologicamente mais conservadora do Tribunal, aderindo, incondicionalmente, ao voto de vencido do Juiz Antonin Scalia. Sendo o suicídio assistido uma questão em que as agendas das direitas, política e ideológica, não coincidem necessariamente (como o ilustra a circunstância de os chamados “conservadores moderados” terem “salvo” a “Lei morrer com dignidade”), parece ficar claro qual o sentido da suposta “escolha de equilíbrio” do Presidente George W. Bush, ao nomear Roberts. O “mistério” da posição deste sobre o aborto, começa, assim, a desfazer-se.

Quanto á questão de fundo – a possibilidade de um Estado legislar autorizando um médico, em determinadas condições, a administrar substâncias visando encurtar a vida de um doente terminal que pretenda morrer –, o Tribunal, por uma maioria de seis votos [Kennedy (Relator), Stevens, O’Connor, Souter, Ginsburg e Breyer] contra três (Scalia, Roberts e Thomas), considerou não assistir ao Attorney General (equivalente ao Ministro da Justiça) a faculdade de proibir, através da regulamentação administrativa do acto médico, o cumprimento da Lei do Oregon. Esta, regulamenta a possibilidade de eutanásia, exclusivamente, nos casos em que um doente, através de uma escolha pessoal e esclarecida, formule o propósito de morrer, quando dois médicos atestarem o carácter incurável de uma doença e uma esperança de vida inferior a seis meses. Nestas condições – e apenas nelas –, segundo o “Oregon Death with Dignity Act”, o acto do médico que administre as substâncias visando provocar a morte não assume carácter ilícito.
O texto integral desta decisão (“Gonzales, Attorney General, et al. v. Oregon et al.) pode ser consultado, entre outros locais, no sítio da Universidade de Cornell, em www.law.cornell.edu/supct/html .

 

O julgamento dos portugueses

Para quem gosta dos rótulos políticos “direita/esquerda”, ficou a saber (se ainda tinha dúvidas) que o pulsar dos portugueses votantes (descontada a abstenção, arredondada para 37,4%, o que tem muita força) está quase ela por ela, embora com leve vantagem para a chamada “direita”.

Na assumida derrota da dita “esquerda”, procedendo aos respectivos agrupamentos, a divisão clássica é entre os conservadores, os alinhados e os desalinhados.
Claro que, nos tempos que correm, os conservadores da “esquerda” dificilmente chegarão ao poder mais apetecido.
As forças foram medidas entre os alinhados e os desalinhados.
Boas apostas, más apostas, apostas calculadas…

Colocando entre parênteses o vencedor (50,6%),
olhando apenas para o partido da governação (desde há quase um ano),
pesando votos na balança e continuando a arredondar: o que significa a divisão “oficial” dos 20,7% contra 14,3%?
Serão os “esclarecidos” ou os “cegos” protestos burgueses?
Será o fastio, o cansaço, a revolta dos invencíveis descontentes?
Não significará nada? Ou será melhor que não signifique nada?

Nestas presidenciais, os 1º e 2º lugares não alinharam na visível vontade da governação.
E, a abstenção vale mais do que a soma dos 2º e 3º lugares mais votados.

Assim, feitas as contas, poupados os custos da 2ª volta, segue-se o ambicionado namoro…
Cansados ou não com os atropelados e infindáveis discursos políticos (nada inovadores), há que esperar, sem surpresas, o futuro… e que sobre algum “piscar de olhos” para os portugueses!

 

MINUDÊNCIAS (4)

A REFORMA PENAL EM CURSO ( RPEC) E A PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR (art. 69º do C.Penal) -

A ALTERAÇÃO DE 2001 (conclusão)


Cumprindo o que me propusera – uma motivação como qualquer outra, afinal – concluo hoje as referências ao art. 69º do C.Penal inspiradas pela RPEC, falando das incongruências introduzidas pela alteração legislativa de 2001, na medida em que desta alteração resultou terem os tribunais deixado de aplicar a pena acessória de proibição de conduzir aos crimes materiais ou de resultado em que a violação das regras de condução é causa do evento típico (v.g. nos chamados homicídios negligentes estradais) e explicitando os receios de que possamos estar perante uma pequena história exemplar sob múltiplos pontos de vista e, designadamente, sobre a génese

1. Desde logo a incongruência que resulta da aplicação necessária e complementar da pena de proibição de conduzir a um crime de perigo abstracto como a condução sob efeito do álcool (cometido de forma dolosa ou negligente), e da sua não aplicação aos crimes negligentes de resultado cometidos no exercício da condução, por mais grave que seja a violação das regras do trânsito rodoviário. Quem, por conduzir com taxa de álcool no sangue de 1,1 g/l, provocar acidente de viação de que resulte o ferimento ou morte de outras pessoas, não será punido com a pena criminal acessória de proibição de conduzir, mas apenas com a sanção administrativa de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada para as contra-ordenações muito graves; quem conduzir com taxa de álcool no sangue de 1,2 g/l, independentemente das circunstâncias em que ingeriu o álcool e das circunstâncias de tempo, lugar e outras em que conduz, sempre será punido com um mínimo de três meses de pena criminal de proibição de conduzir.

Atendendo ao elevado desvalor do resultado e à frequência com que ocorrem crimes desta natureza, não seria mais conforme com uma política criminal esclarecida e consequente ponderar-se antes a ampliação do seu âmbito de aplicação nestes crimes de resultado, passando a pena criminal de proibição de conduzir a abarcar casos de contra-ordenação causal leve ?

2. Por outro lado, a incongruência que sempre resulta da aplicação da proibição de conduzir à condução perigosa de veículo rodoviário prevista no art. 291º do C. Penal como crime de perigo concreto, contra vida e a integridade física de outrem (para além de bens patrimoniais alheios de valor elevado), e da sua não aplicação ao crime de dano respectivo. Quem, por exemplo, violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativa ao limite de velocidade criar perigo para a vida de outrem é punido com a pena criminal de proibição de conduzir; quem efectivamente matar outrem nas mesmas circunstâncias é punido apenas com sanção administrativa acessória de inibição de conduzir pela prática da respectiva contra-ordenação grave ou muito grave.

3. –Como compreender tal opção legislativa? – Estamos apenas perante mais um exemplo de intervenção legislativa pouco cuidada e mesmo inconsequente, geradora de mais problemas do que aqueles que resolve ? –

Hesito entre a hipótese de erro por inconsideração do problema e a hipótese de despenalização intencional, motivada pela desvalorização das diferenças de regime e natureza entre a sanção acessória administrativa de inibição de conduzir e a pena acessória, de natureza criminal. Deixava de aplicar-se a proibição de conduzir nos casos de crime praticado por meio de contra-ordenação grave ou muito grave, na medida em que sempre seria aplicável àquela infracção a sanção administrativa de inibição de conduzir, mantendo-se a sanção criminal para os casos em que a conduta estradal não seria punível com a inibição de conduzir.

Esta última explicação tem a seu favor um pequeno trecho da exposição de motivos da proposta de lei em que o legislador (con)funde ambas as sanções, “… a sanção acessória de inibição de conduzir está prevista nos dois Códigos (artigo 139º do Código da Estrada e artigo 69º do Código Penal) .…” e ajusta-se bem aos receios (premonitórios ?) do Prof. F. Dias de que as novas sanções criminais introduzidas em 1995, tendo por objecto a privação temporária do direito de conduzir, viessem a ser vítimas de arremetidas por parte de lógicas exteriores à racionalidade e coerência penal que as suportavam. Escreveu ele: « Por demasiado severo que possa ser reputado o regime sugerido [referia-se às medidas de segurança de cassação e interdição da concessão, de licença, em termos válidos para a proibição de conduzir] (…), ponto é que, uma vez inscrito no C Penal, uma reforma do C Estrada não venha, como é de (infeliz) tradição entre nós, modificar atrabiliariamente um tal regime - na base de que a competência para a regulamentação pertence, segundo a matéria, ao «direito estradal», com sacrifício insuportável dos princípios e da racionalidade do sistema jurídico-penal.». – DPP -Consequências Jurídicas do Crime §794.


Independentemente da crítica resultante da confusão entre sanções de natureza e regime bem diversos, esta explicação sempre seria incoerente com a solução adoptada pelo legislador para o crime de perigo concreto previsto no art. 291º do C.Penal, em que boa parte dos comportamentos perigosos ali previstos (violação grosseira das regras de circulação rodoviária relativas à obrigação de parar, ao limite de velocidade, etc) constituem contra-ordenações graves ou muito graves que sempre seriam puníveis com inibição de conduzir. Ou seja, deixava de punir-se o homicídio negligente estradal com a sanção criminal porque à respectiva contra-ordenação causal seria aplicável inibição de conduzir, mas não se considerava suficiente e adequada idêntica solução para sancionar a conduta menos grave (291 C. Penal).

Volto, pois, à incerteza inicial sobre o propósito legislativo para enfatizar o valor exemplar da alteração de 2001 ao art. 69º do C. Penal, que procurei analisar com algum detalhe, quase à maneira hiper-realista, para deixar mais claras as sucessivas omissões e incoerências verificadas, com inegáveis consequências na aplicação prática do direito às situações vividas pelos cidadãos, fora e dentro dos tribunais, e os consequentes reflexos em matéria de política criminal, ou seja, de selecção das condutas criminalmente puníveis e das sanções que lhes correspondem.

A fechar as referências mais pormenorizadas ao art. 69º do C. Penal concluiria agora que, tanto quanto tive oportunidade de constatar, a reforma da parte geral do C. Penal, em curso, não prevê qualquer alteração àquele preceito (nem sequer para corrigir os evidentes lapsos materiais que vêm de alterações anteriores), apesar de contemplar alterações pontuais, e mesmo pontualíssimas, a algumas normas da parte geral.

Nos próximos tempos conto voltar a falar de outras minudências, a propósito das alterações contempladas na RPEC, dos procedimentos legislativos que vêem sendo adoptados e do posicionamento dos magistrados face a todas estas questões, numa linha de discussão de que se encontram já profícuos exemplos neste blogue.

 

Uma colherada endiabrada…

Pois é século XXI, nem sei que te diga, com tanta falta de surpresas: mas, enfim, ainda ontem, no jornal público, era realçada a possibilidade… longínqua… do «chefe espiritual dos anglicanos poder vir a ser uma mulher, mas nunca antes de 2012»!!!

Essa tão acarinhada visão “conciliadora” da religião com os princípios subjacentes às sociedades democráticas (sintetizados, por economia, no respeito da dignidade humana e na defesa da pluralidade e da tolerância), independentemente de crenças ou da fé de quem acredita, não deixa de alimentar … mais uma ilusão humana.

O fenómeno é mundial: as diversas religiões continuam, hoje em dia, a colocar a mulher em lugar subalterno e a ver, no masculino, a almejada dignidade humana.

E, pior do que isso: mulheres existem que aceitaram o estigma da impureza e da maldade, catalizando o sinal de inferioridade… há até quem acredite, nos nossos dias (pasme-se ou admire-se), que nascer mulher significa um castigo superior, pelas maldades feitas em vida anterior…

Símbolos, imagens, significados que passam de geração em geração por esse mundo fora, representando o domínio do poder da religião sobre a humanidade não agnóstica mas, com repercussão na que é agnóstica ou ateia…

Na religião católica, mesmo às freiras são vedadas determinadas funções ou actividades reservadas (de forma absoluta) aos padres. Porquê?

Noutras religiões, só para dar alguns exemplos, existem locais de oração separados em função do sexo da pessoa. Até há locais, considerados sagrados, a que as mulheres não podem aceder, nem sequer aproximar-se de figuras que se veneram.

Tal como a visão do crucifixo no catolicismo romano, em qualquer religião, a imagem de Deus ou do “Chefe Supremo” ou até dos seus representantes directos na terra é, em geral, sempre masculina…e habitualmente de raça branca ou amarela.

E, as mulheres (que até são em maior número) continuam subjugadas … e quem se interessa? Muitos dirão: problema delas! E pensam: ainda bem que é assim…

Olhando para os princípios e valores inerentes a cada religião (apesar das diferenças, em geral assemelham-se nas linhas de força e nas conclusões), até que ponto são compatíveis com as exigências das “revoluções” ou mesmo com as da vida (e cultura) moderna?
Aqui não vale confundir a prática de cada crente (mais ou menos aberta e tolerante, admitindo aquele «espaço de transgressão razoável») com o que está “escrito” e continua a ser interpretado ou veiculado…

A neutralidade e a não imposição de regras de conduta, nem de privilégios, não obstante as contradições existentes, deve ser o caminho a divulgar e a interiorizar.

O Estado, quando se quer libertar, diz (com mais ou menos coragem) que é laico.
Claro que a vida comunitária e a inerente cultura não deverão ser “programadas”, nem “orientadas”: a solução é ensinar, praticando a tolerância e a pluralidade.
Também a religião, seja ela qual for, deverá ocupar apenas o seu próprio lugar.

É importante saber identificar e reconhecer as fronteiras e limites de cada espaço: seja o político, o religioso, o cultural etc., sempre combinando a forma como cada sociedade está organizada com a necessária evolução e progressão, que nunca poderá ser contida.

O mal é que há sempre essa vontade de dominar ou de ser dominado…e as contradições aparecem quando se quer impor e perpetuar uma só visão… tantas vezes à custa da exploração da ignorância aliada à conveniente conservação do atraso…basta caminhar um pouco (como agora se diz) por esse Portugal profundo…

21 janeiro 2006

 

UBU ROI

Acte III, Scène II

(…)
Père Ubu
Je vais d’abord réformer la justice, après quoi nous procéderons aux finances.

Plusieurs Magistrats
Nous nous opposons à tout changement.

Père Ubu
Merde. D’abord les magistrats ne seront plus payés.

Magistrats
Et de quoi vivrons nous ? Nous sommes pauvres.

Père Ubu
Vous aurez les amendes que vous prononcerez et les biens des condamnés à mort.

Un Magistrat
Horreur.

Deuxième
Infamie.

Troisième
Scandale.

Quatrième
Indignité.

Tous
Nous nous refusons à juger dans des conditions pareilles.

Père Ubu
À la trappe les magistrats ! (Ils se débattent en vain.)

Mère Ubu
Eh! que fais-tu , Père Ubu ? Qui rendra maintenant la justice ?

Père Ubu
Tiens! moi. Tu verras comme ça marchera bien.
(...)

20 janeiro 2006

 

Laicidade e Crucifixos

Tenho o prazer de publicar um texto que o meu amigo Pedro Vaz Patto simpaticamente me enviou e que vai enriquecer um debate que no Sine Die tem sido «produtivo», desde a altura em que o Eduardo Maia Costa o lançou (crucifixos) e o João Paulo o retomou em três postais com compromisso de continuação (1, 2 e 3):

A polémica em torno da presença de crucifixos em escolas públicas tem-me feito recordar o quadro sob o qual exerci funções de juiz no início da minha carreira, na sala de audiências do Tribunal da Comarca de Gouveia. Espero que esta referência não sirva de denúncia para suscitar a intervenção “saneadora” de alguns mais zelosos guardiões da laicidade (situações semelhantes têm sido discutidas em tribunais norte-americanos). Representa tal quadro Moisés e as Tábuas da Lei. Sempre me pareceu adequada tal representação numa sala de audiências, não menos do que a representação de figuras da mitologia grega. Não está o Decálogo bem presente na cultura em que, crentes e não crentes, estamos imersos (non possiamo non dirci cristiani- é celebre a afirmação do filósofo agnóstico Benedetto Croce) e que serve de substracto ao nosso ordenamento jurídico, o penal em particular?. O “Não matarás” das Tábuas da Lei nada terá a ver, no plano histórico e cultural, com a punição do homicídio nas nossas sociedades?
O Estado deve ser laico, mas não o são a sociedade e a cultura. A laicidade do Estado traduz-se em neutralidade para com as religiões, não em indiferença ou hostilidade para com elas.
Aceito a linha de princípio indicada por Vital Moreira quando distingue entre espaço público (a sociedade e a cultura), onde as religiões não podem deixar de estar presentes, e o espaço estadual. Mas entre Estado e sociedade os espaços de interpenetração não podem deixar de existir. Um Estado insere-se numa sociedade e numa cultura determinadas e, tanto mais se for um Estado democrático, deve estar aberto a elas, não as pode ignorar ou menosprezar. Por isso, é natural que dignitários eclesiásticos, como representantes de uma instituição de relevo na sociedade civil, possam estar presentes em cerimónias oficiais. Ou que o Presidente da República possa estar presente em cerimónias religiosas particularmente significativas para largos extractos da população (não menos significativas do que são jogos de futebol onde participam clubes de que nem todos os portugueses são adeptos, e onde ninguém questiona que ele possa estar presente).
Esta interpenetração entre Estado e sociedade é particularmente evidente no que à escola se refere. A escola estadual é, mais do que estadual, escola pública. Não pode ignorar a cultura onde se insere, sob pena de se negar a si própria. Nada há de abusivo, por exemplo, em que nela se festeje o Natal respeitando o seu sentido mais autêntico (questão que também vem sendo discutida em tribunais norte-americanos), sem o desvirtuar reduzindo-o a uma bizarra “festa de Inverno” (isso sim , seria culturalmente agressivo e anti-democrático).
É a esta luz que vejo a questão da eventual presença de crucifixos em escolas públicas. Essa presença não pode ser imposta, mas também não vejo que deva ser proibida quando assim o reclama a comunidade escolar sem que alguém com isso se sinta discriminado. Foi a uma solução similar que se chegou na Baviera (onde a tradição é, como em Itália, neste aspecto, mais forte do que a nossa), depois de sobre a questão se ter pronunciado o Tribunal Constitucional Federal. Também em Itália se tem entendido que o crucifixo é um símbolo de identidade cultural, não incompatível com a laicidade do Estado. Este princípio sempre foi pacificamente aceite em regime democrático e pluralista, mesmo nas regiões onde mais se sentia a influência histórica do Partido Comunista. Só deixou de o ser por iniciativa de um recém-convertido ao islamismo que não tem tido qualquer apoio entre as associações muçulmanas mais representativas.
Quanto ao alcance do crucifixo como símbolo cultural, direi que muito lamentaria se o mesmo servisse de instrumento de divisão ou “arma de arremesso”. Com esse símbolo podem identificar-se muitos não crentes sensíveis às lutas pela justiça, pelos direitos humanos e pela solidariedade com os mais pobres. Na verdade, no crucifixo vemos a imagem de um Deus que se solidariza com as vítimas da injustiça e da opressão e com o sofrimento humano mais atroz. Devido a esta exaltação dos humildes, também Benedetto Croce via na revolução cristã a raiz de todas as revoluções posteriores em favor da dignidade humana (que sem aquela não se compreendem). Porquê retirar um símbolo tão rico de significado das paredes, como se algo de indecoroso se tratasse?

Pedro Vaz Patto

19 janeiro 2006

 

Política criminal: a resolução é solução?

Creio que o maior problema que o projecto de política criminal enfrenta, em termos de constitucionalidade, é a escolha do acto que serve de suporte à formulação das "orientações" sobre política criminal, isto é a resolução.
Na verdade, a definição de objectivos, prioridades e orientações constitui, pelo menos aparentemente um acto normativo. Ñão é uma pura recomendação, não é um voto de protesto ou de louvor, não é uma mera declaração de propósitos, é um acto que tem em vista desenvolver e dar execução (de alguma forma, "regulamentar") as normas jurídicas anteriormente aprovadas, e que tem eficácia externa, ao obrigar o PGR a assumir as prescrições do acto.
Mas, se é um acto normativo, não é seguramente um acto legislativo, pois não consta da enumeração exaustiva do nº 1 do art. 112º da Constituição, e, não o sendo, viola o disposto no nº 5 do mesmo artigo, que veda a criação por lei de outras categorias de actos legislativos ou a atribuição a actos de outra natureza (por exemplo, resoluções) do poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, etc., preceitos legais.
Mas, poderá a resolução sobre política criminal ser considerada um acto político? Não parece que assim possa ser entendido: um acto político rege-se essencialmente por interesses de oportunidade ou conveniência. No caso em análise, o que se pretende é conferir eficácia, dar execução a um quadro legislativo já definido, a cujas "valorações" tem de ser fiel («princípio da congruência» - art. 3º). Quando muito, poderíamos aceitar que a resolução em referência constituiria um acto atípico, híbrido, mas a conclusão seria sempre a da sua inconstitucionalidade, nos termos do citado nº 5 do art. 112º da Constituição.
A caracterização do acto como político tem aliás um inconveniente grave: a sua subtracção à fiscalização de constitucionalidade por parte do TC. E, em qualquer caso, como resolução que é, não submetida a promulgação, escapa necessariamente ao controlo preventivo da constitucionalidade.
Enfim, problemas e mais problemas, para um diploma que pretende precisamente vir resolver problemas...

 

Política criminal e autonomia do Ministério Público

A emissão de directivas dirigidas ao MP em matéria de política criminal é típica dos sistemas em que o MP depende do executivo e simultaneamente vigora o princípio da oportunidade. Nenhum problema se suscita aí quanto à validade ou constitucionalidade das directivas, geralmente, mas não necessariamente, oriundas do governo.
Mas a questão é totalmente diferente onde, como em Portugal, o MP é autónomo, e autónomo por prescrição constitucional. Como conciliar autonomia com sujeição a directivas externas? Note-se que o projecto governamental em discussão apressa-se a proclamar que as directivas não podem «prejudicar o princípio da legalidade, a independência dos tribunais e a autonomia do MP» (al. a) do art. 2º). Mas trata-se de uma "declaração piedosa", sem alcance normativo. O que importa é indagar se o articulado comporta algum atentado à autonomia.
O projecto tenta fazer a conciliação através de duas formas: restringindo a possibilidade de intervenção da AR à emissão de directivas genéricas; fazendo intervir no processo a AR, e dando-lhe a primazia decisória, limitando o papel do Governo à formulação da proposta. Acresce que a "vinculação" do MP é de "baixa intensidade", uma vez que, como já referi em texto anterior, as directivas da AR não afectam directamente o MP, cabendo ao PGR assumir (ou seja, interpretar, desenvolver, integrar, concretizar) tais directivas através de outras, direccionadas aos membros do MP, estas sim vinculativas para estes últimos, nos termos do seu Estatuto.
Mantendo-se, por outro lado, em vigência o princípio da legalidade e a sujeição do MP, na sua actividade, a critérios de legalidade estrita e de objectividade, creio que, embora o projecto implique alguma "compressão" do princípio da autonomia. o núcleo essencial deste está salvaguardado.
Mas com uma anotação importante: esta compressão constitui uma linha infranqueável, sob pena de lesão efectiva da autonomia. Seriam inconstitucionais quaisquer eventuais desenvolvimentos futuros no sentido de uma ampliação dos poderes de direcção (da AR ou do Governo) relativamente ao MP.
(Questão diferente é a de saber se se justifica, se é necessário, criar um instrumento como este. A essa questão já respondi, negativamente, em texto anterior.)

 

Os Juízes, os Direitos Fundamentais e os Ditos Privilégios(Segunda Abordagem)

Na anterior abordagem reflecti sobre o Direito Fundamental que é o direito de tomar parte na vida política e as restrições que têm de suportar os juízes em exercício relativamente a candidaturas às eleições autárquicas.

Mas no mesmo plano derivam da CRP (art. 216º, nº 5) e do EMJ (art. 11º, nº 1) outras restrições ou incompatibilidades, como a de não poderem participar em actividades de cariz político-partidário que sejam públicas (reuniões, manifestações, campanhas eleitorais, por exemplo). E nessa proibição faz-se caber a filiação num partido político.

Tudo isto, porém, não passa de uma falácia, pois, se há receio de que o comprometimento partidário possa ferir a independência dos juízes, é indesmentível que a preparação sócio-cultural dos juízes, incluindo as opções políticas, e o passado educativo deles, trazem pré-compreensões que vão necessariamente e imperceptivelmente desaguar nas decisões que têm de tomar.

A leitura das leis, e, desde logo, da CRP, tem subjacentes essas pré-compreensões e a sua aplicação vai sofrer essa influência. E tanto é falácia que, a coberto mesmo da lei, os juízes podem desempenhar, em comissão de serviço, cargos de natureza política, integrando gabinetes ministeriais ou serviços personalizados do Estado em Governos monopartidários, como é o actual Governo.

Mas há mais, embora noutro plano: aos juízes em exercício é vedado o desempenho de qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional, mesmo não remunerada, com ressalva da docência ou investigação científica, de natureza jurídica, e sem remuneração (art. 216º, nº 3, CRP e art. 13º, nº 1, EMJ), sendo de perguntar se o juiz interessado tem ainda de suportar os custos com tal actividade. Isto significa que, na prática, um juiz que tenha outra licenciatura, além do direito, ou que seja um artista plástico ou um actor teatral, não pode desempenhar uma actividade que lhe interesse, porque falha o requisito da natureza jurídica.

18 janeiro 2006

 

Cuidado, veja quem convida para jantar!

No passado fim de semana, a CIA levou a cabo um ataque aéreo contra uma aldeia do Paquistão, tendo morrido 18 civis (paquistaneses, claro), o que desencadeou largos protestos populares. A razão do ataque consistiu na suspeita de estar presente num jantar realizado na aldeia o "nº 2" da Al-Qaida. Pensava-se, contudo, que só tinham morrido civis, mas não: morreram também quatro ou cinco "terroristas". Como disse o governador da província, é lamentável que tenham perdido a vida 18 habitantes da aldeia, mas é inegável que 10 a 12 extremistas estrangeiros tinham sido convidados para jantar, sendo assim a proporção entre 18 civis mortos e 4 a 5 terroristas com o mesmo destino perfeitamente aceitável. Lamentável mas justificável. Ficou por esclarecer quantos civis valem um terrorista morto... Acresce que se suspeita agora que tenha mesmo morrido não o "nº 2", mas um "quadro" importante da mesma organização, cujo número na hierarquia não foi fornecido. Reforçada ficou assim a legitimidade da acção da CIA. Os civis mortos não eram terroristas, mas estavam sentados com eles à mesma mesa.
Sabendo-se que a guerra ao terrorismo decretada por Bush não tem limites temporais ou espaciais, que é uma guerra sem quartel, que os terroristas em parte alguma, seja em público, seja em privado, estão ao abrigo do devido e duro castigo, caro leitor, pondere, informe-se, analise o "curriculum" de quem vai convidar para jantar. Previna-se, antes que veja o seu jantar interrompido (lamentável, mas justificadamente) pelos competentes homens da CIA.

16 janeiro 2006

 

Pobretes mas nem sempre alegretes

Muito de longe em longe a pobreza é notícia. Não é para admirar, porque os pobres não são fotogénicos nem compram jornais. Eles só são notícia por via das estatísticas, que agora mais uma vez confirmam que Portugal é o país da UE onde é maior a desigualdade de rendimentos entre o grupo dos mais ricos e o dos mais pobres.
Ficaríamos talvez chocados e até com alguma incomodidade se não lêssemos de imediato a explicação oficiosa da ideologia dominante: «Sem um prévio e forte aumento da produtividade não há políticas sociais que resistam, por se tornarem financeiramente insustentáveis.» (Público, editorial de 15 de Janeiro).
A pobreza, não sendo assim propriamente uma fatalidade, não é culpa de ninguém (a não ser talvez dos próprios pobres...), não é uma preocupação actual, pois o combate à pobreza tem de esperar melhores dias. Podemos pois todos dormir dascansados.
Com o nível de riqueza actual, não há redistribuição possível, ou seja, os ricos não têm de ceder nada do que têm. Os pobres têm é de esperar (e rezar para) que os ricos se tornem mais ricos (graças ao tal aumento de produtividade) para que cedam um bocadinho do que vier a mais aos pobres ("ceder" se o Estado os obrigar, evidentemente). Conclusão: o problema não está nos ricos, mas em eles serem insuficientemente ricos.
Com algumas roupagens teóricas à mistura, é esta a ideologia que a toda a hora é destilada pela comunicação social, nos programas de economia, como nos noticiários, nos debates e em toda a programação, para proveito dos portugueses, em especial dos pobres, que infelizmente, por má vontade ou deficiência congénita, não a assimilam devidamente e por vezes têm a ousadia de mostrar a sua insatisfação perante o estado de coisas presente. Pobres e mal agradecidos!

 

Prostituição de valores “encriptada”!

Sempre achei graça que, para se falar de prostituição, mesmo para a defender dos exploradores, se tivesse de fazer de conta que ela era apenas feminina…

Pois então, a prostituição que agora comento não tem sexo apesar de, tradicionalmente, estar ligada a ele.

Também não a vou cingir ou espartilhar, centrando-a em partes específicas do corpo da pessoa. E, não a vou aliar apenas «à contrapartida económica».

O que eu sei é que a prostituição está na “cabeça” de cada um que fala dela, com mais ou menos amplitude, dependendo do seu contexto.

A prostituição, sempre associada ao mal, é (usando a tal visão tradicional) uma realidade “vendida”, por vezes “encapuçada”, com defeito, sem rosto, sem corpo, nem identidade.

E essa prostituição, que é destrutiva, está ligada a ideias e a corrupção … corrupção de valores, de ideais, de pensamento, de conceitos, enfim, corrupção do conceito da própria liberdade, em qualquer das suas vertentes.

Tantas ideias prostituídas que nos querem impingir …às vezes com bonitas “roupagens” para quem se encanta com as “embalagens”.
O certo é que, a cada passo se tropeça nessa forma prostituída de pensar e de divulgar: o grande veículo de transmissão e exibição é o quotidiano, quer nos contactos do dia a dia, quer nas notícias que se vão espalhando, ao jeito de القاعدة, sem escrúpulos, visando baralhar cabeças num país com tanta pobreza, v.g. cultural e educacional.

O problema é sempre o mesmo: gira à volta da forma de conceber o poder, a liberdade e a verdade.
Depois, esse triângulo é preenchido com factores que, para quem gosta de catalogar, pode associar a interesses económicos, a tráfico de influências, a jogos de bastidores, a irónicos superiores interesses políticos, tantas vezes disfarçados de interesses nacionais etc. … sendo a ordem desses factores arbitrária.
Quem não consegue chegar ao poder, com sorte manipula o poder vulnerável, ficando a pensar que está a exercer o poder: então vemos um país, num qualquer canto do mundo, em uníssono a falar do mesmo…desde o “escravo” cidadão até aos escravizados “deuses”… todos, sem ideias novas, de forma demagógica e populista, ao som da mesma música pimba, que entra em casa de toda a gente. E, as vítimas, transformadas em monstros, são escalpelizadas!

Aliás, nesse aspecto, podíamos dizer que a prostituição tem muita força! Quase que comanda a vida (interna e externa) de quem se deixa nela envolver. Por isso, esta particular forma de prostituição não precisa de «sindicato».

Hoje em dia nada é seguro porque todos ambicionam o poder a todo o custo.
Não se contesta a ambição mas a forma inclassificável como se quer alcançá-la.
Antigamente (e falo no passado recente) alguns chegavam ao poder encapotando os meios que, por isso, não eram visíveis ao comum dos cidadãos. Hoje vale tudo e é à descarada. A moralidade (com “cavalas” ou sem elas) agora é uma: a escalada ao poder de obscuros interesses esfomeados.

Revisitando a história no feminino, por este andar, qualquer dia só com uma Padeira de Aljubarrota é que se consegue acabar de vez com essas manipulações…

 

A propósito de crucifixos (3)

(“Laicismo” e laicidade)

Prosseguindo com estas breves considerações acerca dum alegado carácter “laico” da nossa República, deve referir-se que, independentemente do que cada um possa pensar, nunca será demais acentuar a excepcionalidade daquilo que poderia ser o seu modelo (ou seja, o “laicismo” à francesa), dentro dum contexto europeu.
Mesmo nos Estados Unidos (que tiveram a sua Revolução mais ou menos ao mesmo tempo que a francesa), a laicidade só é um fundamento do Estado na estrita medida em que funciona como garantia duma absoluta liberdade religiosa dos cidadãos, nomeadamente perante o próprio Estado – nunca por garantir a liberdade do Estado perante a religião, vista como um factor de eventual distorção na prossecução do interesse público (tal como se pode entender que estará implícito no “laicismo” à francesa). Recorde-se que, nos Estados Unidos, o perigo a evitar era simplesmente o das restrições de direitos (nomeadamente políticos) dos membros de eventuais minorias religiosas (tal como vigoravam, à data, no Reino Unido). Não existia, tal como existiu na Revolução Francesa, qualquer intenção de destruir as estruturas do “Ancien Régime”, assentes no suporte “ideológico” prestado, pela Igreja Católica (entidade exterior ao Estado propriamente dito), a uma determinada ordem social e política (no Reino Unido, como é sabido, a Igreja oficial e o Rei representavam, desde há muito, um só poder).
Daí, talvez, a especificidade da solução francesa, alicerçada nas sequelas das guerras de religião dos séculos XVI e XVII, radical e violentamente ensaiada nos anos “gloriosos” da Revolução (os da Deusa Razão, da alteração de calendário e do Terror jacobino) e finalmente consolidada pelas lutas políticas do séc. XIX – que terão levado a generalidade dos franceses a concluir que a paz social, em democracia, nunca seria possível sem que a religião do Estado fosse a de ele não ter, de todo, qualquer ligação ou conotação religiosa, por ténue que fosse. Não consigo deixar de pensar, pessoalmente, que a aceitação quase pacífica desta ideia estará ligada à obsessão francesa com a centralização e a “normalização” – que terá implicado que as feridas abertas pelas guerras ou controvérsias religiosas fossem demasiado profundas para serem politicamente sanadas de outro modo.
(continua)

 

Política criminal: vinculações e interrogações

Saber quem e como vinculam as resoluções sobre política criminal, segundo o projecto legislativo divulgado, coloca algumas interrogações.
Nos termos do projecto do Governo, a “política criminal” é fixada pela AR através de resoluções, sob proposta do Governo. Uma vez aprovadas, as resoluções vincularão esses dois órgãos de soberania, e apenas eles. O PR não fica vinculado, porque não participa do processo de decisão: as resoluções, nos termos da própria Constituição (art. 166º, nº 6), não são promulgadas.
E quanto aos “destinatários”? Em primeiro lugar, quem são os destinatários? O nº 2 do art. 11º diz que o MP assume os objectivos e adopta as prioridades e orientações das resoluções. Mas mais adiante o art. 13º, nº 1 estabelece que compete ao PGR «emitir as directivas, ordens e instruções destinadas a fazer cumprir as resoluções sobre a política criminal». Assim, o PGR é o destinatário único das resoluções sobre política criminal. Os magistrados do MP são, por sua vez, destinatários das directivas do PGR.
Daqui resulta o seguinte: os membros do MP estão obrigados ao cumprimento das directivas, ordens e instruções do PGR nos termos do seu Estatuto, que estabelece certas restrições aos poderes directivos do PGR, concretamente o dever de recusa do cumprimento de ordens ilegais e o direito de objecção de consciência com fundamento em grave violação da consciência jurídica. Portanto, as directivas dimanadas pelo PGR nos termos da futura (?) lei de política criminal não terão “estatuto” diferente das restantes, o mesmo acontecendo com a responsabilidade face às infracções cometidas.
Quanto ao PGR, o projecto legislativo não diz que ele fica vinculado pela resolução da AR, até porque ele será o intérprete ou mediador “normativo”. Ele deverá assumir os objectivos da resolução e dar-lhes corpo e viabilidade. Daqui que a “vinculação” e a responsabilização do PGR sejam de ordem política. A recusa ou a “má assunção” da resolução de política criminal deverão ser avaliadas politicamente.
Mas surge aqui um problema: é que, nos termos constitucionais, o PGR é responsável perante o Governo, que o propõe, e o PR, que o nomeia. A AR não tem qualquer participação nesse processo; pode apenas “fiscalizar” a acção do PGR, chamando-o a uma comissão especializada para responder a perguntas, mas não pode desencadear o processo de demissão, ainda que tenha perdido a confiança nele. Isto significa que a AR, mesmo que venha futuramente a considerar que o PGR não assumiu ou não assumiu devidamente a sua política criminal, não pode responsabilizá-lo, a não ser através de uma recomendação dirigida ao Governo (parece que é isso que resulta do art. 14º, nº 4 do projecto).
Já o Governo, poderá tomar a iniciativa de propor a demissão. Mas, não tendo o PR participado no processo de aprovação da resolução de política criminal, não estando a ela vinculado, pode recusar a proposta.
Numa hipótese dessas, nada inverosímil, a execução da política criminal encontrar-se-ia num beco sem saída.

15 janeiro 2006

 

Reflexões sobre a prostituição, a política e a justiça

Desde antes das férias que ando para atirar para este blogue umas duas ou três coisas suscitadas por reflexões alheias, mas, por um lado, os afazeres profissionais e as férias sobrevindas e, por outro, a preferência dada a outras ocupações, como pôr algumas leituras em dia (essa ambição permanentemente adiada) impediram-me de o fazer. As reflexões alheias a que me refiro têm a ver com duas notas do Maia Costa e também com um extenso texto do José, publicado há já bastante tempo na Grande Loja do Queijo Limiano sobre a geração de 60 e que constitui uma das mais demolidoras diatribes que tenho lido sobre essa «ínclita geração». Esta última reflexão, exigindo maior fôlego, ficará para mais tarde, se eu ainda tiver catadura para pegar nela. Quanto às reflexões do Maia Costa vou desde já comentá-las. E começo por dizer que, ao lê-las, tive a sensação de ele mas ter «roubado», pois dá-se a circunstância de eu até ter apontado num papel (um desses recibos do Multibanco, que à falta do celebrado «moleskine», dão mesmo jeito para meter ao bolso com o objectivo de servirem de repositório de ideias meteóricas que nos vêm à mente e que poderão servir ou não para posterior desenvolvimento) as ideias que ele veio depois a tratar em duas prosas publicadas neste blogue.
Uma delas diz respeito à questão da prostituição. Tal como Maia Costa, indigno-me com certas abordagens do tema e uma das minhas últimas crónicas jornalísticas - «Desvio e doença» - tocou de raspão essa problemática, de mistura com o tabaco e o álcool. São temas recorrentes onde uma intolerância de raiz moralista, mesmo no seio da esquerda (tão libertária!), em relação a comportamentos ou opções de vida pretensamente desviantes, intenta fazer convergir os comportamentos para uma ortodoxia cada vez mais uniformizadora ou normalizadora.
No que diz especificamente respeito à prostituição, arrepio-me com aquela retórica moralista que centra a questão na «venda do corpo» (mas a prostituta – façamos de conta que a prostituição é apenas feminina - vende realmente o corpo? E que porção dele é que vende? E ainda que o vendesse?) ou na escravidão da prostituta, como se não se pudesse conceber o exercício livre e até profissional da prostituição. Cada vez mais há um amplo sector da prostituição que se exerce sem ser por estritas necessidades económicas e se estas últimas subsistem ainda (e pelos vistos também cada vez mais) como factor de prostituição, então a solução está na adopção de uma política social e económica que acabe com elas. Além de que a prostituição tem muitas formas camufladas, mais ou menos legitimadas pela hipocrisia social, de se manifestar. A via da criminalização é que só pode conceber-se para aqueles casos muito estritos em que se perfile a exploração do negócio da prostituição ou esteja em causa a liberdade de autodeterminação das pessoas.
Uma solução à sueca é particularmente revoltante (pelo menos, eu assim acho), não só por clandestinizar e, no fundo, fazer recrudescer a prostituição, como principalmente por partir do princípio idiota de que o homem é o culpado e a mulher a vítima. Passei na Suécia uma temporada, há anos, em casa de amigos e tive tempo para me aperceber que, se o povo sueco é a muitos títulos digno de admiração, noutros não constitui nenhum exemplo a seguir. Uma das suas pechas é um paternalismo institucional (com uma versão puritana proveniente do protestantismo dos países do Norte) que por vezes raia o absurdo e ao qual o cidadão comum se acomoda passivamente. A legislação sobre a prostituição será um desses casos.

*
A outra questão diz respeito às concepções que demonstram na área da justiça os candidatos à presidência da República, sobretudo os da esquerda. Na verdade, o panorama é deveras confrangedor. Mário Soares restringe todo o universo da justiça ao caso «Casa Pia». Quando lhe perguntam o que pensa sobre o sector, ele põe-se a falar inevitavelmente da «Casa Pia», das investigações mal conduzidas, do Procurador-Geral da República e, de caminho, vai tecendo comentários catastróficos sobre o Ministério Público. Agora, a propósito do recente e histericamente explorado episódio das listas de telefones pagos pelo Estado e pertencentes a uma verdadeira miscelânea de entidades públicas, lá o vimos a esbracejar num comício público contra as escutas telefónicas (o candidato confunde escutas com listas de chamadas) com que o inevitável (do ponto de vista discursivo, claro) processo «Casa Pia» enxameou o país inteiro. Um pretexto de ouro para falar das liberdades ameaçadas.
Quanto a Manuel Alegre, questionado sobre a justiça, despejou algumas ideias (se assim se lhes pode chamar) coladas à última hora antes do debate televisivo. Umas pinceladas sobre a área cível, outras pinceladas sobre a área criminal, uma laracha aqui, outra laracha acolá, e no fim o que ficou foi uma espécie de borrão atirado à parede com pincel grosso e desleixado. Não lhe era exigível que falasse do cível, do administrativo, do criminal, mas muito simplesmente que tivesse uma simples e clara ideia sobre a justiça, compatível com as funções de um presidente da República, mas foi o que faltou.
A propósito destes acontecimentos recentes, manifestou a sua incomodidade patriótica perante o que, do seu ponto de vista, seria a gota de água que fez transbordar o copo e, naquele seu jeito frontal, deixou escapar que demitiria o Procurador-Geral da República (se fosse, naturalmente, ele que mandasse). Uma demissão óbvia, pois claro!, a fazer lembrar aquele dito que ficou para a História de um outro candidato nos tempos da ditadura: «Obviamente, demito-o!» Nem uma palavra crítica (ou ao menos céptica) sobre o facto mediático que despoletou toda esta histeria manipulatória.
Garcia Pereira é o candidato assumidamente justiceiro. Esse, sim, candidata-se para pôr a justiça no seu lugar e para denunciar a perversão do sistema, a qual vem a traduzir-se no uso monstruoso dos poderes investigatórios do Ministério Público para fins de assassinato político. Acho que já tínhamos ouvido a formulação desse juízo, por assim dizer, cabalístico noutros sectores da esquerda não totalitária, o que prova que «les bons esprits se rencontrent». Garcia Pereira, agora com a auréola de professor doutor, lá vai difundindo a sua mensagem, tão poderosa quanto invariável, pelos vários sítios, esses sim, diferentes, por onde passa, e com isso vai dando o seu valioso contributo político, à esquerda, para a futura reforma da justiça, provavelmente no sentido de o Ministério Público deixar de instrumentalizar politicamente os processos para ser processualmente instrumentalizado pela política.
Na área da esquerda, só Jerónimo de Sousa apontou claramente a autonomia do Ministério Público como um objectivo impostergável e é dos candidatos que se tem revelado mais contido e menos asnático na área da justiça. Aí a sua posição é contrastante com aquela, manifestamente conservadora e moralista, que revela relativamente à prostituição.
E já repararam como, falando de justiça a propósito das presidenciais, a questão se resume praticamente ao processo Casa Pia, com este a reger as discussões de forma implícita ou explícita? Por que será? O processo Casa Pia é a metáfora ou a metonímia da justiça à portuguesa? A ruína da nossa justiça ou a ruína da nossa política? Ou ainda o reino do maquiavelismo de quem?

 

Basta!

As exigências que impõe o dever de reserva - dever complexo na relativa antinomia entre a fluidez de perímetro e a finalidade inafastável como dever instrumental da imparcialidade objectiva - transportam consigo, no rigor das coisas, um corte na plenitude da cidadania no plano da expressão pública de sentimentos.
Não obstante, em questões essenciais, há sentimentos cuja manifestação o dever de reserva não pode impedir. A liberdade (melhor, o dever) de intervenção e de opinião ficaria, então, reduzida a limites constitucionalmente intoleráveis.
Seja-me permitido, por isso, manifestar um sentimento intenso de radical desencanto com o ambiente surrealista dos acontecimentos dos últimos dias - em que uma vez mais, e logo antes de tudo, se pretendeu amarrar ao pelourinho a justiça e as suas instituições.
Não ponho em causa a gravidade - objectiva - dos factos numa primeira e liminar abordagem.
Mas tenho o direito de cidadania de sentir uma profunda desilusão pelo modo de reacção.
Pela agitação, apriorística e de pré-comprensão imediatista de factos (ou supostos factos), na dependência da agenda de certa imprensa e ampliada pela comunicação.
Pelas pré-conclusões de primeira aparência, em inversão de valores na abordagem institucional.
Pela imediata insinuação sobre responsabilidade de servidores das instituições judiciárias, em desconfiança prévia e brutal sobre a regularidade das suas actuações.
Pela leveza insustentável - sim, é isto mesmo a insustentável leveza - com que parecem retirar-se conclusões antes da averiguação sobre os factos, apresentadas como pressupostos quanto à necessidade, natural e urgente, de esclarecimento completo.
Tudo isto tem objectivamente como efeito o risco de dissolução do Estado e das suas instituições fundamentais.
E aqui a comunicação também tem deveres e responsabilidades que lhe são impostos pela sua missão de interesse público.
Basta!

 

O «Que é a verdade?» (*)

Depois das indignações, no pós 24 horas, independentemente dos esforços de alguns lerem os factos (por exemplo aqui, aqui e aqui), parece que afinal o que mais importa não é identificar o causador, e os propagadores, da devassa (inequívoca e muito grave, mesmo que não confundível com escutas telefónicas, apesar do que dizem, nos seus habituais contributos cívicos, alguns dos ilustres juristas da nossa «praça»).
De qualquer modo, as perguntas / respostas de J. M. Fernandes no seu editorial de sábado são (uma vez mais) de antologia, pelo que merecem ser destacadas neste modesto canto, por particularmente esclarecedoras:
a) Sobre a ética pessoal de quem não «espreita através de fechaduras»: «O Público também acedeu ontem aos ficheiros informáticos onde, para além das chamadas realizadas a partir de dezenas de outros telefones. Eu próprio tenho, no meu computador, uma cópia desses ficheiros»;
b) Sobre as regras de direito probatório, para evitar um «non liquet» na falta de provas há sempre convenientes presunções «Foi então um erro involuntário da operadora de telecomunicações? Ou correspondeu a um pedido informal e ilegal da investigação?»;
c) Sobre a congruência lógica, à maneira dos velhos tempos da «Voz do Povo», primeiro diz-se: «O que ali está é pior do que ter espreitado a uma fechadura: é tê-lo feito e, depois, ter deixado “distraidamente” as fotografias ao alcance de todos» (parece que há quem para não ter de espreitar opte por copiar para o computador pessoal); mas depois pergunta-se: «os investigadores olharam para todas essas chamadas, ou eram tão analfabetos do ponto de vista informático que nem reparam que estavam lá registadas?» (então espreitaram ou não? Se leram apenas a informação imediatamente visível, a única que terá sido pedida, é porque são analfabetos... informáticos! E então como catalogar quem para ler um ficheiro de um programa corrente necessita de recorrer a um técnico informático?).

PS- Na abordagem de elevadas considerações sobre a devassa e preservação dos direitos individuais há quem faça questão de através de ratos, ratazanas, deneuves, e quejandos, não perder nenhuma oportunidade para revelar racionalidade e ética na comunicação, até porque é necessário reiterar manifestações inequívocas de elegância (felizmente tento não confundir certos personagens da blogosfera com grupos profissionais, políticos ou outras congregações, pois caso contrário teria muita dificuldade em dormir descansado).


(*)«Pilatos replicou-lhe: “Que é a verdade?”» (Jo 18: 38)

14 janeiro 2006

 

Um mundo de garantias

O Relatório apresentado pelos Estados Unidos ao Comité contra a Tortura das Nações Unidas, em aplicação do artigo 19º da Convenção contra a Tortura, é um documento que contém variados e interessantes elementos de informação, constando do seu Anexo I, II, B., entre outros elementos, uma descrição do estatuto, pleno de garantias, dos detidos de Guantanamo Bay.
Na sequência de decisão do Presidente, os Estados Unidos consideram, por interpretação própria, os detidos como “combatentes inimigos” que têm o direito de manter privados de liberdade enquanto durarem as hostilidades, mas que, como combatentes “não privilegiados” (ilegais), não gozam dos direitos garantidos aos prisioneiros de guerra (“combatentes privilegiados”) nos termos da 3ª Convenção de Genebra.
Por isso, segundo as autoridades americanas, não é imperativo nem necessário examinar individualmente se cada um dos “combatentes inimigos” deve ter direito ao estatuto de prisioneiro de guerra.
Após as decisões da Supreme Court nos casos Rasul v. Bush e Hamdi v. Rumsfeld, o Governo Federal instituiu tribunais para exame do estatuto de combatente dos detidos de Guantánamo, perante os quais podem contestar a qualificação como “combatente inimigo” e, consequentemente, o fundamento legal da detenção.
Os tribunais para os detidos de Guantánamo são compostos por três oficiais das Forças Armadas; as decisões são tomadas por maioria com base no princípio da prova preponderante.
O detido pode ter acesso antes da audiência a um relatório com elementos não secretos do dossiê.
Segundo informa o Relatório, os procedimentos são conduzidos com transparência, pois podem assistir observadores às partes não secretas dos processos.
As decisões dos referidos tribunais para exame do estatuto de combatente são reexaminadas por uma autoridade superior: um Director, que é contra-almirante.
Em suma, um mundo de garantias.
O Relatório é o documento com a referência CAT/C/48/Add 3.

13 janeiro 2006

 

Envelopes

A notícia do "envelope 9" sacudiu o país, pelo menos o país mediático, de tal forma que a campanha presidencial parece ter chegado ao fim, quando ia a meio. Poderosa deverá ser a notícia para assim quase paralisar o país. O processo Casa Pia revela-se mais uma vez fonte inesgotável de matéria-prima noticiosa. Certamente que não ficaremos por aqui; outros episódios se seguirão, pois é dos livros da estratégia de vendas manter os consumidores amarrados. (Mas a estratégia será só comercial?)
Não deixa no entanto de espantar que a notícia tenha sido universalmente recebida como verdade incontestável, provinda ela de um órgão de imprensa conhecido pelo seu carácter especulativo e sensacionalista. Se o inquérito anunciado vier a provar que a notícia é falsa, o que têm a dizer os indignados de hoje?
Aliás, o comunicado da PT lançou já um pelo menos parcial desmentido (ao dizer que mandou toda a informação referente ao cliente, sendo o cliente o Estado, portanto mandou a informação sobre todos os telefones pagos pelo Estado às «personalidades» que a isso têm direito, apesar de ter sido pedida a de uma determinada dessas personalidades) mas aguardemos os resultados do inquérito, não é assim? Pelo menos o PR vai esperar para decidir (o PM parece que já decidiu, mesmo sem ver; influência da "alta velocidade" do TGV?). Enfim, aguardemos o "regular funcionamento das instituições".
Entretanto, ouvi uma afirmação inacreditável: a de que um tribunal ordenar escutas ou pedir informação sobre telefonemas de responsáveis políticos, em inquérito criminal, é um atentado ao princípio da separação de poderes... Berlusconi não diria melhor!
Enquanto os gulosos do lugar de Souto de Moura de que falei há dias se vão chegando mais à frente, a campanha eleitoral findou. O vencedor das sondagens agradece. Os adversários estão a fazer oposição ao PGR. Ele está já a fazer o discurso de posse.

12 janeiro 2006

 

A propósito de crucifixos (2)


(“Laicismo” à francesa?)

As considerações feitas na minha anterior intervenção poderão parecer injustas, no que se refere às contribuições dadas pela “esquerda” para este debate dos crucifixos (nomeadamente se nelas incluirmos aquilo que disse o Maia Costa, neste “blog”). Com efeito, faz-se neste caso apelo a uma noção de “República laica”, que a Constituição imporia em termos claros, independentemente do que poderiam dizer ou desejar os “católicos” ou demais “conservadores”. Mas se este “laicismo” à francesa traduzir realmente o sentido das normas fundamentais na matéria (e poderemos admitir que tal leitura será admissível, face nomeadamente ao teor dos arts. 41º e 43º, nº 3, da Constituição, e de diversas disposições da Lei de Liberdade Religiosa), então uma boa parte do problema estará, precisamente, nas normas fundamentais aplicáveis.
Corrijam-me se estiver enganado, mas parece-me que, em França, o “laicismo” não será uma mera questão lateral, mais ou menos interessante, susceptível de animar conversas de café em que todos os pontos de vista poderão ser invocados e tidos em consideração. O “laicismo”, em França, é um “acquis” constitucional, verdadeiramente inseparável da ideia de “République” (que, em França, é sinónimo de “democracia”). O “laicismo”, em França, não é uma questão de esquerda ou de direita – é parte integral do conceito de democracia, decorrente da vontade de instauração dum Estado que respeite os princípios da “liberdade, igualdade e fraternidade”, que possa incluir verdadeiramente todos os cidadãos como membros iguais e de pleno direito da República. É uma noção que vai muito para além da simples separação (política e administrativa) entre o Estado e qualquer Igreja, para se tornar um elemento da própria ideia de Estado democrático – por oposição ao Estado do “Ancien Régime”, que discriminava, dividia e perseguia os seus súbditos, seguindo todo o tipo de critérios “arbitrários” (entre eles o da pertença ou não a determinada confissão religiosa).
Não quer isto dizer, nem isso é o mais importante, que tal conceito de laicismo decorra directamente da lei de 1905, que efectuou a separação entre a Igreja (católica) e o Estado – ou seja, que fez com que os bispos e sacerdotes deixassem de ser agentes administrativos (ou até políticos) do Estado francês, como era de uso nas monarquias liberais (e continuará a ser, ainda hoje, nas monarquias protestantes do norte da Europa, salvo erro). O que importa neste caso, como em todos os casos de assunção de princípios fundamentais (de verdadeira assunção, que permita nomeadamente derivar desses princípios “regras” de validade incontestável e de conteúdo inequívoco), é que a densidade conceptual do laicismo francês, quer na mente dos decisores políticos, quer até entre a população em geral, será realmente esta. E sê-lo-á de tal modo que se pôde chegar, de forma relativamente consensual, a desenvolvimentos tais como a célebre proibição do “véu islâmico” nas escolas – que parecem ultrapassar já quaisquer questões de separação entre o Estado e as Igrejas, para entrarem na programação da educação (e logo dos alunos) segundo directrizes filosóficas e políticas claramente assumidas (algo que, incidentalmente, a nossa Constituição expressamente proíbe, no nº 2 do seu art. 43º).

(continua)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)